AS TRÊS PALAVRAS DIVINAS episódio da série CENA ABERTA baseado no conto de Leon Tolstoi roteiro de Jorge Furtado e Guel Arraes versão 13/08/2003 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para TV Globo *************************************************************** CENA 1 - PAISAGEM GELADA - EXTERIOR - DIA (CENA DE ARQUIVO) Paisagem gelada no interior da Rússia, uma pequena cabana coberta de neve. Choro de bebê. REGINA (OFF) Estamos no século dezenove, no interior da Rússia. É dia de São Brás, sempre um dos dias mais frios do ano. Esta é a casa onde vivem Simonov e sua mulher Mariuska. CENA 2 - CABANA - INTERIOR - DIA Uma casa de madeira, uma única peça onde camas, fogão e panelas dividem o pouco espaço com os instrumentos de uma oficina de sapateiro. SIMONOV trabalha numa peça de couro. MARIUSKA (Regina) prepara uma mamadeira. Num berço, uma criança chora. REGINA (OFF) Eles tem um filho de cinco anos e um bebê de poucos meses. Simonov e Mariuska são muito pobres, não tem terras, moram numa casa alugada. Simonov é sapateiro e assim alimenta sua família. Mas o pão é caro, o trabalho mal pago e eles comem o pouco que ganham. Maria senta-se ao lado do berço e alcança a mamadeira ao bebê. Ele pára de chorar e mama. MARIUSKA O leite terminou. Só tem para o bebê. Legenda:???????????????????.?????????????????????? ?? SIMONOV Eu não estou com fome. Legenda:??????????? MARIUSKA Precisamos de leite. E também de farinha, o pão está quase no fim, sobrou só uma micha. O bebê precisa de um cobertor. Está muito frio. Simonov larga o pedaço de couro e as ferramentas, levanta-se. Pega um casaco. SIMONOV Eu vou até a cidade. MARIUSKA Só temos dinheiro para o leite. SIMONOV Uns camponeses na dasha me devem trinta rublos. Cobrarei o dinheiro e terei o suficiente para o leite, a farinha e o cobertor. MARIUSKA Se eu não cozinhar o pão hoje a farinha dura até sexta. Coma alguma coisa na cidade. SIMONOV E você? MARIUSKA Eu não estou com fome. Simonov abre a porta. O vento e a neve invadem a sala. Ele sai e fecha a porta. CENA 3 þ CABANA þ EXTERIOR, DIA Mariuska chega a porta. MARIUSKA Não demore! Sem o casaco eu não posso sair. SIMONOV Eu não demoro. MARIUSKA Não deixe a mulher te enganar. Trinta rublos é um bom dinheiro. Se der, traga algumas batatas. SIMONOV Eu trago. CENA 4 - FRENTE DA CABANA - EXTERIOR, DIA Simão sai de casa. Entra título: "As Três Palavras Divinas" de Leon Tolstoi. Câmera corrige para a janela da casa. REGINA (com o livro na mão) "As Três Palavras Divinas" é uma lenda inspirada na vida de Santo André. Logo depois da morte do Cristo os apóstolos se espalharam pelo mundo para pregar os seus ensinamentos. Imagens que ilustram sua apresentação: cenas de filmes, quadros, gravuras. REGINA (OFF) Coube a Santo André a parte do mundo que correspondia a Rússia. A cruz usada pela igreja russa até hoje é diferente e é chamada cruz de Santo André. As "Três Palavras Divinas" do título são uma súmula, um resumo da doutrina cristã. A lenda era muito popular no século dezenove, quando o escritor Leon Tolstoi retomou esta história. CENA 5 þ ARQUIVO Imagens de camponeses no filme "Linha Geral". Imagens religiosas no filme "Ivan o Terrível Lettering: filme do cineasta russo Sergei Einsenstein. REGINA (OFF) Nessa época a Rússia ainda era um império e seus personagens são os camponeses muito pobres do interior do país. Muito pobres e muito religiosos, como a maioria do povo russo nesta época. Corta para imagens religiosas do filme "Deus e o Diabo". Lettering: filme do cineasta brasileiro Glauber Rocha. REGINA (OFF) Uma situação muito parecida com a dos camponeses brasileiros de hoje, que também são pobres e religiosos... CENA 6 þ CABANA þ EXTERIOR, DIA Regina se aproxima da máquina de neve. A máquina pára. REGINA ... e por isso a gente adaptou a história para o Brasil. Mas além da fé e da fome, o frio também tem um papel importante nesta história: tudo acontece porque Simão vai a cidade para comprar um cobertor. Por isso a gente resolveu filmar no interior do Rio Grande do Sul... CENA 7 - ARQUIVO Imagens de gente do interior do Rio Grande do Sul rezando na igreja, em procissões (de preferência com roupas de frio). REGINA (OFF) ... onde, no inverno, a temperatura chega abaixo de zero e os camponeses, como em todo Brasil, também são pobres e religiosos. CENA 8 þ DOCUMENTÁRIO Pequenas falas sobre fé em Deus, com Regina entrevistando os moradores da região. CENA 9 þ CABANA þ EXT/DIA Regina na janela da cabana. REGINA (com o roteiro na mão) Na nossa história "As Três Palavras Divinas" é uma lenda brasileira da época da chegada do cristianismo no Brasil. CENA 10 - ARQUIVO Imagens que ilustram sua apresentação: cenas de filmes, quadros, gravuras. REGINA (OFF) Logo depois do descobrimento os missionários jesuítas vieram para a América pregar a fé católica. Miguel, o anjo que está no centro da história, é inspirado nestes missionários e por isso ele vai ser encontrado junto das ruínas da Igreja de São Miguel, uma das mais antigas do Brasil. CENA 11 - FRENTE DA CABANA Vila no interior do RGS. Simão sai novamente de casa, entra título novamente: "As Três Palavras Divinas" adaptado da obra de Leon Tolstoi. REGINA (OFF) Estamos no século vinte e um, no interior do Rio Grande do Sul. Nossos personagens chamam-se agora Simão e Maria. É dia de São João, sempre um dos dias mais frios do ano. CENA 12 - ESTRADA - EXTERIOR, DIA Imagem de Simão andando na neve funde pra ele no mesmo registro, com um figurino atual, caminhando numa paisagem do amanhecer no Rio Grande do Sul. Créditos. REGINA (OFF) Com o pouco dinheiro que tem, Simão não pode comprar farinha, leite, as batatas e o cobertor. Talvez o mais importante seja comprar a farinha, o leite e as batatas, para que tivessem o que comer. O cobertor também é importante, está muito frio. E o bebê chorou muito à noite, precisa de um cobertor. Isso tudo, claro, se ele conseguir receber o dinheiro. CENA 13 - ESTRADA - EXTERIOR, DIA Simão caminha pela estrada, se aproxima de um povoado. CENA 14 - CASA DE CARMEM - EXTERIOR/DIA Simão bate palmas na frente de uma casa. REGINA (OFF) Agora que a história passou para o interior gaúcho, a gente vai ter que aprender o sotaque e o jeito de falar do pessoal daqui. CENA 15 - SALA DE ENSAIOS Regina e Fulano, o ator que faz Simão, com moradores da região. Conversam sobre o sotaque, Regina passa as falas e adapta ao vocabulário local. REGINA Nas próximas cenas Simão, que é o personagem de Fulano, encontra vários moradores da cidade para tentar receber o dinheiro que lhe devem. O Simão é um sapateiro, bastante pobre. Na cena que vocês vão fazer ele está tentando receber um dinheiro, por um serviço que fez. Vocês sabem que devem o dinheiro, mas também não tem para pagar. Ele vai tentar receber, vocês tem que explicar que não podem pagar. (pergunta a um figurante) Como é seu nome? CARMEM Carmem. CENA 16 - CASA DE CARMEM - EXTERIOR/DIA Simão bate palmas na frente de uma casa. SIMÃO Dona Carmem! Uma mulher abre a janela. SIMÃO Bom dia. Dona Carmem, eu estou precisando do dinheiro da mala que eu lhe fiz. CARMEM Desculpe, Simão, mas eu não tenho dinheiro. Meu marido ficou doente, tive que comprar muitos remédios. SIMÃO Eu preciso comprar leite para o bebê. Outros figurantes na janela. Regina interfere, dirige os figurantes, muda a intenção das falas: envergonhado, irritado, triste... Perguntas sobre expressões típicas para se dizer que está sem dinheiro. Pede para incluí-las no texto. Pede para inventar desculpas para não pagar. JOSÉ Desculpe, mas eu não tenho dinheiro. PEDRO Estou latindo para economizar cachorro FRANCISCO A geada este ano acabou com a minha plantação, não colhi nada. MARCOS Estou mais apertado que São Jorge na lua minguante. LUIS Meu dinheiro anda mais curto que coice de preá. SILVIA A pensão do meu marido foi toda para pagar o aluguel. JOANA Posso lhe dar um pouco de leite. SIMÃO Está bem. Obrigado. Joana entra na casa. Simão esfrega as mãos para se esquentar um pouco. A mulher volta com uma garrafa de leite. Joana entrega o leite a Simão. JOANA Desculpa, é só o que eu tenho. Ricardo entrega o leite a Simão. RICARDO Desculpa, é só o que eu tenho. Carmem entrega o leite a Simão. CARMEM Desculpa, é só o que eu tenho. Simão pega o leite. SIMÃO Obrigado. Simão pega o leite e sai, caminha para o povoado. CENA 17 - ARMAZÉM - EXTERIOR, DIA Simão, com a garrafa de leite, se aproxima de um armazém. Entra. CENA 18 - ARMAZÉM - INTERIOR/DIA Regina entra num armazém. Um DONO DO ARMAZÉM está no balcão. REGINA Bom dia. Como é seu nome? DONO DO ARMAZÉM ... Regina entrevista o Homem, pergunta o que servem ali, o que é melhor para esquentar, cachaça, vinho ou... Ele vende fiado? Ele sugere que Simão compre a comida ou o cobertor? O que é pior: passar fome ou passar frio? Figurantes também opinam sobre frio e fome. Regina argumenta com o DONO DO ARMAZÉM que Simão é muito pobre, tem um bebê e se, neste caso, ele não venderia fiado. O DONO DO ARMAZÉM argumenta que ali tem muita gente pobre e, se ele for vender fiado, vai ficar pobre também. Regina convida o DONO DO ARMAZÉM a fazer a cena. (As falas da entrevista viram falas do diálogo do DONO DO ARMAZÉM com Simão). CENA 19 - ARMAZÉM - INTERIOR/DIA Simão entra no armazém. DONO DO ARMAZÉM Bom dia, Simão. Como vai a vida? SIMÃO Difícil. DONO DO ARMAZÉM Eu é que sei. SIMÃO Preciso de um cobertor. E de batatas e farinha. E também de um cobertor. DONO DO ARMAZÉM Você tem dinheiro? Simão põe sobre o balcão o pouco dinheiro que tem. DONO DO ARMAZÉM Isso não dá para tudo. (Diálogo baseado nas respostas do Dono do Armazém na entrevista. Simão diz que o bebê precisa de um cobertor, etc.) DONO DO ARMAZÉM Pode levar o cobertor. Ou a farinha e as batatas. SIMÃO Acho que vou levar o cobertor. O Dono do Armazém pega o dinheiro e entrega um cobertor para Simão. Põe um copo sobre a mesa e serve um pouco de cachaça. SIMÃO Não tenho dinheiro para isso. DONO DO ARMAZÉM É por conta da casa, só para esquentar. Simão pega o copo, toma de um gole. SIMÃO Se era para esquentar, põe mais um que eu ainda estou com frio. O Dono serve mais um. CENA 20 - ESTRADA - EXTERIOR/DIA REGINA Qualquer um que acha que é ator faz cena de bêbado, por isso fazer cena de bêbado é sempre um problema. Bêbado é chato e cena de bêbado tende a ser chata também. Por outro lado, cena de bêbado é muito útil. É que nem novela: o personagem pode falar sozinho que todo mundo acha normal. Simão caminha pela estrada, num passo vacilante de bêbado. SIMÃO (canta) São João, São João, acende a fogueira, do meu coração... São João está dormindo, não acoooorda não... Acordai, acordai... Simão passa pela frente das Ruínas de São Miguel. Fogos estouram ao longe. SIMÃO Viva São João!! (canta) Cai, cai, balão, cai, cai, balão, aqui, na minha mão... Que balão, o quê, eu queria mesmo era o meu dinheiro... (canta) Aqui na minha mão... Não cai não, não cai não... Cai só a mão dos outros... (revoltado) Ninguém me paga! (imitando) "Desculpa, é só o que eu tenho"... "Desculpa, é só o que eu tenho"... E eu, tenho o quê!? Só tenho desculpas, mais nada. Eu não tenho nada... Nada! Posso morrer de fome, de frio... Eu passando frio e esse monte de gente fazendo fogueira para São João. São João não está nem aí! (Vê Miguel) Que é isso?!... Simão vê, na porta da igreja, um HOMEM (20) nu, deitado no chão. Não vemos o seu rosto. SIMÃO Que será aquilo? Ali não tinha nenhuma pedra branca. Será uma vaca? Uma vaca morta? Não! Não parece vaca. Parece um homem. Um homem morto! (assustado) Devem ter matado e jogado o corpo aí... Simão se afasta assustado. SIMÃO Melhor não passar nem perto, vou arrumar complicação. O Homem se move. SIMÃO Não, espera aí. (pára) A la, pucha, o bicho não tá morto.. Tá se mexendo... Se mataram, deixaram o serviço pela metade... Simão se afasta. SIMÃO Quase morto é pior que vivo, mais complicação ainda... (pára) Tenha vergonha, sujeito! O homem está morrendo e você foge com medo? Simão dá meia volta em direção ao homem. Pára, observa de longe. SIMÃO Deve ser um ladrão, vai querer me roubar... (se afasta, pára) Roubar o quê? Você é rico, por acaso, pra alguém querer lhe roubar? Simão se aproxima do Homem, observa-o de perto. Regina entra em quadro. REGINA (Lendo) Simão chegou perto, curvou-se para o moço que subitamente se reanimou, virou a cabeça e olhou bem para ele. Desde que Simão viu esse olhar, começou a amar o moço. (Olha pra câmera) Simão ainda não sabe, mas esse moço que ele encontrou é na verdade um anjo. (Mostra o livro) Tolstoi descreve várias vezes a impressão que o olhar deste anjo causa nos homens. (volta a ler) "Simão lembra-se do olhar que o moço lhe dirigiu perto da igreja". Imagens de vários anjos missioneiros, esculturas e pinturas. REGINA (OFF) Seu coração transborda de alegria""... "Maria olhou de novo para o moço e seu coração derreteu". Regina ao lado de Simão, que observa Miguel (fora de quadro). REGINA (Para a câmera) Como é que se escolhe um ator para representar um anjo? CENA 21 - DOCUMENTÁRIO Povo fala "quem você acha que tem cara de anjo? Matéria sobre "anjos". Cara de anjo, olhar angelical. Existe cara de gente boa e cara de gente má? CENA 22 - MOSTEIRO Regina está num mosteiro. Ao fundo coral de monges ou algo assim. REGINA O anjo da nossa história foi inspirado nos primeiros missionáriosque vieram ao Brasil, monges da ordem dos jesuítas... Por isso eu vim aqui no mosteiro de... em... para ver se eles tem cara de anjo. (Podemos não precisar a ordem para ter monges de várias delas). Regina conversa com jovens monges sobre a fé e a vocação pra ser monge. REGINA Tolstoi escreveu "As Três Palavras divinas" inspirado em trechos do evangelho de São João. "Quando amamos nossos irmãos conhecemos que passamos da morte para a vida. (João, 3:14) Ora, se aquele que possui os bens deste mundo, e vendo seu irmão na necessidade, lhe fechar as entranhas, como é que o amor de Deus permanecerá nele? " (João, 3:17) Regina pergunta aos monges mais jovens se já fizeram teatro, se aceitam fazer um teste. CENA 23 þ SALA DE TESTES Vários candidatos ao papel de Miguel: loiros, morenos, índios, negros... REGINA Tolstoi diz que Miguel, o anjo, "tem longos cabelos cacheados". Porque anjo nunca tem cabelo liso? Regina escolhe alguns candidatos loiros, olhos azuis, cabelos cacheados. REGINA Vocês tem cara de anjo de Rafael: loiro, olho claro, cabelo cacheado... Imagens de anjos renascentistas intercaladas com imagens dos candidatos. (PESQUISA) REGINA Anjo é sempre um pouco parecido com quem faz o anjo. Anjo europeu é loiro e de olho azul. Imagens de anjos de Aleijadinho e do barroco mineiro (PESQUISA), caras abrasileiradas, intercaladas com imagens dos candidatos. REGINA Os anjos do Aleijadinho tem mais cara de brasileiro. Imagem de um anjo mulato, pintada numa igreja da Bahia. Regina escolhe uns candidatos negros. REGINA Na Bahia, é claro, tinha que ter pelo menos um anjo negro. Anjo pode ser negro, por que não? Imagens dos anjos missioneiros (PESQUISA), cara de índio. REGINA Alguns anjos das missões jesuíticas, que eram feitos pelos índios, tem cara de índio. Regina escolhe um anjo com cara de índio. REGINA Resumindo: anjo pode ter qualquer cara, só precisa ser jovem e bonito, nunca vi anjo velho, feio e barrigudo. Não pode ter barba nem bigode, anjo de bigode não existe. E para fazer papel de anjo, o mais importante é interpretar bem. CENA 24 þ SALA DE TESTES Regina fala aos candidatos. REGINA Eu vou fazer um teste de ator com vocês para o papel do anjo. Vocês vão dizer esse texto onde o Miguel, que é o nome do anjo, explica como desobedeceu a Deus e veio parar aqui na terra. O trecho a seguir é dito por vários dos candidatos e montado na seqüência. (pode usar todo o trecho do original e depois montar) CANDIDATOS AO PAPEL DE MIGUEL Eu desobedeci a Deus e por isso fui castigado. Deus me mandou buscar uma alma, a alma de uma mulher. Desci à terra e vi, numa casa muito pobre, uma velha senhora, muito doente. Ao seu lado, num berço, havia um menino. Ela chorou muito, me pediu que não a levasse. Ela era a mãe do menino, que não tinha mais ninguém. Se ela partisse, quem cuidaria do menino? Ele iria morrer, sem dúvida. Eu fiquei com pena, deixei a alma da velha mulher e voltei ao céu. Deus então me disse: "Tu voltarás à terra e aprenderás as três palavras divinas: o que existe nos homens, o que não sabem os homens e o que faz viver os homens. Quando tiveres aprendido, tu voltarás ao céu". Um turbilhão me arrastou, minhas asas tornaram-se pesadas e se soltaram, e eu fiquei caído na terra. A partir daqui, a fala é dada só pelo candidato escolhido. MIGUEL Eu estava só e nu, não conhecia ainda as misérias humanas; nem o frio nem a fome. Tornei-me um homem. Senti frio e tive fome e não soube o que fazer. Sentei-me então na soleira da porta daquela igreja, para me abrigar do vento. Sentia fome e frio; sofria. Foi quando tu me encontrastes. CENA 25 - FRENTE DA IGREJA Pode-se comentar e discutir como mostrar um anjo nu sem mostrar o principal (ângulos de câmera etc). O mesmo problema foi enfrentado pelos pintores renascentistas, que cobriam o sexo com folhas de árvores ou pintavam corpos sempre em posições que lhe cobrissem as vergonhas. (PESQUISA) CENA 26 - FRENTE DA IGREJA Simão se abaixa perto de Miguel, levanta seu rosto e agora vemos o rosto do anjo (ator escolhido). Ele tem o olhar doce e Simão olha-o encantado. SIMÃO Quem tu é? O Homem não diz nada. SIMÃO Não sabe falar? Simão tira o cobertor e põe sobre as costas do homem. SIMÃO Chega de conversa. Vamos. Tu vai morrer se ficar aqui. De onde tu é? HOMEM Não sou daqui. SIMÃO Aconteceu alguma coisa? HOMEM Não posso dizer. SIMÃO Alguém te fez mal? HOMEM Não, ninguém me fez mal. Deus me castigou. SIMÃO E para onde tu vai? HOMEM Para qualquer lugar. SIMÃO Se ficar aqui, tu vai morrer, tá um frio de renguear cusco. O Homem se levanta. SIMÃO Venha comigo. Ainda tenho um pouco de lenha em casa. Vamos. Simão e o Homem caminham pela estrada. CENA 27 - CASA DE SIMÃO - INTERIOR/NOITE Simão entra em casa com o Homem. SIMÃO Cheguei. Trouxe o leite. Simão aponta pra o Homem. SIMÃO E comprei um cobertor. Maria olha para o Homem. MARIA Parece que o cobertor era usado, veio com alguém dentro. SIMÃO É um amigo. Maria se aproxima de Simão. MARIA Tu bebeu? SIMÃO Só um gole. MARIA Recebeu o dinheiro? SIMÃO Não. O marido de dona Carmem ficou doente. Tem alguma coisa para comer? MARIA (furiosa) Para ti, não. E muito menos para esse aí. Tu não recebeu o dinheiro, não trouxe lenha nem pão nem batatas, encheu a cara de cachaça e ainda me aparece com mais um vagabundo? SIMÃO Tu não quer nem mesmo saber quem é este homem? MARIA Tá bom! Quem é? Pausa. SIMÃO Não sei. MARIA Deve ser um bêbado. Se fosse um homem honesto, não estaria nu. SIMÃO Eu achei ele assim, perto da igreja. Disse que foi castigado por Deus. Pensei que era louco, mas logo vi que não. Tu acha que eu podia deixar ele assim, no frio? Maria olha para Miguel. REGINA (OFF) Maria, pela primeira vez, viu o olhar do homem. E viu que era um olhar doce e puro. MARIA Tem um pouco de sopa. E é melhor ele vestir alguma coisa. CENA 28 - CASA DE SIMÃO - INTERIOR/NOITE Maria pega algumas roupas e empresta ao Homem. Serve dois pratos de sopa. SIMÃO Como é o teu nome? HOMEM Miguel. Simão está mexendo na fogueira, o fogo cresce e ilumina mais forte o rosto de Miguel que sorri pela primeira vez. O filho de Simão olha para Miguel, um pouco desconfiado. REGINA (OFF) "Miguel" significa "Quem como Deus? ". São Miguel é o defensor do povo no tempo de angústia. É o padroeiro da igreja universal e aquele que acompanha as almas dos mortos até o céu. Miguel pega uma folha de jornal, uma tesoura, e começa a recortar. Abre o recorte que forma várias bandeirinhas. O menino sorri. CENA 29 - INTERIOR DA IGREJA Regina sai de quadro, um facho de luz rasga o céu e vemos o anjo ajoelhado no chão da Igreja. REGINA Na noite de São João, sua primeira noite entre os homens, Miguel ficou conhecendo a primeira das Três Palavras Divinas. Ele levanta, entra nas ruínas, olha pra cima e vê as estrelas pelo teto destruído. REGINA (OFF) Miguel estava só e nu. Viu uma Igreja consagrada ao Senhor e quis se abrigar por ali mas ela estava em ruínas. Encostou-se nas paredes tentando se defender do vento. Ele nunca havia conhecido as misérias humanas, nem o frio nem a fome. Miguel olha, Simão vem meio bêbado pela estrada, a mesma cena que já vimos mas agora no ponto de vista de Miguel. O rosto de Simão, bêbado e praguejando, parece terrível. (não ouvimos o que Simão diz). Simão faz as mesmas ações da cena anterior: maldizendo a vida, passa com medo por Miguel, hesita e volta. Detalhes que denotam sua enorme inquietação: morde a boca, torce a mão, franze os olhos, etc. REGINA (OFF) De repente ele vê pela primeira um rosto mortal desde que ele mesmo tinha se tornado homem. O rosto desse homem era terrível, e Miguel teve medo. Simão volta até Miguel e olha-o docemente, cobre-o com o cobertor e o ajuda a levantar. REGINA E de repente Miguel olha para o homem e não o reconhece mais. A morte que estava no rosto dele tinha desaparecido. Ele se tornara vivo, a imagem de Deus estava no sou rosto. CENA 30 þ CASA DE SIMÃO þ INT/NOITE Simão e Miguel chegam em casa, vemos as reações de Maria no ponto de vista de Miguel. REGINA (OFF) A mulher era ainda mais terrível do que o marido, o hálito da morte saía de sua boca. Mas seu marido lhe falou de Deus e ela se transformou, a morta voltou a ficar viva e Miguel reconheceu Deus no rosto dela. Aí Miguel se lembrou da primeira palavra de Deus: o que existe nos homens. E entendeu que o que existe nos homens é a compaixão. E sorriu pela primeira vez. Miguel abre o recorte que forma várias bandeirinhas. O menino sorri. Miguel sorri, iluminado pela fogueira. Recebendo o prato de sopa. As bandeirinhas junto ao fogo dão à cena um clima de festa de São João. Eles comem em silêncio. REGINA (OFF) Eles tomaram sopa e foram dormir. Simão e Maria deram o cobertor novo para Miguel e puseram o bebê em sua cama, para que ele não sentisse tanto frio naquela noite. CENA 31 - CASA DE SIMÃO - EXTERIOR/DIA Dia de sol. O filho de Simão brinca com o bebê. REGINA (OFF) E Miguel ficou morando na casa de Simão. CENA 32 - CASA DE SIMÃO - INTERIOR/DIA Simão e Miguel trabalham, Simão faz um sapato. REGINA (OFF) Miguel era muito hábil com o couro. Sabia costurar e cortar como se fosse um mestre sapateiro. E logo Simão vendeu um par de sapatos, uma mala e uma bolsa para um comerciante. E compraram leite, pão, batatas, e muita lenha. E a irmã do comerciante viu a mala e quis uma igual. E também um bolsa. E ela pagou adiantado. Simão comprou carne para a sopa e roupas novas para o bebê. A fama de Simão como sapateiro se espalhou pela região e ele recebeu muitas encomendas. CENA 33 þ SALA DE ENSAIOS REGINA É nesta hora que chega o vilão. CENA 34 þ ARQUIVO Imagens da primeira aparição do vilão em vários filmes. (PESQUISA) REGINA (OFF) Como é a cara do vilão? Muitos atores ficaram famosos por fazer papel de bandido. Para fazer o vilão, o ator tem que ter uma cara forte, um olhar duro e penetrante. E tem que entrar em cena de um jeito que todo mundo perceba que ele não é de brincadeira. CENA 35 þ CASA DE SIMÃO þ INT/DIA A porta se abre violentamente. Botas de couro entram na casa. A câmera sobe e revela o rosto do Coronel. CORONEL Quem é o mestre sapateiro? SIMÃO Sou eu, senhor. CORONEL (gritando) Sebastião! Traga o couro. SEBASTIÃO, um empregado do Coronel entra, carregando um pacote. Abre o pacote, mostra uma peça de couro. CORONEL Conhece este couro? Simão examina o couro. SIMÃO Sim, senhor. É couro muito bom. CORONEL Claro que é bom, seu imbecil! Mandei trazer da Argentina, é couro da melhor qualidade. Vale uma fortuna. Pode fazer uma bota? SIMÃO Claro que sim, senhor. Que tipo de bota? CORONEL Uma bota de montaria. SIMÃO Sim senhor. CORONEL Mas preste muita atenção: quero uma bota perfeita, cano alto, com um fecho, impermeável, forrada de seda, com sola revestida com borracha. Quero um par de botas que durem pelo menos dois anos sem gastar nem perder a forma. Pode fazer em quinze dias? Simão olha para Miguel, ele parece muito triste, chorando. SIMÃO (para Miguel) O que foi? Acha que não devo aceitar? MIGUEL Aceite. SIMÃO (ao Coronel) Está certo. Em quinze dias. CORONEL Quinze dias sem falta, hein? E se você estragar este couro, mando lhe botar na cadeia. O Coronel sai, batendo a porta. SIMÃO (para Miguel) Você pode fazer o serviço em quinze dias? Miguel tem a cabeça baixa. MIGUEL Posso. Simão estranha mas volta a trabalhar. Miguel chora. CENA 36 - CASA DE SIMÃO - INTERIOR/DIA Simão está terminando de costurar uma bolsa. REGINA (OFF) Quinze dias se passaram. Simão tinha muitas encomendas e deixou que Miguel cuidasse das botas do Coronel. SIMÃO Miguel, hoje é dia de entregar as botas do coronel. O trabalho está pronto? MIGUEL Está. Miguel afasta algumas tábuas e mostra o trabalho que fez: um par de sapatos pretos. Simão fica apavorado. SIMÃO Miguel! Que foi que tu fez? Sapatos? MARIA Com o couro do Coronel! E agora? SIMÃO Maria, é melhor você ir até lá. MARIA Eu? Por que eu? SIMÃO Mulher tem mais jeito para dar notícia ruim. MARIA Quem disse? SIMÃO Meu pai. MARIA Claro, e tua mãe acreditava. SIMÃO Se eu for, ele vai me matar. Diga que eu viajei ou diga que eu morri. Ele há de ter pena de uma viúva. É isso: diga que eu morri e que eu deixei a bota faltando só o cano. MARIA Morreu como? CENA 37 - CASA DO CORONEL þ INT/DIA Maria entra na casa. Um caixão ao fundo onde o coronel está sendo velado. Maria com um embrulho na mão e Sebastião conversam em primeiro plano. MARIA Morreu como? SEBASTIÃO Morrendo, ora, o que é que adianta saber de que? MARIA Tem razão. A morte é maior do que qualquer explicação. (pegando o pacote) SEBASTIÃO A senhora trouxe as botas, não é? MARIA Pois é... Mas ele... SEBASTIÃO (Vai levando as botas) A viúva diz que foi o último desejo do marido. A cena é interrompida pelo ator que faz o coronel e que se levanta do caixão. ATOR Desculpa gente, não está dando. Regina vem pra frente. REGINA Ressuscitou, Sicrano? O ator explica que tem a maior agonia de fazer papel de morto, é uma espécie de fobia. CENA 38 þ DEPOIMENTOS Inserts de outros atores falando disso. (PESQUISA) CENA 39 þ CASA DO CORONEL þ INT/DIA Regina procura alguém pra ficar no lugar do ator. Pergunta se as pessoas ali teriam problema com isso. Encontra alguém parecido: você sabe fazer papel de morto? CENA 40 þ CASA DO CORONEL þ INT/DIA O dublê do coronel no caixão. A viúva está acabando de abrir o embrulho com os sapatos dentro. Sebastião ao seu lado, confuso. VIÚVA Que sapato é esse? (Dirigindo-se a Maria) Meu marido tinha encomendado um par de botas. MARIA Eu sei, dona Edviges, mas é que quando o meu marido ficou sabendo do passamento do Coronel resolveu desfazer a bota e fazer um sapato. Foi um serviço dobrado, mas ele fez com gosto para lhe fazer um agrado nessa hora difícil. Não ia ficar bem vocês enterrarem o coronel de botas. VIÚVA A senhora tem toda razão. Sebastião, veja uma gratificação para o sapateiro. CENA 41 þ CASA DE SIMÃO Close de Miguel olhando o coronel encomendando as botas. REGINA (OFF) Miguel teve a revelação da segunda palavra divina quando olhou para o coronel naquele dia em que ele veio encomendar suas botas. No ponto de vista de Miguel uma sombra (ou algo assim) está por trás do coronel. REGINA (OFF) Por trás dele Miguel reconheceu o Anjo da Morte e soube que o tempo dele entre os homens estava terminando. CORONEL Quero um par de botas que durem pelo menos dois anos sem gastar nem perder a forma. Pode fazer em quinze dias? REGINA (OFF) Aquele homem queria botas que durassem dois anos e não sabe que pode morrer em poucos dias. Miguel se lembrou da segunda palavra de Deus: o que não sabem os homens. Eles não sabem o futuro, não conhecem o destino de sua vida na terra. E chorou por eles. Miguel chora. CENA 42 þ CASA DE SIMÃO þ EXT/DIA Miguel trabalhando. REGINA (OFF) Mas ainda faltava conhecer a terceira e última palavra. Um Casal se aproxima com um Menino de 5 anos. O Menino está muito alegre, brinca com uma bola e se aproxima de Maria e da Criança para brincar. PAI Bom dia para todos. SIMÃO Bom dia. PAI O senhor faz botas para crianças? SIMÃO Faço, claro. MENINO Eu quero uma bota preta! Com esporas! MÃE Pode ser preta, mas nada de esporas. E o senhor também sabe fazer selas? SIMÃO Para o menino? MENINO Eu vou ganhar um cavalo! SIMÃO Miguel, você sabe fazer selas? Simão olha para Miguel e vê que seu olhar está transformado, iluminado. Miguel tem os olhos fixos no Menino. SIMÃO O que houve, Miguel? Está passando bem? MIGUEL Sim. Eu sei fazer selas. PAI Ótimo. Quanto tempo precisam? SIMÃO Um mês está bem? MÃE Está bem, é um presente de aniversário. MARIA Seu filho é muito bonito. MÃE Ele é a nossa maior felicidade. Eu nunca pude ter filhos e pedi a Deus que me mandasse uma criança. Ele atendeu meu pedido. Nós o encontramos sozinho, quando ainda era um bebê. PAI Qual o preço da sela e das botas? SIMÃO X (pesquisa) reais está bem? PAI Certo. Volto dentro de um mês. Adeus. O Menino parte, correndo, os pais o seguem. Miguel entra na casa. MARIA O que houve com ele? SIMÃO Não sei, nunca vi ele assim. CENA 43 þ CASA DE SIMÃO Miguel sorri olhando a entrada do menino com os pais adotivos. REGINA (OFF) Quando olhou o menino com seus pais adotivos, Miguel reconheceu nele a causa de sua desobediência a Deus, cinco anos antes, quando aquele menino ainda era um bebê. CENA 44 þ CASA DA MULHER DOENTE þ INT/DIA Uma luz (ou sombra) invade o quarto de uma MULHER DOENTE com um bebê ao lado. REGINA (OFF) Por causa dele teve pena da mulher de quem deveria levar a alma. MULHER (Pra câmera) Anjo de Deus, meu marido morreu há trinta dias. Não tenho parente nenhum que possa cuidar do meu filho. Não leve a minha pobre alma! Deixe eu criar esse menino mais um pouco. Pelo menos até ele andar. Sem pai nem mãe, pequenininho desse jeito, ele vai terminar morrendo. Como é que uma criança vai viver sem pai nem mãe? A sombra vai desaparecendo. REGINA (OFF) Com pena da mulher o anjo voa até o céu e se apresenta diante de Deus. CENA 45 þ SALA DE ENSAIO REGINA (Pra câmera) Uma frase como essa: (lê) "o anjo voa até o céu e se apresenta diante de Deus... " (pra câmera) e que dura cinco segundos para ser lida pode levar a loucura a equipe de produção de um roteiro. (Sublinha no roteiro) "o anjo"... CENA 46 þ SALA DE PRODUÇÃO Takes da asas sendo feitas, o ator experimentando figurino, as asas sendo fixadas, etc. REGINA (OFF) Primeiro a gente vai ter que transformar Miguel num anjo de verdade, que até agora ele só apareceu com um figurino básico de homem. Por fim o anjo pronto. REGINA (Sublinha no roteiro)... "o anjo voa até o céu" CENA 47 þ ESTÚDIO Miguel já de anjo num estúdio testando o mecanismo das asas, sendo amarrado e pendurado num cabo de aço contra o croma onde vemos ser inserido um belo céu até vermos o efeito finalizado dele voando. CENA 48 þ SALA DE PRODUÇÃO Regina lendo. REGINA (Sublinha no roteiro)... "e se apresenta diante de Deus". (olha pra câmera) Deus! Alguém tem idéia de como pode ser Deus? CENA 49 - DOCUMENTÁRIO Povo fala: como é Deus? CENA 50 þ ARQUIVO (PESQUISA) Pesquisa sobre as diversas representações de Deus (na pintura, no cinema). Como e quando começou a representação mais comum do velhinho de barba branca? CENA 51 þ SALA DE PRODUÇÃO Olhando na Bíblia Regina vê que não há a menor alusão (verificar, pesquisa) sobre a aparência de Deus. REGINA Quando ele aparece pra Abrahão diz apenas: "eis-me aqui", da maneira mais simples possível, sem descrição nenhuma. "Eis-me" quem? "Aqui" onde? Talvez a melhor maneira de representar Deus seja não representá-lo. E não existe um lugar mais simples, mais perto do que o céu para se falar com Deus? CENA 52 - DOCUMENTÁRIO Povo fala. Onde você vai quando quer falar com Deus. "Na igreja." Música do Gil "Se eu quiser falar com Deus", versão instrumental! CENA 53 þ FRENTE DA IGREJA REGINA Vamos fazer Miguel falar com Deus na Igreja. Mas que Igreja? A Igreja de São Miguel, claro, que é a Igreja da nossa história. Mas como ela está em ruínas vamos reconstituir a imagem dela no computador. CENA 54 þ ESTÚDIO / COMPUTAÇÃO Na computação, o interior da Igreja em ruínas sendo reconstituído. (A computação já existe, foi feita pela Unissinos). Miguel, de anjo, entra na Igreja (virtual) de São Miguel. Ajoelha-se. MIGUEL Senhor, eu não tive coragem de lhe trazer a alma daquela mulher. O pai morreu há três dias e sem a mãe o menino não vai sobreviver. O raio de luz cai sobre Miguel que perde as roupas e cai na posição e lugar que já vimos lá em cima no momento em que chegou a terra. A igreja agora está em ruínas. REGINA (OFF) O Senhor ordenou que outro anjo trouxesse a alma da mulher e mandou Miguel de volta a terra para que ele conhecesse as Três Palavras Divinas. Simão, bêbado, entra em quadro ao fundo, numa repetição da cena que já vimos. REGINA (OFF) A primeira palavra divina, "o que existe nos homens é a compaixão", ele aprendeu naquela mesma noite quando conheceu Simão. CENA 55 þ FLASH BACK O coronel encomendando a bota. Simão olha pra ele. REGINA (OFF) A segunda palavra, "o que não sabem os homens" ele aprendeu quando previu a morte do coronel. CENA 56 - FLASH BACK Menino brincando com a bola. REGINA (OFF) E foi através daquele menino que ele aprendeu a terceira e última palavra: o que faz viver os homens. CENA 57 - CASA DA MULHER þ INT/DIA O bebê chora ao lado da mãe desfalecida. O casal que o adotou constata a morte da mãe e pega o bebê no colo. REGINA (OFF) Miguel pensava que, sem os parentes, a criança ia morrer. CENA 58 þ CASA DE SIMÃO þ EXT/DIA Os pais adotivos e o menino pegando o sapato e a sela. REGINA (OFF) Mas um casal adotou e alimentou o bebê. CENA 59 þ RUÍNAS þ EXT/DIA Simão com suas roupas de sapateiro entra nas ruínas de São Miguel e se transforma no anjo de asas. REGINA (OFF) E Miguel compreendeu neste instante que Deus o perdoava por ter desobedecido. Ele tinha lhe revelado a terceira palavra divina. A imagem de Simão de anjo congela e se transforma num quadro do século XVII: uma imagem de um anjo sobre a igreja de São Miguel. (PESQUISA) CENA 60 - MUSEU DAS MISSÕES Regina caminho até o quadro na parede, com a imagem do Anjo. REGINA Os homens não vivem porque se bastam a eles mesmos. O que faz viver os homens é o amor. Câmera fecha no quadro. O anjo do quadro bate asas e sai voando pelo céu da pintura. Créditos. FIM (c) Jorge Furtado e Guel Arraes Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br