TOLERÂNCIA roteiro de Carlos Gerbase, Jorge Furtado, Álvaro Teixeira e Giba Assis Brasil 12° tratamento - maio/1999 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ******************************************************************* CENA 1 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO - DIA (9H) Créditos iniciais intercalados Júlio, 40 anos, está no escritório de sua casa, sentado à frente de uma mesa que abriga um computador poderoso, scaner, impressora, gravador de CD-ROM, tudo ligado. A sofisticação do equipamento contrasta com pilhas vacilantes de badulaques que entopem o resto do quarto: revistas velhas, caixas, fotos amarelecidas, alguns filmes super-8, livros e fitas de vídeo. Uma pequena televisão, desligada, também está sobre uma das estantes. O ambiente é de semi-penumbra com a janela e a porta fechadas. Apenas um pequeno abajur está ligado. Num canto da mesa, precariamente equilibrado, um projetor super-8 roda um rolinho de filme. A imagem chega a um dos poucos espaços livres na parede. Júlio manipula uma pequena câmara de vídeo sobre o tripé, apontada para a imagem do filme super-8. Um fio sai da câmara e vai até o micro. Numa janela do monitor, vemos a mesma imagem em movimento que está na parede. O filme, com cores desmaiadas e a sujeira típica dos super-8 antigos, mostra uma manifestação dos Sem Terra, em 1978, no interior do Rio Grande do Sul. Entre as centenas de agricultores, a câmara descobre Márcia, 18 anos, vestindo uma camiseta de Che Guevara. Ela percebe que está sendo filmada e sorri, encabulada. Seguem-se outras imagens de Márcia (tomando chimarrão, caminhando com os manifestantes, assistindo a um discurso, etc.). Na última delas, está abraçada em Júlio (aqui com 20 anos). Os dois abanam para a câmara, sorridentes. Júlio, em seu escritório, também sorri. O filme termina. Júlio desliga o projetor, confere alguma coisa no monitor e clica o mouse. Abre um pouco a janela, iluminando mais o escritório. Júlio, sempre olhando para o monitor, clica o mouse mais algumas vezes até que a primeira imagem de Márcia volta a aparecer. Digita sobre a imagem "Encruzilhada Natalino". Clica o mouse. A imagem se move por alguns momentos, devidamente identificada. Júlio clica outra vez, interrompendo a gravação e a imagem do filme no monitor. Pega uma caixa cheia de fotos antigas e começa a separar algumas, colocando sobre a mesa. Examina por algum tempo uma foto de Márcia de biquíni, sorri e coloca de volta na caixa. Leva uma das fotos para o scaner. Aciona o aparelho. Logo uma foto de Márcia (ainda bem jovem, desta vez de minissaia ou bermuda) aparece na tela do monitor. Outras fotos de Márcia se sucedem, como se fossem digitalizadas logo a seguir. Foto de Júlio com sua câmara. Foto dos dois juntos, felizes. Foto de Márcia como "bixo" da universidade, toda pintada e lambuzada. Foto de Márcia segurando o Código Penal numa mão e um baseado na outra. Júlio olha para a foto no monitor, sorri e depois aperta "Delete". Foto de Júlio com toga na formatura de Jornalismo. Foto de Júlio na estação rodoviária, entrando num ônibus com destino a uma cidade muito distante (pesquisar qual linha era a mais longa). Foto de Júlio com sua câmara, em local árido. Júlio de barba, meio sujo, com um chapéu na cabeça. Fotos das viagens de Júlio, por vários estados, retratando as "injustiças sociais" do Brasil: pobreza, manifestações de trabalhadores e estudantes, repressão policial, crianças subnutridas, etc. Fotos do nascimento de um bebê; o bebê sendo amamentado por Márcia; Márcia trocando as fraldas do bebê; o bebê dormindo. Foto de Márcia de toga na formatura de Direito, perto de uma "estátua da Justiça". Fotos de Guida com uns quatro anos, indo para o colégio. Foto de Márcia em sua sala no escritório, com uma montanha de papéis sobre a mesa e uma cara de resignação. Foto de Júlio, em casa, com seu primeiro computador (Apple II ou semelhante - pesquisar). Foto de Júlio, Márcia e Guida (com uns 4 anos) numa manifestação. Os três vestem camisetas das "Diretas já". Júlio sentado numa mesa de reuniões com os executivos da revista. Ambiente "clean", moderno (ou seja: cafona). Algumas fotos e revistas em cima da mesa, mas longe da câmara o suficiente para não identificarmos o gênero da publicação. Terminam os créditos iniciais. Toca o telefone, interrompendo Júlio. Ele atende e enquanto fala, dá alguns cliques com o mouse, salvando suas últimas ações. JÚLIO Alô. (...) Não... Mas tu não disse que... (...) Tá, eu não vou discutir... (...) Tudo bem. Tô indo praí. (desliga, irritado) CENA 2 - INTERIOR - ESCADARIA DO FÓRUM - DIA (12H) Márcia, 37 anos, de toga, com uma pilha de processos na mão, sai do fórum, acompanhada de dois outros advogados. Teodoro, 30 anos, vestindo um terno pequeno demais para ele, nervoso, está esperando. Aproxima-se de Márcia. TEODORO Doutora Márcia. MÁRCIA (sorrindo) Ôi, Teodoro. A sessão só começa às duas. TEODORO É que... Eu queria falar com a senhora. MÁRCIA Pode falar. Teodoro hesita um pouco, olha para os advogados e acaba falando: TEODORO Eu... Quero contar a verdade. O sorriso de Márcia se desmancha, mas ela logo recupera o tom confiante. Os dois advogados sorriem para Márcia e se afastam. MÁRCIA Pode ficar tranqüilo, Teodoro. (pausa) Eu tenho certeza que vai dar tudo certo. Teodoro continua olhando para Márcia, angustiado. TEODORO Pode ser. Mas eu queria que a senhora soubesse o que aconteceu, o que aconteceu de verdade. MÁRCIA Teodoro, eu já expliquei: eu estou alegando legítima defesa, e eles querem provar que tu atirou primeiro. Só que eles não podem fazer isso, não tem como fazer isso. Só se tu confessar. E aí a tua esposa e os teus filhos, vão te visitar na cadeia, todo santo domingo, por muitos anos. É isso que tu quer? TEODORO Eu só quero contar o que aconteceu de verdade. Pelo menos para a senhora. MÁRCIA Que diferença isso faz? Teodoro não responde. Márcia suspira fundo, cansada, e fica alguns segundos olhando para Teodoro. CENA 3 - INTERIOR - ESTÚDIO FOTOGRÁFICO - DIA (12H30) Júlio entra no estúdio de Emanuel, 30 anos. O fotógrafo está trabalhando com sua assistente, 25 anos, um maquiador, 30 anos, e a modelo Coralina, 20 anos. Todos parecem cansados. Coralina está nua, deitada de bruços, sobre um sofá de veludo. Não há qualquer erotismo no ambiente. Assim que Júlio aparece, Emanuel deixa a câmara e se aproxima dele, com ar irritado. EMANUEL Tu demorou! JÚLIO Não devia nem ter vindo. Esse tipo de problema... CORALINA (por trás deles) Posso me vestir? EMANUEL (virando-se para ela) Não te mexe! CORALINA Mas eu tô cansada... EMANUEL (quase gritando) Fica aí. Quieta! (para o maquiador) Retoca ela, Ulisses. (para Júlio, mais baixo) Estamos aqui há seis horas, já gastei uns dez filmes, mas agora que ela virou tô sentindo que a coisa não vai funcionar. JÚLIO Por quê? EMANUEL A bunda. A bunda não tá legal. Júlio olha para a modelo, que está sendo maquiada por Ulisses. JÚLIO Qual é o problema? EMANUEL Tá cego, Júlio? Essa menina engordou uns quatro quilos desde a última sessão. JÚLIO Então não mostra a bunda. EMANUEL O quê? Tá louco? Posso esconder os dentes, os pés, as orelhas, as pernas... Mas a bunda tem que mostrar. E tu vai dar um jeito. Júlio respira fundo, olha para Emanuel e se aproxima do sofá, onde Coralina, agora vestindo um roupão, está sendo maquiada por Ulisses. JÚLIO (sorrindo) Ôi, tudo bem? CORALINA Mais ou menos. JÚLIO Talvez eu possa ajudar. Tu pode deitar outra vez? Ulisses se afasta. Coralina tira o roupão e deita de bruços. Júlio olha para a bunda de Coralina com ar profissional. Abaixa- se, muda de ângulo. Sorri outra vez. JÚLIO Obrigado. CORALINA (seca) De nada. Júlio volta a se aproximar de Emanuel. JÚLIO Eu posso retocar a superfície, mas a curva... Não sei. Bunda é uma coisa delicada de mexer. Pode ficar artificial. EMANUEL Eu sabia... Vou despedir essa vagabunda. JÚLIO Talvez dê pra trocar a bunda inteira. Coloco a da Vanda. Elas são parecidas. Ninguém vai notar. EMANUEL Trocar a bunda? Pelo amor de Deus, Júlio! JÚLIO Qual é o problema? As imagens da Vanda ainda estão no meu computador. Eu separo e... EMANUEL Pra tudo há um limite. Mexer na cor dos olhos, ajeitar um pouco os seios, mas... trocar a bunda é demais! JÚLIO Tu prefere refazer todas as fotos? Emanuel olha para a modelo, irritado. EMANUEL Não dá. Nem tenho verba filme (filme) pra isso. Júlio, tu tem que pensar em outra coisa. JÚLIO Não tenho tempo pra pensar em mais mais nada. Eu troco a bunda hoje de noite, te mando pela Internet e a gente vê o resultado na banca. (aponta para Coralina) Nem ela vai notar. Emanuel olha para Júlio, em dúvida. CENA 4 - EXTERIOR - CAMPO ABERTO - DIA (PASSADO) Ao lado de uma cerca derrubada, Orestes, 40 anos, segura uma espingarda, mantendo-a apontada para o chão. ORESTES Tu acha que eu vou entregar a terra do meu pai pro filho de uma prostituta como tu? Eu prefiro a morte. Teodoro saca um revólver e aponta na direção de Orestes. Orestes é atingido na base do pescoço, mas ainda consegue atirar de volta, acertando as pernas de Teodoro. Os dois caem, ensangüentados. CENA 5 - INTERIOR - QUARTO DE HOTEL - DIA (13H) No quarto de um hotel barato, Teodoro, sentado na cama, nervoso, pouco à vontade, fala com Márcia, que está sentada numa cadeira perto dele. TEODORO Foi assim que aconteceu. Eu atirei primeiro. MÁRCIA Eu sei. Mas nós não podíamos contar a história desse jeito. TEODORO Eu quero falar a verdade. (levanta-se e vai para a janela) O Orestes tava me ameaçando, entrava na minha plantação, derrubava a cerca, assustava as crianças. (volta-se para Márcia) E aquela terra é minha. Ele não pode nos tirar de lá. O velho deu pra minha mãe. Eu tenho direito. MÁRCIA (com paciência) Eu já expliquei, Teodoro. Tu tem direito sobre a terra porque a tua família está lá há muito tempo. (mais enfática) Esquece o resto! Tu já deu o depoimento. TEODORO Eu não posso mudar? MÁRCIA Não! Ele atirou primeiro e tu teve que te defender. Teodoro senta na cama outra vez. TEODORO A senhora não entende? Eles vão continuar atrás de mim, eles me odeiam, já tinham me jurado... MÁRCIA (irritada) Presta bem atenção... Tu matou um sujeito rico, um sujeito poderoso. A família dele tá pressionando. Eles querem que tu passe o resto da vida na cadeia. (pausa) E é exatamente isso que vai acontecer, se tu mudar o que a gente combinou. TEODORO (hesitante, fragilizado) Eu só queria dizer que eu tava defendendo o que é meu. (pausa) Eu só queria falar a verdade. MÁRCIA (mudando o tom, carinhosa) Nem sempre falar a verdade é a melhor solução. TEODORO Devia ser. MÁRCIA Mas não é. (pausa) Tu tem que confiar em mim. Márcia, solidária, sinceramente comovida com a simplicidade dele, pega a mão de Teodoro, que olha para ela, confuso. CENA 6 - EXTERIOR - CAMPO ABERTO - DIA (PASSADO) Ao lado de uma cerca derrubada, Orestes, 40 anos, segura uma espingarda, mantendo-a apontada para o chão. ORESTES Tu acha que eu vou entregar a terra do meu pai prum filho-da-puta como tu? Nunca! Orestes levanta a espingarda e atira em Teodoro, que é atingido nas pernas, mas ainda consegue atirar de volta com seu revólver, acertando o peito de Orestes. Os dois caem, ensangüentados. MÁRCIA (OFF) Foi assim que aconteceu. CENA 7 - INTERIOR - TRIBUNAL DO JÚRI - DIA (17H) Márcia está terminando sua defesa de Teodoro, em frente ao júri, composto por sete pessoas. Na sala do tribunal, estão presentes, além dos familiares de Teodoro (uma mulher de uns 30 anos e três crianças), uns seis jornalistas. MÁRCIA A história da luta pela terra no Brasil é uma história sangrenta, que já causou milhares de mortes. E, cada vez que novas vítimas aparecem, a discussão se resume a definir quem deu o primeiro tiro. Será mesmo esta a questão? (pára na frente de um dos jurados) Imagine a seguinte situação. O senhor está em casa, a casa onde vive com a sua família, há mais de trinta anos. A casa onde seus filhos nasceram. E então um homem que já lhe ameaçou muitas vezes, entra na sua casa, lhe ofende, lhe agride e diz que vai lhe matar. O homem é violento e lhe aponta uma arma. Imagine que o senhor, que já foi muitas vezes ameaçado de morte, em público, por este homem, o senhor também tem uma arma. Quanto tempo o senhor vai ficar esperando que este homem, este homem violento, armado, gritando que vai lhe matar, dê o primeiro tiro? (pausa) Teodoro esperou, talvez mais do que devia. Uma espera que poderia ter lhe custado a vida, porque o homem atirou, um tiro de espingarda, à queima roupa. Teodoro respondeu o tiro, para se defender, para defender a sua casa e a sua família. Esta é a verdade. E nada do que o promotor ou as testemunhas disseram neste processo contestam esta verdade. (pausa) Este país, senhores jurados, não pode mais conviver com a mentira, com a pressão do poder econômico, com as eternas injustiças aos pequenos agricultores, aos sem-terra, aos sem esperança. Tenho certeza, senhores jurados, que a justiça será feita, e que este inocente (aponta para Teodoro), que agiu em legítima defesa, sairá deste tribunal livre, de cabeça erguida, e que as senhoras e os senhores hoje dormirão com a consciência tranqüila, porque este brasileiro estará voltando para o trabalho e para a sua família. Muito obrigado. Márcia, satisfeita, volta para seu lugar, ao lado de Teodoro, e olha pros promotores, que estão cochichando entre si. Atrás deles, está Juvenal, 30 anos, parecido com Orestes. Juvenal olha pra Márcia de forma significativa, como se quisesse dizer alguma coisa pra ela. Márcia sustenta o olhar, levemente perturbada. CENA 8 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO - NOITE (19H) Júlio trabalha no computador de sua casa, examinando, uma a uma, as fotos agrupadas na pasta "Vanda". É uma atividade enfadonha. Júlio esfrega os olhos. Pára numa foto, em que a modelo está de bruços, numa pose parecida com a de Coralina no estúdio. Júlio começa a "recortar" a bunda, separando-a do resto do corpo. Copia e cola num novo arquivo, que chama de "bunda1". CENA 9 - INTERIOR - TRIBUNAL DO JÚRI - NOITE (21H) O juiz olha por alguns instantes para um papel. Márcia, Teodoro, os promotores e Juvenal, todos de pé, olham para ele. JUIZ Em conformidade com a decisão do conselho de sentença, declaro absolvido o réu Teodoro Schmidt da imputação que lhe foi feita. Márcia abraça Teodoro. Uma mulher de uns 30 anos e três crianças (3, 5 e 8 anos) correm e também abraçam Teodoro. Juvenal continua olhando para Márcia. Ela recolhe suas coisas e vai saindo. Na porta, Juvenal a espera. JUVENAL (calmo) A senhora soltou um assassino. Márcia pára e olha para ele por um instante, mas decide não responder. Continua caminhando. JUVENAL (mais alto) Espero que não se arrependa. CENA 10 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO - NOITE (22H) Júlio está colando a bunda de Vanda sobre a bunda de Coralina. Boceja. Olha o relógio do monitor: 9:31 PM. Espreguiça-se. Corre com o mouse até o ícone "Bate-bapo". Clica. Surge a ampulheta. Levanta e pega, numa estante, entre duas pilhas de revistas, uma garrafa de uísque. Serve um pouco num copo. Toma um gole. Volta a sentar. Na tela do Bate-papo, digita, logo depois do nome "Ivanhoé": "Sabrina, vc tá aí? ". A resposta é quase imediata: "Estou. " Júlio sorri e digita: "Vc sentiu saudade? " Sabrina: "Muita". Júlio: "Como vc está vestida? " Enquanto Júlio olha para o monitor, vendo a frase se formar, ouvimos a voz de Sabrina. SABRINA (OFF) Eu estou com um macacão de couro preto... Júlio se recosta na cadeira e fecha os olhos. Quando abre outra vez, vê Sabrina, uma morena alta, de olhos escuros, vestida com um provocante macacão de couro, em cima da mesa, onde antes estava o monitor. SABRINA ... com um grande decote, um imenso decote, que começa na altura do umbigo e vai subindo, subindo... Você não quer ver mais de perto? JÚLIO Quero. Sabrina aproxima-se ainda mais. SABRINA Pronto, agora estou quase encostada em você. JÚLIO (estende a mão) Eu estendo a mão e toco a sua pele, no início do decote e vou subindo devagar... A mão de Júlio percorre o corpo de Sabrina, na direção dos seios. Barulho de porta abrindo. MÁRCIA (OFF) Júlio? Sabrina "desaparece". Júlio, surpreso, rapidamente tira a tela do Bate-bapo e troca pela do Photoshop. JÚLIO No escritório. Márcia entra. Dá uma olhada rápida para a tela do monitor, que exibe a bunda recortada de Vanda sobre a foto de Coralina. Beija Júlio e senta no seu colo. Sorri. JÚLIO Parabéns! MÁRCIA Tu já sabe? JÚLIO Vi na televisão. MÁRCIA Foi por um voto. JÚLIO Tu achava que ia perder. O que aconteceu? MÁRCIA Nada demais. Eu troquei a ordem dos tiros, falei dos agricultores sem terra do Brasil, da injustiça social no campo, falei de política, fiz uma salada... O júri engoliu, e o meu cliente não atrapalhou. Bem que ele queria, mas ficou quieto. JÚLIO (confuso) Então tu... MÁRCIA Por quê tá me olhando com essa cara? Márcia levanta do colo de Júlio. Pega o copo de uísque e toma um gole. MÁRCIA Acabou. Deu certo. Ele é inocente. JÚLIO (ainda chocado) Eu preferia que tu não me contasse essas coisas... Márcia toma outro gole. MÁRCIA Eu conto tudo pra ti. Tudo. (beija Júlio) Foi o que a gente combinou, lembra? (mais um gole) Não quero mais falar nisso. Cadê a Guida? JÚLIO Ela não vai conosco. Telefonou dizendo que tem ensaio. Vai dormir na casa de uma amiga, e as duas sobem amanhã de manhã. MÁRCIA (estranhando) Que amiga? JÚLIO É da banda (pausa). A Guida garante que ela é maior de idade, não bebe e não passa dos oitenta na estrada. MÁRCIA Tu não devia ter deixado. JÚLIO Fazer o quê? Trazer a Guida à força? (pausa) Foi tu que deu a guitarra. MÁRCIA Eu queria ao menos conhecer essa amiga. Essa criança anda muito sem limites. JÚLIO Vai conhecer amanhã. A Guida não é criança. Tem quase dezoito. MÁRCIA É... Quase. (termina de beber) Eu tô cansada demais pra viajar hoje. Quem sabe a gente vai amanhã bem cedo? Tu te importa? JÚLIO (sorrindo) Não. MÁRCIA Eu vou tomar um banho. Márcia sai do escritório. Júlio troca a tela do Photoshop pela do Bate-papo e digita: "Sabrina? ". Não há resposta. Júlio coloca um CD. Toma mais um gole de uísque. Sai do Bate-papo e entra num site pornográfico. Manda baixar uma foto, que vai aparecendo bem devagar. É de uma modelo com os cabelos molhados e os ombros nus. Márcia entra no escritório, enrolada em uma toalha azul. Olha para Márcia. De certo modo, ela reproduz a foto da Internet ao vivo. MÁRCIA Tu ainda vai ficar muito tempo? JÚLIO Não. Vou só mexer um pouco mais naquela bunda. MÁRCIA (beija Júlio) Boa noite. Márcia sai. A foto da Internet agora está inteira. Vemos que a modelo, nua, segura uma toalha aberta sobre seus ombros, mostrando seu corpo. CENA 11 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/QUARTO DO CASAL - NOITE (23H) Júlio entra no quarto e deita na cama. Márcia está dormindo, com a luz de cabeceira ligada e com o controle remoto na mão. A TV exibe um programa tipo "Sexy-Time", com imagens ousadas de XanaCoralina. Júlio, surpreso, olha o programa por alguns instantes. Depois aciona o controle remoto e desliga a TV. Júlio olha para Márcia. Júlio retira lentamente parte do lençol que cobre o corpo de Márcia (que dorme com uma camisola curta) e a admira por alguns instantes. Depois, sorrindo, beija o rosto de Márcia, apaga a luz de cabeceira e fecha os olhos. CENA 12 - EXTERIOR - CASA DE CAMPO/FACHADA (GRAMADO) - DIA (10H) Belo dia de sol. O carro de Júlio pára na frente de uma casa rústica, típica da serra gaúcha. Márcia e Júlio desembarcam. CENA 13 - EXTERIOR - CASA DE CAMPO (GRAMADO) - DIA (11H) Márcia e Júlio seguem por uma trilha entre as árvores. Os dois estão com roupa de banho e carregam toalhas. CENA 13A - EXTERIOR - CACHOEIRA (IGREJINHA) - DIA (11H) Chegam a uma pequena cachoeira. Júlio experimenta a água e faz cara de quem achou fria, mas Márcia entra e logo se molha. Puxa Júlio para dentro da água. Ele protesta, mas ela o abraça e beija na boca, de leve. Ele ainda tenta sair da água, mas então ela o segura e beija com mais apetite. Ele retribui. O beijo se prolonga. Eles se olham. Fica evidente que estão com tesão. A mão de Júlio vai até a parte de cima do biquíni (ou maiô) de Márcia e acaricia os seios, ainda por cima do tecido. Mais um beijo. Os dois saem da cachoeira e vão até um recanto gramado atrás de uma pedra, onde estão razoavelmente protegidos de olhares indiscretos. Júlio coloca as toalhas no chão. Os dois se deitam, lado a lado, e continuam se beijando. Júlio retira a parte de cima do biquíni (ou maiô) de Márcia, que sorri e passa a mão no peito de Júlio. Márcia então deita de costas e fecha os olhos. Júlio olha para ela e também sorri. Agora vemos apenas o rosto de Márcia, iluminado pelo sol, que ultrapassa os galhos de uma árvore, formando sombras em constante movimento. Ela demonstra alegria e prazer. Abre os olhos e olha na direção de Júlio (que continua fora de quadro). A mão de Márcia segura a toalha e a amassa com força. Estende um pouco mais o braço e toca a grama. Enterra um pouco os dedos. Vemos outra vez o seu rosto. Agora vemos o rosto de Júlio, de perfil, aproximando-se da nuca de Márcia. Afasta os cabelos de Márcia e morde levemente a nuca. Vemos o rosto de Márcia reagindo à mordida. Os dois estão deitados de lado, "encaixados", com Júlio por trás de Márcia. Vemos as quatro pernas entrelaçadas (das coxas para baixo) e os movimentos que fazem para alcançar a posição mais adequada. Começam a transar. É uma transa bastante intensa. Vemos os rostos dos dois, cada vez mais excitados. Quando a transa termina, ambos estão ofegantes, mas muito felizes. Márcia vira-se lentamente e encara Júlio. Os dois se abraçam e trocam mais um beijo. Márcia sorri. MÁRCIA Essa cachoeira sempre rendeu... JÚLIO É. Márcia se enrola na toalha e fica no sol, secando-se. Júlio senta ao lado dela, esfregando seu cabelo com a toalha. JÚLIO Márcia, eu fiquei toda a viagem pensando em te contar uma coisa... Não tive coragem. Mas acho que agora tenho. MÁRCIA Então conta. JÚLIO É uma bobagem... É que... na Internet, eu... às vezes falo com umas pessoas... MÁRCIA Que pessoas? JÚLIO Pessoas... que eu só conheço pelo apelido. MÁRCIA (sorrindo) Certo. Tu tem amiguinhos por correspondência. JÚLIO É. Bom, na verdade, amiguinhas... MÁRCIA E o que tu conversa com essas amiguinhas? JÚLIO (com dificuldade) Eu converso... basicamente... sacanagem. MÁRCIA (cantando) Ivanhoé! Ivanhoé! Cavaleiro justiceiro sem pudor... JÚLIO (surpreso) Como tu sabe? MÁRCIA A Guida me contou, faz tempo. JÚLIO (mais surpreso ainda) A Guida? MÁRCIA Nós também já brincamos. Mas achei meio chato. Não dá pra sentir tesão e datilografar ao mesmo tempo. Ainda mais tendo que pensar se tesão é com S ou com Z. JÚLIO Mas não... MÁRCIA Tu é muito ingênuo, Júlio. Eu já entrei no escritório, quando tu tava no Bate-papo e tu nem percebeu. Mas tudo bem... Cada louco com sua mania. Só acho estranho esse apelido: Ivanhoé! Já pensou a dificuldade de fazer sexo com aquelas malhas de aço, capacete... Júlio está arrasado. Evita olhar para Márcia. MÁRCIA Não fica assim. Eu te amo, tarado da Internet. Márcia subitamente fica séria. Vira o rosto de Júlio até que ele olha para ela. MÁRCIA Eu também tenho uma coisa pra te contar... (pausa) om... Júlio olha para Márcia, curioso. MÁRCIA Eu... Transei com um cara. Pausa. MÁRCIA Ontem. Eu transei com o Teodoro. JÚLIO Mas... Como? MÁRCIA Eu não sei o que aconteceu comigo. Enfim... aconteceu. JÚLIO (nervoso) O teu cliente, o cara que tu defendeu... MÁRCIA Eu estou dizendo que não teve importância alguma. Não estou envolvida com ele. Foi uma bobagem. Não vai se repetir. Eu poderia ficar quieta, mas não consigo. Prefiro assim. A gente sempre jogou limpo um com o outro. JÚLIO (mais nervoso ainda) Tu tem a cara-de-pau de transar comigo e dois minutos depois... MÁRCIA Eu te amo, Júlio. E estou apaixonada por ti. E tinha que te contar. (pausa) Eu só minto profissionalmente. Meu trabalho é esse. Pra ti eu não vou mentir. Nunca! JÚLIO (levantando-se, transtornado) Tu pensa que é assim tão fácil... Júlio e Márcia escutam a voz de Guida. GUIDA (OFF) Mãe! Pai! Vocês tão aí? MÁRCIA A Guida! Júlio e Márcia colocam as roupas rapidamente. No fim da trilha, surgem Guida e Anamaria. Guida, 17 anos, é magra, bonita, mas ainda parece mais uma adolescente que uma mulher. Anamaria, 20 anos, é, decididamente, uma mulher. E muito bonita. As duas estão vestindo camisetas e shorts. Aproximam-se de Júlio e Márcia, sorridentes. GUIDA (olhando para os pais, com ar sacana) Que coragem! (para Anamaria) Essa água é gelada! JÚLIO Faz bem pra saúde. GUIDA (apontando para Anamaria) Essa é Anamaria. ANAMARIA Ôi. Márcia e Júlio beijam Anamaria. Júlio olha Anamaria, admirado com sua beleza. MÁRCIA Vamos subir? Agora fiquei com frio. CENA 14 - EXTERIOR - CASA DE CAMPO/FACHADA - DIA (12H) Os quatro chegam na casa. Júlio e Márcia estão um pouco ofegantes. Márcia entra. Júlio fica na sacada com as duas meninas, pegando sol. Júlio senta. GUIDA Tu tá precisando fazer mais exercício, pai. Parece um velho! JÚLIO (respirando fundo) Acho que tô meio fora de forma. GUIDA Eu e a Anamaria programamos uma seção de ginástica pra hoje. JÚLIO Nem pensar. Minhas duas atividades no fim de semana serão comer e dormir. Guida se aproxima do pai e levanta a sua camiseta, apertando os "pneus" acima da cintura. GUIDA Olha aqui, que vergonha! Júlio afasta a mão de Guida. JÚLIO Pára, Margarida! GUIDA Gordo! Gordo! ANAMARIA Não exagera, Guida. O teu pai tá bem pra idade. GUIDA Quantos anos tu acha que ele tem? ANAMARIA (hesita um pouco) Uns... Trinta e dois... Talvez menos. JÚLIO (sorrindo) Muito obrigado. Márcia sai de casa, já vestida. MÁRCIA E eu, Anamaria? ANAMARIA Tu tem menos de trinta. MÁRCIA (sorrindo para Guida) Adorei a tua amiga. (para Anamaria) Isso quer dizer que eu tive a Guida com uns... doze anos. ANAMARIA (rindo) É mesmo... Desculpe, mas vocês parecem mesmo bem novos. MÁRCIA Eu vou no armazém. Querem ir junto? GUIDA Não. Nós vamos aproveitar esse sol. MÁRCIA Então, tchau. E não deixem o Júlio nem comer nem dormir. GUIDA Nós vamos deixar ele em forma pra ti, mamãe. Márcia se aproxima de Júlio e fala em voz baixa, de modo que só ele ouça. MÁRCIA (séria e carinhosa) Depois a gente conversa mais. Eu te amo. E muito. Márcia beija Júlio e sai. CENA 15 - EXTERIOR - CASA DE CAMPO/JARDIM - DIA (12H30) Cena sem diálogos. As meninas, de biquíni, estão deitadas sobre toalhas no gramado em frente à casa. Júlio, de abrigo, faz exercícios, reclamando sem parar, sob as ordens das duas. Júlio faz alguns abdominais, outros tantos peitorais, exercícios para os glúteos, etc. As duas contam as repetições. Anamaria levanta e improvisa caneleiras para aumentar a carga. Júlio sua bastante e desaba exausto sobre a grama. As duas riem. Guida aparece com uma mangueira e dá de beber para o pai. Ele bebe um pouco e depois arranca a mangueira da mãos de Guida e a molha. Ela grita e sai correndo. Anamaria rouba a mangueira e molha Júlio. Ele reage e também a molha. Logo os três estão completamente molhados. Anamaria cruza os braços, como se estivesse com frio. Júlio pega uma toalha e coloca sobre os ombros de Anamaria. Os dois se olham. Guida vem com um balde, por trás deles, e joga água com força. CENA 16 - INTERIOR - CASA DE CAMPO/BANHEIRO - DIA (13H) Guida e Anamaria, ainda de biquíni e molhadas, entram rindo no banheiro. Guida vai até o box e abre a torneira. O chuveiro é elétrico, novinho. GUIDA Chuveiro novo. Espero que seja melhor que o antigo. ANAMARIA Deixa bem quente. Eu tô com frio. Guida experimenta a temperatura da água com a mão e vai até a porta. GUIDA Pai! Vem aqui. Júlio entra no banheiro, secando o cabelo. GUIDA O chuveiro não está esquentando. JÚLIO Eu experimentei e estava bom. Júlio começa a mexer na torneira, diminuindo o fluxo da água. JÚLIO É só ter um pouco de paciência. Olha, já tá ficando bom... Guida se enfia rápido em baixo do chuveiro. ANAMARIA (protestando) Sacanagem, Guida! Era eu primeiro! Guida puxa Anamaria para dentro do box. GUIDA Vem. A gente toma juntas. Anamaria resiste, mas acaba entrando. ANAMARIA Tu parece criança. Cadê o xampu? Guida puxa a cortina de plástico do box. Júlio sai do banheiro. CENA 17 - INTERIOR - CASA DE CAMPO/CORREDOR - DIA (13H10) Júlio sai do banheiro. Caminha pelo corredor, mas pára ao ouvir o chamado de Guida. GUIDA (OFF) Pai! JÚLIO O que é? GUIDA Vem aqui, rápido! A água tá fria de novo. Júlio volta e entra no banheiro. CENA 18 - INTERIOR - CASA DE CAMPO/BANHEIRO - DIA (13H11) Júlio olha na direção do box. Através da cortina de plástico, translúcida, percebe que as duas garotas estão nuas. Júlio desvia os olhos. JÚLIO (brabo) Guida! Eu pensei que vocês estavam de biquíni. GUIDA Ah, pai... Não enche. Nós estamos congelando. Dá um jeito. JÚLIO Então se vistam. GUIDA Pai! Deixa de ser idiota. Arruma logo essa porcaria. Júlio levanta os olhos outra vez. Guida está com a cabeça para fora da cortina. GUIDA Vamo logo! Júlio se aproxima do box. Com a cabeça virada para o lado, estende a mão na direção da torneira. JÚLIO Com licença. As duas garotas observam, sorrindo, o esforço de Júlio para regular a água. JÚLIO Vocês abriram demais. Agora vai esquentar. GUIDA Mas aí fica só uns pinguinhos... Júlio tira a mão. Não resiste e olha para as duas silhuetas atrás da cortina de plástico. JÚLIO Quem mandou tomar banho juntas? ANAMARIA Agora tá bom. Obrigada. JÚLIO De nada. Guida coloca a cabeça para fora da cortina. Júlio vira a cabeça rápido. GUIDA Pai... JÚLIO Que é? GUIDA Tu esfrega as nossas costas? Júlio sai do banheiro. Guida e Anamaria riem bastante. CENA 19 - INTERIOR - CASA DE CAMPO/SALA - NOITE (22H) Márcia, Júlio, Anamaria e Guida estão sentados na sala. Sobre a mesa, uma grande panela cheia de pipocas, um cronômetro, algumas canetas e folhas de papel rabiscadas. Guida e Anamaria estão com vestidos bem curtos. Guida mostra um papel para Anamaria, de modo que só a amiga consiga ler. Anamaria assente com a cabeça, afasta-se um pouco do grupo e olha para Márcia. Guida pega o cronômetro e aperta um botão. GUIDA Tempo! Anamaria fica de quatro e começa a agir como um animal selvagem. MÁRCIA É um bicho... Um animal selvagem! Anamaria diz que sim com a cabeça. MÁRCIA Um leão! Eu sei qual é: O Rei Leão! Guida e Julio riem. Anamaria sacode a cabeça. Ruge, dá saltos. Pensa um pouco, mas não consegue mudar muito sua atuação: faz caras e bocas variadas e confusas. MÁRCIA Mas é um bicho, uma fera... A Bela e a Fera! Não? A... Marca da Pantera! JÚLIO Parece mais um cachorro louco. MÁRCIA Fica quieto. Não vale. Já sei, aquele da leoa, como era mesmo o nome? A História de Elza! Anamaria sacode a cabeça. MÁRCIA O urso? Não? Aquele do leão vesgo... Simba Safari... Não... Daktari. Guida e Júlio riem e debocham do esforço de Anamaria. GUIDA Olha o tempo, mãe! Dez segundos... Anamaria levanta e pára de agir como um animal. Muda completamente de tática: pega uma cadeira, senta bem na frente de Júlio, cruza as pernas e acende um cigarro. GUIDA Desiste, Anamaria. Cinco segundos! Quatro... Anamaria olha fixamente para Júlio, traga o cigarro, descruza as pernas lentamente e volta a cruzá-las, imitando o gesto de Sharon Stone. Márcia grita: MÁRCIA Instinto Selvagem! Anamaria levanta e ergue os braços, sorridente. ANAMARIA Yeeeeeeesss! Márcia e Anamaria se abraçam. As duas pulam, comemorando. Guida faz um muxoxo. Júlio sorri e balança a cabeça. CENA 20 - INTERIOR - CASA DE CAMPO/QUARTO CASAL - NOITE (23h30) Júlio está deitado na cama, lendo uma revista de informática. Márcia entra no quarto, de roupão, a pele do rosto ainda um pouco molhada (mas os cabelos estão secos). Fecha a porta a chave, abre uma sacola e tira um pacote. MÁRCIA O banho continua uma merda. Acho que o problema é no encanamento. (...) As meninas já dormiram? JÚLIO (seco, sem olhar para Márcia) Acho que sim. Márcia abre o pacote e examina seu conteúdo (que não vemos). MÁRCIA Tu vai ficar furioso quando souber quanto custou. Mas eu não resisti. Júlio pára de ler e olha para Márcia, que está colocando uma meia de seda preta. MÁRCIA Bonita essa Anamaria, né? É bem mais velha que a Guida... Márcia olha para Júlio, que disfarça e faz de conta que está lendo. MÁRCIA Parece que o pai dela é muito rico... Júlio levanta os olhos outra vez. Vê alguma coisa que o impressiona. Márcia está terminando de colocar um sutiã semi- transparente. Olha-se no espelho, abrindo a frente do roupão. MÁRCIA A mãe morreu. O velho foi morar em São Paulo, com uma menina de 20 anos. Pode? E a filha fica em Porto Alegre, sozinha num apartamento, fazendo o que bem entende. Márcia coloca uma calcinha. Júlio não desgruda o olho dela, mas continua com a revista na mão. MÁRCIA Agora inventou de ser produtora da banda da Guida. Até paga os ensaios. Márcia tira o roupão e vira-se para Júlio, que imediatamente volta para a revista. MÁRCIA Não sei se é uma boa para a Guida ter uma amiga assim... mais velha. Júlio continua lendo. MÁRCIA Júlio... Júlio olha para ela, tentando demonstrar indiferença. MÁRCIA Gostou? Valeu o investimento? Júlio não responde. Márcia se aproxima e senta na cama. MÁRCIA Tu vai ficar mudo o fim de semana inteiro? JÚLIO Preciso de um tempo pra me acostumar com a situação. MÁRCIA Que situação? Eu já disse que acabou. Eu te amo. JÚLIO (seco) Ótimo. MÁRCIA Tu não parecia tão abalado meia-hora atrás. JÚLIO Eu não tô abalado. MÁRCIA Eu é que devia estar com ciúmes. Tu ficou olhando pra Anamaria a noite toda. Júlio larga a revista com um gesto brusco. JÚLIO (irritado) Nós estávamos jogando, Márcia. Márcia sorri e aproxima-se mais de Júlio. Passa a mão no rosto do marido. MÁRCIA Tá bom... Eu entendo. Ela é muito bonita. Merece mesmo ser olhada. (pára com os carinhos, irônica) Não é uma velha como eu. Júlio, pela primeira vez, encara Márcia, que está fazendo ar de coitada. JÚLIO Tu tá cada vez mais linda. Márcia sorri. MÁRCIA Não precisa exagerar. JÚLIO Se eu não te amasse tanto, seria mais fácil. Márcia sorri, ajoelha-se e dá um beijinho em Júlio. MÁRCIA Eu também te amo. Júlio, vencido, faz um carinho no rosto de Márcia e a beija. Ela corresponde. O beijo se intensifica. Márcia tira a camiseta de Júlio. Continuam os beijos, agora no peito de Júlio. Márcia continua se abaixando. Agora vemos apenas o rosto de Júlio, que demonstra alguma surpresa e muito prazer. Ele grunhe alguma coisa, e a mão de Márcia imediatamente tapa a sua boca. MÁRCIA (OFF) Bem quietinho... Júlio assente com a cabeça, mas logo depois grunhe outra vez. CENA 21 - INTERIOR - CASA DE CAMPO/QUARTO DE GUIDA - NOITE (24H) Guida dorme profundamente, enquanto Anamaria, ainda acordada, fuma um cigarro e ouve os grunhidos de Júlio através da parede fina de madeira. CENA 21A - EXTERIOR - CASA DE CAMPO/FACHADA - NOITE (24H05) Uma única luz está acesa, numa janela do segundo andar da casa. A luz se apaga. CENA 22 - EXTERIOR - CASA DE CAMPO/VARANDA - DIA (9H) A casa, agora iluminada pelo sol da manhã. Júlio, com cara de sono, abre a janela do andar superior. Os outros já tomam o café da manhã na varanda. Márcia fala no telefone celular, irritada. MÁRCIA (...) Não. (...) Não. Ele me garantiu que não voltaria agora. Voltou? (...) Tem certeza? (...) Essa é uma acusação grave. Espero que o senhor tenha provas, senão... Júlio entra na varanda. ANAMARIA (para Júlio) Bom dia. Júlio senta e olha para Anamaria, que sorri para ele. GUIDA Ôi, pai. Dormiu bem? JÚLIO Acho que ainda tô dormindo. Guida coloca o leite na mesa e senta. Júlio começa a comer, mas tenta prestar atenção na conversa telefônica. ANAMARIA A Guida me falou que tu é fotógrafo. JÚLIO Não. Eu era. MÁRCIA O Teodoro não tem relação nenhuma com as outras famílias. Pode ter sido qualquer um. GUIDA Mas tu tá sempre com a câmara, pai! MÁRCIA Não, agora o senhor me escute. (...) Só porque ele está aí não significa que ele tenha feito isso! ANAMARIA A Guida me mostrou algumas fotos. GUIDA Mostrei aquelas antigas, dos pobres, pai. ANAMARIA São lindas. MÁRCIA Mas ele não é estúpido. E vai negociar, eu garanto. Por quê iria atirar num cavalo? Não tem cabimento! JÚLIO Agora eu sou editor. Trabalho com fotos de outras pessoas. GUIDA (sorrindo) Essas eu não mostrei, pai. MÁRCIA E onde ele está agora? (...) Tudo bem. Vou ver o que posso fazer. (...) Até logo. Márcia desliga o celular, demonstrando irritação. JÚLIO O quê foi? MÁRCIA O meu cliente. Disse que ia ficar em Porto Alegre, mas voltou pra Cruz Alta. Algum débil mental atirou num cavalo do fazendeiro, e ele tá furioso. Diz que foi o meu cliente. GUIDA Esses sem-terra são uns chatos! MÁRCIA Ele não é sem terra. JÚLIO Era ele, no telefone? MÁRCIA Não. Era o fazendeiro, o dono da terra. GUIDA Não entendi. Quantos donos tem essa terra? MÁRCIA (séria) Fica quieta, Guida. Eu tenho que ir, Júlio. O cara pode fazer uma bobagem. Não é tão longe. Umas três ou quatro horas, acho. Eu vou de carro e tento voltar no início da noite. (pausa) No máximo amanhã. Márcia beija Guida, que está emburrada. MÁRCIA Desculpa, querida. (para Anamaria) Que pena, mas tu decerto volta aqui outras vezes, não é? ANAMARIA Claro. MÁRCIA (para Júlio) Tu tá com as chaves do carro? Júlio caminha até a porta de saída para pegar as chaves no bolso de sua jaqueta. Márcia o segue. Júlio entrega as chaves para Márcia. Márcia o beija. Júlio está bem irritado. MÁRCIA Tchau, amor. Márcia vai saindo, mas pára e olha para Júlio. MÁRCIA Não pensa bobagem. Eu te amo muito. Não tem nada mais importante que a nossa família. Nada. CENA 23 - EXTERIOR - CACHOEIRA - DIA (11H) Júlio, Anamaria e Guida surgem na trilha que conduz à cachoeira. Júlio carrega uma pequena sacola. As meninas estão de short e camiseta. Júlio, de bermuda e camisa. Guida coloca a mão na água. GUIDA Tá um gelo... Anamaria tira a camiseta e o short, ficando de biquini. ANAMARIA Deixa eu ver. (coloca o pé na água) Não é tanto assim. Tu vai desistir? Guida também tira a camiseta e o short. GUIDA Não. (para Júlio) A luz tá boa, pai? JÚLIO (abaixando-se e abrindo a sacola) Acho que tá. Júlio, agachado, tira da sacola uma câmara fotográfica digital. JÚLIO Que tipo de foto vocês querem? Guida abraça Anamaria e faz uma pose sensual. GUIDA Pode ser... Como é que vocês chamam na revista? Lesbian chic. Júlio fica desconcertado e levanta. ANAMARIA (empurrando Guida) Pára de falar bobagem, Guida. GUIDA Não! Eu quero umas fotos bem quentes... Júlio faz os primeiros enquadramentos. Anamaria entra na água e puxa Guida na direção da cachoeira. ANAMARIA Vem aqui, Guida, que eu vou te esfriar um pouco. Sob os protestos de Guida, Anamaria a arrasta para baixo da cachoeira. As duas gritam de frio. Júlio começa a fotografar. GUIDA Que gelo! Que gelo! JÚLIO Mais juntas... Assim. (elipse - passagem de tempo; troca de cenário, mas mesma locação - proximidades da cachoeira) Encostadas numa pedra, Guida e Anamaria posam, fazendo caras e bocas. Anamaria fuma um cigarro. GUIDA Pai, tu não acha que a Anamaria podia ser modelo? Júlio continua fotografando e não responde. GUIDA Ela tem um corpo perfeito, tu não acha? ANAMARIA Pára, Guida. Que saco... GUIDA Mas tu disse que... ANAMARIA Eu não disse nada. Guida estende a mão para os seios de Anamaria. GUIDA Tira o biquíni pra ele ver. Anamaria empurra a mão de Guida. Júlio pára de fotografar e fica brabo. JÚLIO Ninguém vai tirar nada, Guida. GUIDA Que que tem? Tu não passa o dia inteiro olhando essas coisas? JÚLIO (irritado) Chega, Guida! GUIDA Tudo bem. Mas eu acho um desperdício. Anamaria caminha na direção de Júlio, mexe na bolsa e tira um pequeno baseado. Mostra o baseado para Júlio. ANAMARIA Tu te importa que eu fume? Júlio não sabe o que dizer. Está surpreso e confuso. GUIDA Deixa ela, pai. E não te preocupa comigo. Eu já fumei. JÚLIO (surpreso) Quando? GUIDA E achei uma merda. Primeiro me deu sono e depois eu comi que nem uma porca... É melhor ser careta que ser gorda. Acende logo isso, Anamaria. Anamaria acende o baseado. Traga. Júlio mexe na sacola para disfarçar o embaraço. GUIDA (cruzando os braços) Tá frio... Anamaria estende o baseado para Júlio. ANAMARIA Quer? Júlio olha para o baseado, desconcertado. GUIDA Pode fumar, pai. Eu sei que tu gosta. (para Anamaria) Ele e a mãe fumam escondidos de mim. Dá pra acreditar? Aquele fedor de maconha na casa toda, e eles achando que eu não sei de nada... Anamaria ri. JÚLIO Acho que tava mesmo na hora de... GUIDA Não! Pelo amor de Deus! Uma conversa séria sobre drogas... Os perigos da dependência química... Eu tô morrendo de frio. Vou pegar um abrigo lá em casa. (levanta) Eu já volto. Guida sai. Anamaria volta a estender o baseado para Júlio. ANAMARIA Quer? Júlio estende a mão e pega o baseado. Traga, olhando para Anamaria. CENA 24 - EXTERIOR - CAMPO ABERTO - DIA (PASSADO) Orestes caminha ao lado da cerca, vestindo botas de cano alto e portando uma espingarda. Teodoro o persegue, falando sem parar. TEODORO Cansei, Orestes. Cansei de ser tratado como bicho. Cansei de ficar pedindo licença pra plantar e pra colher. Cansei de ficar esperando que vocês decidam o que vão fazer comigo. Eu quero o que é meu! Orestes pára e se volta para Teodoro. ORESTES Teu? Tu não tem nada. E nunca vai ter. Teodoro pega uma arma escondida nas suas costas e atira, atingindo Orestes no peito. Orestes cai, ensangüentado. Teodoro se aproxima dele e vê que está morto. Teodoro pega a espingarda no chão, usando um pano para não deixar suas impressões na coronha, aponta a arma contra as próprias pernas. Atira. Grita e cai, ensangüentado. JUVENAL (OFF) Foi assim que aconteceu.) CENA 25 - EXTERIOR - FAZENDA EM CRUZ ALTA/VARANDA - DIA (12H) Juvenal e Márcia conversam. Juvenal está colocando a bomba numa cuia já cheia de erva. Numa parede, atrás deles, um retrato a óleo de um velho parecido com Juvenal e Orestes (e também com Teodoro). JUVENAL Foi assim que aconteceu. MÁRCIA Não foi. É impossível. A perna de quem leva um tiro assim fica cheia de pólvora. A perícia teria mostrado. O senhor está criando uma fantasia. JUVENAL Talvez. Mas uma coisa eu lhe digo, e não é fantasia: o Teodoro é um homem violento, imprevisível. Sempre foi. A senhora não o conhece como eu. MÁRCIA Claro que não. Afinal, ele é seu irmão. JUVENAL (cortando, ríspido) Ele não é meu irmão. MÁRCIA Doutor Juvenal... Eu sei e o senhor sabe que o Teodoro é seu irmão. O seu pai também sabia, deu a terra para a mãe dele. Cedo ou tarde, o senhor vai ter que admitir. JUVENAL (calmo outra vez) Eu não vou admitir coisa alguma. MÁRCIA (conciliadora) Talvez nem precise. O Teodoro tem direito à terra porque mora ali desde que nasceu, há mais de trinta anos. Não importa se é seu parente ou não. E ninguém mais precisa ficar sabendo. A melhor solução para todos é conversar, negociar... Juvenal coloca água quente na cuia. JUVENAL Talvez. O Orestes nunca quis saber de conversa. Mas eu sou diferente dele. Eu sou mais... tolerante. A senhora entende? Márcia olha para Juvenal, que estende a cuia na direção dela. JUVENAL Quer? Márcia estende a mão e pega a cuia. Toma o chimarrão e depois olha para Juvenal. MÁRCIA O cavalo já foi sacrificado? JUVENAL Foi, ele tava sofrendo muito. A senhora quer ver? Ainda não enterramos. Márcia hesita um pouco, enquanto toma outro gole. MÁRCIA Não. CENA 26 - EXTERIOR - CACHOEIRA - DIA (12H30) Anamaria fuma o baseado, olhando para Júlio. ANAMARIA (olhando em volta) É lindo aqui. Isso tudo é terreno de vocês? JÚLIO Não. Mas eu tenho um acordo com o vizinho e ele deixa a gente usar à vontade. ANAMARIA Que legal. Posso olhar a câmara? Júlio estende a câmara para Anamaria. Barulho de chamada de telefone celular. Júlio pega o telefone na sacola e atende. JÚLIO Alô... Ôi, Márcia... Anamaria examina a câmara, enquanto Júlio apenas ouve. JÚLIO Tudo bem. Tchau. Júlio recoloca o telefone na sacola. JÚLIO A Márcia vai ter que ficar lá até segunda de noite. Eu posso voltar com vocês? ANAMARIA Claro. Ela tem um disparador automático? JÚLIO Tem. ANAMARIA Então tu pode tirar uma foto de nós dois? JÚLIO Posso. ANAMARIA Por favor... Eu queria de lembrança. JÚLIO Tudo bem. Júlio coloca a câmara sobre um troco de árvore e posiciona Anamaria. JÚLIO Aí... Um pouco mais pra esquerda... Perfeito. Júlio aciona o timer e corre até o lado de Anamaria. A câmara dispara. Vemos a imagem se formar no visor de cristal líquido. CENA 27 - EXTERIOR - ESTRADA NA SERRA - TARDE (18H30) O carro de Anamaria na estrada. Anamaria dirige. Júlio está no banco do carona. Guida está atrás. Ninguém fala. O carro se afasta. CENA 27A - EXTERIOR - AV. CASTELO BRANCO - CREPÚSCULO O carro chega na cidade. CENA 27B - EXTERIOR - RUAS DE PORTO ALEGRE - CREPÚSCULO/NOITE Alguns planos da cidade à noite. CENA 28 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO/SALA - DIA (10H) Júlio está terminando de transferir as fotos do fim de semana da câmara para o computador. A última é exatamente a dele com Anamaria na cachoeira. Ele olha a foto por alguns momentos. Clica num "diretório de seios". A tela fica cheia de pequenos seios, de diferentes tipos e volumes. Clica num deles, aumentando-o e colocando-o ao lado da foto da cachoeira. Começa a trabalhar para substituir os seios de Anamaria (cobertos pelo biquíni), por outros, nus. Toca o telefone. Júlio deixa que a secretária eletrônica atenda (na sala) e continua. VOZ DE MÁRCIA NA SECRETÁRIA (distante, OFF) Deixe seu recado depois do sinal. Ouvimos o bip da secretária eletrônica. ANAMARIA (OFF) Ôi, Guida, é a Anamaria. Júlio pára de mexer na foto e fica ouvindo atentamente. ANAMARIA (OFF) Eu só queria saber se o teu pai já revelou as fotos. Eu queria ver. Tô super-curiosa. A secretária eletrônica, ao lado do telefone. Agora a voz é bem mais alta e clara. ANAMARIA (OFF) Bom... Era isso. Quando tu chegar em casa liga pra mim... A mão de Júlio, depois de uma rápida hesitação, pega o telefone. Ele fala, nervoso. JÚLIO Alô. É o Júlio, Anamaria. A Guida saiu. (pausa) As fotos ficaram bem legais. Eu tava olhando agora. (montagem paralela com) CENA 29 - INTERIOR - APARTAMENTO DE ANAMARIA/SALA - DIA (12H10) Anamaria está numa poltrona, ainda de camisola, falando ao telefone. ANAMARIA Já estão prontas? Que demais! Eu quero ver. Júlio, de pé, segurando o telefone com uma das mãos, usa a outra para começar a folhear um jornal, que está em cima da mesa. JÚLIO Claro. Qualquer hora dessas... ANAMARIA Posso dar uma passada aí agora? JÚLIO (atrapalhado) Agora? É que eu tenho que terminar um trabalho... ANAMARIA Tudo bem. A Márcia já voltou do interior? JÚLIO Não. ANAMARIA Quem sabe tu vem me visitar mais tarde? JÚLIO É... Quem sabe. ANAMARIA Então anota o endereço. Garibaldi, 390, apartamento 91. JÚLIO (anotando o endereço numa página do jornal) (...) Olha, Anamaria, não sei se vou conseguir hoje... Tô com um monte de serviço atrasado. ANAMARIA Tudo bem, Júlio. Vem quando quiser. Um beijo. Tchau. JÚLIO Tchau. Desliga, hesitante. Vira a folha do jornal e vê uma matéria cuja manchete é "ESSA TERRA É MINHA TERRA". A matéria é ilustrada uma foto, tirada com uma tele-objetiva, que mostra Márcia e Teodoro, em campo aberto, olhando um para o outro, como se estivessem conversando algo importante. Júlio fica um tempo olhando para esta foto. Depois rasga a folha (que contém, num lado, o endereço manuscrito e, no outro, as fotos) e volta para o escritório. Fica olhando a foto da cachoeira na tela do computador, que está em processo de edição. CENA 30 - INTERIOR - APARTAMENTO DE ANAMARIA/SALA - DIA (12H) A mesma foto da cena anterior, impressa, em sua forma original (Anamaria com o biquíni) está nas mãos de Anamaria. Ela levanta a cabeça e sorri. ANAMARIA Ficou ótima. Júlio está sentado na frente dela, meio sem-jeito, segurando um envelope. ANAMARIA Posso ver as outras? Júlio vai entregando as outras fotos (cinco ou seis), em que aparecem Guida e Anamaria juntas. Anamaria olha para todas rapidamente. ANAMARIA Mais alguma? JÚLIO (hesitante) Eu ainda fiz... uma brincadeira. ANAMARIA Deixa eu ver. Júlio entrega a foto retocada. Anamaria ri bastante. Tapa a boca com a mão. ANAMARIA Como é que tu fez? JÚLIO Não é difícil. Eu trabalho com essas coisas o tempo todo. ANAMARIA Que sacanagem. Por isso que as mulheres nas revistas parecem tão perfeitas. Anamaria devolve a foto para Júlio. ANAMARIA Mas tem uma coisa... (parece estar em dúvida, morde os lábios) Eles são bem diferentes... Anamaria tira a camiseta com um gesto rápido, deixando os seios à mostra. ANAMARIA Tu tá com a câmara aí? Júlio olha para Anamaria, estupefato. Toca o porteiro eletrônico. Anamaria, ainda com os seios descobertos, vai atender. ANAMARIA Sim? (...) Obrigado. Anamaria olha para Júlio, preocupada. ANAMARIA (para Júlio) A Guida tá subindo. JÚLIO (muito nervoso) Ela não pode me ver aqui. ANAMARIA (colocando a camiseta) Ali, na área de serviço. Júlio vai para a área de serviço, enquanto Anamaria recoloca a camiseta. Bate a campainha. Anamaria abre a porta. Guida entra com o namorado, Ciro, 20 anos, jeito de malandro, cigarro na boca. Júlio espia por uma fresta da porta. GUIDA Esse é o Ciro. ANAMARIA Ôi. CIRO (examinando Anamaria) E aí? GUIDA (percebendo o interesse de Ciro por Anamaria) Empresta o quarto pra gente? ANAMARIA (um pouco surpresa) A cama tá desarrumada. CIRO Não fal mal. (para Guida) Tu te importa? Ela sorri. Ciro dá um beijo sensual em Guida. Júlio fica indignado, mas não pode sair do esconderijo. ANAMARIA (olhando o relógio de pulso) Eu vou dar uma saída. Volto lá pelas quatro, tá bom? Guida e Ciro entram no quarto e fecham a porta. Anamaria se volta na direção da área de serviço. Júlio aparece. Está bastante nervoso. Olha para a porta do quarto. Anamaria pega a sua mão e o arrasta na direção da porta da rua. Júlio ainda olha para trás antes dos dois saírem. CENA 31 - EXTERIOR - CASA DE JÚLIO/FACHADA - DIA (13H) O carro de Anamaria estaciona na frente da casa de Júlio. Ela pega a carteira de cigarro na bolsa e pega o último. Bota o cigarro na boca. ANAMARIA Tá entregue. JÚLIO Quer entrar? ANAMARIA Tu tem cigarro em casa? JÚLIO Não. ANAMARIA Esse é o último. Vou comprar aqui perto e já volto. Enquanto isso, tu não quer pedir uma pizza pra nós? Júlio sai do carro. ANAMARIA Eu gosto de califórnia. CENA 32 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/SALA-ESCRITÓRIO - DIA (13H05) Júlio entra. Passeia um pouco pela casa. Parece não saber o que fazer. No escritório, liga o micro, coloca a foto de Anamaria (com o biquíni completo) e fica olhando por um tempo. Sai do escritório. Na sala, pega o telefone e disca. JÚLIO Eu quero fazer um pedido. CENA 33 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/BANHEIRO - DIA (13H10) Júlio entra no banheiro e leva um susto ao encontrar Márcia na banheira. JÚLIO Márcia! MÁRCIA Por que o susto? JÚLIO Tu não avisou que vinha, eu pensei que... MÁRCIA Tenho uma reunião na secretaria da Justiça. Aproveitei pra tomar um banho e pegar umas roupas. Depois da reunião volto direto pra Cruz Alta. Cadê a Guida? JÚLIO (hesitante) Ela... tá no apartamento da Anamaria... CENA 34 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/QUARTO - DIA (13H20) Júlio olha para a rua pela janela da sala, nervoso e inquieto. Márcia arrumada para sair pega o telefone sem fio na mesinha de cabeceira. MÁRCIA (procura num caderninho um número de telefone) Tava com poeira até os ossos. Que horror, aquele lugar! O chuveiro do hotel não esquenta... (encontra o número e começa a discar). JÚLIO Tu gostava de banho frio. Dizia que era saudável. MÁRCIA Quando eu tinha dezessete também gostava de cuba- libre, dos livros do Fernando Henrique... (pausa) Ninguém atende... Ah! Guida, é a mãe. Júlio disfarça folheando o jornal da página arrancada, mas fica ouvindo atentamente a conversa. MÁRCIA Vim só pruma reunião, estou voltando para lá daqui a pouco. (...) Eu vou tentar voltar. (...) Prometo. (...) Agora eu não tenho tempo pra discutir, Guida... Um beijo. Juízo... (Márcia olha para Júlio, como se não entendesse alguma coisa) Está certo, eu digo pra ele. Márcia desliga e olha, meio confusa, para Júlio. MÁRCIA A Guida mandou te avisar que ela está na casa da Anamaria. JÚLIO Ela já tinha me dito. MÁRCIA (tentando entender) Sei. Ela talvez fique pra dormir. Júlio concorda com a cabeça e continua a fingir que está lendo o jornal. MÁRCIA Tu voltou a ver essa menina? JÚLIO Quem? MÁRCIA Anamaria. JÚLIO Não. Não vi mais... A campainha toca. Júlio olha na direção da escada, nervoso. CENA 35 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/HALL DE ENTRADA - DIA (13H10) Júlio abre a porta, se preparando para o pior (a entrada de Anamaria), mas fica surpreso. Márcia, atrás dele, igualmente surpresa, fala: MÁRCIA Teodoro! Teodoro vai entrando, sem muita cerimônia. TEODORO A Quita telefonou. Tem um trator cavando um buraco grande na lavoura de milho. Disseram pra ela que é um açude. Eles vão acabar com tudo! O Juvenal diz uma coisa e depois... MÁRCIA (cortando, sem jeito) Conhece o meu marido? Esse é o Júlio. TEODORO (estendendo a mão) Muito prazer. Os dois apertam as mãos muito rapidamente. TEODORO (para Márcia) E ninguém na fazenda viu cavalo ferido nenhum. É tudo invenção. Ele te mostrou o cavalo? Tu viu o cavalo? Márcia não responde. JÚLIO (saindo, irritado) Com licença. Júlio se retira para o escritório. Bate a porta com força. CENA 36 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO - DIA (13H30) Júlio entra no escritório. Percebe na tela do computador a foto de Anamaria. Caminha até o computador para tirar a imagem, mas a porta se abre e Márcia entra. Júlio apóia-se no tampo da mesa, escondendo com seu corpo a foto. MÁRCIA Deixa de ser bobo, Júlio. JÚLIO Tu anda pra cima e pra baixo com ele. Até no jornal eu vi vocês juntos! MÁRCIA É claro. Sou advogada dele. Eu preciso... JÚLIO É advogada, mas não precisa trepar com ele. MÁRCIA Não grita! JÚLIO Quem é que tá gritando aqui? Eu estou calmo! MÁRCIA Acho que tu não entendeu direito o que aconteceu. Eu vou explicar de novo. Márcia tenta colocar a mão no braço dele. Júlio tira o braço depressa e permanece na frente do monitor. JÚLIO Não precisa explicar nada! MÁRCIA (assustada) Meu Deus, Júlio, eu não tô te reconhecendo! Enquanto Márcia fala, Júlio vai tateando até encontrar o botão que desliga o monitor. MÁRCIA Olha, eu não vou mais na reunião, a gente senta e discute esse assunto com calma. Se tu quiser, não volto mais pra fazenda. Júlio aperta o botão, desligando o monitor. JÚLIO Nem pensar. A gente precisa terminar o que começou. Júlio, num impulso, levanta, abre a porta e sai. CENA 37 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/SALA - DIA (13H35) Teodoro olha, curioso, para Júlio e Márcia, que saem do escritório, com os rostos tensos. JÚLIO A Márcia já tá pronta. Boa sorte. Márcia olha para Júlio, irritada, e depois para Teodoro. MÁRCIA Tá na hora. Vamos? TEODORO Vamos. Márcia pega a bolsa e se dirige para a porta da ua. Antes que ela chegue, toca a campainha. Júlio olha para a porta, tenso. Márcia olha para Júlio e nota o seu nervosismo. Márcia abre a porta. Aparece o entregador da pizza. Júlio respira fundo. ENTREGADOR Metade muzzarella, metade califórnia e duas cocas. Júlio pega a pizza e as cocas. MÁRCIA Califórnia? Márcia, Teodoro e o entregador olham para Júlio, esperando a resposta. JÚLIO Pensei em deixar na geladeira pra Guida. Ela gosta. Márcia paga o entregador, que vai embora. Teodoro vai saindo, seguido por Márcia. Júlio vai fechar a porta, mas Márcia pára, se volta para ele e o beija. Depois, fala em voz baixa. MÁRCIA Não esquece de uma coisa, Júlio: eu não menti. CENA 38 - EXTERIOR - CASA DE JÚLIO/FACHADA - DIA (13H40) Anamaria, sentada em seu carro, a uma distância segura, vê Márcia e Teodoro saindo da casa. Anamaria está fumando um cigarro. Márcia e Teodoro entram no carro, que se afasta. CENA 39 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/SALA - DIA (14H) Anamaria está fumando, perto da janela. Olha para a rua. Depois olha para Júlio, que está sentado, também fumando um cigarro. ANAMARIA Eu já tentei largar três vezes. Anamaria apaga o cigarro e aproxima-se de Júlio. Abaixa-se e fica de cócoras, olhando para ele. ANAMARIA Tu não gostou de ver a Guida lá em casa, não é? Júlio não responde. ANAMARIA Deve ser difícil pra ti. Eu compreendo. Mas não precisa ficar preocupado. A Guida é muito responsável, não vai fazer nenhuma bobagem. (pausa) Ela não é mais criança. Anamaria aproxima-se lentamente e beija Júlio. Ele não resiste, e beija também. Anamaria sorri e se afasta um pouco. Vai beijar outra vez, mas então Júlio a impede. JÚLIO Anamaria, desculpa. Mas não foi uma boa idéia tu vir aqui. Pode chegar alguém... (Júlio levanta) Eu acho melhor tu ir embora. ANAMARIA Quer mesmo que eu vá embora? JÚLIO É melhor. Eu nunca fiz isso... Anamaria olha um pouco surpresa para Júlio, mas com um brilho divertido no olhar. ANAMARIA A gente se vê de novo? JÚLIO Não sei. Desculpa. Desculpa eu ser tão atrapalhado. ANAMARIA Acho que gente se vê, sim. Anamaria aproxima-se de Júlio e o beija. Júlio a abraça. As mãos de Júlio percorrem as costas de Anamaria. Ele parece capitular. Procura os seios de Anamaria com as mãos, primeiro por cima do vestido. Depois levanta a camiseta de Anamaria e segura o bico de um dos seios. Anamaria, sorridente, o incentiva com os olhos. De repente, Júlio solta Anamaria. JÚLIO Desculpa. ANAMARIA Pára de pedir desculpa! Desculpa de quê? JÚLIO Não vou fazer de novo. ANAMARIA Acho que vai. (dá um beijinho) Então tá, eu vou embora. Mas antes posso ir no banheiro? JÚLIO Claro. É ali, no fim da escada. Júlio aponta com a cabeça na direção do banheiro. CENA 40 - CASA DE JÚLIO - BANHEIRO - DIA (14H05) Anamaria examina vários produtos de beleza no armário do banheiro. Usa um batom. Cheira os perfumes. Usa um deles. Abre a cortina do box. Pega uma embalagem grande de xampu. Lê o rótulo. Abre o xampu e despeja uma grande quantidade no ralo do box. Sorri, satisfeita. CENA 41 - CASA DE JÚLIO - HALL DE ENTRADA - DIA (14H10) A mão de Anamaria coloca, sobre a mesa do telefone, um chaveiro da pantera cor-de-rosa com duas chaves. ANAMARIA (OFF) Vou deixar contigo. (IN) Quando quiser me visitar, conversar um pouco... JÚLIO Não precisa. ANAMARIA Eu sei que tu não vai. Mas... Pelo menos assim eu alimento um pouco minhas fantasias. Eu estou dormindo, de madrugada, e um homem misterioso entra no meu apartamento... Eu gosto de pensar essas bobagens. Isso não faz mal, faz? Júlio olha para Anamaria, confuso. CENA 42 - EXTERIOR - ESTRADA - NOITE (20H) Teodoro e Márcia estão viajando, os dois de cara amarrada. Márcia dirige e Teodoro está no banco ao seu lado. Silêncio por algum tempo. MÁRCIA Tu não precisava fazer ameaças. TEODORO Eu não ameacei ninguém. MÁRCIA Mas disse que não admitia ninguém andando nas tuas terras. TEODORO Claro! Se eu deixar, daqui a pouco os peões do Juvenal estão colhendo o que eu plantei. MÁRCIA (irritando-se) Juridicamente, as terras ainda não são tuas. As terras são do Juvenal. Ele tem uma coisa chamada escritura. TEODORO O meu pai disse... MÁRCIA O teu pai nunca passou as terras para o nome da sua tua mãe. O que ele disse não faz a menor diferença. TEODORO Enquanto a coisa não se resolver, ninguém passa a cerca. Aquele velho entendeu direitinho o que está acontecendo. MÁRCIA Aquele velho, Teodoro, era o secretário de Justiça. Ele não só entendeu como garantiu que vai ter segurança, pra ti e pros outros posseiros que estão na fazenda. TEODORO Eu não sou posseiro! Não me interessa o problema dos outros. Tu quer transformar tudo em política e... MÁRCIA (cortando) Te acalma, Teodoro! Minha filha de 17 anos é mais madura que tu. Teodoro sente que Márcia está furiosa. TEODORO A tua filha tem 17 anos? MÁRCIA Faz 18 amanhã. Casei cedo. Teodoro encosta a mão no ombro de Márcia. MÁRCIA Pára com isto, Teodoro. Teodoro desce a mão pelo braço de Márcia. MÁRCIA (cortando) Presta atenção no que eu vou te dizer. Eu amo o meu marido, entendeu? Já contei pra ele o que aconteceu. Eu não me arrependo de nada, mas não vai acontecer de novo. (irritada) Tira a mão. (mais irritada) Já! Teodoro tira a mão e olha para Márcia, desconcertado. Ficam algum tempo em silêncio. MÁRCIA O Juvenal quer falar contigo. Vou marcar uma reunião assim que a gente chegar. TEODORO O Juvenal quer me matar. MÁRCIA Não. Ele quer conversar. Conversar! Será que tu consegue? E é bom que vocês se acertem de uma vez. Eu tenho quatro casos me esperando em Porto Alegre, e não vou passar o resto da minha vida discutindo posse de terra. Pensa bem, Teodoro. Aproveita a chance agora. Sabe o que o Juvenal me disse? Que é diferente do irmão. Que é tolerante. Tu também precisa ser, pelo menos um pouco. Deu pra entender, ou tá difícil? Teodoro olha para Márcia, como quem não entendeu nada. CENA 43 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO - DIA (16H) Júlio está esperando que o computador anuncie que o CD está pronto. Quando está quase no 100%, o Windows tranca e aparece aquela tela azul, com a mensagem de erro de sistema. Júlio fica furioso. JÚLIO Puta que pariu! CENA 44 - EXTERIOR - ENTRADA DA FAZENDA DE JUVENAL - DIA (17H) O carro de Márcia aproxima-se da sede da fazenda. CENA 44A - INTERIOR - FAZENDA DE JUVENAL/ESCRITÓRIO - DIA (17H) Márcia conversa com Juvenal, sob o retrato do patriarca. Juvenal está de pé na janela, olhando para fora. Márcia está sentada numa poltrona, à frente de uma escrivaninha grande. MÁRCIA Ele não quer conversar aqui. Tem medo. JUVENAL Medo? Eu é que deveria ter medo, a senhora não acha? (vai sentar atrás da escrivaninha) Ele matou meu irmão. MÁRCIA Eu sugiro que vocês se encontrem na sub- prefeitura. Território neutro. JUVENAL Neutro coisa nenhuma. O prefeito tá do lado dos posseiros. Ele tem que vir aqui. MÁRCIA O senhor garante a segurança dele? JUVENAL Claro. Márcia respira fundo. MÁRCIA Eu vou tentar convencê-lo. JUVENAL E a senhora garante a minha segurança? Márcia pensa por algum tempo. MÁRCIA Eu vou lhe dar um conselho: só vai haver segurança quando o conflito acabar. O Teodoro está disposto a provar que é filho do seu pai. E o senhor sabe que ele é. Mas o processo só vai complicar ainda mais a situação. É muito melhor negociar e reconhecer o direito dele e das outras famílias por usucapião. Tudo somado, é menos de cinco por cento da fazenda. JUVENAL O Orestes dizia que terra da família não se negocia. Se defende. MÁRCIA Seu irmão está morto porque pensava assim. O senhor não disse que é diferente dele? Juvenal olha para Márcia. CENA 45 - INTERIOR - BAR OCIDENTE - NOITE (22H30) Júlio, carregando uma pasta bem grande, entra no bar onde Guida comemora o aniversário. Num canto, há um pequeno palco, onde já estão os instrumentos da banda. Júlio caminha entre as mesas, procurando pela filha. Guida está num grupo animado de jovens, entre eles Ciro e Anamaria. Na mesa, há um bolo pequeno com uma vela já usada. Júlio parece um pouco deslocado no ambiente. Anamaria é a primeira a notar a presença dele. Fica sorrindo, enquanto ele se aproxima. Guida finalmente vê Júlio e abre os braços para o pai. GUIDA Pai! Pensei que tu não vinha mais. Guida abraça forte e beija o pai, que retribui, emocionado. JÚLIO Parabéns, minha filha. Guida desfaz o abraço, parece nervosa. GUIDA (inquieta) Já cantaram o parabéns. Daqui a pouco nós vamos tocar. Anamaria continua sorrindo para Júlio, que desvia o olhar e abre a pasta, pegando o pacote do CD. JÚLIO (para a filha) Me atrasei por causa do teu presente. Espero que tu goste. É um álbum. Guida abre o pacote. Pega o CD, olha a capa e parece não entender direito o que é. ANAMARIA De que banda é? JÚLIO Não, é álbum de fotografias. Desses de família. Tu coloca no computador e assiste. Tem fotos, vídeos antigos... Bom, é um álbum. Ninguém entendeu nada do que Júlio falou. Nem Guida. GUIDA (tentado disfarçar a decepção) Que legal! Júlio sorri. JÚLIO Bom, o CD é o meu presente. Mas também tem o da tua mãe. (abre a pasta e pega uma maleta de couro) Tu vai precisar pra ver o álbum. Guida abre a maleta, que contém um notebook. Guida sorri e dá um novo abraço em Júlio. Agora todos estão sorridentes. Um roadie liga os amplificadores e testa os microfones. ROADIE Som, som... Teste, teste... ANAMARIA Tá na hora. Vamos lá. GUIDA Pai, me deseja sorte. JÚLIO (sorrindo) Merda pra ti. GUIDA (chocada) Merda? JÚLIO (percebe que falou besteira) No meu tempo era... Quer dizer, no teatro... (pausa) Guida. Eu te adoro! Vai lá e manda ver! (grita baixinho) Rock'n'roll! Guida sorri e beija o pai. CENA 46 - INTERIOR - BAR OCIDENTE - NOITE (22H45) Começa o show, que Júlio assiste no fundo do bar (ou no mezanino). É uma banda só de meninas. Guida toca guitarra solo. (Também há uma guitarra base, baixo, bateria e a vocalista) Anamaria fica ao lado do palco, perto da mesa de som, observando e dançando. Júlio acompanha a música atentamente. Anamaria olha para ele várias vezes e sorri. O público gosta. O show é um sucesso. CENA 47 - INTERIOR - BAR OCIDENTE - NOITE (23H) Ciro aproxima-se de Júlio e fala com ele (com alguma dificuldade, devido ao som do show). CIRO Ôi. A Guida me falou que o senhor trabalha na área de informática. JÚLIO (antipático) Mais ou menos. CIRO Eu me formei em computação. Sou especialista em Internet. JÚLIO Certo. CIRO Eu sou bom nesse negócio. Muito bom. Mas estou desempregado. Eu preciso trabalhar. JÚLIO Todo mundo precisa. CIRO A Guida me disse que talvez o senhor possa me ajudar. Eu também entendo um pouco de fotografia digital. Quem sabe um estágio na revista... JÚLIO Me manda um currículo (tira um cartão do bolso) Pode deixar lá no estúdio. Ciro percebe a má-vontade de Júlio, mas pega o cartão. CIRO Obrigado. Até logo. Ciro se afasta. Júlio olha para a filha no palco e depois para Ciro. Segue o show. CENA 48 - EXTERIOR - CASA DE TEODORO (FACHADA) - NOITE (23H15) Márcia conversa com Teodoro na frente da casa. TEODORO Eu não posso ir lá. MÁRCIA Por quê? Teodoro não responde. MÁRCIA Tu não corre perigo. Falei com o secretário outra vez. A partir de amanhã, vai ter um brigadiano aqui, vinte e quatro horas por dia. Mas é perigoso é deixar essa situação indefinida. Ele quer conversar. Tu tem que ir. TEODORO Vou pensar. Mas lá na fazenda eu não vou. Não quero morrer naquela casa. MÁRCIA Tu não vai morrer. Quem sabe a gente marca em Porto Alegre? TEODORO (depois de pensar um pouco) É melhor. MÁRCIA Então tu volta amanhã? Promete? TEODORO Prometo. (pausa) A Quita arrumou tua cama na sala. MÁRCIA Obrigada. Eu vou dar uma passada no hotel, descansar um pouco, mas quero estar em Porto Alegre de manhã bem cedo. É aniversário da minha filha. TEODORO Tu pode descansar aqui: não tem perigo. Márcia sorri para Teodoro. MÁRCIA Boa noite, Teodoro. E fica tranqüilo. Ninguém vai matar ninguém. CENA 49 - INTERIOR - BAR OCIDENTE - NOITE (24H) O show já acabou. Algumas pessoas dançam entre as mesas. Anamaria dança com um cara jovem, cabeludo e musculoso. Júlio está bebendo um uísque, encostado no balcão. Toca o seu telefone celular. Ele atende. Ouve por alguns instantes, com alguma dificuldade, e depois faz um sinal para Guida, que está numa mesa próxima, com Ciro. Ela se levanta e vai até Júlio. JÚLIO É a tua mãe. A ligação tá horrível. GUIDA Eu vou atender lá atrás. Tem menos barulho. Guida afasta-se. Anamaria abandona o jovem cabeludo e aproxima-se de Júlio no balcão. ANAMARIA Não tá gostando da festa? JÚLIO (pouco animado) Tô. ANAMARIA Pensei que tu ia me ligar. JÚLIO Eu não disse que ia ligar. ANAMARIA Fiquei esperando. Anamaria pega o copo de Júlio e bebe. Fica encarando. Depois se aproxima de Júlio até encostar o corpo. ANAMARIA Quer dançar? Júlio se afasta. Olha, preocupado, para o fundo do bar, onde Guida está com o celular no ouvido. ANAMARIA Tu é sempre assim... reprimido? JÚLIO Acho que tu bebeu demais. ANAMARIA Eu posso imaginar como tu era antes. JÚLIO Antes do quê? ANAMARIA Antes de casar. Foi ela que te deixou assim? JÚLIO Tu não sabe de nada. ANAMARIA Sei que eu quero ir pra cama contigo. E tu também quer, Ivanhoé. JÚLIO (espantado) O quê? ANAMARIA (rindo) A Guida me contou. Anamaria olha séria para Júlio. Coloca a mão no seu braço. Júlio está desconcertado. Guida chega de repente, sorrindo. Anamaria tira a mão. JÚLIO Vamos embora? GUIDA A festa tá começando! JÚLIO São quase duas. Amanhã tenho que acordar cedo. GUIDA Pai, por favor! É o meu aniversário! O Ciro me leva em casa depois. Tu gostou dele? (sorri) Claro que não. Tu nunca gosta. Tchau. Guida começa a dançar com Ciro, deixando Júlio sozinho no balcão. Ele olha para a pista de dança, onde Anamaria dança outra vez com o jovem cabeludo. Mas, na verdade, começa a olhar apenas para Júlio, que acaba também olhando para ela. Anamaria praticamente abandona o cabeludo e dança para Júlio, que bebe mais um gole de uísque e continua observando Anamaria. Júlio termina o uísque e sai do bar. Anamaria fica decepcionada. CENA 50 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/QUARTO/SALA - AMANHECER (6H30) Júlio está encostado na cama, meio tonto de sono. Márcia abre a janela e vai tirando as roupas da sacola de viagem, enquanto fala. Depois tira a roupa do corpo, ficando só de calcinha e sutiã. Júlio escuta, sem grande interesse. MÁRCIA Quando o Teodoro nasceu, o Orestes já tinha mais de dez anos. O Juvenal não, era pequeno, os dois brincavam juntos, eram amigos. O Orestes é que tinha ódio do Teodoro, achava que a mãe do Teodoro era a causa da doença da mãe dele. O mais provável é que fosse o contrário. Márcia percebe que Júlio está "voando". MÁRCIA Júlio, tu tá me escutando? JÚLIO Estou. MÁRCIA Sabe que eu tava com saudade? Márcia senta na cama ao lado de Júlio e beija o marido. Júlio sorri. Parece mais desperto. Olha para Márcia. Os dois se beijam, se abraçam, mas, apesar do entusiasmo de Márcia, a transa não evolui. Márcia pára e olha para o marido. Sente que há alguma coisa diferente. Júlio vai para o canto da cama. MÁRCIA Que é que tu tem? Tá preocupado com alguma coisa? JÚLIO Eu tô nervoso. Não dormi bem. MÁRCIA Olha, Júlio, aquilo que aconteceu com o Teodoro foi... JÚLIO (cortando) Eu conheci uma garota. Márcia senta na cama, alerta. MÁRCIA O quê? Márcia olha fixamente para Júlio. MÁRCIA Eu conheço essa garota? JÚLIO (breve hesitação) Não. Foi lá no estúdio. Uma modelo... MÁRCIA Uma modelo? JÚLIO Não aconteceu nada. Só um beijo. MÁRCIA Um beijo? Só um beijo? E o que mais? JÚLIO Mais nada. Fui uma vez na casa dela, mas a gente não transou. MÁRCIA Era nela que tu tava pensando? JÚLIO (hesita mais um pouco) Era. Márcia levanta e caminha pelo quarto. MÁRCIA Por que tu não trepa de uma vez com essa garota? Tu tá querendo vingança, é isso? Não engoliu o que eu fiz e agora está querendo te vingar? Então, muito bem, vai lá e trepa com ela. Eu não preciso nem ficar sabendo quem é. Só tem uma coisa, Júlio, seja discreto e use camisinha. Márcia volta a fechar a janela. O quarto fica bem mais escuro, iluminado apenas por uma lâmpada de cabeceira. JÚLIO Tu não tá falando sério. MÁRCIA Muito sério. E não quero saber dos detalhes. Márcia volta a sentar. JÚLIO Isso é uma loucura total. MÁRCIA Também acho, mas é melhor assim. Pode sair. Tô falando sério. Agora eu vou tentar dormir um pouco. Márcia deita, estica o braço e apaga a luz do quarto. Fica de costas para Júlio. JÚLIO Tu pensa que é tão fácil assim? Que eu vou lá e transo com ela? Tu tá louca? MÁRCIA (agressiva, virando-se para Júlio) Tu acha que eu vou dormir de novo com um cara que brocha e depois diz que tá pensando em outra? Resolve teu problema, meu filho. E depois a gente conversa. Júlio estende a mão e toca no ombro de Márcia. JÚLIO Meu amor... MÁRCIA Tira essa mão. JÚLIO Tu não tá... Márcia vira-se, muito agressiva. Enfia as unhas com toda a força na mão de Júlio. MÁRCIA Tira a mão! Márcia levanta da cama e acende a luz de cabeceira. MÁRCIA E sai dessa casa! JÚLIO Tu tá louca! Márcia está transtornada. Começa a bater violentamente em Júlio. MÁRCIA Sai! Sai! Júlio levanta-se e tenta se defender, mas Márcia vai empurrando-o para fora do quarto. Júlio segura as mãos de Márcia, mas ela o morde. Júlio grita de dor. MÁRCIA Sai! Sai! Seja homem, Júlio! Márcia empurra Júlio pela sala quase até a porta. MÁRCIA Espera aí! Márcia sai por um momento. Júlio olha para a sua mão, que exibe as marcas sangrentas das unhas de Márcia. Ela volta com as roupas de Júlio na mão. Atira as roupas no chão. MÁRCIA E agora sai! Se tu não sair, juro que eu saio. E não volto mais. Júlio se agacha, pega as roupas e coloca uma calça. Sai. Márcia bate a porta. Quando ela se volta, Guida está à sua frente, com cara de sono e ressaca. GUIDA Que que houve, mãe? Vocês tavam gritando... Márcia aproxima-se de filha. MÁRCIA Não foi nada. Bobagem. O Júlio teve que sair. (pausa) Feliz aniversário. Márcia abraça e beija Guiida. CENA 50A - EXTERIOR - CASA DE JÚLIO/FACHADA - AMANHECER (6H45) Júlio bota a mão no bolso e pega a chave da pantera cor de rosa. CENA 51 - INTERIOR - AP. ANAMARIA/PORTA/SALA/QUARTO - DIA (7H) Júlio usa o chaveiro da pantera cor-de-rosa para entrar no apartamento de Anamaria. Passa pela sala. Vai até o quarto. Anamaria está dormindo, com uma camisola. Júlio senta na cama e fica olhando para ela. Anamaria acorda. Não parece assustada. Senta na cama e olha para o despertador, na mesinha de cabeceira. MÁRCIA A minha fantasia do homem misterioso acontecia de madrugada, e não às sete da manhã. JÚLIO Desculpe. Anamaria vê o sangue na mão de Júlio. Aponta. ANAMARIA O que é isso? JÚLIO Nada. ANAMARIA Deve estar doendo... Anamaria pega a mão de Júlio e a beija. Depois começa a chupar- lhe os dedos. ANAMARIA Ela te machucou... Coitadinho. Anamaria tira a camisola, ficando só de calcinha. Cada vez mais sensual, continua chupando os dedos da mão ferida de Júlio. ANAMARIA Tu não quer te vingar? Hem? Não quer bater em mim? JÚLIO Não. ANAMARIA Claro que quer. Por favor, bate. JÚLIO Não. Anamaria pega a mão de Júlio e a puxa na direção do próprio rosto, num tapa leve. Júlio recolhe a mão. Anamaria olha para Júlio e sorri. ANAMARIA Mas não bate muito forte... Os dois se beijam, muito excitados. Anamaria abre uma gaveta e pega um envelope de preservativos. É uma transa muito quente, mas tem um clima meio trágico e desesperado. Júlio dá uns tapas em Anamaria, que gosta muito e pede mais. CENA 52 - INTERIOR - APARTAMENTO DE ANAMARIA/QUARTO - DIA (8H) Júlio está se vestindo. Anamaria ainda está deitada na cama, sem roupa. ANAMARIA Não precisa sair correndo. JÚLIO Tenho que ir. ANAMARIA Dorme um pouco aqui comigo. JÚLIO Não posso. Júlio termina de se vestir. Fica parado ao lado da cama. JÚLIO Eu vou contar pra Márcia. Anamaria olha para ele, sem entender. JÚLIO Vou contar o que aconteceu. Na verdade, ela já sabe. ANAMARIA (surpresa) Sabe que tu tá aqui? JÚLIO Não. Mas sabe que eu transei com alguém. ANAMARIA Quando? JÚLIO Hoje. Agora. ANAMARIA Não tô entendendo... JÚLIO Nem precisa. ANAMARIA (preocupada) Olha, Júlio, uma coisa eu sei: se tu contar pra Márcia, essa história chega na Guida, e isso não vai ser legal. (pausa) Ela vai me odiar. Tu tem que me prometer que não conta nada. Júlio fica em silêncio. ANAMARIA Promete. Júlio pensa por mais algum tempo. JÚLIO Prometo. ANAMARIA Qualquer coisa, me envia uma mensagem. Tu sabe o meu mail? É anamaria, tudo junto, arroba... Júlio tira o chaveiro da pantera cor-de-rosa e o coloca sobre a mesa de cabeceira. JÚLIO (cortando) As tuas chaves. Eu não vou usar mais. CENA 53 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO - DIA (11H) Márcia está escrevendo no computador de Júlio. Júlio entra no escritório. Márcia levanta os olhos do trabalho que estava fazendo, mas continua sem se voltar para Júlio. Márcia clica e a impressora começa a trabalhar. MÁRCIA Resolveu teu problema? Júlio fica em silêncio. JÚLIO Foi estranho. MÁRCIA Eu não quero saber como foi. Só tem uma coisa que me interessa. Tu usou camisinha? JÚLIO Usei. MÁRCIA Então não se fala mais nisso. Assunto encerrado. Márcia continua a fazer o trabalho no computador. Júlio sai do escritório. Márcia examina a folha impressa. Há um erro de digitação. Ela amassa a folha e tenta jogá-la na cesta de lixo, que está a uns cinco metros. Erra. Márcia levanta, pega a "bola" e vai colocá-la na cesta, quando, no fundo desta, vê, amassada, uma folha do jornal que exibe as fotos dela e Teodoro. Pega a folha. Percebe que há alguma coisa escrita no verso. Lê o endereço de Anamaria. CENA 54 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/BANHEIRO - DIA (12H) Márcia toma banho. Percebe que o xampu está sem tampa e quase no fim. CENA 55 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/QUARTO DE GUIDA - DIA (12H05) Márcia abre a porta do quarto de Guida, que está no telefone. MÁRCIA Tu usou o meu xampu? GUIDA (para a pessoa no telefone) Só um pouquinho. (para Márcia) Que foi? MÁRCIA Perguntei se tu usou o meu xampu. GUIDA Eu não! Guida volta a conversar no telefone. GUIDA Tava o máximo!... Tu também viu? MÁRCIA A Anamaria foi no teu aniversário? Guida fica indignada com a interrupção. GUIDA Claro, né, mãe. Ela é da banda. MÁRCIA Onde ela mora? GUIDA Mas que saco, mãe! Parece interrogatório. Mora na Garibaldi. CENA 55A - INTERIOR - TRIBUNAL DO JÚRI - DIA (16H) Márcia, de toga, está acompanhando um julgamento. Só que, na verdade, não está prestando nenhuma atenção. PROMOTOR (OFF)... de modo que, se a ilustre colega de defesa concordar, poderemos ganhar muito tempo. Basta evitar esse tipo de confronto. A promotoria dispensa o depoimento da testemunha, e a defesa abre mão de apoiar-se em prova tão facilmente contestável. Silêncio. Márcia não percebe que todos estão olhando para ela. JUIZ (OFF) Doutora Márcia. (nenhuma reação) Doutora Márcia! Márcia finalmente "acorda". JUIZ (OFF) Qual a sua posição a respeito da manifestação da Promotoria? Márcia não sabe o que dizer. Sorri, nervosa. CENA 56 - INTERIOR - APARTAMENTO DE ANAMARIA/SALA - DIA (18H) Anamaria abre a porta. Olha, surpresa, para Márcia. ANAMARIA Márcia! MÁRCIA Posso entrar? ANAMARIA (insegura) Claro. Márcia entra. Anamaria fecha a porta. ANAMARIA A Guida não está aqui. MÁRCIA Eu sei. Vim falar contigo. Mas, primeiro, tenho que ir no banheiro. ANAMARIA É ali. Márcia entra no banheiro, deixando a porta aberta. Anamaria fica na sala, nervosa. Márcia volta com um xampu na mão. MÁRCIA Eu adoro esse xampu. Onde é que tu compra? ANAMARIA Um amigo me trouxe de Nova Iorque. MÁRCIA Essa marca é muito boa. Mas eu prefiro a Body Guard. Tu conhece? ANAMARIA Não, acho que não... MÁRCIA Como não conhece? Se tu até já usou o meu lá em casa... ANAMARIA Não sei do que tu está falando, eu nunca estive na sua casa... MÁRCIA Não precisa mentir. Eu sei de tudo. Não só usou o meu xampu, como também usou o meu marido. ANAMARIA (encarando Márcia) Eu não usei o seu marido. É diferente: eu transei com ele! MÁRCIA Só porque eu deixei, tá entendendo, sua puta? ANAMARIA Tu é louca! MÁRCIA Fui eu que mandei ele aqui. Ele queria dar uma trepadinha contigo e eu deixei... ANAMARIA A minha relação com o Júlio não é só sexo, não. A gente gosta um do outro. Eu tô apaixonada por ele. E ele por mim. Não foi a primeira vez que a gente transou. MÁRCIA Tá mentindo de novo! ANAMARIA Não! Tu quer ver? Anamaria vai até um armário, abre uma gaveta e mostra a foto manipulada, em que está nua com Júlio, perto da cachoeira. ANAMARIA Tu não sabia disso, não é? Conhece esse lugar? Faz tempo que a gente conversa pelo chat. Ivanhoé! Não é esse o nome que ele usa? Márcia olha, perturbada, para Anamaria. Suas mãos se crispam. As duas parecem prestes a se matar. ANAMARIA E agora, o que tu vai fazer? CENA 57 - INTERIOR - QUARTO DE HOTEL BARATO - NOITE (19H) Teodoro abre a porta e olha surpreso para Márcia. TEODORO Márcia! Ela vai entrando no quarto, que é bastante modesto. TEODORO Por quê toda essa pressa? Já falou com o Juvenal? MÁRCIA Não. Tu tá sozinho? TEODORO Claro. Acabo de chegar. Márcia examina rapidamente o quarto de hotel. Vai até a porta do banheiro e olha para dentro. TEODORO Aconteceu alguma coisa? MÁRCIA Não. Vim aqui pra trepar contigo. Márcia tira a blusa, ficando só de sutiã. TEODORO Essa é boa! Ficou bancando a difícil e agora... MÁRCIA Agora é diferente. Agora eu quero. TEODORO Posso saber por quê? MÁRCIA Essas coisas a gente precisa explicar? Márcia se aproxima de Teodoro. Beija-o. Coloca a mão dentro da calça dele. TEODORO Eu não te entendo. MÁRCIA Não precisa entender. Márcia beija-o outra vez. Ele retribui. MÁRCIA Tem camisinha? TEODORO Não. MÁRCIA Eu tenho. Eu comprei. (passagem de tempo - noite - 19h30) Os dois estão deitados na cama, suados e nus, respirando pesadamente para recuperar o fôlego. Vemos os corpos da cintura para cima. Teodoro está de olhos fechados, relaxado, enquanto Márcia, absolutamente alerta, olha para alguma coisa que está no chão. TEODORO Tu viu o que falaram no rádio? Que eu estou me tornando um líder sem-terra. Sem-terra é a puta que pariu! Enquanto isso, o Juvenal contratou de peão um sujeito que tem seis mortes nas costas. MÁRCIA Tu tá paranóico. O Juvenal... TEODORO (cortando) Sabe por que eu atirei no Orestes? Sabe? MÁRCIA (cansada) Sei. TEODORO Não. Tu não entendeu direito. Acha que foi por causa da cerca, da terra. Mas tu quer mesmo saber? CENA 58 - EXTERIOR - CAMPO ABERTO - DIA (PASSADO) O rosto de Orestes. ORESTES Tu acha que eu vou entregar a terra do meu pai pro filho de uma prostituta? Teodoro se descontrola, ergue a mão e dispara o revólver. CENA 59 - INTERIOR - QUARTO DE HOTEL - NOITE (19H40) Teodoro continua conversando com Márcia. TEODORO Ele não me chamou de filho-da-puta. Se tivesse chamado, ainda tava vivo. Ele disse filho de uma prostituta. Estava falando da minha mãe. Tu entende? Márcia permanece calada. TEODORO Tu tá estranha. MÁRCIA Pega um pouco de papel higiênico pra mim? Teodoro levanta e entra no banheiro. Márcia imediatamente olha em volta, inclina-se, pega alguma coisa no chão e coloca na bolsa. Começa a se vestir rapidamente. Teodoro volta. Márcia já está vestida. TEODORO Já vai? Eu tava pensando em jantar e... MÁRCIA (cortando) Desculpa. Tenho que ir embora. TEODORO Mas.. MÁRCIA Te cuida. Márcia abre a porta do quarto e sai. Teodoro fica olhando para a porta, confuso. CENA 60 - INTERIOR - ESTÚDIO FOTOGRÁFICO - NOITE (20H30) Júlio está no estúdio, conferindo uma série de contatos. Emanuel entra, segurando um cartãozinho, ao lado de Ciro. EMANUEL (apontando para Ciro) Ele disse que tu convidou. CIRO (meio envergonhado) Ôi, seu Júlio. Se o senhor quiser, passo outra hora. JÚLIO Não. Tudo bem. (para Emanuel) Ele é amigo da Guida. Quer um estágio. (para Ciro) Não posso te prometer nada. A revista tá cortando todas as verbas. CIRO (hesitante) Pode até ser sem remuneração... No começo, claro. Depois, se vocês gostarem de mim... EMANUEL O que tu sabe de fotografia? CIRO (sorrindo) Fotografia digital? EMANUEL Ihh... Mais um taradinho de computador. Toca a campainha outra vez. EMANUEL Caralho! (para Júlio) Tu chamou mais alguém? Emanuel sai. Júlio olha para Ciro. JÚLIO (ar cansado) Eu trabalho com a edição das fotos, em casa. Sozinho. Sinceramente, acho que tu vai ter que procurar trabalho em outro lugar, porque o Emanuel... Márcia entra no estúdio com uma foto na mão. Parece muito nervosa e mal olha para Ciro. Vai direto até Júlio e mostra a foto para ele. É a foto editada de Anamaria e Júlio. MÁRCIA Olha só o que uma tal de Sabrina me mandou por e- mail. Júlio tenta se controlar e não parecer nervoso. Continua sentado. JÚLIO É falsa. Deve ser um brincadeira... MÁRCIA (quase gritando) Não mente pra mim. JÚLIO Não é mentira, Márcia. A foto foi manipulada... Pergunta pro Emanuel. Qualquer cara mais experiente pode perceber. EMANUEL Não me mete em bronca, Júlio. Márcia dá a foto para Emanuel. Ciro, ao seu lado, também olha. Ciro fica mais surpreso que Emanuel. CIRO (baixinho) Pô, é a Anamaria... A Guida vai matar ela. MÁRCIA Examina. Agora me diz: é falsa ou não é? Emanuel examina a foto. Fica em dúvida. Percebe os olhares preocupados de Márcia e de Júlio. EMANUEL Olhando assim, não sei... Júlio levanta, furioso, e pega a foto da mão de Emanuel. JÚLIO Porra, Emanuel! Claro que sabe. Olha o retoque nos seios. EMANUEL É falsa! Totalmente falsa! MÁRCIA Tu tá querendo proteger ele. Chega de mentira, Júlio. Tu tá de caso com essa garota. Aproveitou que eu tinha viajado. No nosso sítio! Na nossa casa! JÚLIO Pára com isso, Márcia. Coisa ridícula! MÁRCIA Confessa logo. Há quanto tempo tu te encontra com essa piranha? Júlio aproxima-se de Márcia e tenta pegar-lhe o braço. JÚLIO Não precisa fazer escândalo. Vamos sair daqui. Márcia livra-se da mão de Júlio. MÁRCIA Não me toca! Há quanto tempo vocês se conhecem? Era com ela que tu ficava namorando na Internet? JÚLIO Tu ficou louca. MÁRCIA (gritando) Eu é que sou a louca? Júlio tenta aproximar-se outra vez. Márcia recua. JÚLIO Vamos pra casa. MÁRCIA (gritando) Não quero ir pra casa. Aliás, pra minha casa, porque tua ela não é mais. Mentiroso! Covarde! Por que tu não vai logo se encontrar com ela e some da minha vida? Some! Some! Márcia dá as costas para os três homens e sai do estúdio. Emanuel e Ciro ficam olhando para Júlio, ambos completamente sem jeito. Júlio respira fundo. JÚLIO Essa putinha me paga. Eu vou matar ela! Júlio sai do estúdio, com a foto na mão. Emanuel e Ciro estão apavorados. EMANUEL Júlio. Espera aí! (para Ciro) Tu conhece aquela menina? CIRO Conheço. EMANUEL Eu nunca vi o Júlio desse jeito. A gente tem que fazer alguma coisa. CENA 61 - EXTERIOR, RUA DO ESTÚDIO, NOITE (20H45) Márcia, ao longe, dentro do carro, vê Júlio pegar o carro estacionado e sair em alta velocidade. Emanuel e Ciro entram em outro carro e o seguem. CENA 62 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/ESCRITÓRIO - NOITE (21H) Márcia entra no escritório de Júlio. Liga o computador, acha as fotos de Anamaria ao lado de Júlio. Primeiro a original, depois a editada. Apaga a original. Conecta o computador à Internet e envia um arquivo. CENA 63 - INTERIOR - APARTAMENTO DE ANAMARIA/SALA - NOITE (21H15) Júlio chega no apartamento de Anamaria, que está na penumbra. Empurra a porta, derrubando a estatueta. Entra devagar e pega a estatueta. JÚLIO (OFF) Quando eu cheguei, tava tudo escuro. Eu abri a porta, derrubei alguma coisa. Era uma estátua pequena. Júlio levanta, acha um interruptor e acende a luz. Vê o corpo de Anamaria no chão, poucos metros adiante. Pára por um instante, apavorado. Depois aproxima-se do corpo. Se agacha. JÚLIO (OFF) Só vi o corpo quando acendi a luz. Tinha tanto sangue que eu logo vi que ela tava morta. Foi horrível. E então eles chegaram. Emanuel e Ciro entram no apartamento e vêem Júlio agachado ao lado de Anamaria, em meio à poça de sangue. Emanuel e Ciro olham para Júlio, que está atordoado demais para reagir. CIRO (recuando para a porta) Eu vou chamar a polícia. CENA 64 - INTERIOR - DELEGACIA/SALA PEQUENA - DIA (9H) Júlio, algemado, está sentado à frente de Márcia, numa sala pequena, com grades na janela. JÚLIO Foi assim que aconteceu. Eu não matei ela. (falando baixo) Eu transei com ela. Uma vez. Tu sabe quando. E não tive coragem de te contar que foi com ela, porque... Sei lá porquê. Mas eu não matei ninguém. Tu acredita em mim? MÁRCIA Não sei. É difícil. Mas eu posso tentar. JÚLIO (pausa) Eles queriam que eu confessasse. MÁRCIA A polícia esteve lá em casa. Foram examinar o computador, atrás da tal foto que tu diz ter sido editada. JÚLIO E acharam a original? MÁRCIA Não. Eles levaram o computador. Tu fez outra cópia? JÚLIO Não. Só tinha aquela. MÁRCIA As tuas digitais estão na arma do crime, as testemunhas, o que tu disse no estúdio... Tudo está contra ti. JÚLIO Tu precisa acreditar. Eu sou inocente. Isso tudo é absurdo! MÁRCIA (seca) Tenho outra má notícia pra ti. Márcia abre a bolsa e joga um jornal para ele. Na primeira página, em cinco colunas, está impressa a foto dele com Anamaria nua debaixo da manchete: "Fotógrafo mata a amante adolescente". Júlio olha para o jornal, atônito. CENA 65 - INTERIOR - DELEGACIA/CELA - DIA (14H) Júlio está sentado no chão da cela. CENA 66 - INTERIOR - DELEGACIA/SALA DO DELEGADO - NOITE (20H) Júlio, algemado e escoltado por um policial, entra na sala do delegado, que também está olhando a capa do jornal. O delegado coloca o jornal e a foto editada (que está dentro de um envelope de plástico) sobre a mesa e olha para Júlio. DELEGADO Eu já entendi quase tudo. A menina passou da conta e tu não agüentou. Mas como essa foto foi parar no jornal? JÚLIO Não foram vocês que entregaram? DELEGADO Não. JÚLIO O senhor tá querendo se promover. Tá aí o seu nome na primeira página. Aposto que não só mandou a foto pros jornais, como também apagou a original no meu computador. DELEGADO (ficando mais rude) Cuidado com o que tu diz. Como é que tu pode provar que a foto foi falsificada? JÚLIO Não é difícil. Basta perguntar pra alguém que use computador para retocar fotografias. DELEGADO Já perguntamos. E ele está em dúvida. Mas existem outras evidências. Mais importantes até. As impressões digitais, por exemplo. O depoimento das pessoas que estavam no estúdio e ouviram tu dizer que ia matar a vítima. Há quanto tempo tu conhecia essa menina? JÚLIO Uma semana... DELEGADO (sorrindo) Amor à primeira vista! Que romântico... E tu freqüentava bastante o apartamento dela? JÚLIO (irritado) Não. Eu sabia onde ela morava porque já tinha levado minha filha lá. Isso tudo é um engano, um mal-entendido. Vocês tem que encontrar o assassino! DELEGADO Se eu estou entendendo, tu nega que matou a vítima. (pausa) E também nega que mantinha relações sexuais com ela. JÚLIO (explodindo) Ela era meio desequilibrada. Eu nunca toquei nessa menina! A foto é uma brincadeira! Uma farsa. DELEGADO E isso aqui... (abre uma gaveta e mostra um envelope de plástico transparente, dentro do qual está uma camisinha) também deve ser uma farsa. Pra mim, parece mais uma camisinha usada. Foi achada no lixo do banheiro. (pausa, olha para Júlio) É tua? É melhor não mentir outra vez. O laboratório já está com uma amostra do sêmen. Júlio olha para a camisinha, fica hesitante, baixa a cabeça. JÚLIO É minha. Eu estive com Anamaria... Uma noite antes. DELEGADO (sorrindo) Isso explica as tuas impressões digitais em todo o apartamento. Especialmente na cama. (inclina o corpo na direção de Júlio) Por que não facilita a tua vida e confessa de uma vez? Júlio olha para o delegado. Fica calado. CENA 67 - INTERIOR - DELEGACIA/SALA PEQUENA - DIA (14H) Márcia está sentada na sala de visita. Examina pastas em cima da mesa. Júlio entra na sala, algemado. Senta na frente de Márcia, que quase não olha pra ele. MÁRCIA Tu tá horrível. Não te deixaram tomar banho? JÚLIO Que é que tu acha? MÁRCIA Trouxe umas roupas limpas. JÚLIO E a Guida? Eu queria falar com ela, explicar tudo... MÁRCIA Melhor não. Ela ainda está muito abalada. Vai ficar fora de circulação por uns tempos. JÚLIO Conseguiu achar um advogado? MÁRCIA Nós não precisamos de advogado. Eu mesma vou assumir a defesa. JÚLIO Acho que não é uma boa idéia. MÁRCIA Eu sei que tu é inocente. JÚLIO (rindo) Assim de repente? A troco de quê? MÁRCIA A estratégia está pronta. O perito concluiu que a foto muito provavelmente foi editada. Muito provavelmente! É um ponto a nosso favor, mas não vai te tirar da cadeia. Daqui a pouco sai o resultado do exame de sêmen. JÚLIO O exame vai mostrar que é meu. MÁRCIA Vamos ver. (pausa) Mas eu quero que tu entenda uma coisa: eu estou fazendo tudo isso pela Guida. CENA 68 - INTERIOR - DELEGACIA/CELA - DIA (8H) Júlio está dormindo. A porta da cela abre, fazendo barulho e acordando Júlio. POLICIAL (OFF) Me acompanhe. CENA 68A - INTERIOR - DELEGACIA/SALA DO DELEGADO - DIA (8H05) O delegado entrega uma caixa para Júlio. DELEGADO As suas coisas. O senhor está livre, pelo menos por enquanto. Saiu o resultado do exame de sêmen. Não é seu. E o legista diz que ela morreu duas horas antes. A sua esposa é competente, conseguiu um habeas-corpus. (olha para Júlio e depois sorri) Quem é que entende mulher? CENA 69 - INTERIOR - CASA JÚLIO/ESCRITÓRIO-BANHEIRO - DIA (15h) Márcia está no escritório, trabalhando no seu computador portátil. O espaço onde antes ficava o computador de Júlio está vazio. Júlio está saindo do banho. Toca o telefone. Júlio, enrolado na toalha, vai atender. Logo fica mal-humorado. JÚLIO Alô. (...) Não, não está. (...) Tenho certeza, sim. (...) Eu dou. (...) De nada. MÁRCIA (OFF) Quem era? Júlio vai para o escritório. JÚLIO Era o Teodoro. MÁRCIA (irritada) E por quê tu não me chamou? JÚLIO Tu disse que precisava se concentrar. MÁRCIA Mas ele é meu cliente, Júlio! JÚLIO Deixou recado. Disse que o Juvenal já chegou em Porto Alegre e está atrás dele. Márcia levanta e vai para a sala. Pega o telefone, começa a discar. Júlio, vestindo-se, aproxima-se dela. JÚLIO Quando a polícia vai devolver o meu computador? MÁRCIA (ainda irritada) Não sei. Usa o meu, por enquanto. JÚLIO Ele não serve pro meu trabalho. MÁRCIA Alô, Teodoro? (...) Calma. Eu estou indo praí. (...) Não. (...) Espera. Márcia desliga e olha para Júlio. MÁRCIA Eu tenho que sair. Quando a imprensa souber que tu tá aqui, vai ser um inferno. Presta atenção: nada de entrevistas. Fica quieto, pelo menos por enquanto. Entendeu? JÚLIO Tudo bem. CENA 70 - EXTERIOR - HOTEL NA J.CASTILHOS - DIA (16H) Teodoro está na janela do quarto, olhando para a rua. TEODORO Ele sabe onde eu estou. CENA 70A - INTERIOR - HOTEL NA J.CASTILHOS - DIA (16H01) Márcia conversa com Teodoro, que está nervoso. TEODORO Telefonou pra cá. (vira-se para Márcia) Foi tu que contou? Márcia aproxima-se dele. Toca o braço de Teodoro, tentando acalmá-lo. MÁRCIA Não. Teodoro, tu precisa ficar calmo. É só uma conversa. Tu vai ouvir o que ele tem a dizer e pronto. Não precisa ficar assim. TEODORO Deve ter alguém me seguindo desde que saí de Cruz Alta. MÁRCIA Tu tá totalmente paranóico. TEODORO Pediu que eu fosse sozinho, porque é assunto de família. Márcia olha por um tempo para Teodoro. Aproxima-se mais um pouco. MÁRCIA Pois então? Um assunto de família. Eu disse que ele era diferente do Oreste. (pausa) Tu não precisa ir sozinho. Eu posso ir junto. TEODORO No fim da conversa, ele... me chamou de irmão. Márcia abre um pequeno sorriso. MÁRCIA Viu, só? Ele sabe que precisa negociar. Tudo vai dar certo. TEODORO Mas eu estou com medo. MÁRCIA A única maneira de acabar com esse medo é enfrentar a situação. Num gesto protetor, meio maternal, Márcia abraça Teodoro. Ele aceita o abraço. As mãos de Márcia vão baixando nas costas de Teodoro, até que ela demonstra surpresa. Enfia a mão atrás da camisa de Teodoro e puxa um revólver. Afasta-se e mostra a arma para Teodoro. MÁRCIA Tu tá louco, Teodoro. Teodoro olha para ela, assustado. CENA 71 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/SALA - DIA (16H30) Ciro senta no sofá, com o rosto preocupado e os olhos cansados, de quem não dormiu. Júlio indica uma cadeira, onde o rapaz senta. Antes de falar, Ciro respira fundo. CIRO Esse é o número de telefone de onde a foto foi mandada. Ciro entrega um papel para Júlio, que fica olhando para o número anotado por algum tempo.. CIRO (hesitante) Esse é o número daqui, não é? Júlio olha para Ciro, sério e preocupado. JÚLIO Mais alguém sabe disso? CIRO Não. CENA 72 - INTERIOR - BAR PERTO DO FÓRUM - DIA (16H40) Júlio entra no bar, que está quase vazio, e vê Márcia, sozinha, no canto do balcão, em frente a uma xícara grande de café preto. Júlio senta ao lado dela. Márcia demonstra irritação e cansaço. MÁRCIA O que é tão urgente? JÚLIO Eu descobri a verdade. MÁRCIA (sem emoção) Que verdade? JÚLIO A foto... MÁRCIA Eu não tenho tempo de... JÚLIO Foi tu que mandou a foto pros jornais. Márcia fica calada. JÚLIO E foi tu que matou Anamaria. Márcia continua calada. JÚLIO Por ciúme. E depois tentou me incriminar. Eu sei como aconteceu. CENA 73 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - NOITE (PASSADO - 18H15) Márcia usa um pano para limpar a parte de baixo da estátua. Vai até a porta da rua. Pelo lado de fora, deixa a estatueta no chão. Encosta a porta. A câmara faz uma panorâmica da estatueta até o corpo de Anamaria, que está caído no chão, sobre uma grande poça de sangue. CENA 74 - INTERIOR - BAR PERTO DO FÓRUM - DIA (16H50) Continua a conversa de Márcia e Júlio. JÚLIO Tu queria que eu ficasse 30 anos na cadeia. Depois se arrependeu, não sei porque, e resolveu me defender. Se não fosse aquela camisinha, eu tava perdido. Mas nisso tu não pensou. Os dois ficam quietos por algum tempo. Ela rompe o silêncio. MÁRCIA E o que tu pretende fazer? JÚLIO Não sei, ainda estou pensando. MÁRCIA Quer saber? Tu tá enganado, muito enganado, mas não faz mal. Júlio olha para Márcia, surpreso. MÁRCIA Por que tu não me contou toda a verdade sobre a Anamaria? JÚLIO Não podia. MÁRCIA Por quê? JÚLIO Porque eu tava envergonhado. MÁRCIA Envergonhado pra confessar que já tinha transado com ela no sítio, no nosso apartamento... JÚLIO Não. Eu só menti quando inventei a tal modelo. Eu transei com Anamaria uma vez, no apartamento dela, e foi tu que me mandou pra lá, lembra? Márcia pensa um pouco. Toma mais um gole de café. MÁRCIA Essas coisas agora não têm mais importância. JÚLIO Têm importância, sim. Se eu tivesse contado logo a verdade, tudo seria diferente. MÁRCIA Talvez. JÚLIO Mas acho que tu também mentiu pra mim. Disse que só tinha transado uma vez com Teodoro. MÁRCIA Tu quer mesmo saber? Júlio pensa um pouco e responde: JÚLIO Não. (pausa) Dois repórteres já ligaram lá pra casa, atrás de mim. Daqui a pouco começam a fazer plantão na porta. Eu estou pensando em ir para... Teodoro surge de repente, ao lado de Márcia. TEODORO Eu preciso falar contigo. Júlio olha para ele, irritado com a interrupção. CENA 75 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/QUARTO - DIA (17H10) Júlio abre o armário e começa a tirar roupas, jogando-as em cima da cama. CENA 76 - INTERIOR - BAR PERTO DO FÓRUM - DIA (17H20) Teodoro conversa com Márcia. TEODORO Eu preciso de ti. MÁRCIA Não. Não precisa. E não sou mais tua advogada. TEODORO Eu preciso me proteger. Eu tô com medo. Márcia permanece calada. TEODORO Eu não vou mais esconder nada de ti. O que eu tenho que fazer pra tu acreditar em mim? Márcia permanece calada. Teodoro, num rompante, tira a arma da cintura (estava em baixo da camisa) e a coloca sobre o balcão. TEODORO Pode pegar. Márcia olha para a arma. CENA 77 - INTERIOR - CASA DE JÚLIO/QUARTO - DIA (17H30) Júlio está pegando um casaco, que está num cabide. Quando o retira do guarda-roupa, derruba, sem querer, um casaco de Márcia (o mesmo da noite do crime). Ouve-se um ruído metálico. Ele olha para o chão e vê o chaveiro da pantera cor de rosa. Abaixa-se e pega o chaveiro. CENA 78 - INTERIOR - BAR PERTO DO FÓRUM - DIA (17H40) Continua a conversa de Márcia e Teodoro. TEODORO Ele ligou logo que tu saiu. Tá me esperando no zoológico da Redenção. Tu sabe onde fica? MÁRCIA Sei. É perto daqui. TEODORO Ele quer que eu vá sozinho. CENA 79 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/PORTA-SALA - ENTARDECER (17H50) Júlio entra e acende a luz. Há várias marcações feitas pela polícia, inclusive o contorno do cadáver de Anamaria. Júlio caminha devagar, cuidando para não tocar em nada. Leva um susto quando toca o telefone celular. Atende. Há uma mensagem escrita no celular (que é digital): "Entra no bate-papo hoje às seis. Sabrina". Olha para o relógio. Dez pras seis. Júlio senta na frente do computador de Anamaria e o liga. CENA 80 - INTERIOR - BAR PERTO DO FÓRUM - DIA (18H) Márcia, sozinha no balcão, pede outra xícara de café. Olha para a bolsa. O revólver está lá dentro. CENA 81 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - ENTARDECER (18H05) Júlio digita na tela do bate-papo. "Ivanhoé - Sabrina, vc está aí? ". Logo aparece a resposta: "Sabrina - Sabrina morreu". Júlio digita: "Ivanhoé - Quem é vc? ". E Sabrina responde: "Sabrina - Eu sei a verdade". Júlio digita: "Ivanhoé - Que verdade?" CENA 82 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/ENTRADA - DIA (PASSADO - 18H10) Guida se aproxima da porta do apartamento e ouve gritos. O último deles é de Anamaria, bastante nítido. ANAMARIA (OFF) E agora, o que tu vai fazer? Guida empurra a porta. CENA 83 - EXTERIOR - AV. OSWALDO ARANHA - ENTARDECER (18H07) Teodoro atravessa a avenida, na direção do parque. CENA 84 - INTERIOR - BAR PERTO DO FÓRUM - ENTARDECER (18H08) Márcia está nervosa. Olha para a xícara de café. INSERT 1 - (CENA 26) JUVENAL - Mas eu sou diferente dele. Eu sou mais... Tolerante. A senhora entende? INSERT 2 (CENA 49) MÁRCIA - Ninguém vai matar ninguém. INSERT 3 - (CENA 75) Rosto de Anamaria levando a porrada (OU caindo no chão). Márcia olha para o relógio. Num rompante, sai do bar. CENA 85 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - DIA (PASSADO - 18H11) GUIDA Mãe! ANAMARIA (para Guida) Tua mãe é louca. MÁRCIA Sua vagabunda! Se fazendo de sonsa, de amiguinha da Guida! GUIDA O que é isso? MÁRCIA Sabe o que essa puta anda fazendo com o teu pai? ANAMARIA Não acredita nela, Guida! MÁRCIA (para Guida) Olha quem tu botou dentro da nossa casa, Guida. Márcia mostra para Guida a fotografia de Anamaria nua ao lado de Júlio. MÁRCIA Ela é a tal mulher com quem o seu pai fica todas as noites na Internet. Anamaria é Sabrina! Sempre foi! ANAMARIA (para Guida) Era uma brincadeira, Eu memas depois eu me apaixapaixonei pelo teu pai. Isso é errado? MÁRCIA Ela te usou pra se aproximar do Júlio. Fingiu que era tua amiga. (para Anamaria) Conheço o teu tipo, sua ordinária. CENA 86 - EXTERIOR - PARQUE DA REDENÇÃO - ENTARDECER (18H09) Teodoro pára em frente à entrada do mini-zôo. Olha para os lados. Vê apenas os freqüentadores habituais do parque. Entra no mini- zôo. CENA 87 - EXTERIOR - CARRO DE MÁRCIA - ENTARDECER (18H10) Márcia dirige, nervosa. CENA 87A - EXTERIOR - REDENÇÃO - DIA (18H11) Juvenal caminha pelo parque. CENA 88 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - DIA (PASSADO - 18H15) Continua a briga. ANAMARIA Cai fora, sua ridícula. Sai da minha casa! MÁRCIA Eu ainda tenho umas coisas pra te dizer, e tu vai ter que ouvir, sua piranha! ANAMARIA Vai embora, velha! Não tenho culpa se ele não gosta mais de ti. MÁRCIA Sua puta! Márcia avança contra Anamaria, que se defende. Guida intervém, mas é empurrada para longe. Anamaria consegue derrubar Márcia. Guida pega a estatueta e a levanta sobre a cabeça. Márcia vê e grita: MÁRCIA Guida, não! Guida dá um golpe na cabeça de Anamaria, que cai. Um grosso filete de sangue escorre de sua cabeça. CENA 89 - EXTERIOR - MINI-ZÔO - ENTARDECER (18H15) Teodoro está na frente da gaiola dos macacos. Olha para os lados, nervoso. Um macaco aproxima-se dele. CENA 90 - EXTERIOR - PARQUE DA REDENÇÃO - ENTARDECER (18H20) O carro de Márcia chega em alta velocidade e freia bruscamente. Márcia sai do carro, com a arma na mão. Corre na direção do mini- zôo. CENA 91 - EXTERIOR - MINI-ZÔO - ENTARDECER (18H21) Teodoro, agora menos nervoso, acende um cigarro e olha para um macaquinho, que está comendo uma banana ou fazendo alguma macaquice na grade, bem perto dele. Dois homens aproximam-se por trás de Teodoro. Um deles dá um encontrão em Teodoro, que se vira, já meio caindo, surpreso. O outro homem grita. HOMEM Passa a carteira! Teodoro não reage. Os dois homens sacam revólveres e dão, cada um, três tiros em Teodoro. Um tiro final é disparado na testa de Teodoro, à queima-roupa. CENA 92 - EXTERIOR - PERTO DO MINI-ZÔO - ENTARDECER (18H22) Márcia ouve os tiros e grita, sem parar de correr. MÁRCIA - Teodoro! CENA 93 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - DIA (PASSADO - 18H16) O corpo de Anamaria no chão. O sangue saindo da sua cabeça. CENA 94 - EXTERIOR - MINI-ZÔO - ENTARDECER (18H24) Márcia olha para o corpo de Teodoro, deitado no chão, morto, com o peito coberto de sangue. CENA 95 - INTERIOR - AP. ANAMARIA/SALA - DIA (PASSADO - 18H17) Márcia e Guida olham para o corpo de Anamaria, apavoradas. Guida ainda está com a estatueta na mão. CENA 96 - EXTERIOR - MINI-ZÔO - ENTARDECER (18H30) Juvenal aproxima-se, pelas costas de Márcia, e também olha para o corpo de Teodoro. Fala, sem olhar para Márcia. JUVENAL Me disseram que foi um assalto. Dois homens tentaram tirar a carteira dele. Ele reagiu. Os homens atiraram. Depois fugiram. Márcia olha para Juvenal, horrorizada. Juvenal olha para ela. JUVENAL Eu me atrasei um pouco. Foi isso que aconteceu. Márcia continua olhando para Juvenal. CENA 97 - INTERIOR - APTO. DE ANAMARIA/SALA - NOITE (18H35) Júlio digita. JÚLIO (OFF) Como tu sabe? Resposta na tela. GUIDA (OFF) Eu tava lá. CENA 98 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - DIA (PASSADO - 18H18) Guida segura a estatueta, sem saber o que fazer. Márcia tira a estatueta da mão de Guida. CENA 98A - INTERIOR - AP.ANAMARIA/BANHEIRO - DIA (PASS - 18H19) Márcia e Anamaria vão para o banheiro. Márcia lava o sangue na mão e no rosto de Guida, que está chorando e treme bastante. MÁRCIA Calma, minha filha. Márcia está saindo do banheiro, mas, de repente, pára e volta. Revira o lixo ao lado da patente e acha uma camisinha. Joga a camisinha na privada e puxa a descarga. MÁRCIA Vamos sair daqui. CENA 98B - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - DIA (PASSADO - 18H18) Márcia leva Guida de volta para a sala. Pega, na fechadura, o chaveiro da pantera cor-de-rosa. As duas saem do apartamento. CENA 99 - EXTERIOR - CARRO/FACHADA DE HOTEL - NOITE (PASS - 19H) O carro de Márcia estaciona. Márcia olha para Guida. MÁRCIA Me espera aqui. Vou demorar uma meia-hora. Guida continua em choque. Não diz nada. Márcia sai do carro e entra no hotel. CENA 100 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/BANHEIRO - NOITE (PASS - 20H) Márcia entra no banheiro, pega a estatueta e limpa a parte de baixo. Guida entra. GUIDA Não me deixa sozinha, mãe. Márcia abre a bolsa, retira um pacote pequeno, envolto em papel higiênico, e deixa que seu conteúdo caia no lixo. É uma camisinha usada. Olha para Guida. MÁRCIA Agora falta pouco. CENA 101 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - NOITE (18H40) Júlio está atônito, olhando para a tela do computador. Vemos a frase se formando no bate-papo. A voz em OFF de Guida a acompanha. "SABRINA - Eu não devia ter contado pra ela o teu apelido." GUIDA (OFF) Eu não devia ter contado pra ela o teu apelido. CENA 102 - INTERIOR - APARTAMENTO DA AVÓ DE GUIDA - NOITE (18H40) Guida está na frente do seu notebook, digitando. Alheia ao que acontece no computador, uma velha assiste TV. GUIDA (OFF) Mas achei que ela só tava brincando contigo. Depois disse que já tinha enjoado. (pausa) Pai, eu te amo. Tu me perdoa? CENA 103 - INTERIOR - AP.ANAMARIA/SALA - NOITE (18H41) Júlio fica olhando para a tela, sem saber o que dizer. CENA 104 - EXTERIOR - MINI-ZÔO - ENTARDECER (18H40) Uma pequena multidão se formou em volta do corpo de Teodoro. Márcia, com os olhos brilhando, olha para Juvenal. MÁRCIA Eu vou te botar na cadeia. Juvenal sorri para ela, aparentando tranqüilidade. Uma ambulância estaciona na entrada do mini-zôo. Dois enfermeiros saem, carregando uma maca. Márcia sai, em sentido contrário. CENA 105 - EXTERIOR - CASA DE CAMPO/FACHADA - DIA (10H) Cartão: "UM ANO DEPOIS" (APENAS SOM AMBIENTE) O carro de Júlio estaciona na frente da casa de campo. Júlio, Márcia, Guida e Ciro olham para a casa e ficam em silêncio dentro do carro. Finalmente Ciro fala: CIRO A gente não vai descer? Júlio, Márcia e Guida parecem despertar com a voz dela. MÁRCIA Claro. Tava com a cabeça longe... Júlio abre a sua porta e olha para o céu. JÚLIO Acho que tivemos sorte. Tá um dia lindo. Os quatro saem do carro. GUIA Olha só que sol! Vai ser um fim de semana daqueles. JÚLIO Sabe o que eu pensei? Que a gente podia pintar a casa. MÁRCIA Tu acha? JÚLIO Tá vendo ali? (aponta para uma parede) Tá descascando. MÁRCIA É verdade. Não tinha reparado... Ciro, me ajuda aqui com as sacolas... Ciro e Júlio levam as sacolas até a entrada da casa. As mulheres seguem-nos, mas Júlio faz sinal para elas pararem. JÚLIO Esperem aí. Quero tirar uma foto na frente da casa. Márcia, Guida e Ciro voltam. Júlio afasta-se mais, deixa a câmara preparada sobre um tripé e corre para posar ao lado da mulher e da filha. A câmara faz a foto. Vemos imediatamente a imagem digital no visor: os quatro, sorridentes, na frente da casa. A imagem "estoura", num efeito de computação gráfica. Entra música. CRÉDITOS FINAIS FIM ******************************************************************* (c) Carlos Gerbase, Jorge Furtado, Álvaro Teixeira e Giba Assis Brasil, 1999-2000 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br