SAL DE PRATA roteiro de Carlos Gerbase 10º tratamento - 13/05/2004 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ************************************************************ CENA 1. QUARTO - INTERIOR - DIA Garota (interpretada por CASSANDRA, 30 anos) de quem só vemos o rosto e os ombros nus, dá o texto abaixo, olhando para a câmara. Desde o começo, é óbvio que alguma coisa estranha está acontecendo com ela. GAROTA Nós gostaríamos muito que esse filme fosse censura livre, por uma questão comercial. No Brasil, as crianças e os jovens representam quarenta por cento da bilheteria. Por isso, não há cenas de violência. Garota geme baixinho e fecha os olhos rapidamente. GAROTA Também não há cenas com drogas. Talvez apareça alguém bebendo uma cerveja, ou fumando um cigarro, mas isso pode, né? Ser alcoólatra e morrer de câncer não têm problema: o governo recolhe imposto e tudo. Garota respira fundo antes de continuar. GAROTA Esse filme não tem o que a censura chama de sexo explícito. As cenas de nudez estão de acordo com o que aparece nas novelas. O roteiro tem alguns palavrões, mas isso faria o filme ser proibido para menores de doze anos, no máximo. Garota olha para baixo, parece que vai desistir, mas volta a encarar a câmara. GAROTA Mas tem outro problema: nós estamos, sem dúvida nenhuma, deturpando os valores morais e éticos da sociedade. Isso fará com que esse filme seja proibido para menores de dezesseis anos, prejudicando muito a nossa bilheteria. Garota faz nova pausa e tenta sorrir. GAROTA Por isso estamos bem felizes com a presença de vocês assistindo ao nosso filme. Vocês são uma prova de que é possível fazer cinema sem pensar apenas em questões comerciais. Garota interrompe o sorriso e começa a ofegar fortemente. GAROTA Sei que isso é um baita lugar-comum, mas nós gostaríamos que vocês tivessem o mesmo prazer vendo o filme que nós tivemos ao fazê-lo. Garota fecha os olhos e abre a boca. Seus músculos faciais se contraem, seu pescoço forma um arco. Ela coloca as costas da mão sobre a boca, contendo um grito. GAROTA Eu amo deturpar valores éticos e morais. O cinema não faz o menor sentido se não deturpar valores éticos e morais. É ou não é? ("desmonta" a personagem, olha pra baixo, sorri; olha pra a câmara outra vez) Corta! CENA 2. RUAS DO BAIRRO MOINHOS DE VENTO/FACHADA DO EDIFÍCIO DE CÁTIA þ EXTERIOR þ FIM DO DIA Créditos iniciais superpostos. Iluminadas pelos últimos raios do sol, as ruas do bairro Moinhos de Vento (classe média alta) estão cheias de carros e de pessoas. No Parcão, há muita gente caminhando e correndo. Um casal se beija, apaixonado. Na rua Padre Chagas, os cafés e bares estão lotados. Um carro bacana aproxima-se de um edifício residencial e entra no acesso à garagem. CÁTIA (30 anos) pára o carro e aciona o controle remoto. A porta da garagem começa a abrir. Toca o celular. Cátia olha o número de quem fez a ligação e atende. CÁTIA Ôi, Cristóvão. (...) Toparam? (...) Finalmente! (...) Não, não posso voltar agora. (...) Tenho compromisso. (...) É importante, sim. (...) Eu sei da nossa responsabilidade. Amanhã eu faço a transferência. Um carro importado pára atrás do carro de Cátia e buzina. CÁTIA Não te preocupa. (...) Olha, eu tô no trânsito. Depois eu te ligo. (...) Tchau. Cátia desliga e sorri, sem muito entusiasmo. CENA 3. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DO DIA Créditos iniciais superpostos. VERONESE (45 anos), vestido com certa displicência, está sentado em sua escrivaninha, à frente de um computador portátil, que divide o espaço da mesa com uma impressora. Veronese olha para a tela. Batuca com os dedos no teclado. mas não escreve nada. Pensa. Finalmente, começa a escrever. Abre um sorriso. Clica no "Enviar" do programa de correio eletrônico. Olha para o relógio de pulso. Pega uma jaqueta e sai do quarto, sem desligar o computador. CENA 4. FACHADA DO EDIFÍCIO DE VERONESE/BAIRRO CIDADE BAIXA þ EXTERIOR þ FIM DO DIA Créditos iniciais superpostos. Veronese sai de um edifício antigo, mal-conservado, e fecha a porta atrás de si. Começa a caminhar. Parece feliz. Numa parada de ônibus, faz sinal. Um ônibus pára. Ele entra. CENA 5. APTO. DE CÁTIA/SALA þ INTERIOR þ FIM DO DIA Créditos iniciais superpostos. Cátia entra na sala þ grande, bem iluminada, decorada com elegância, mas certa frieza -, enrolada numa toalha, com os cabelos numa touca de banho. Um celular está tocando. Ela abre uma bolsa, em cima do sofá, olha o visor e atende. CÁTIA Ôi, Jane. (...) Eu também fiquei feliz. (...) Claro. Doze milhões é muito dinheiro. (...) Não posso sair com vocês. (...) Sei. Desculpa, Jane. (...) Comemorem por mim. Amanhã a gente se fala. (...) Tchau. Cátia desliga e olha para a janela. A noite cai na cidade. CENA 6. AV. GETÚLIO VARGAS þ EXTERIOR þ COMEÇO DO NOITE Créditos iniciais superpostos. O ônibus da cena 4 pára na avenida Getúlio Vargas. Veronese desembarca. Um VENDEDOR DE LOTERIA (50 anos) oferece bilhetes da Mega-Sena para Veronese, que pega um dinheiro no bolso e compra um bilhete. Antes de sair, sorri e bate no ombro do vendedor. O ônibus arranca. CENA 7. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ NOITE Créditos iniciais superpostos. Cátia, sentada na cama, de sutiã e calcinha, está colocando uma meia 3/4 preta. O celular toca. Ela olha para o visor e não atende. Desliga o celular. Começa a colocar a outra meia. CENA 8. RUA DO BAIRRO MENINO DEUS/FACHADA DA APCG - EXTERIOR - NOITE Créditos iniciais superpostos (final). Veronese caminha por uma rua pouco movimentada. Entra num sobrado de dois andares. Há duas placas na fachada. Uma maior: "SINDICATO DOS ELETRICITÁRIOS DO RIO GRANDE DO SUL". E uma menor: "ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL DOS CINEASTAS GAÚCHOS". CENA 9. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ SALA þ NOITE Cátia, já vestida e maquiada, saltos altos, olha para um espelho de corpo inteiro e examina o figurino: sensual e elegante. Mas não parece satisfeita. Está nervosa com alguma coisa. Senta na cama. Olha para o espelho e começa a falar para um interlocutor imaginário. CÁTIA Eu tô feliz. Muito feliz mesmo. Mas eu tenho uma coisa pra te contar. (pausa) Uma coisa importante. Quer dizer, não é importante em relação... (hesita) ...a nós. (pausa) Eu decidi te contar agora porque... (respira fundo) Meu amor, aconteceu o seguinte... CENA 10. AUDITÓRIO - INTERIOR - NOITE Num pequeno auditório (perto de 60 lugares), paredes decoradas com cartazes de campanhas salariais dos eletricitários e de filmes brasileiros da década de 80, 25 CINEASTAS (20 homens, 5 mulheres) estão reunidos. Dois deles estão sentados atrás de uma mesa voltada para a platéia, bem à frente, enquanto os demais espalham-se pelas cadeiras disponíveis. Veronese está no centro da sala, de pé, falando, um pouco irritado. VERONESE Isso já foi discutido na semana passada. HOLMES (30 anos), com um corte de cabelo muito esquisito e óculos de fundo de garrafa, está num canto perto da janela. HOLMES Exatamente. JOÃO PAULO (40 anos), elegante, cabelo impecavelmente penteado com gel, está perto de Veronese, uma fileira à frente. João Paulo vira-se para Holmes, agressivo. JOÃO PAULO Tu não tá inscrito, Holmes. HOLMES Não tô mesmo. (pequena pausa) Mas vai te fuder, antes que eu me esqueça. Cassandra, vestida com simplicidade, está duas fileiras à frente de Veronese, no canto oposto ao de Holmes, olhando na direção da briga. Perto dela está MIRABELA (45 anos), alta, atlética. CASSANDRA Calma, pessoal! VALDO (40 anos), na segunda fileira, cansado e aborrecido, vira- se para Veroness. VALDO Pode concluir o teu raciocínio, Veronese? VERONESE Num concurso com tão pouca verba, não faz sentido a gente impedir o uso de tecnologias que barateiam a produção. Era um ponto pacífico... VALDO (cortando) Mas não foi votado. JOÃO PAULO Não foi mesmo. E agora eu tô em dúvida. HOLMES (irônico) Ficou em dúvida depois de conversar com o Valdo? JOÃO PAULO (agressivo) Não. Depois de conversar com a tua mãe. GERALDO (25 anos), um dos dois cineastas da mesa, levanta a mão, num gesto pacificador. Olha para o seu relógio de pulso, colocado sobre a mesa, bem à sua frente. GERALDO Chega! O Veronese ainda tem dois minutos. VERONESE (lentamente) É uma bobagem exigir que o curta seja feito em película. Nós podemos fazer mais filmes... JOÃO PAULO Um monte de filmes de merda... HOLMES Merda também se faz em trinta e cinco! JOÃO PAULO Mas o vídeo aumenta a produção de merda. O vídeo é o laxante do cinema. GERALDO (para João Paulo e Holmes) Chega! Conclui, Veronese. Enquanto Veronese fala, CÁTIA entra pelos fundos e vai sentar-se na última fileira, bem no canto da sala, em que não há mais ninguém. VERONESE Achar que cinema é sinônimo de filme é o mesmo que achar que literatura é sinônimo de caneta. VALDO Concluiu? VERONESE Concluí. Veronese senta. VALDO (para Geraldo) Então agora eu tenho a palavra, certo? Geraldo assente com a cabeça. Valdo levanta e olha para a platéia. VALDO Se não foi votado, não foi decidido. Esse concurso é de cinema, não de vídeo. Tem que filmar de verdade, tem que usar sal de prata. Se não, não é cinema. Várias manifestações ao mesmo tempo. Confusão. VALDO (gritando) Vamos votar, pô! JOÃO PAULO (também gritando) Sal de prata! Sal de prata! Veronese levanta-se. VERONESE Isso é manobra! Manobr...! Veronese faz uma careta de dor, curva-se e leva a mão ao peito. Cátia percebe que aconteceu alguma coisa e olha para ele, apreensiva. No rosto de Veronese, surgem gotas de suor. VERONESE (quase sussurrando) Tava decidido. JOÃO PAULO Ô, Geraldo, bota ordem nessa merda. Cátia levanta-se e caminha na direção de Veronese, preocupada. HOLMES (gritando) Vocês querem ir contra a história? Sal de prata já era! GERALDO Silêncio! Silêncio, por favor. Veronese respira fundo. Está encharcado de suor. Leva outra vez a mão ao peito e olha para os lados, confuso. Percebe que Cátia está vindo em sua direção. Sorri para ela. No meio do sorriso, sua boca abre, num esgar de dor. Fecha os olhos e cai. Cátia grita e corre na direção de Veronese. Cassandra e João Paulo notam que alguma coisa aconteceu e olham para trás. Veronese está estendido no chão, de bruços. João Paulo levanta- se, preocupado. GERALDO (sem entender nada) Calma, pessoal! Calma! João Paulo, Cassandra e Cátia chegam em Veronese ao mesmo tempo e agacham-se junto ao corpo. João Paulo tenta virar o corpo de Veronese, que geme. VERONESE (baixinho) Tá doendo. CÁTIA Um médico... Uma ambulância, pelo amor de Deus! Mirabela, Holmes e Valdo aproximam-se, preocupados. João Paulo levanta-se, pega seu celular e começa a discar. Valdo ajoelha-se ao lado de Veronese e olha para Cátia, preocupado. Cassandra segura a mão de Veronese, gesto percebido por Cátia. CASSANDRA Veronese, o que foi? Valdo consegue virar Veronese para uma posição mais confortável. Ele abre os olhos. Cátia e Cassandra estão bem à sua frente. Ele sorri para Cassandra, mas fala para Cátia. VERONESE (baixinho, quase um sussurro) Ôi, querida. (pausa; respira fundo) Eu te amo muito. Veronese fecha os olhos e, outra vez, parece sentir muita dor. Cátia começa a chorar. CENA 11. AMBULÂNCIA - INTERIOR - NOITE Uma maca com o corpo de Veronese é colocada rapidamente no interior de uma ambulância. Um MÉDICO e um PARAMÉDICO sobem, acompanhados de Cátia. Cassandra e Valdo acompanham tudo de perto, mas não entram. O MOTORISTA fecha a porta traseira. MÉDICO (para o paramédico) Pega uma veia. O paramédico introduz um abocat numa veia do braço de Veronese e começa a administração de soro fisiológico. A ambulância arranca, com a sirene ligada. MÉDICO (para Cátia) Ele tem algum problema no coração? CÁTIA Não. Acho que não. MÉDICO (para paramédico) Vamos monitorar. Médico e paramédico colocam eletrodos no peito e um oxímetro num dos dedos da mão de Veronese. Os monitores começam a funcionar. O médico olha para eles. MÉDICO (para paramédico) Adrenalina. O paramédico quebra uma ampola e injeta a droga na veia. Os dois estão preocupados e trabalham em regime de urgência. Começamos a ouvir os sinais dos monitores, misturados com a sirene, o motor da ambulância e o intenso tráfego na rua. MÉDICO Ele toma algum remédio? Tem alguma alergia? CÁTIA Não. (hesita) Não tenho certeza. MÉDICO A senhora não é parente? CÁTIA Sou namorada. MÉDICO Seria bom falar com algum parente. Cátia fica ainda mais nervosa. CÁTIA É muito grave? MÉDICO (olha para os monitores e depois para o paramédico) Mais adrenalina. O paramédico quebra outra ampola. CÁTIA Não conheço os parentes dele. Eles não moram aqui. Veronese abre os olhos. Parece estranhar, por um momento, o ambiente da ambulância, mas sorri ao ver Cátia. VERONESE Eu já disse que te amo? CÁTIA Já, meu amor. Veronese sorri debilmente. VERONESE Então vou dizer de novo: eu te amo. (pausa, respira com dificuldade) Posso te pedir um favor? CÁTIA Claro. VERONESE Eu já enviei aquele convite pra Linda. Manda outra mensagem, pro mesmo endereço, e diz que a gente talvez tenha que adiar a festa. Escreve que eu amo ela muito e que eu sempre pensava nela. Tu manda? CÁTIA Mando, claro. VERONESE Eu já disse que te amo? Veronese faz uma careta de dor. O monitor cardíaco toca um alarme e a onda adquire o aspecto de fibrilação. MÉDICO Ele tá fibrilando. (bate na parede e grita para o motorista) Pára! A ambulância pára de sacudir. No monitor, a onda se transforma numa linha reta. O médico sente o pulso de Veronese. MÉDICO Sem pulso. (para Cátia) A senhora tem que ficar lá no fundo. Cátia vai sentar-se bem no fundo da ambulância e de lá, encolhida, chorando, assiste a todo o esforço dos dois homens para ressuscitar Veronese: três choques, massagem cardíaca, colocação do tubo laringoscópico, ventilação, etc. O corpo de Veronese é soqueado, eletrocutado e inundado por drogas, mas ele parece dormir placidamente. CENA 12. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - NOITE Cátia e Valdo estão sentados em cantos opostos da sala. Valdo está abatido. Cátia, com os olhos muito vermelhos. CÁTIA Será que precisa padre? O cara da funerária falou alguma coisa sobre um padre... VALDO Padre sempre é bom. Ele fica rezando, e aí ninguém precisa dizer nada. Ele era católico? CÁTIA Acho que era. Valdo bate com a palma da mão na almofada ao seu lado, indicando o lugar. Sorri, carinhoso. VALDO Vem aqui. CÁTIA Não. VALDO Vem. CÁTIA Eu tô bem aqui. Não te preocupa. Valdo levanta e caminha na direção de Cátia. Quando chega ao seu lado, ainda de pé, começa uma massagem nos ombros dela. VALDO Gozado. Ele parecia um cara saudável... Cátia levanta, num rompante, interrompendo a frase de Valdo e acabando com o contato das suas mãos. CÁTIA É melhor tu ir embora. Eu tenho que sair. VALDO Pra onde? Eu vou contigo. CÁTIA Não. Não vai. Cátia caminha rápido até a entrada do apartamento e abre a porta. Olha para Valdo, séria e definitiva. CÁTIA Tchau, Valdo. Obrigado por tudo. Valdo vai saindo, devagar. Quando passa por Cátia, tenta dar-lhe um beijo na boca, mas ela se vira. O beijo acaba no seu rosto. Valdo baixa os olhos, constrangido. VALDO É ruim ficar sozinha nessas horas. Tem certeza que não quer que eu te leve? Cátia assente com a cabeça. Valdo sai. Cátia fecha a porta rapidamente. Está com os olhos cheios de lágrimas CENA 13. RUAS DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR - NOITE Cátia, de calça jeans e blusa, dirige. É madrugada. Quase não há movimento na ruas. O carro de Cátia pára numa esquina. Num carro ao lado, um jovem casal se beija, apaixonado. CENA 14. FACHADA DO EDIFÍCIO DE VERONESE/CIDADE BAIXA - EXTERIOR - NOITE O carro de Cátia estaciona quase na frente do edifício. Cátia sai, com uma blusa a tiracolo. Aciona o alarme do carro. A rua está deserta. Começa a caminhar na direção da porta do edifício. Um SUJEITO MAL ENCARADO, segurando uma garrafa, aparece de repente, saído da sombra de uma marquise. Cátia hesita por um momento, mas segue em frente. Quando está abrindo a porta com a chave, o sujeito se aproxima. SUJEITO MAL ENCARADO Tá bem guardado, dona. CÁTIA Ótimo. SUJEITO MAL ENCARADO Se a senhora puder pagar agora... Eu tô com fome. CÁTIA Eu pago depois. SUJEITO MAL ENCARADO Melhor agora. Depois... Quem sabe o que pode acontecer depois? Eu posso morrer de fome. Cátia, hesitante, leva a mão à bolsa. CENA 15. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE A porta abre. Cátia, bolsa a tiracolo, entra e acende a luz. A sala é de tamanho médio, com uma decoração simples: móveis modernos, alguns quadros, um grande sofá cheio de almofadas, espaços vazios preenchidos por pequenas mesas. Está tudo arrumado. Cátia olha para a sala e depois a atravessa, rumo ao corredor. CENA 16. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Cátia entra no quarto, que é bem diferente da sala: pequeno e esculhambado. Prateleiras de madeira, antigas e cheias de cupins, sustentam livros, caixas de papelão, revistas e um aparelho de som três-em-um. Num canto, um projetor 16mm. Cátia senta na cadeira da escrivaninha, joga a bolsa na cama e olha para o computador portátil. Há uma mensagem na tela. Cátia começa a ler. CENA 17. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DE TARDE Veronese está no computador, escrevendo. A decoração é idêntica à da cena anterior. Cátia entra (mesmo figurino da cena 2), e dá um beijo rápido na boca de Veronese, que sorri para ela, mas continua escrevendo. CÁTIA Que concentração! Acabou o bloqueio? VERONESE Não é o roteiro. (olha para Cátia) Não é ficcção. Tô escrevendo uma carta. Cátia senta na cama e tira os sapatos de salto alto. CÁTIA (surpresa) Carta? Que milagre! Cátia faz massagens nos próprios pés. Usa meia-calça preta. VERONESE (lendo) Lembra daquela garota que eu te falei, a Cátia? Aquela que é linda, inteligente e sabe fazer sagu? Nós vamos morar juntos. Cátia pára de massagear os pés e olha para Veronese, surpresa. CÁTIA Como é que é? VERONESE (ainda lendo) A gente se ama há muito tempo, e acho que pode dar certo. É claro que não eu mereço uma garota maravilhosa como a Cátia, e não tenho a menor idéia de porquê ela gosta de mim. Mas decidi arriscar. Vamos fazer uma festa, só para os amigos mais íntimos, e eu gostaria muito que tu viesse. Veronese levanta e vai até a janela. Cátia olha para ele, atônita. VERONESE Só falta acertar alguns detalhes. Veronese fecha completamente a veneziana, diminuindo bastante a luz do quarto. Cátia vai falar, mas Veronese ergue a mão e continua: VERONESE (rapida e decididamente) Sei que esse apartamento é muito pequeno. Também sei que o banho é horrível. Veronese vai até a porta, que estava entreaberta, e a fecha. O quarto fica bastante escuro, pois as únicas luzes vêm das frestas da veneziana e da tela do computador portátil. VERONESE Mas eu não vou me mudar. Veronese aproxima-se de Cátia. Senta ao seu lado na cama. Ela continua surpresa, mas agora já consegue demonstrar sua felicidade. VERONESE Talvez eu permita que tu gaste teu dinheiro numa pequena reforma. (pausa) É pegar ou largar. CÁTIA Tem que trocar o fogão e a geladeira. VERONESE Tudo bem. CÁTIA E faxina duas vezes por semana! VERONESE Vou pensar. Cátia abraça Veronese com força. Veronese joga Cátia na cama e tenta abrir o zíper da sua saia, enquanto a beija pelo corpo todo. Cátia, rindo, resiste. CÁTIA Pára! Eu tô toda suada. Preciso tomar banho. VERONESE O chuveiro tá queimado. Vem aqui, Catinha. CÁTIA (rindo) Não... Pára! Cátia reúne todas as suas forças e consegue desvencilhar-se de Veronese, empurrando-o com as pernas para fora da cama. Cátia tenta sair correndo, mas Veronese, no chão, agarra-lhe um dos pés. Cátia tropeça e cai. Veronese tenta abraçá-la outra vez, mas Cátia consegue levantar-se. Aponta para o computador. CÁTIA Isso não é uma história que tu tá escrevendo? VERONESE (cortando) Eu já te disse. É uma carta. Cátia olha para a tela do computador. CÁTIA Uma carta pra quem? Veronese fica sério. VERONESE Para a minha filha. Ela se chama Linda. Tem dezoito anos. Cátia olha para Veronese, sem esconder sua surpresa, VERONESE Ela mora no interior. Só me viu uma vez. Mês passado. Eu te disse que tinha que fazer uma pesquisa, lembra? Eu menti. Era aniversário dela. CENA 18. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Cátia está chorando na frente do computador. Olha para o teclado. Seus dedos percorrem as teclas, mas ela não consegue escrever. CENA 19. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DE TARDE Veronese e Cátia estão sentados na cama, frente a frente, ainda na penumbra. VERONESE Ninguém mais sabe. (pausa) Se ela aceitar o convite, todo mundo vai ficar conhecendo. Se não... CÁTIA Mas... Por que... VERONESE Tenho reunião às oito e meia e ainda não terminei de escrever a mensagem. Quem sabe a gente janta juntos? Tem um restaurante novo ali perto da associação. Aí eu conto tudo. Tu pode me pegar? CÁTIA Claro. VERONESE (sorrindo) Também podemos trocar o chuveiro elétrico por um aquecedor a gás. Cátia sorri de volta. CENA 20. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Cátia respira fundo e começa a digitar. Pensa um pouco. Digita mais. Manda a mensagem. Fecha o programa de correio eletrônico. Leva o cursor do mouse até o botão "Iniciar", como se fosse desligar o micro, mas, depois de uma breve hesitação, olha para a tela. Há, além dos ícones indefectíveis, uma pasta de "Roteiros". Cátia clica sobre ela. Há vários arquivos, em ordem alfabética: "advertência", "coincidências demais", "filme-mentira", "mil desculpas", "mil desculpas-v2", "mil desculpas-v3", "motéis", "motéis-v2", "um homem intenso", "vulcano e marte". Ouvimos um trovão, seguido do barulho de chuva. Clica sobre o arquivo "advertência". O texto aparece na tela: "Garota, de quem só vemos o rosto e os ombros nus..." Cátia vai começar a ler. A luz de um relâmpago invade o quarto, seguida de um trovão. As luzes do apartamento se apagam, restando apenas a tela do computador portátil. Cátia levanta e fecha janela, onde a chuva, agora forte, está batendo. Volta ao computador e senta. A mensagem "BAIXO NÍVEL DA BATERIA" aparece na tela, seguida de três bips e do desligamento do computador. O quarto fica na escuridão absoluta. Um relâmpago forte ilumina o rosto de Cátia, impassível, olhando para o nada. CENA 21. CEMITÉRIO/CAPELA - INTERIOR - DIA O rosto branco de Veronese no caixão. Ao lado do caixão, no fundo da capela, estão Cátia e Holmes. Holmes olha para o rosto de Veronese. Cátia olha para o outro lado da capela, onde estão João Paulo, Cassandra, Mirabela e dois outros cineastas (que estavam presentes na cena 2). Um pouco mais afastados, estão CRISTÓVÃO (60 anos, de terno e gravata, tão atlético quanto a sua idade permite), JANE (30 anos, elegante, no mesmo estilo de Cátia) e LUCAS (25 anos, terno e gravata). Geraldo entra na capela, acompanhado de um FUNCIONÁRIO DE FLORICULTURA, que carrega um grande arranjo de flores, com a inscrição "Ao grande cineasta Rudi Veronese, a homenagem de seus amigos". O funcionário coloca o arranjo ao lado do caixão e vai embora. Geraldo beija Cátia no rosto, abraça Holmes e acena para os que estão no fundo da capela. GERALDO (apontando para o arranjo) Que tal? CÁTIA Tá bonito. Geraldo aproxima-se mais do caixão e segura as mãos de Veronese. Valdo entra na capela, acompanhado de JAQUES (20 anos), que carrega um bloquinho de notas na mão. Valdo faz um sinal, chamando Cátia. Cátia e Holmes vão até ele. VALDO Esse é o Jaques, do Diário. Jaques aperta as mãos de Cátia, Geraldo e Holmes. JAQUES Meus pêsames. João Paulo, Cassandra e Mirabela também aproximam-se. JAQUES Podemos conversar ali fora? CENA 22. CEMITÉRIO/CORREDOR - INTERIOR - DIA Jaques está no centro da roda, tomando notas. Cassandra conversa com alguém, um pouco afastada. CÁTIA O pai morreu há muitos anos, e a mãe foi para a Itália. Já é bem velhinha, e está meio doente. Não teve condições de viajar para o enterro. JAQUES (sempre anotando) Certo. E vocês são...? (olha para Valdo e sorri) O senhor eu sei quem é, claro. Gostei muito do seu filme... VALDO (cortando, impaciente) A Cátia era namorada. E nós somos amigos. O João Paulo e o Holmes também são diretores. A Mirabela é produtora. JAQUES É que eu tô começando no caderno de cultura. Acho que nunca vi um filme do... falecido, desculpe. Cassandra se aproxima. MIRABELA A Cassandra foi atriz dos três últimos curtas do Veronese. Jaques pára de anotar e olha para Cassandra. JAQUES Atriz? CASSANDRA É. JAQUES (reconhecendo) Claro! Eu vi o comercial na TV. (canta) "Preço baixo e qualidade, bem no centro da cidade..." (sente a censura dos olhares) Desculpe. Então vocês atuavam juntos... VALDO Não. Ela atuava nos filmes dele. JAQUES O Veroneli não era ator? JOÃO PAULO (mal-humorado) Não. É Veronese. Era diretor e roteirista. JAQUES Desculpe a minha ignorância. (pensa um pouco) O... falecido fez algum longa-metragem? CASSANDRA Não. Mas ele estava escrevendo o roteiro de um longa. Cátia olha para Cassandra, surpresa. JAQUES Ótimo! É um bom gancho pra matéria. A gente publica um trecho. Qual era o assunto? Todos se olham. Silêncio. MIRABELA O Veronese não gostava de falar sobre o que estava escrevendo. JAQUES Sobre o que era? Alguém leu? Ao menos um pedacinho... Qual o título? Silêncio. CASSANDRA O roteiro deve estar no computador dele. Jaques fecha o bloco. JAQUES Se vocês acharem, mandem pra mim. CENA 23. CEMITÉRIO - EXTERIOR - DIA Dois FUNCIONÁRIOS DO CEMITÉRIO estão terminando de fechar com cimento o túmulo de Veronese. Cátia, João Paulo, Holmes, Valdo, Cassandra e Mirabela estão bem juntos, formando um grupo triste e coeso, perto da cova. Geraldo, os outros cineastas e o pessoal do escritório de Cátia estão mais atrás. Por algum tempo, só ouvimos o barulho das pás dos funcionários. Cassandra, de repente, afasta-se, chorando mais alto. Cátia olha para ela. VALDO (para Cátia) Ele te falou alguma coisa de um longa? CÁTIA Não. Os funcionários terminam sua tarefa e se afastam. O padre olha em volta, com um sorriso animador, e abre os braços. PADRE Vamos dar as mãos e rezar pela alma de Rudi Veronese. Valdo estende sua mão para pegar a mão de Cátia, mas esta, rapidamente, pega as mãos de João Paulo e Mirabela. PADRE Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome... Cassandra volta, ainda chorando muito. Holmes a abraça. Cátia olha para ela. CENA 24. FACHADA DO CEMITÉRIO þ EXTERIOR þ DIA Cátia abre a porta do seu carro, que está estacionado na rua do cemitério, e vai entrar, quando ouve a voz de Cristóvão. CRISTÓVÃO Cátia! Ele, Jane e Lucas aproximam-se de Cátia. CRISTÓVÃO Nós estávamos combinando umas coisas. Acho que amanhã a Jane e o Lucas podem tocar a transferência. JANE Deixa comigo, Cátia. Se quiser ficar uns dias fora... CÁTIA Não. Amanhã eu vou trabalhar. LUCAS Não precisa, Cátia. A gente se vira. CÁTIA Obrigado, mas não precisam se preocupar comigo. Eu tô bem. (para Cristóvão) É meu investidor, e tu sabe disso. (para Jane e Lucas) Fiquem longe das minhas coisas. (aponta para o cemitério) Quando eu estiver ali, vocês tomam conta. Cátia entra no carro, sob o olhar surpreso do trio. CENA 25. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Valdo, Cátia e Mirabela estão sentados em volta do computador de Veronese. Cassandra está no chão, lendo uma revista. Há uma garrafa de vinho vazia e outra aberta na prateleira, além de cálices meio cheios espalhados pelo ambiente. O aparelho de som está ligado, em volume baixo. Valdo está com o mouse. Coloca o cursor sobre a pasta "Roteiros". VALDO (para Cátia) É aqui? CÁTIA Não sei se o Veronese ia gostar de ver um monte de gente mexendo nas coisas dele. Silêncio no quarto. Mirabela pega seu cálice. MIRABELA Ao Veronese. Todos batem seus cálices e bebem. Valdo olha para Cátia. VALDO E aí? Posso? CÁTIA (hesitante) Não sei. (pensa mais um pouco, olha para Mirabela) Acho que pode. Valdo abre a pasta "Roteiros", clica no arquivo "advertência" e lê o título: VALDO Advertência ao espectador. Cassandra levanta-se e olha para a tela do computador. CASSANDRA Posso ler? Cátia olha para Cassandra, inamistosa. Mas Cassandra não percebe e começa a leitura. CASSANDRA Uma garota (20 anos) de quem só vemos o rosto e os ombros nus, dá o texto abaixo, olhando para a câmara. CENA 26. APTO. DE VERONESE/COZINHA - INTERIOR - NOITE Cátia e Mirabela estão fazendo um sopão. Uma grande panela está no fogo. Elas vão cortando verduras e jogando lá dentro. As duas continuam bebendo vinho e suas falas são meio enroladas e confusas. CÁTIA Mas é pra ter alguém com a tal garota? MIRABELA Acho que sim. Mas fora de quadro. CÁTIA Fora de quadro? Que quadro? MIRABELA Fora do quadro significa que alguém está ali, mas a câmara não mostra. CÁTIA Não mostra por quê? MIRABELA Deixa pra lá, Cátia. Tem mais cenoura na geladeira? CÁTIA Só me diz uma coisa: tem alguém lá com a garota? Quer dizer, eu entendi que tem alguém lá, fazendo alguma coisa com ela, não tem? Mirabela abre a geladeira. MIRABELA Acho que é pro espectador achar que sim. CÁTIA Tem um cara lá, chupando ela, é isso? Mirabela olhando para o interior da geladeira e pega mais cenouras. MIRABELA É... Mas ela pode estar só fazendo de conta que tem alguém chupando ela. E não tem ninguém de verdade. CÁTIA Não entendi. É pra ter, ou é pra não ter? MIRABELA Sei lá. Dá pra filmar de várias maneiras diferentes. Cátia fica chocada. CÁTIA O Veronese ia filmar mesmo aquilo? MIRABELA Não sei, Cátia. (encara Cátia, séria) Como é que eu vou saber? Desencana. É só um texto, uma bobagem. CÁTIA Mas é tão... MIRABELA Esquece, Cátia. Tá legal? Esquece. Eu, se fosse tu, apagava todas essas coisas do computador. CÁTIA (surpresa) Tá falando sério? Mirabela demora um pouco pra responder. MIRABELA Não. Claro que não. Valdo e Cassandra entram na cozinha. Valdo com seu copo de vinho na mão; Cassandra com sua bolsa a tiracolo. VALDO Não achei a continuação. É só a tal advertência mesmo. (olha para a panela no fogo) Parece ótimo. CASSANDRA Cátia, eu vou pra casa. A Mirabela vai dormir aqui contigo, né? CÁTIA (surpresa) Não precisa. VALDO Não tem discussão. Tá decidido. Cassandra abraça Cátia com força. CASSANDRA Qualquer coisa que tu precise... Sei lá, a gente podia conversar um dia desses. É só ligar. Tá legal? CÁTIA Claro. (desfaz o abraço) Quer que eu chame um táxi? CASSANDRA (sorrindo) Não precisa. Eu vou a pé. (hesita um pouco, depois continua) Eu moro a meia quadra daqui. Sabe o edifício da padaria? O de pastilhas brancas? CÁTIA (surpresa) Claro. CASSANDRA Terceiro andar. Fundos. (sorri outra vez) Quando quiser fazer uma visita... CENA 27. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Cátia termina de colocar o pijama, apaga a luz e senta na cama. Mas o computador, ainda ligado, com a tela do processador de textos vazia, inunda o quarto com sua luz fantasmagórica. Cátia olha para o monitor por algum tempo. Então levanta, acende a luz, vai até a mesa e senta-se. Pega o mouse e clica até ter, diante de si, o conteúdo da pasta "Roteiros". Clica sobre "motéis". Começa a ler. CENA 28. MOTEL 1/BANHEIRO E QUARTO - INTERIOR - NOITE Uma MULHER (25 anos) nua está no banheiro de um quarto de motel. Ela lentamente coloca a calcinha. A parede do banheiro é de vidro escuro, translúcido, de modo que um HOMEM (25 anos), deitado na cama, pode ver o contorno do corpo da mulher e observar as suas ações. As luzes no banheiro e no quarto estão acesas. Enquanto ela se veste, ouvimos a voz de Cátia: CÁTIA (off) Uma mulher nua está no banheiro de um quarto de motel. Ela lentamente coloca a calcinha. A parede do banheiro é de vidro escuro, translúcido, de modo que um homem, deitado na cama pode ver o contorno do corpo da mulher e observar as suas ações. Enquanto ela se veste, ouvimos a narração: Depois da calcinha, a mulher vai colocando outras peças: um sutiã, ligas, meias (que prende nas ligas). Tudo isso é observado pelo homem no quarto. CÁTIA (off) O amor é um vestir. Ele só acontece quando o homem cobre a nudez da mulher com algo que sai da sua imaginação. A mulher que corresponde ao amor é aquela que se deixa vestir. A mulher lentamente coloca sapatos de saltos altos. CÁTIA (off) O desejo por um corpo depende do que imaginamos vestir sobre ele. Toda carne é um fantasma. Todo amor é fantasia. Toda beleza é construída. A mulher se observa no espelho (não vemos seu rosto) e faz os últimos ajustes. O homem observa a mulher. CÁTIA (off) Por amor, as mulheres se transformam naquilo que são nas mentes dos homens por quem são amadas. A mulher apaga a luz do banheiro e vira-se para a parede translúcida. Na penumbra, ela diz: MULHER Apaga a luz. CENA 29. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Cátia, chocada, olha para a frase no computador. Lemos a frase no computador: "MULHER - Apaga a luz". CENA 30. MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - NOITE Veronese - agora vemos seu rosto - apaga a luz principal do quarto. Ficam acesas apenas algumas lâmpadas no chão (ou um pequeno abajur de canto). Cátia - agora também vemos seu rosto, apesar da penumbra - sai do banheiro, mas não se aproxima da cama. CÁTIA Apaga. Veronese apaga a luz secundária. MIRABELA (off) Cátia. CENA 31. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Mirabela, de pé, junto à porta entreaberta, está olhando para Cátia. MIRABELA São duas horas. Tu não vai trabalhar amanhã? Mirabela aproxima-se. Cátia abaixa a tampa do notebook. CÁTIA O Rudi nunca te mostrava o que ele escrevia? MIRABELA Não. Ele não mostrava pra ninguém. O Rudi tinha o mundinho dele. Era difícil entrar ali. CÁTIA Eu sei. MIRABELA Vamos dormir. Tá? CÁTIA (sorrindo) Tá. Mirabela conduz Cátia até a cama e faz com que ela deite. Senta na cama. Cobre Cátia com o lençol e dá um beijo carinhoso na sua testa. MIRABELA Boa noite. CÁTIA Se ele não mostrava nada, pra ninguém, como a Cassandra sabia que ele tava escrevendo o roteiro de um longa? Ele nunca me falou de um longa. MIRABELA Cátia, eu conhecia o Rudi há mais de quinze anos. Ele sempre foi daquele jeito. Nem eu, nem a Cassandra, nem ninguém era capaz de entrar naquele mundinho. (pensa) E eu tentei bastante. Tentei até cansar, porque eu tava muito apaixonada. Mas não fica com ciúme de mim, isso foi há muito tempo. E não conta pra ninguém, tá? (pausa) Promete? CÁTIA (surpresa) Prometo. MIRABELA Ele te amava muito, pode ter certeza, e isso ninguém vai te tirar. (pausa) Vamos dormir? Mirabela apaga a luz e sai. Cátia fecha os olhos. Pouco depois, abre outra vez. CENA 32. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE Festa. Umas quinze pessoas se espremem na sala, dançando caoticamente um rock dos anos 70. Celofanes coloridos por cima das lâmpadas tentam criar um clima de reunião-dançante. Presentes: Veronese, Cátia (com o cabelo diferente, bem mais comprido), Holmes, João Paulo (com uma NAMORADA MUITO BONITA), Mirabela, Cassandra, Geraldo e mais OITO PESSOAS (algumas estavam na reunião de cineastas da cena 2). Todos estão bastante bêbados. Veronese, que é o DJ, escolhe um CD e troca a música, com alguma dificuldade (o que gera protestos), e depois fica parado ao lado do aparelho de som, olhando para as pessoas que dançam. Pela ordem: João Paulo beija sua namorada; Geraldo dá em cima de Mirabela; Cassandra faz caras e bocas enquanto se sacode, dançando sozinha. Cátia não dança. Parece deslocada. Oferece uma bandeja com salgadinhos para os convidados. Aproxima-se de Veronese e percebe que ele, naquele momento, está olhando para Cassandra e sorrindo para ela. Cátia, meio trôpega, pára, larga a bandeja, pega um copo de cerveja e vai até Veronese. CÁTIA (voz enrolada) Eu queria falar uma coisinha contigo, ali no quarto. VERONESE Agora? CÁTIA (sorrindo) Agora. CENA 33. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Veronese e Cátia entram no quarto. Cátia, com o copo de cerveja na mão, tropeça e quase cai. Veronese consegue fazer com que ela sente na cama. CÁTIA (sempre com a voz enrolada) Fecha a porta. VERONESE Pra que? CÁTIA (autoritária) Fecha! Veronese, desconfiado, fecha a porta. CÁTIA (sedutora) Apaga a luz. VERONESE (sorrindo) De jeito nenhum. CÁTIA Tu gosta dela, né? Veronese sacode a cabeça. VERONESE Vamos voltar pra sala. CÁTIA Não precisa ter medo. Conta a verdade. VERONESE A verdade é que tu tá bêbada. CÁTIA Eu te vi olhando pra ela. Tu tá a fim dela? VERONESE Pára, Cátia. Que bobagem! CÁTIA Olha... Rudi. (ri) Rudizinho. Eu sei que tu quer. E eu te amo. Quem sabe a gente... Chega num acordo. Eu sou uma mulher... (pára, não sabe como continuar) Eu estou disposta a tentar alguma coisa diferente. VERONESE Sei. CÁTIA Ela é muito bonita. (pensa um pouco) Mas será que ela tem alguma doença? Eu não quero pegar uma doença. Veronese tenta pegar a cintura de Cátia e levantá-la da cama. VERONESE Vamos dançar, Cátia. Cátia resiste e Veronese acaba caindo na cama. CÁTIA Não. Eu quero saber o que tu acha da minha proposta. Diz pra tua Catinha, diz. VERONESE (carinhoso) Não acho nada. Cátia segura o rosto de Veronese com as duas mãos. CÁTIA Podia ser um presente... Veronese consegue levantar-se e pega as mãos de Cátia, erguendo- a. Dão alguns passos, até ficarem perto da mesa em que está o notebook. Ela se apóia na mesa e baixa a cabeça. CÁTIA Eu tô tonta. Rudizinho... Acho que eu vou vomitar. VERONESE Aqui não! Cátia sorri mais uma vez, um segundo antes de começar a vomitar no computador. CENA 34. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE Penumbra. Cátia, deitada na cama, debaixo dos lençóis, está com olhos cheios de lágrimas, olhando para o notebook. CENA 35. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA Dois monitores de computador. As telas exibem listas infindáveis de números e nomes de empresas. Cátia está olhando para eles. Depois olha para Cristóvão, parado na sua frente. CRISTÓVÃO Dez milhões voltam e ficam parados, na conta dele, aqui no Brasil, pelo menos até sexta. Os outros dois deixa lá, aplicados. Tá entendido? CÁTIA Tá. CRISTÓVÃO Tem certeza que não quer uma ajuda? CÁTIA Tenho. CRISTÓVÃO Então, traz esse dinheiro de volta. E correndo. Cristóvão sai da sala. Cátia olha para o computador e começa a digitar alguma coisa. Mas logo pára. Os números continuam a dançar nos monitores, mas ela não está interessada neles. Abre a bolsa e pega um disquete. Coloca o disquete num dos computadores. Abre o disquete no desktop do Windows. Clica sobre o documento "moteis". Começa a ler. CENA 36. MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - NOITE O barulho de um fósforo sendo riscado, seguido da sua chama. A mão de Veronese, que segura o fósforo, se aproxima de uma vela larga. A vela acende. A mão se afasta. Cátia, ainda na porta do banheiro, olha para a vela, que está na cabeceira da cama, e depois para Veronese. CÁTIA Mais longe. No outro lado. Veronese pega a vela e a coloca na outra cabeceira. CÁTIA Obrigado. Cátia se aproxima da cama. Veronese olha para ela e sorri. Cátia senta na cama. Veronese estende a mão e toca na perna de Cátia, na altura da coxa. Depois, inclinando-se para a frente, vai descendo a mão até o tornozelo de Cátia, que envolve entre o polegar e o indicador. Baixa ainda mais a cabeça, na direção do pé. JOÃO PAULO (off) Cátia. CENA 37. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA Cátia olha para o computador. Vemos a última rubrica na tela do computador: "...vai descendo a mão até o tornozelo da mulher, que envolve entre o polegar e o indicador. Baixa ainda mais a cabeça, na direção do pé." JOÃO PAULO (off, mais alto) Cátia! Cátia levanta os olhos do computador. João Paulo está de pé, na porta, olhando para ela. JOÃO PAULO Eu tô interrompendo alguma transação milionária? CÁTIA Não. Entra, por favor. João Paulo entra, beija Cátia e senta-se. JOÃO PAULO Tu disse que precisava falar comigo. Cátia pega umas dez folhas de ofício grampeadas e estende o braço para João Paulo, que pega as folhas e dá uma olhada. CÁTIA (sem-jeito) Que bom que tu pôde vir... Tô lendo umas coisas do Veronese... Hoje de manhã, quando abri esse (aponta para o texto que está com João Paulo), notei que era diferente dos outros. JOÃO PAULO Diferente como? CÁTIA Eu... Não consigo entender o texto. Os outros têm algumas expressões estranhas, mas eu compreendo a história. É como ler uma peça de teatro. JOÃO PAULO (sorrindo, compreensivo) É que esse aqui tá decupado. CÁTIA Decupado? JOÃO PAULO Já tá dividido em planos, e têm indicações de câmara, de enquadramentos, de cortes... CÁTIA Eu não entendo nada disso. João Paulo levanta, dá a volta na mesa e coloca o roteiro na frente de Cátia. JOÃO PAULO O que tu não entende? Cátia aponta para as indicações do plano 1: P1 - PP - trav. para trás até PM. O quarto é muito modesto, e a cama é de solteiro, o que dificulta as ações do CINEASTA... CÁTIA "Pê-um. Pê-pê. Trav... para trás até Pê-eme." JOÃO PAULO Plano um. Primeiro plano. Travelling para trás até plano médio. É o enquadramento inicial, o movimento da câmara e o novo enquadramento. CÁTIA (confusa) Enquadramento? JOÃO PAULO Esse roteiro tá pronto pra ser filmado. A gente chama de roteiro técnico. Os outros que tu pegou eram mais fáceis de ler porque não estavam decupados... CÁTIA Tu pode... (hesita, procurando a palavra) traduzir esse pra mim? JOÃO PAULO Traduzir? Eu posso escrever um resumo da história. CÁTIA Mas isso não vai dar muito trabalho? João Paulo sorri. Olha para o roteiro. JOÃO PAULO Não. Deve ser divertido. Ele sempre escrevia bastante sacanagem. CENA 38. MOTEL 1 - INTERIOR - NOITE Veronese e Cátia beijam-se na cama. A vela está no fim. VERONESE É a melhor festa de aniversário que eu já tive. CÁTIA Fecha os olhos. Tá na hora do presente. Veronese fecha. CÁTIA E não abre! Cassandra levanta-se, vai até a sua bolsa, pega um celular e um pequeno pedaço de pano. Aproxima-se de Veronese. CÁTIA Deita de costas e fica quietinho. Cátia pega o pano (na verdade, é uma venda) e amarra-o sobre os olhos de Veronese. Cátia afasta-se e aperta os botões do celular. Veronese passa a mão sobre a venda. CÁTIA Não tira. Tu só vai ganhar se ficar quieto. VERONESE O que eu ganho se adivinhar o que é? CÁTIA (sorrindo) Se tu adivinhar, eu te mato. Batidas na porta. Cátia veste um robe e desaparece por um momento. Veronese continua vendado. Barulho da porta abrindo. VERONESE Cátia? Posso tirar esse negócio? Barulho de passos. CÁTIA (off) Não. Espera. A mão de Cátia retira a venda de Veronese. Ele olha e vê, à sua frente, Cassandra þ vestida com sensualidade - e Cátia, sorrindo para ele. Veronese está surpreso. VERONESE (para Cátia) O que ela tá fazendo aqui? CÁTIA Ela é o presente. Barulho forte de porta abrindo. CENA 39. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA Cristóvão entra, com ar preocupado, assustando Cátia. CRISTÓVÃO O doutor Camargo acaba de ligar. Disse que o dinheiro ainda não apareceu na conta dele aqui no Brasil. Cátia fecha o processador de texto, e a dança dos números volta a tomar conta do monitor. CÁTIA Eu tive um pequeno problema. Cristóvão circunda a mesa para olhar o monitor de Cátia. CRISTÓVÃO Lá, ou aqui no Brasil? CÁTIA (hesitante) Aqui. CRISTÓVÃO Olha, Cátia, é MUITO dinheiro. O que significa MUITA incomodação. Cadê o dinheiro do doutor Camargo? CÁTIA Tá lá fora, ainda. CRISTÓVÃO E por quê a transferência não foi feita? Cátia olha para o monitor. Depois volta a encarar o chefe. CÁTIA Eu... Eu esqueci. CRISTÓVÃO (estarrecido) Esqueceu dez milhões de dólares? Cátia começa a teclar. CÁTIA Mas eu resolvo isso num instante. CRISTÓVÃO São seis da tarde, Cátia. Tu não vai conseguir fazer mais nada hoje. (definitivo) Amanhã tu fica em casa. Descansa. É melhor pra ti e melhor pra empresa. Cristóvão sai da sala. Cátia abre outra vez o roteiro na tela do computador. CENA 40. MOTEL 1 - INTERIOR - NOITE Veronese, Cátia e Cassandra fazem um brinde com champanha. Os três tomam um pouco. Cassandra olha para Veronese, profissionalmente sedutora. VERONESE (para Cátia) Tem certeza? CÁTIA Tenho. Feliz aniversário. Cassandra aproxima-se de Veronese e o beija de leve na boca. Cátia sorri e assopra a vela, apagando-a. CENA 41. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA No computador, vemos as última linhas do roteiro: "HOMEM - (para a Mulher) Tem certeza?" "MULHER - Tenho. Feliz aniversário." "A Outra Mulher aproxima-se do Homem e o beija de leve na boca. A Mulher sorri e assopra a vela, apagando-a." Está é a última linha do roteiro. Cátia tenta rolar o texto mais para baixo. Nada. CENA 42. LOJA DE VERONESE - INTERIOR þ NOITE Mirabela examina um livro com registros contábeis e Cátia dá uma olhada nas gavetas da loja de equipamentos fotográficos e revelações de Veronese. É um estabelecimento modesto, numa galeria popular. A porta está fechada. Elas estão sozinhas. MIRABELA Acho tá tudo certo. O Veronese recolhia o fundo de garantia, os salários estavam em dia. Pra despedir aqueles dois, só tem que pagar as férias. CÁTIA Eles vão ficar arrasados. MIRABELA Fazer o quê? Tu vai administrar isso aqui? Cátia acha uma foto de cena de Cassandra numa gaveta. Mostra a foto para Mirabela. CÁTIA O Veronese gostava da Cassandra, né? Mirabela examina rapidamente a foto. MIRABELA Como atriz? CÁTIA Não. Como mulher. MIRABELA Nunca percebi nada entre os dois. Vamos? Isso aqui é meio deprimente. CENA 43. APARTAMENTO DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE As duas arrumam a sala. CÁTIA O Veronese nunca me disse que ela morava tão perto. MIRABELA Ela se mudou faz pouco tempo. Não pensa besteira. CÁTIA Mas é que ele escreveu... MIRABELA É ficção, Cátia. Pelo amor de Deus! Ele escrevia filmes. Filmes de ficção. Se não parece ficção, é porque ele escrevia bem. (pausa) Quanto melhor a ficção, mais ela tem de real. Mas ficção é ficção, e realidade é realidade. Bota isso na cabeça. Cátia olha para Mirabela, abatida e triste. CENA 44. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE As duas arrumam os livros e as revistas nas estantes. CÁTIA Num roteiro que eu tava lendo, tem uma situação... É muito parecido com... Com a nossa vida. A minha e a do Rudi... Nunca aconteceu, mas... MIRABELA Cátia, desencana. Cátia balança a cabeça, nervosa. Hesita. CÁTIA (finalmente toma coragem) Tem uma frase que tá num roteiro, essa frase ele tirou de mim... Mirabela olha para Cátia, paciente. MIRABELA Que frase? CÁTIA (num rompante) "Apaga a luz." MIRABELA "Apaga a luz?" CÁTIA É. MIRABELA Tu tem idéia de quantos milhões de pessoas, neste exato momento, estão dizendo "Apaga a luz"? Os escritores misturam tudo: o que eles vivem, o que eles observam da vida das outras pessoas e o que eles inventam. A gente não sabe o que é uma coisa ou outra, e aposto que às vezes nem eles mesmos sabem. CÁTIA Os filmes dele... Tinham tanto sexo. Pra quê? MIRABELA Sei lá. Era o estilo dele. CÁTIA (hesita um pouco) Às vezes eu achava que não era estilo. Era doença. E essas fantasias... MIRABELA Eram fantasias ou realidade? Te decide. CÁTIA (nervosa) Por quê a Cassandra chorava tanto no enterro? Vocês também eram amigos... Mirabela perde paciência e levanta o tom de voz. MIRABELA Ele tá morto, Cátia. Se namorou a Cassandra, que diferença isso faz? Cátia praticamente grita, num rompante: CÁTIA É que eu tava namorando o Valdo! Mirabela acusa o golpe. Olha para Cátia, meio tonta. CÁTIA Ao meio-dia. Sempre ao meio-dia. Na minha casa! Eu sou uma idiota! Mas eu já tinha decidido parar com aquela loucura e contar tudo pro Veronese. Mirabela continua incapaz de reagir. CÁTIA Aí ele morreu! E eu nunca vou poder contar pra ele que eu sou uma idiota, mas que amava ele mais do que tudo na vida. MIRABELA E agora tu precisa saber se ele também te enganava. Seria um alívio. CÁTIA Seria... Seria... Maravilhoso. Dá pra entender? MIRABELA Dá. CÁTIA Jura que nunca vai contar pra ninguém. Eu me mato, se mais alguém souber. Jura? MIRABELA Juro. CÁTIA E jura que não sabe se o Veronese transava com a Cassandra? Mirabela olha para Cátia, triste. CÁTIA Vou me mudar para esse apartamento. O Veronese tinha acabado de me convidar pra morar com ele. Isso ele não escreveu. Ele falou comigo. De verdade. E eu aceitei o convite. CENA 45. EDIFÍCIO DE CÁTIA/FACHADA - EXTERIOR - DIA Um pequeno caminhão de mudança está parado na frente do edifício de Cátia. Enquanto os FUNCIONÁRIOS da companhia de mudança carregam algumas caixas, Cátia coloca objetos mais delicados no interior do seu carro, também parado na frente do edifício. Valdo chega quando ela está se aproximando do carro com um vaso pequeno nas mãos. VALDO Ôi. Cátia sorri, meio amarelo. CÁTIA Ôi. VALDO A Mirabela me falou da mudança. CÁTIA É. Vou passar um tempo no apartamento do Veronese. Valdo olha para o belo edifício de Cátia, incrédulo. VALDO Posso ajudar? CÁTIA Se quiser... CENA 46. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA O apartamento continua com os móveis e quase toda a decoração. Cátia aponta para um telefone com secretária eletrônica. CÁTIA Pode pegar o telefone? VALDO Claro. Valdo começa a desligar o telefone. Um dos funcionários da companhia de mudança passa por eles, carregando uma caixa de papelão, e sai. Valdo fecha a porta do apartamento e olha para Cátia. CÁTIA O meu carro tá aberto. Eu tenho que ir. VALDO Primeiro vai conversar comigo. Cinco minutos. Cátia tenta passar por ele, mas Valdo permanece na frente da porta, com o telefone na mão. CÁTIA Não tenho tempo. VALDO Que loucura é essa? Primeiro, me trata como um desconhecido, depois vai se mudar pra um apartamento que é menor, pior e muito mais longe do teu trabalho. Cátia faz nova tentativa para sair, agora com muito mais energia. CÁTIA O apartamento é meu. A vida é minha. Com licença. Valdo a segura, primeiro com a mão que está livre, mas Cátia consegue se desvencilhar. Valdo deixa cair o telefone no chão e a segura com as duas mãos. CÁTIA Me larga! VALDO Pára, Cátia. Pára! CÁTIA Tu tá me machucando. VALDO Quer me ouvir? Tu não tem culpa de nada. Eu te liguei, eu insisti. Ninguém tem culpa. CÁTIA Sai da minha frente! Cátia empurra Valdo com toda a força. Valdo quase cai. Cátia abre a porta, mas Valdo a fecha outra vez. Estão praticamente em luta corporal. CÁTIA Sai! Sai! Cátia livra uma das mãos e acerta um tapa (quase um soco) no rosto de Valdo, que cambaleia e leva a mão à altura do olho. Cátia está chorando. Os dois se olham. CENA 47. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA Cátia e Valdo estão sentados, lado a lado, no sofá. Valdo segura um guardanapo de pano com gelo sobre o supercílio. VALDO Eu tenho que te confessar uma coisa. Cátia olha para Valdo. VALDO Naquela noite, lá no apartamento do Veronese, eu copiei os roteiros num disquete. Eu sei que não devia. Desculpa. (pausa) Não tem longa nenhum. Cátia permanece calada. VALDO Um dos roteiros me interessou. CÁTIA Qual? VALDO "Motéis". Tá incompleto. Tu leu? CÁTIA (preocupada) Li. VALDO O que tu achou? CÁTIA Não acho nada. Eu não entendo metade, e a metade que eu entendo tá me fazendo mal. Decidi que não vou ler mais essas coisas. VALDO É uma boa história. CÁTIA (cortando, tensa) Tá pensando em filmar? VALDO Talvez. Se eu conseguir escrever um bom final... Será que teria algum problema? Cátia levanta. CÁTIA Eu tenho que ir, Valdo. VALDO Tudo bem. Mas pensa nisso. E, se precisar de alguma coisa... Cátia olha para Valdo e sorri pela primeira vez. CÁTIA Eu preciso ficar sozinha. Se tu quer me ajudar, me deixa no meu canto. Valdo sorri e vai pegar a mão de Cátia, mas ela levanta rápido e sai do apartamento, sem olhar para trás. CENA 48. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - DIA Dois funcionários da companhia de mudanças estão saindo do apartamento. Cátia abre a bolsa, tira duas notas de cinco reais e entrega para eles. Cátia abre a porta e os funcionários saem. Cátia olha para a sala, que está cheia de objetos envoltos em plástico bolha e caixas de papelão. Respira fundo e vai começar a arrumar as coisas, mas a campainha toca. Cátia abre a porta. É Holmes. HOLMES (falando rápido) Ôi, Cátia. Pô, que zona... Se precisar de uma ajuda... CÁTIA (estranhando) Obrigado Holmes pega uma folha de ofício na sua sacola e a entrega para Cátia. Ela segura a folha, curiosa. HOLMES É um resumo do "Filme de mentira". O João Paulo pediu que eu fizesse. Ele não tem muito tempo, sabe como é... Publicidade. CÁTIA Eu nem tava com tanta pressa. HOLMES A pressa é minha. Eu adorei o roteiro e quero filmar. A campainha toca duas vezes. HOLMES É o João Paulo. Ele sabe que tô aqui e tá puto comigo. Mas lembra que eu pedi primeiro! Cátia caminha até a porta. CÁTIA Pediu o quê? HOLMES Pra filmar. Cátia abre a porta. João Paulo entra, com ar agitado, e aponta o dedo para Holmes. JOÃO PAULO Eu chamo isso de traição. HOLMES (para Cátia) Ele tá louco. Enlouqueceu. JOÃO PAULO A Cátia sabe quem é o maluco aqui. CÁTIA Do que vocês estão falando? JOÃO PAULO A questão é a seguinte: ontem eu mandei o roteiro do Veronese pro Holmes e pedi um serviço pra ele. HOLMES Pediu um favor. Não um serviço. JOÃO PAULO Eu ia te pagar. HOLMES Ah, é? Quanto? JOÃO PAULO Cátia, tu deve lembrar: eu falei que gostava das coisas do Veronses... HOLMES Tu nem sabia qual era a história. (para Cátia) Ele nem leu o roteiro, só o meu resumo. JOÃO PAULO Vamos parar com essa palhaçada. Cátia: eu quero fazer o "Filme de mentira". Como uma homenagem ao Veronese. HOLMES Eu pedi primeiro. CÁTIA Mas têm outros roteiros... JOÃO PAULO Eu já convidei a Cassandra pro filme, e ela aceitou. HOLMES Grande merda. Eu também convidei, e ela também aceitou. CÁTIA Eu nem sei se esses roteiros devem ser filmados. JOÃO PAULO Esse deve, Cátia. HOLMES Eu cheguei antes! CÁTIA Eu não vou me meter nessa briga. Vocês são amigos, não são? Os dois se olham, furiosos. CENA 49. RUA - EXTERIOR - NOITE Cátia aproxima-se de um edifício com a fachada de pastilhas e uma padaria no térreo. A porta lateral se abre e uma MULHER RUIVA sai. Cátia adianta-se para entrar. CENA 50. EDIFÍCIO DE CASSANDRA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE Cátia toca a campainha do apto. 73. Nada. Toca de novo. Nada. Vai tocar pela terceira vez. Barulho de chave girando na fechadura. A porta abre, revelando Cassandra, com um roupão e uma toalha enrolada na cabeça. Seu rosto está molhado. CÁTIA (sem jeito) Desculpa. Eu devia ter telefonado antes. CASSANDRA Não dá nada. Entra. CENA 51. APTO. DE CASSANDRA/SALA - INTERIOR - NOITE O apartamento é bem modesto. Móveis velhos ou de baixa qualidade. Cátia está sentada numa poltrona desbotada. Cassandra não está na sala. CÁTIA (alto) Termina teu banho. CASSANDRA (off) Eu já tava terminando. Cassandra entra na sala, ainda de roupão e tolha na cabeça, mas com o corpo e o rosto secos. Senta na frente de Cátia. CÁTIA O Holmes e o João Paulo me disseram que querem filmar um dos roteiros do Veronese, e que tu vai ser a atriz principal. CASSANDRA Eu nem sei que roteiro é esse. Aceitei pra eles pararem de me encher o saco. CÁTIA (sorri) O Veronese dizia que existem dois tipos de pessoas: as que fazem as coisas porque gostam de fazer, e as que gostariam de não fazer nada, mas fazem para que os outros parem de encher o saco. (outro sorriso) Acho que ele era do segundo tipo. CASSANDRA Não acho. Cátia fica surpresa. CASSANDRA O Rudi gostava muito de fazer filmes. Uma vez ele me disse que dividia as pessoas de outro jeito. CÁTIA Como? Cassandra reluta. Levanta. CASSANDRA Deixa pra lá. É uma bobagem. CÁTIA Diz. CASSANDRA Eu... Nem lembro direito. CÁTIA (já um pouco ríspida) Por favor. Cassandra ainda demora um pouco. Mas, frente ao olhar inamistoso de Cátia, acaba falando. CASSANDRA Tem as pessoas que se masturbam pensando em alguém, e as que se masturbam pensando nelas mesmas. As primeiras são mais bacanas, mas as outras ganham muito mais dinheiro. Cassandra ameaça um sorriso, mas, frente à cara fechada de Cátia, respira fundo e tenta remendar. CASSANDRA Eu avisei que era uma bobagem. CÁTIA Não achei uma bobagem. Quando ele te disse isso? CASSANDRA Não faço a menor idéia. CÁTIA (mais ríspida) Tu faz de conta que não faz a menor idéia. CASSANDRA Calma, Cátia. CÁTIA (quase descontrolada) Calma coisa nenhuma. Tu acha que conhecia o Veronese? O que ele escrevia? O que ele pensava? O que ele vivia? Tem certeza? (pausa) Tu tá enganada: o Veronese tinha uma filha. Cassandra fica surpresa. CÁTIA O nome dela é Linda. Tem 18 anos. CASSANDRA Que loucura. CÁTIA (continua olhando para Cassandra) Tu não sabia mesmo que ele tinha uma filha? CASSANDRA Não. Cátia olha fixamente para Cassandra. CÁTIA Ele nunca te disse nada? CASSANDRA Não. Cátia olha para Cassandra CENA 52. CASA DE MIRABELA/SALA - INTERIOR - NOITE Mirabela, de camisola e cabelo todo desarrumado, está sentada numa poltrona com uma xícara na mão. A sala é grande e tem móveis rústicos e pesados. As paredes são de madeira. É o interior típico de um pequeno sítio suburbano. Cátia, com a mesma roupa da cena anterior, também segura uma xícara. Sobre uma mesa de centro, uma garrafa térmica. MIRABELA Que loucura... CÁTIA Eu perdi a cabeça. (pausa) Ela prometeu não dizer pra ninguém. Mas eu não confio nela. O Veronese disse que só ia contar sobre a filha se ela quisesse. MIRABELA Se a Cassandra prometeu... CÁTIA Por quê tu não me conta a verdade? MIRABELA Que verdade? CÁTIA Que eles eram amantes. Ele contava tudo pra ela. Até que eu não penso em ninguém quando me masturbo. MIRABELA (perplexa, ar cansado) Vamos dormir? Quanto mais a gente fala, mais confuso fica. Tu tá criando uma fantasia atrás da outra. (pausa) Tem certeza que essa filha existe? Ela não apareceu no enterro, nem respondeu a tua mensagem. Cátia fica abalada. CÁTIA Claro que existe. O Veronese disse... Ele tava escrevendo pra ela. MIRABELA Tem certeza? Cátia olha para Mirabela, séria. CENA 53. ÔNIBUS - INTERIOR - DIA Cátia na poltrona de um ônibus, que está em movimento. CENA 54. AVENIDA - EXTERIOR - DIA O ônibus passa por uma placa - "BEM VINDO A NOVA ITÁLIA" CENA 55. CORREDOR DA SALA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA Cátia aproxima-se de uma pequena sala com uma porta de vidro. Dentro da sala, em frente a uma ilha de edição de tele-jornalismo (analógica), estão LINDA (18 anos) e um REPÓRTER, 25 anos, editando uma matéria. Cátia olha para os dois, hesita um pouco, mas acaba batendo. Linda olha para a porta e faz sinal para Cátia entrar. Ela entra. CENA 56. SALA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA Cátia aproxima-se de Linda, que está concentrada na edição. O repórter está com cara de saco-cheio. No monitor, uma entrevista com uma JOVEM MODELO. JOVEM MODELO Foi há dois anos. Eu estava aqui, no shopping, e aí me descobriram. Eu tô super feliz de desfilar na minha cidade, depois de dois anos em Nova Iorque. Corta para o repórter encerrando a matéria com uma "cabeça". REPÓRTER Quando entrar na passarela, hoje à noite, Lisandra com certeza estará muito emocionada, pois viu seu sonho se tornar realidade. Para o Jornal da Tarde, José Torresini. A matéria acaba. Linda olha para o repórter, com ar reprovador, e depois olha para Cátia. LINDA Quer falar comigo? CÁTIA Eu sou... Eu era namorada do Rudi. Linda continua olhando para Cátia, sem demonstrar reação. O repórter olha para o relógio. REPÓRTER A matéria entra no ar daqui a trinta e dois minutos. LINDA (para Cátia) Tu pode esperar um pouco? Senta ali. Linda aponta uma cadeira, num canto da sala. REPÓRTER (nervoso) O que tu achou? LINDA Tá ruim, Zé. Tem que botar alguma coisa no final. Gravaram o ensaio do desfile? REPÓRTER Gravamos. Mas tá horrível. Tinha um monte de criança pobre olhando. LINDA Quero ver. Cadê a fita? REPÓTER No arquivo. Linda escreve um bilhete. LINDA Aproveita e traz essa outra fita e esse CD. O repórter pega o bilhete e sai, apressado. Linda olha para Cátia, que sorri, tímida. CÁTIA Obrigado por responder minha mensagem. LINDA Desculpa não ter respondido a outra. Eu não sabia o que dizer. Até pensei em ir no enterro, mas depois desisti. Não tinha sentido. CÁTIA Eu entendo. O repórter volta, com duas fitas e um CD. Linda pega tudo. REPÓRTER (nervoso) Faltam vinte e oito minutos. LINDA Dá tempo. Sempre dá tempo, Zé. Enfia uma fita no "player". CENA 57. CASA DE LINDA EM NOVA ITÁLIA/SALA - INTERIOR - DIA Na TV da casa de Linda, está acabando a matéria editada por Linda. REPÓRTER ...pois viu seu sonho se tornar realidade. Para o Jornal da Tarde, José Torresini. A edição de Linda que se segue mistura, por vinte segundos, imagens do ensaio do desfile de Lisandra (às vezes em câmara lenta), imagens de Nova Iorque e as crianças pobres olhando o ensaio, com uma trilha nova-iorquina ("New York, New York", "Rapsody in Blue", ou algo parecido). Quando a matéria termina, uma APRESENTADORA sorridente aparece. APRESENTADORA Boa tarde. Linda desliga a TV. Cátia e Linda estão sentadas em poltronas confortáveis. A decoração da casa é simples, mas de bom gosto. Uma estante grande com alguns livros ocupa uma das paredes. Há várias fotos de família penduradas na outra parede. Linda aponta para uma das fotos na parede: um casal sorrindo. O homem é Rudi (20 anos). A mulher (20 anos) é parecida com Linda. Rudi está com uma câmara super-8 na mão. LINDA Minha mãe e meu pai. Queriam fazer cinema. Ele dirigia, ela montava. Fizeram uns filmezinhos em super-8. Nessa foto, a mãe já tava grávida de mim, mas ele ainda não sabia. Minha vó que tirou. Dizia que esse foi o último dia feliz da vida deles. CÁTIA O que aconteceu? LINDA Minha mãe contou pra ele da gravidez. Meu pai propôs um aborto. Disse que eram jovens demais pra ter um filho. Minha mãe acabou concordando. CÁTIA (chocada) Mas... LINDA O pai e a mãe não tinham muita grana. Moravam nessa casa, com minha vó, que sempre foi muito pão-dura. E ela nunca gostou do Rudi. CÁTIA Mas não teve aborto nenhum. LINDA Por falta de verba. Minhã mãe descobriu que o Rudi tinha tirado todo o dinheiro que eles tinham no banco pra comprar uma câmara 16mm usada. Ele tava fazendo um filme com uns amigos. O Rudi dizia que os amigos iam pagar. Não pagaram. O filme chamava- se "Aurora". CÁTIA O Rudi nunca falou desse filme. LINDA A vó disse que não tinha filme nenhum. A mãe ficou tão braba que expulsou o Rudi de casa. Era pra ser uma noite só, pelo menos é o que ela me dizia. Mas acho que ele ficou muito chateado. Foi pra Porto Alegre e desapareceu. Linda vai até a estante e pega um pequeno livro: o roteiro de Interiores, de Woody Allen. Estende o livro para Cátia. LINDA Quando eu fiz quinze anos, ele me deu esse livro de presente. Pelo correio. Eu nunca tinha lido um roteiro na vida. E ainda por cima em espanhol. Minha mãe disse que ele era louco. (pausa) Eu tentei ler, mas achei muito complicado. Nem fui até o fim. Cátia examina o livro atentamente. LINDA Mas depois o filme foi lançado em vídeo. Eu assisti aqui nessa sala. E, pela primeira vez na vida, eu senti a presença do meu pai. E entendi o presente. CENA 58. CASA DE LINDA EM NOVA ITÁLIA/FACHADA/CALÇADA - EXTERIOR - DIA Cátia e Linda saem pelo portão e caminham juntas na calçada. Linda está com uma bolsa. LINDA Mês passado, ele apareceu no meu aniversário de 18 anos. Minha mãe já tinha morrido. Câncer. Nós conversamos um pouco, foi estranho. Não tínhamos muito assunto. (sorri para Cátia) De repente, ele disse que tava apaixonado por uma garota chamada Cátia. E que tava feliz. Depois recebi aquele convite pro casamento de vocês... CÁTIA (cortando) Não era bem um casamento. LINDA Mas parecia. Acho que ele gostava mesmo de ti. Cátia sorri para Linda. CÁTIA E tu nunca teve vontade de conhecer ele melhor? Era teu pai. LINDA Tudo que eu sei dele foi através da mãe e da vó. Pra mim, ele nunca foi um pai. Foi um homem horrível, que engravidou a minha mãe, mas não queria que eu nascesse. Ele roubou o nosso dinheiro pra fazer um filme que nunca existiu. E depois desapareceu. Quando eu era pequena, tinha medo dele. Pensava que ele podia voltar e me fazer mal. CÁTIA Linda, isso é um absurdo. Ele era um homem maravilhoso. Um artista. Sensível. Doce. Generoso. Ele nunca fez mal a ninguém. LINDA Li alguma coisa sobre os filmes dele. Eram meio fortes, né? Tinham muito sexo... CÁTIA (meio embaralhada) É... Mas ele era muito diferente dos filmes. Quer dizer... Ele era bom, Linda. Não era um monstro. Ele seria um ótimo pai, tenho certeza. Caminham mais algum tempo em silêncio. CÁTIA E tu, é feliz aqui? LINDA Acho que sim. Pensei em fazer a faculdade em Porto Alegre, mas depois decidi ficar. E alguém tinha que cuidar da vó. Ela morreu há seis meses. Caminham mais um pouco. Parece que não têm mais assunto. CÁTIA Eu achei muito legal aquilo que tu fez lá na TV. Ficou emocionante. LINDA Eu junto os pedaços e encontro um sentido. Não é difícil. A mãe me ensinou. Ela trabalhava na TV. Elas chegam na esquina, onde há dois táxis num ponto. Cátia olha para Linda. As duas se abraçam. Cátia entra no táxi. Linda aproxima-se, coloca a mão na bolsa, tira o livro ("Interiores") e entrega-o para Cátia pela janela aberta. LINDA Fica com ele. CÁTIA Não. LINDA É só emprestado. Depois tu devolve. Por favor. Cátia sorri. O táxi arranca. Linda abana. Cátia abre o livro. CENA 59. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA Cátia, em sua mesa, está lendo o roteiro de "Interiores". Cátia veste-se com certa displicência e está quase sem maquilagem. Cristóvão bate na porta e entra. Cátia coloca o livro em cima da mesa e o esconde com uma folha de papel que apanha rapidamente. Mas é inútil: Cristóvão percebeu. CRISTÓVÃO Esqueceu da nossa reunião? CÁTIA Claro que não. CRISTÓVÃO Claro que sim. Cristóvão tira a folha de papel de cima do livro e lê o título. CRISTÓVÃO Tá na hora de decidir, Cátia. Ou tu volta pro planeta Terra, ou fica no mundo da lua. CENA 60. GALPÃO - INTERIOR - NOITE Uma grande porta de madeira abre-se, empurrada por Cátia. O galpão está na penumbra, de modo que Cátia tem certa dificuldade para se movimentar. Há uma parede de madeira bem à sua frente e muitas tábuas espalhadas pelo chão. Cátia segue por um corredor estreito, passando por materiais de filmes antigos, entre eles uma grande lua cenográfica. Chega numa área mais iluminada, ampla, em que pode divisar umas DEZ PESSOAS trabalhando nos cenários de um filme. Uma tapadeira está sendo pintada. Num canto, em prateleiras improvisadas, há alguns objetos de cena. No outro canto, móveis de época. Mirabela e SÍLVIA (30 anos), a assistente de direção - com um cronômetro pendurado no pescoço, segurando uma prancheta com o boletim de câmara - discutem alguma coisa. Mirabela percebe a chegada de Cátia e acena para ela, chamando-a. Cátia se aproxima. As três se beijam. CÁTIA Será que eu podia dar uma olhada na filmagem? MIRABELA (indecisa) Tu sabe como o João Paulo é nervoso. Há pouco ele deu o maior esporro na guria que tava fazendo a claquete. Ela foi embora chorando. CÁTIA Eu falei com ele hoje de tarde... Não vou atrapalhar. Eu até poderia fazer alguma coisa... Sei lá... Como é que se faz uma "claquete"? CENA 61. GALPÃO/CENÁRIO (QUARTO) - INTERIOR - NOITE Sílvia segura uma claquete e conversa com Cátia, sob o olhar atento de Mirabela. Ao fundo, CANIÇO, o diretor de arte, e seus DOIS ASSISTENTES dão os últimos retoques no cenário, um quarto muito modesto, com uma cama de solteiro. EDVALDO, o diretor de fotografia (que também opera a câmara), e o seu ASSISTENTE DE CÂMARA conferem o foco e limpam a objetiva. A câmara está sobre trilhos, que começam perto da cama e afastam- se alguns metros para o fundo do cenário. O OPERADOR DE SOM e o MICROFONISTA acertam a melhor posição para o boom. O MAQUIADOR e João Paulo estão em volta de Cassandra e GARCIA (25 anos), um ator simpático e musculoso. João Paulo termina de dizer alguma coisa para Cassandra e Garcia, que riem, deitados na cama. Depois aproxima-se da câmara, passando pelas três mulheres. JOÃO PAULO Tamo por quem? Vamos lá! Vamos rodar! E sai de quadro. Sílvia entrega a claquete para Cátia, que parece nervosa. CÁTIA Será que vou fazer direito? MIRABELA Fica calma. Primeiro o João Paulo diz "som". SÍLVIA (aponta para o operador de som) Aí o operador do som diz "foi som". CÁTIA E aí eu leio o que tá na claquete (olhando para a claquete). "Cena tal. Plano tal. Tomada tal". MIRABELA O João Paulo diz "câmara". CÁTIA E eu bato a claquete e saio correndo. MIRABELA Calma. Não precisa correr. Sai rápido. E aí o João diz "ação". (olha para Cátia, maternal) Pronta? CÁTIA Acho que sim. JOÃO PAULO (off) Vamos filmar, Cátia? Tamo por ti. CÁTIA (surpresa) Por mim? Como "por mim"? MIRABELA Tu tem que botar a claquete na frente deles. Cátia imediatamente vai até a frente de Cassandra e coloca a claquete (sem os números de cena, plano e tomada) na frente dos atores. CÁTIA (baixinho, só para Cassandra) Desculpa. Eu tava nervosa naquela noite. CASSANDRA (sorrindo, amistosa) Tudo bem. JOÃO PAULO (off) Não tá faltando alguma coisa? CÁTIA (já insegura) Acho que não. Sílvia vai até Cátia e fala com ela em voz baixa. Cátia, meio atrapalhada, cola os números na claquete. CÁTIA Agora tá pronto. JOÃO PAULO (off, quase gritando) Atenção! Vamos começar! CENA 62. APTO. DO "CINEASTA"/QUARTO - INTERIOR - NOITE * filmada em 35mm - atores: Garcia e Cassandra. Ponta preta. Apenas ouvimos os sons. JOÃO PAULO (off) Vai som! OPERADOR DE SOM (off) Foi som. CÁTIA (off) Filme de mentira. Cena 2. Plano 1. Tomada 1. JOÃO PAULO (off) Câmara. Em primeiro plano, Cátia segura a claquete, já sob o ponto de vista da câmara do filme. Atrás da claquete, vemos Cassandra e Garcia, na cama. JOÃO PAULO (off) Pode bater, Cátia. Cátia bate a claquete e sai de quadro. JOÃO PAULO (off) Ação! Garcia beija Cassandra. Os dois estão deitados numa cama de solteiro, ele por cima dela. JOÃO PAULO (off, bem baixinho) Vai travelling. A câmara se afasta. Enquanto continua beijando, Garcia tenta tirar a blusa de Cassandra, mas ela dá um forte empurrão. CASSANDRA (como GAROTA) Eu sei o que tu quer, mas não vai levar. GARCIA (como CINEASTA) Eu só quero te amar! CASSANDRA (como GAROTA) (fazendo beicinho) Tu só quer o meu corpo. GARCIA (como CINEASTA) Quem te disse uma besteira dessas? CASSANDRA (como GAROTA) Todos as pessoas que eu conheço. Garcia/cineasta acaricia o rosto de Cassandra/garota. A câmara se aproxima. As carícias ficam mais quentes. GARCIA (como CINEASTA) Tudo mentira. Eu já te disse: tu vai ser a atriz principal do meu filme. CASSANDRA (como GAROTA) Promete mesmo? Eu vou ser atriz? Garcia/cineasta faz uma cruz com os dedos e a beija. GARCIA (como CINEASTA) Juro por Deus. (pequena pausa) Mas tu tem que superar alguns pequenos problemas. CASSANDRA (como GAROTA) (preocupada) Que problemas? GARCIA (como CINEASTA) Tô te achando um pouco inibida. Uma atriz tem que saber seduzir o público. Cassandra/garota livra-se do abraço do cineasta e levanta da cama. Com um gesto rápido, levanta a blusa e mostra os seios. CASSANDRA (como GAROTA) Viu? Não sou envergonhada. Mas tu só vai chegar perto depois que eu for atriz de verdade. Os olhos de Garcia brilham de emoção. JOÃO PAULO Corta! Muito bom! João Paulo sorri, satisfeito. Cátia sorri, sem-jeito. CENA 63. EDIFÍCIO DE CÁTIA/FACHADA - EXTERIOR - DIA Um pequeno caminhão de mudança está parado na frente do edifício de Cátia. Enquanto os funcionários da companhia de mudança descarregam algumas caixas, Cátia retira objetos mais delicados no interior do seu carro, também parado na frente do edifício. Valdo chega quando ela está se preparando para descarregar o projetor 16mm. VALDO Ôi. Posso ajudar? CÁTIA Tem certeza? É pesado. Valdo pega o projetor no carro. Cátia pega o notebook de Veronese. Os dois caminham juntos para a porta do edifício. CENA 64. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA Valdo coloca o projetor sobre mesa. Cátia coloca o notebook de Veronese ao lado do projetor. Um dos funcionários da companhia de mudança coloca no chão uma caixa de papelão. CÁTIA Obrigado por tudo. Cátia passa uma gorjeta pro funcionário, que sai do apto. Cátia fecha a porta. Valdo senta e sorri para ela. VALDO Vem aqui. CÁTIA Não. VALDO Relaxa, Cátia... Cátia abre a porta outra vez. Olha para Valdo. CÁTIA Eu tô muito cansada. Vai embora. CENA 65. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - NOITE Na mesma poltrona em que estava sentado Valdo na cena anterior, agora vemos Veronese, olhando na direção da porta (e de Cátia). Veronese está colocando os sapatos. Há duas garrafas de vinho vazias e dois copos sobre a mesa. VERONESE Tu tá me mandando embora? De verdade? Cátia está terminando de colocar a blusa. CÁTIA Tô. Tu tem a tua casa, eu tenho a minha. Ou a gente tem uma casa, uma cama e uma vida em comum, ou são duas casas, duas camas e duas vidas separadas. Aceito uma coisa ou outra. Mas não aceito uma casa e meia, uma cama e meia, uma vida e meia. VERONESE Tudo isso só porque eu disse que tava com preguiça de ir pra casa? CÁTIA Não é só por causa de hoje. É por causa de anteontem. E da semana passada, em que eu dormi na tua casa, e tive que usar a mesma calcinha dois dias seguidos. Veronese levanta, aproxima-se e tenta abraçar Cátia, mas ela não deixa. Veronese desiste de abraçá-la, mas permanece bem perto de Cátia. VERONESE Meu amor... Tá chovendo... Veronese inclina-se para beijar Cátia, mas ela se afasta. CÁTIA Nem vem. Vai pra tua casa. Agora! VERONESE A gente se ama. É tão bom... Cada um na sua casa. CÁTIA Se a gente for morar junto vai parar de se amar? VERONESE O amor é uma coisa tão complicada... CÁTIA Pra mim, não. É bem simples. Vai pra tua casa. Essa aqui é a minha. CENA 66. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA Valdo passa por Cátia, que ainda está parada perto da porta. Valdo dá dois beijos no rosto de Cátia. VALDO Tem certeza que é bom pra ti ficar sozinha? CÁTIA Tenho. VALDO Sabe o que eu acho? Posso dizer o que eu acho? Talvez seja útil. CÁTIA Acho difícil. Mas vamos lá. VALDO Eu acho que tu criou uma culpa enorme, que tá te fazendo sofrer de um jeito que tu não merece. CÁTIA Terminou? VALDO Não. Eu te amo. CÁTIA Sabe o que eu acho? Posso dizer o que eu acho? VALDO Pode. CÁTIA Eu tenho a minha culpa, que é grande. Mas a tua é muito maior. Tu não me ama. Pára de mentir. Vai pra tua casa. Essa aqui é a minha. (aponta para o projetor em cima da mesa) Tu sabe mexer naquilo? VALDO Sei. CÁTIA Ótimo. A Mirabela tentou, mas foi um desastre. Pode me dar umas aulas num dia desses? Isso seria útil. CENA 67. PEQUENA SALA DE CINEMA - INTERIOR - DIA Cátia, Mirabela, Cassandra, Caniço e Edvaldo estão sentados numa sala de cinema, com as luzes ligadas. Todos os outros lugares estão vazios. Mirabela fala no celular. MIRABELA Se tu quiser, a gente espera. (pequena pausa) Tudo bem. (desliga o celular) O João Paulo tá na produtora. Mandou a gente ver sem ele. Mirabela faz um sinal para os fundos da sala. MIRABELA Ele tava muito estranho. A sala fica escura. Começa o copião. Cátia segura a claquete, abaixa um pouco, bate e depois sai. Garcia beija Cassandra, etc. Travelling. Eles começam a falar sem som. CÁTIA Tá sem som. MIRABELA É assim mesmo. O som a gente põe depois. Um celular toca na sala. Mirabela atende. MIRABELA Alô. Mirabela ouve por algum tempo. MIRABELA Não. Ninguém me disse nada. Ouve mais algum tempo, depois desliga. Está perplexa. CASSANDRA O que foi, Mira? MIRABELA Era a Sílvia. Ela tá no estúdio. O João mandou desmontar os nossos cenários. CENA 68. ESTÚDIO - INTERIOR - DIA Cátia entra no estúdio. João Paulo está comandando uma EQUIPE de cinema que filma um comercial de refrigerante. Restos do cenário do "Filme de mentira" estão encostados nas paredes. No cenário principal do estúdio, decorado como se fosse um bar, UMA DEZENA DE JOVENS toma refrigerante. Uma grande câmara está sobre um travelling, deslizando rápido sobre os trilhos, mostrando os jovens em plano fechado. A ação termina numa LOURA, que dá uma piscada para o lado. JOÃO PAULO Corta! João começa a falar com a loura, mas, quando vê Cátia, abandona o set e aproxima-se da amiga. CÁTIA Eu posso esperar. JOÃO PAULO Eu só vou sair desse estúdio daqui a uma semana. CÁTIA Uma semana pra fazer um comercial de refrigerante? JOÃO PAULO Cinco comerciais de refrigerante. Esse é o primeiro, e já estou com vontade de matar aquela modelo. (aponta para a loura) Ela não consegue tomar refrigerante e piscar ao mesmo tempo. É terrível. CÁTIA Se é tão ruim assim, por que tu faz? JOÃO PAULO Tu não imagina quanto eu vou ganhar pra fazer cinco comerciais de refrigerante. (pausa) A Mirabela disse que tu ficou chateada. Desculpa. Mas aquele roteiro não tem nada a ver comigo. Eu tava gastando uma grana e recusando trabalhos pra produtora. Aí, ontem, na minha análise, descobri que filmar o roteiro do Veronese era uma cerimônia de despedida. Já me despedi. Diz isso pro Holmes. Ele pode terminar a obra-prima dele sem se preocupar comigo. CENA 69. APARTAMENTO/SALA - INTERIOR - DIA O set de filmagens comandado por Holmes, num apartamento vazio, é de uma precariedade total. Além dele, estão presentes na sala o ator AFONSO (25 anos), um OPERADOR DE CÂMARA, que segura uma câmara DV amadora e uma ASSISTENTE, com cara de estudante/estagiária. Cátia conversa com Holmes. HOLMES (incrédulo) Tá brincando. CÁTIA Ele parou mesmo. Desistiu. Agora o roteiro é todo teu. Quantos dias de filmagem ainda faltam? HOLMES Não sei. O dinheiro acabou. CÁTIA Mas tu disse que ia fazer o filme com três mil reais. HOLMES Fiz uma parte. Mais da metade. (barulho de porta abrindo; Holmes fala mais baixo) Mas a Cassandra tá complicando. Cassandra entra na sala, vinda do quarto, maquiada, segurando alguns produtos de maquiagem na mão. Está com uma cara péssima e um humor pior ainda. CASSANDRA (para Cátia) Ôi. (para Holmes) Conseguiu a grana? HOLMES (titubeia) A grana? CASSANDRA É aquela coisa que serve pra pagar maquiagem, comida, aluguel. Conseguiu? HOLMES Ainda não. (pega no bolso uma fita mini-DV) Mas eu consegui uma mini-DV nova. Não vamos mais ter que refazer por causa de fita amassada. Vamos lá? CENA 70. APTO. VAZIO - INTERIOR - DIA * filmada em DV - atores: AFONSO (25 anos) e Cassandra. É um plano-seqüência, com câmara na mão. A assistente segura uma claquete improvisada na frente da câmara. Atrás, uma porta com uma placa de "Aluga-se". HOLMES (off) Atenção. Tá gravando? Ação. Cassandra/garota entra em quadro, com uma bolsa no ombro, e aperta a campainha. Afonso/cineasta abre a porta, sorridente, com um fotômetro pendurado no pescoço. Beija Cassandra/garota na boca. Ela corresponde, mas ainda está desconfiada. CASSANDRA (como GAROTA) É aqui? AFONSO Claro. Entra! Cassandra/garota entra (a câmara entra junto) e olha em volta. O apartamento está vazio. Há uma câmara VHS (bem usada) sobre um tripé e um refletor de 1000 watts amarrado num cabo de vassoura, que por sua vez está amarrado na caixa da veneziana. AFONSO (como CINEASTA) Não é perfeito? Parece o "Último tango em Paris". Cassandra/garota aponta para o fotômetro. CASSANDRA (como GAROTA) O que é isso? AFONSO (como CINEASTA) Um fotômetro. Serve para medir a luz. Tem que considerar a ASA do filme. Sabe a ASA? Cassandra/garota olha para a câmara VHS, desconfiada. Afonso/cineasta acende o refletor e aproxima o fotômetro do rosto da garota. AFONSO (como CINEASTA) Perfeito! Estudou a cena? CASSANDRA (como GAROTA) Onde tá o ator? AFONSO (como CINEASTA) Ele tinha um compromisso e vai chegar mais tarde. Por enquanto, eu vou fazer o papel dele, só pra gente não perder tempo. Vamos lá? É a cena do beijo. Afonso abre os braços. Cassandra/garota olha outra vez para a câmara, para Afonso/cineasta e fecha a cara. CASSANDRA (como GAROTA) Aquilo ali não é filmadora de cinema. Meu tio tem uma igual, mas a dele é mais nova. E esse teu radinho de pilha não engana ninguém. Adeus. Cassandra/garota sai do quarto, furiosa. HOLMES (off) Vai atrás dela. A câmara segue Cassandra, que, em vez de sair direto, vai para o banheiro, onde começa a tirar a maquiagem, com a ajuda de um pequeno espelho na parede. Holmes entra em quadro. HOLMES Era pra ter saído direto. Mas a cena ficou boa. CASSANDRA Tô indo embora. Cátia entra em quadro e acompanha a discussão. CASSANDRA Não vou continuar pagando pra trabalhar. Sabe que o imbecil do João desistiu do filme dele? Sabe quanto tempo eu fiquei no ônibus pra vir pra cá? E ainda paguei a passagem. Quando tiver um saquinho de ficha de ônibus, me liga. Cassandra termina de retirar a maquiagem, dá as costas para Holmes e afasta-se dele. Depois pára e volta-se para Holmes. CASSANDRA Pensando bem, não liga. E sai. A câmara vai para Holmes, que olha para Cátia, constrangido. CÁTIA E aquele dinheiro que eu te emprestei? HOLMES Gastei com o meu aluguel. Tava seis meses atrasado. (mais baixo) Acabou o filme. (para Cátia) Desculpa. Holmes olha para a câmara, brabo. HOLMES Tu tava gravando isso tudo? Desliga essa merda. CENA 71. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA Valdo opera o projetor 16mm. Cátia está sentada ao seu lado. No chão há uma caixa de papelão cheia de latas, pequenas e médias, com filmes 16mm, alguns em batoques, outros em carretéis. Misturados, alguns rolinhos de super-8. Um filme (preto-e-branco) está rodando no projetor. Não há som. VALDO Esse eu lembro. "O sexo errado". Tem uma trepada sensacional. A atriz tinha 17 anos. Deu um baita rolo com a mãe dela. CÁTIA Pode tirar. Eu já vi em vídeo. Valdo pára o projetor, retira o filme e começa a rebobinar. CÁTIA O João Paulo e o Holmes desistiram dos filmes. VALDO Eu sei. Em compensação, eu começo depois de amanhã. Quer dar uma olhada no set? CÁTIA Posso ir mesmo? VALDO Claro. Mas não vai no primeiro dia. Sábado é melhor. CÁTIA (sorrindo) Então vou. VALDO Não quer ler o final que eu escrevi? CÁTIA Não. Valdo bota outro filme pra rodar. É um copião montado com durex. Não há créditos. VALDO Esse eu nunca vi. Uma imagem (desbotada, riscada) da fachada da casa de Linda em Nova Itália, com o sol nascendo. Outra imagem: apenas o sol perto do horizonte. CÁTIA (baixinho) "Aurora"... CENA 72. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR Cátia entra no set, bem discretamente. Uma das ASSISTENTES DE DIREÇÃO sorri para ela e indica uma cadeira vaga, de onde pode ver a cama, onde o ator LÉO (40 anos) e Cassandra (de blusa, saia e meia de seda) estão sentados numa cama redonda, com espelhos no teto, ouvindo instruções de Valdo. A luz simula o efeito das lâmpadas coloridas (e meio bagaceiras) espalhadas em volta da cama, perto do chão. VALDO (para os atores) Vamos passar a cena toda. Eu vou dando as marcações. Cassandra concorda com a cabeça. Valdo vira-se para sentar em sua cadeira. Vê Cátia. Acena e sorri para ela. VALDO Vamos lá. Posição inicial. Cassandra e Léo levantam-se e vão até a porta. Colocam-se frente a frente. VALDO Ação! Léo abraça e beija Cassandra, que corresponde. Léo vai empurrando Cassandra na direção da cama, sempre beijando. Leó faz com que ela se deite. VALDO Perfeito, agora começa a tirar a roupa dela. Léo tenta tirar a blusa de Cassandra, mas ela resiste. VALDO Ela resiste. Mas ele não quer saber. Cátia olha para Valdo, confusa. Com um gesto quase violento, Léo tira a blusa de Cassandra. Ela está com um sutiã preto e semi- transparente. Léo não pára de beijá-la. Tenta levantar a saia de Cassandra. CASSANDRA Espera... VALDO Tem que falar mais alto, Cassandra. CASSANDRA (mais alto) Espera, eu tenho que... VALDO Isso! Pede agora. CASSANDRA (para Léo) Apaga a luz! Cátia fica tensa. CENA 73. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ DIA Nas mesmas posições dos personagens da cena anterior, sobre uma cama, com os mesmos figurinos e fazendo quase a mesma coisa, estão Valdo e Cátia. A luz do sol entra pela janela. Valdo beija Cátia sem parar. Cátia olha para a janela. CÁTIA (bem baixinho) Só um pouquinho... Eu vou fechar... Valdo não ouve. CENA 74. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR Léo e Cassandra beijam-se, as roupas tiradas pela metade. CASSANDRA Apaga a luz, por favor. VALDO (off) Ele não quer saber de luz nenhuma. (pequena pausa) Agora ela tenta fugir. Cassandra faz força para se libertar de Léo, mas ele não a deixa escapar. Vai tirando o resto da roupa dela e encaminhando os finalmentes da transa. VALDO Agora ela pede de novo. CASSANDRA Apaga a... Ahhh! (Léo conseguiu penetrar) ...a luz! Por favor... (com a boca do ouvido de Valdo) A luz. LÉO Mais luz? Léo estende o braço e acende a luz principal. VALDO Ela olha pro espelho no teto. Cassandra olha para cima, na direção do espelho. Parece fascinada. Cátia está mais tensa ainda. CENA 75. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ DIA Ponto de vista do teto. Valdo e Cátia, abraçados, sob a luz forte que entra pela janela. Cátia olha para cima, com os olhos bem abertos. CENA 76. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR Cátia levanta e pega um roteiro sobre uma três-tabela. Começa a folhear o roteiro. Olha para Valdo, abalada. CÁTIA Filho da puta! Valdo olha para ela, sem entender o que está acontecendo. Cátia corre para fora do cenário, sem dizer coisa alguma. VALDO (para os atores) Só um instante! (na direção de Cátia) Cátia! Cátia! CENA 77. ESTÚDIO (FORA DO CENÁRIO) - INTERIOR - DIA Cátia corre pelo estúdio, que está numa discreta penumbra. Vê o ASSISTENTE DE CÂMARA, sentado num canto, manipulando magazines e latas de filmes. Cátia vai até lá, pega duas latas fechadas com fita crepe. O assistente, surpreso, não reage. Cátia corre até um praticável alto, sobe nele e joga a escada no chão. Lá em cima há pouca luz. Valdo, Cassandra, Edvaldo e o assistente de câmara chegam no praticável. Cátia está tentando abrir uma das latas. VALDO (gritando) Calma, Cátia. (para Edvaldo) Joga uma luz. Edvaldo começa a ligar um fresnel, enquanto o assistente de cãmara pega a escada e a encosta no praticável. CÁTIA Se alguém tentar subir, eu me atiro. CASSANDRA Calma, Cátia. Edvaldo liga o fresnel, iluminando o rosto de Cátia. Ela consegue abrir uma das latas e tira o negativo de dentro. EDVALDO Porra, ela tá velando tudo! Valdo sobe dois degraus na escada. VALDO Chega, Cátia. Cátia, sorridente, mostra o filme para todos. CÁTIA Eu já aprendi alguma coisa sobre cinema. Aprendi o que tem dentro dessas latas. (para Valdo) Se subir mais um degrau, eu abro a outra. CASSANDRA Vamos conversar, Cátia. Desce daí. CÁTIA (para Valdo) Como tu teve coragem de escrever aquilo? VALDO (confuso) Quem escreveu foi o Veronese. CÁTIA Não mente. Cassandra aproxima-se de Valdo. CASSANDRA O teu micro taí? VALDO Ali no escritório. Cassandra sai correndo. Valdo sobe mais um degrau. Cátia empurra a escada, quase derrubando Valdo no chão. CÁTIA Eu li o roteiro do Veronese. Não tinha essa cena. VALDO Claro que tinha! Eu só escrevi o final. Cassandra volta, com o notebook de Valdo na mão. CASSANDRA Cátia, tu deve ter lido a versão anterior, de maio. Depois o Veronese continuou. Tem o dia aqui: 20 de junho. Essa cena é do Veronese, Cátia! Cátia olha pra baixo, desconcertada. Olha para Valdo, depois para Cassandra, depois para Valdo outra vez. CENA 78. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE Valdo e Cátia conversam, sozinhos no camarim. Cátia está com o roteiro na mão. VALDO Como eu ia adivinhar? Nós nunca nos encontramos em motel. Tu nunca pediu pra apagar a luz nenhuma. CÁTIA (quase um murmúrio) Pedi. Eu queria fechar a janela. VALDO Se pediu, eu juro que não ouvi. Pra mim, aquilo tudo é ficção. CÁTIA Eu sei. Ficção. (pequena pausa) Por que tu contou pro Veronese sobre nós? VALDO Eu não contei nada... CÁTIA (cortando, séria) Contou. Eu sei que contou. O Veronese escreveu a cena depois de almoçar contigo, no dia em que ele morreu, 20 de junho. Eu tenho certeza. Não mente mais pra mim, por favor. Valdo fica quieto por algum tempo, olhando para o lado. Finalmente, encara Cátia. VALDO Ele sabia de uma coisa, e disse que ia te contar. Eu... Tive medo. CÁTIA Medo do quê? CENA 79. RESTAURANTE JAPONÊS - INTERIOR - DIA Valdo e Veronese almoçam em restaurante japonês. Veronese tem certa dificuldade para usar os pauzinhos. Valdo parece manejá-los com maestria. VERONESE Não precisa ter medo. Eu amo muito a Cátia. E vou continuar amando. Valdo pega um sushi, molha-o no shoyu e coloca-o na boca. Faz tudo isso com um sorriso nos lábios e balançando a cabeça. VALDO (sorrindo, mas já nervoso) Tira essa bobagem da cabeça. Eu pensei que tu queria falar sobre o regulamento do concurso. De onde tu tirou... VERONESE A Cassandra me disse que tu andava estranho. Eu pensei: vou marcar um almoço com o Valdo, faz tempo que a gente não conversa. Aí eu tentei marcar um dia. (pausa) Tu é um cara ocupado, eu sei, mas as tuas desculpas eram horríveis. VALDO Eu tô realmente muito ocupado. O meu longa... VERONESE Tudo bem. É o preço do sucesso. Só que, nos mesmos dias em que eu tentava marcar contigo, depois de não conseguir, eu tentava marcar com a Cátia. A gente almoça juntos, às vezes. (pausa) E ela também dava desculpas horríveis. VALDO Coincidência, Veronese. Que coisa ridícula! VERONESE Quatro vezes seguidas? Coincidência demais. Aí, tu me telefona e diz "amanhã eu posso". E, uma hora depois, a Cátia também me convida pra almoçar. Valdo está levando outro sushi à boca. Pára, com o sushi a centímetros dos dentes. VALDO Que paranóia. Cara, tu tá completamente enganado. VERONESE Talvez. Mas a Cassandra também me disse outra coisa. Que ela tá transando contigo. Há mais de um mês. O sushi escapa dos hashis de Valdo em câmara lenta e mergulha no pratinho de shoyu, gerando uma onda de molho que atinge em cheio a camisa branca de Valdo. A sujeira é grande. CENA 80. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE Cátia olha para Valdo, que olha para Cátia. VALDO Me ouve até o fim! Por favor... CENA 81. RESTAURANTE JAPONÊS - INTERIOR - DIA Segue o diálogo entre Veronese e Valdo, este com a camisa toda manchada. Tenta limpá-la com o guardanapo. Não dá certo. VALDO (sorri e tenta recuperar-se) Então... Eu admito. Tô namorando a Cassandra. A gente combinou de não contar pra ninguém, mas ela falou pra ti. E daí? O que a Cátia tem a ver com... VERONESE Tu e a Cassandra. Eu vou contar pra Cátia. Vai ser bom pra mim. Ela sempre sentiu ciúmes da Cassandra. Agora vai parar de encher o saco. Valdo sente o golpe. VERONESE Eu sei que é melhor ficar quieto. Só preciso que tu me diga a verdade. É um trato. Fica tudo como está. Eu amo muito a Cátia. E decidi morar com ela. Se ela quiser, podemos casar. Tô pensando em ter filhos. Valdo está vencido. VALDO Olha, Veronese... Eu e a Cátia... Eu sei que não devia... Foi errado. Muito errado. VERONESE Errado? Não sei. Talvez tenha sido bom. Tô falando sério. Me fez pensar. Me fez decidir. (pausa) Eu só vou fazer uma pergunta. Uma só. Tudo bem? Valdo acente. VERONES Quando vocês transavam, ela te pedia alguma coisa... diferente? VALDO Como assim? VERONESE Na hora do sexo. Ela não te pedia um troço meio estranho? VALDO Não. Nada. VERONESE Alguma coisa com a luz. VALDO Com a luz? Não. CENA 82. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE Cátia olha para Valdo, com uma mistura de dor e desprezo. VALDO Eu fiquei com medo de te magoar. CÁTIA E tu também transa com a Cassandra porque tem medo de me magoar? VALDO Não. Com a Cassandra não é sério. Eu te amo... De verdade. Tu acredita em mim? CÁTIA No teu amor? Claro que não. O que tu sente é outra coisa. Mas tudo bem. Eu acredito no resto. Faz sentido. É o que interessa, né? Juntar os pedaços e encontrar um sentido. CENA 83. ESTÚDIO - INTERIOR - DIA * filmada em 35mm - atores: Garcia (cineasta) e Cassandra Garcia/cineasta conversa com Cassandra. ROGER (25 anos) opera uma câmara DV. Também há um ATOR (40 anos) no estúdio de paredes descascadas, iluminado por alguns refletores. GARCIA (como CINEASTA) (apontando) O Roger, que vai fazer câmara, e o Camargo, que vai fazer o papel do cineasta. CASSANDRA (como GAROTA) Prazer. Cassandra/garota vai direto até a câmara e a examina. Roger se aproxima. Ela parece duvidar de tudo à sua volta. CASSANDRA (como GAROTA) Não parece muito uma câmara de cinema. ROGER Mas é. De cinema digital. A gente grava em vídeo, depois passa pra película. GARCIA (como CINEASTA) Um filme que ganhou o festival de Cannes foi feito com um câmara igual a essa. "Dançando no escuro". A Bjork, aquela cantora, faz uma cega. Chegou a ver? CASSANDRA (como GAROTA) Não. Acontece que eu não sou cega e o público também não. Eu não sou cantora, sou atriz, e não gastei dez mil horas malhando numa academia para ficar dançando no escuro. Eu quero dançar no claro e na frente de uma câmera de cinema. Cassandra/garota dá as costas para os homens e se afasta. Garcia/cineasta vai atrás dela, desesperado. GARCIA (como CINEASTA) É um filme pós-moderno, que usa várias tecnologias. Amanhã a gente filma em 16mm. Eu juro. Cassandra/garota pára e volta-se para Garcia. CASSANDRA Amanhã eu quero ver uma câmara de cinema. Cinema! Ou esse filme acaba antes de ter começado. CENA 84. RUA - EXTERIOR - DIA * filmada em DV - atores: Afonso e Cassandra Em volta de uma câmara 16mm (sobre um tripé), estão Afonso/cineasta, um OUTRO ATOR e um OUTRO ROGER (o operador de câmara), além de uma pequena equipe, toda de mentira: um OPERADOR DE SOM (com um nagra muito velho), uma ASSISTENTE DE DIREÇÃO e uma FIGURINISTA. Há até uma claquete de verdade, em que está escrito o título do filme: "A ÚLTIMA CHANCE". Cassandra/garota e o ator estão frente a frente. AFONSO (como CINEASTA) (para a garota) Você se aproxima dele, diz "eu te amo" e o abraça. CASSANDRA (como GAROTA) (nervosa) Eu abraço, entendi. Cassandra/garota se afasta um pouco. A assistente de direção aproxima-se com a claquete. AFONSO (como CINEASTA) Atenção! Vai som. OPERADOR DE SOM Foi som. Cassandra/garota olha na direção do Outro Roger, o operador de câmara, e nota um sorriso maroto. ASSISTENTE (off) Cena três, plano três, tomada um. AFONSO (como CINEASTA) Câmara. CASSANDRA (como GAROTA) Corta! AFONSO (como CINEASTA) (surpreso) Corta? Cassandra/garota aproxima-se da câmara. CASSANDRA (como GAROTA) (para Outro Roger) Abre essa câmara. OUTRO ROGER Não posso. Vai estragar o filme. Afonso/cineasta chega na discussão. Está nervoso. AFONSO (como CINEASTA) O que aconteceu? CASSANDRA (como GAROTA) Não tem filme nessa câmara. (aponta para Outro Roger) Ele tava rindo de mim. AFONSO (como CINEASTA) Que paranóia. Claro que tem filme. Se abrir, vela. CASSANDRA (como GAROTA) Eu pago outro. Abre. AFONSO (como CINEASTA) Impossível. Cassandra/garota se atira na câmara, caindo e derrubando o tripé, enquanto luta para abrir a tampa. Consegue abrir: não há filme algum na câmara. Ela dá um tapa bem estalado na cara Afonso/cineasta, levanta e sai. Na porta do estúdio, ainda desabafa, em altos brados: CASSANDRA (como GAROTA) Tu ainda vai ouvir falar de mim! Eu vou ser atriz! Afonso/cineasta, com a mão sobre a bochecha em que levou o tapa, responde, também gritando: AFONSO (como CINEASTA) Tu não é atriz e nunca vai ser! CASSANDRA (como GAROTA) E tu vai passar a vida inteira dizendo que faz cinema pra tentar comer as atrizes. Mas não faz filme nenhum! E não come ninguém! CENA 85. ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA O último frame do último plano de Cassandra (quando ela diz "E não come ninguém") está congelado no monitor de uma ilha de edição digital. Cátia e Linda estão sentadas na frente da ilha. Cátia está sorrindo, satisfeita. CÁTIA Tá super bom. Bom mesmo! Parabéns. LINDA Mas, daqui pra frente... Não sei. Algumas cenas estão incompletas. E têm três cenas faltando. Nenhum dos dois filmou. (pequena pausa) Eu tive uma idéia. Não sei se vai dar certo. Cátia, eu nunca fiz um filme. CÁTIA Nem eu. Qual é a idéia? LINDA Logo depois dessa cena (aponta para o monitor) vem um letreiro, tipo: "Alguns anos depois." CENA 86. ESTÚDIO DE TV - INTERIOR - DIA * filmada em 35mm e DV - atores: Garcia (cineasta em 35mm), Afonso (cineasta em DV) e Cassandra. A idéia é misturar tudo. CARTÃO: ALGUNS ANOS DEPOIS Cassandra/garota, com roupas e cabelo do século 19, fala com alguém que não vemos. 35mm - CASSANDRA (como GAROTA) É tão difícil saber se é mesmo amor. Mas eu tenho um grande desejo. Talvez "desejo" não seja uma boa palavra. Mas também não posso dizer que eu estou "apaixonada". Apaixonar-se é sentir o coração doendo, é ter febre, é sofrer por alguém. E isso eu não sinto. Talvez o problema seja essa nossa mania de dar nomes para tudo, de tentar que cada coisa seja ligada a uma determinada palavra. Continua o monólogo, mas Cassandra está com outro figurino (muito mais pobre) e outro penteado (muito menos sofisticado) DV - CASSANDRA (como GAROTA) Quem sabe, no dia em que nos libertarmos das palavras, nossos sentimentos também fiquem mais livres. E a gente consiga ser mais feliz. Sentir, apenas, sem pensar em tantas categorias. Desejo, amor, paixão... As palavras não nos ajudam a compreender o que sentimos. Será que alguém, algum dia, poderá dizer, com toda certeza, "isso é amor", "aquilo não é amor"? DIRETOR (off) Corta! Ótimo. Almoço! 35mm - Cassandra/garota abandona o set, rumo ao camarim. Enquanto caminha, vai tirando bijuterias, roupas e peruca e entregando tudo para uma ASSISTENTE DE FIGURINO. ASSISTENTE DE FIGURINO Tem um moço querendo falar com você. CASSANDRA (como GAROTA) Que moço? A assistente aponta para Garcia/cineasta, que está quase na frente delas, encostado numa tapadeira. ASSISTENTE DE FIGURINO Aquele ali. Cassandra/garota olha para Garcia/cineasta, surpresa. CENA 87. RESTAURANTE DA TV - INTERIOR - DIA * filmada em 35mm e DV - atores: Garcia (cineasta em 35mm), Afonso (cineasta em DV) e Cassandra. A idéia é continuar misturando tudo, desta vez com intervalos menores. 35mm - Cassandra/garota e Garcia/cineasta conversam. CASSANDRA (como GAROTA) Quase cinco anos. GARCIA (como CINEASTA) Passa depressa, né? Um FIGURANTE (20 anos) aproxima-se da mesa e estende uma folha de papel e uma caneta. FIGURANTE É pra minha noiva. Se chama Dolores. DV - Cassandra/garota escreve alguma coisa no papel. AFONSO (como CINEASTA) Eu começo amanhã, como assistente de direção. Pára de escrever e olha para o Afonso/cineasta. CASSANDRA (como GAROTA) Começa o quê? AFONSO (como CINEASTA) A trabalhar aqui na TV. Na tua novela. Fui selecionado há seis meses, mas só me chamaram agora. Cassandra/garota termina de dar o autógrafo e beija o OUTRO FIGURANTE, que vai embora, todo feliz. 35mm - Cassandra/garota volta a olhar para Garcia/cineasta CASSANDRA (como GAROTA) E o cinema? GARCIA (como CINEASTA) Fiz um curta. Não ficou muito bom. Vim pro Rio. Trabalhei como assistente de produção em comerciais. DV - Afonso olha para Cassandra/garota. AFONSO (como CINEASTA) Vi todos os capítulos na semana passada. Cento e doze. E sabe qual é a coisa mais impressionante? Ver como a tua personagem cresceu. Era importante desde o começo, mas a partir da terceira semana, toda a novela começou a girar em tua volta. CASSANDRA (como GAROTA) A audiência sempre cresce nas minhas cenas. Dizem que tenho "empatia" com o público. E quanto maior o decote, maior a empatia. AFONSO (como CINEASTA) Bobagem. Tu é uma atriz muito talentosa. 35mm - Cassandra sorri. CASSANDRA (como GAROTA) Ainda não sou nada. Mas quero ser. Eu tenho que fazer cinema. Mas ninguém me convida. A assistente de figurino aproxima-se da mesa ASSISTENTE Dez minutos. Temos que começar a vestir. A assistente começa a colocar as bijuterias de volta. De repente, Cassandra/garota segura a mão de Garcia/cineasta. CASSANDRA (como GAROTA) Vamos fazer um filme? Eu sei de uma boa história. GARCIA (como CINEASTA) Cinema é muito caro. CASSANDRA (como GAROTA) Vou te contar um segredo: vou posar pra Playboy. Eu não queria, sempre recusava, mas aí eles foram aumentando o cachê, aumentando... E eu aceitei. Um milhão. Vou comprar um apartamento novo, carro novo, roupas novas, mas também vamos fazer um filme. Eu vou ser a atriz principal, e tu vai dirigir. DV - Afonso olha para Cassandra/garota. AFONSO (como CINEASTA) E qual é a história? CASSANDRA (como GAROTA) Jovem cineasta inventa filme de mentira para conquistar garota ingênua que deseja ser atriz. Topa? Afonso/cineasta fica embasbacado. CENA 88. PALÁCIO DOS FESTIVAIS DE GRAMADO - INTERIOR - NOITE 35mm - ESTRELA DO CINEMA BRASILEIRO, ao lado do APRESENTADOR do Festival de Gramado, segura um envelope. Estrela abre o envelope e lê. ESTRELA E o Kikito de melhor atriz de curta-metragem do Trigésimo Segundo Festival de Gramado vai para... Solemara da Silva, por "Filme de mentira"! Aplausos e gritos de "Bravo!" ecoam pelo auditório. Cassandra/garota sobe no palco, em deslumbrante e super-decotado vestido de noite. Assobios de admiração e gritos de "Gostosa!" se misturam aos aplausos. A estrela entrega o Kikito para a garota, que vai até o microfone. DV - Cassandra/garota chega no microfone. CASANDRA (como GAROTA) (muito emocionada) Meu Deus do Céu. Acho que vou desmaiar. Eu gostaria de agradecer a toda equipe do filme, ao Festival de Gramado... Mas tem uma pessoa a quem eu tenho que agradecer acima de tudo. E essa pessoa é o homem que eu amo, meu marido e diretor do filme, Volnei Sanches! 35mm - Garcia/cineasta aplaude da platéia. Alguns flashes. DV - Afonso/cineasta aplaude da platéia. 35mm - Garcia/cineasta acena na direção do palco. DV - Afonso/cineasta acena na direção do palco. Alguns flashes. 35 mm - Cassandra/garota continua seu discurso. CASSANDRA (como GAROTA) Há seis anos atrás, o Volnei me convidou para fazer um filme. Ele me jurava que era um filme de verdade. Era mentira. Sabem por quê ele mentiu? DV - Cassandra/garota continua seu discurso. CASSANDRA (como GAROTA) Eu pensava que ele só queria se aproveitar de mim. Mas hoje eu sei: ele era capaz de fazer qualquer coisa pra ficar perto de mim, menos confessar que estava apaixonado e assumir que me queria. 35 mm - Cassandra/garota continua seu discurso, emocionada. CASSANDRA (como GAROTA) Era capaz de escrever uma história, com personagens que ele inventava, pra tentar me explicar o que ele sentia. Era capaz de mentir, de enganar, de chamar um monte de gente para fazer de conta que estava filmando aquela história. E eu, burra, não percebi que só um homem muito apaixonado seria capaz de tanto esforço. DV - Cassandra/garota continua seu discurso. Está chorando. CASSANDRA (como GAROTA) Mas hoje eu sei, eu tenho certeza, e o nosso filme é sobre isso. Sobre como o amor nos leva a fazer as coisas mais idiotas e maravilhosas da face da terra. Como o amor cria a arte, como a arte nos faz compreender melhor o mundo e ligar pessoas que estão distantes umas das outras, porque não conseguem expressar suas emoções. 35mm - Cassandra/garota levanta o Kikito. CASSANDRA (como GAROTA) Viva o amor! DVD - Cassandra/garota sacode o Kikito. CASSANDRA (como GAROTA) E viva o cinema! Mais aplausos. Sobe a música. CARTÃO 1: ROTEIRO þ Rudi Veronese CARTÃO 2: MONTAGEM - Linda Veronese e Cátia Lima CARTÃO 3: DIREÇÃO - João Paulo Bartzen e Holmes Padilha CENA 89. PEQUENA SALA DE CINEMA - INTERIOR - NOITE Continua a música dos créditos. Começam a subir os agradecimentos. Na sala, ainda escura, estão sentados, assistindo ao roll final: Cátia e Linda (bem no fundo); Mirabela e Cassandra (perto delas, mas uma fila à frente); Valdo (bem na frente); Holmes (num canto, separado dos outros); João Paulo (no meio, com uma OUTRA GAROTA ao seu lado); e alguns integrantes das equipes dos filmes (os dois atores que fizeram o "cineasta" - Garcia e Afonso -, outros atores, técnicos, etc.). A luz acende. Por alguns instantes, ninguém diz nada. Finalmente, Valdo vira-se para trás. VALDO O filme só tem um problema, Cátia. (percebe que ela não está lá) Cadê a Cátia? Todos olham pra trás. Os lugares onde estavam Cátia e Linda estão vazios. MIRABELA Elas estavam bem aqui. JOÃO PAULO Qual é o problema, Valdo? VALDO Os créditos estão errados. O filme não é teu, nem do Holmes. É da Cátia e da Linda. JOÃO PAULO Por quê? Elas montaram o que eu filmei. HOLMES O que nós filmamos. JOÃO PAULO Eu filmei. Em 35. Tu gravou esse lixo em digital. HOLMES Lixo? Lixo são esses teus travellings de comercial de refrigerante. MIRABELA Calma, gente! Calma! CASSANDRA Vocês filmaram o que o Veronese escreveu. O filme é dele. VALDO Mas elas que juntaram os pedaços e deram um sentido. Um sentido novo. Isso é o que interessa. A Cátia e a Linda fizeram esse filme. Onde elas estão? CENA 90. CAIS DO PORTO þ EXTERIOR þ DIA (PÔR DO SOL) Cátia e Linda conversam na beira do rio. CÁTIA O menino cresce muito solitário, numa cidade do interior. O único divertimento que ele tem é ir ao cinema. Ele se apaixona por várias atrizes. E não é correspondido, claro. Isso faz com que ele fique meio estranho: ele não consegue lidar com as mulheres de verdade. Será que dá um curta? LINDA É a história do meu pai? CÁTIA Talvez, um pouco. Quem pode saber? Ninguém. Nem eu. O que interessa é a história. Tu gostou? Linda sorri. LINDA Acho que sim. E a segunda idéia? CÁTIA A segunda é mais complicada. Talvez seja um longa. LINDA Sobre... CÁTIA Sobre cinema. (pensa um pouco) E também sobre amor. O Veronese dizia que os filmes bons são sempre sobre amor. LINDA Tem título? CÁTIA Tem. Sal de prata. LINDA Bonito. Sal de prata. Como é a história? CÁTIA Tô recém começando a escrever. LINDA Não enrola. Conta aí. CÁTIA (olhando em volta) Eles devem estar nos procurando. Vamos voltar? LINDA Só a primeira cena, Cátia. CÁTIA A primeira? Essa eu sei, foi o teu pai que escreveu: aparece uma garota, e a gente só vê o rosto dela e os ombros nus. Ela olha para a câmara e diz o seguinte... Cátia "desmonta", olha para a câmara e sorri. CÁTIA Corta. CRÉDITOS FINAIS ************************************************************* (c) Carlos Gerbase, 2004-2005 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br