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Da impossibilidade teológica da transferência de renda

As correntes de e-mails, com toda a perda de tempo que acarretam, e com toda a quantidade de bobagens que terminam nos obrigando a ler, não deixam de ser um termômetro do que uma parcela da população está pensando, ou sentindo, ou querendo. Por exemplo: que Luis Fernando Verissimo, Chico Buarque e Gabriel Garcia Marquez deveriam parar de fazer o que fazem e começar a escrever textos de auto-ajuda. Ou que repassar um e-mail qualquer para 200 pessoas evita o desmatamento da Amazônia, ou ajuda um pai a encontrar um filho desaparecido, ou faz com que a Microsoft te pague um salário pelo serviço.

A última que eu recebi é do tipo "filosófico-social, com implicações históricas". Um texto supostamente escrito em 1931 e que teria, veja só, surpreendentes revelações sobre a situação brasileira atual:

"É impossível levar o pobre à prosperidade através de legislações que punem os ricos pela prosperidade. Por cada pessoa que recebe sem trabalhar, outra pessoa deve trabalhar sem receber. O governo não pode dar para alguém aquilo que tira de outro alguém. Quando metade da população entende a ideia de que não precisa trabalhar, pois a outra metade da população irá sustentá-la, e quando esta outra metade entende que não vale mais a pena trabalhar para sustentar a primeira metade, então chegamos ao começo do fim de uma nação. É impossível multiplicar riqueza dividindo-a."
(Adrian Rogers, 1931)

A mensagem não informa, mas é fácil descobrir no Google (e daria pra desconfiar) que Adrian Rogers foi um pastor do sul dos EUA (Memphis, Tennessee), conservador e fundamentalista. Segundo a Wikipédia, foi também um dos grandes responsáveis pela guinada à direita da Igreja Batista nos anos 1970. Ao longo de sua carreira, Rogers ficou conhecido por suas pregações contra o direito ao aborto, a favor da pena de morte, contra a paz na Palestina e a favor da escravidão, em conformidade com o texto bíblico.

Não, não é brincadeira, pelo menos não da minha parte. O Senador Demóstenes Torres (DEM/GO) acabou de nos ensinar que a culpa da escravidão é dos próprios escravos. Mas Adrian Rogers teria ido além: não há culpa nenhuma, a não ser dos que condenam a escravidão. Na autobiografia do também pastor batista Cecil Sherman, "By my own reckoning" (Smyth & Helwys Publishing, 2008, p. 189), é relatada uma conversa entre os dois ministros da Igreja sobre a aparente contradição entre a infalibilidade da Bíblia e as várias referências do livro sagrado aos deveres dos escravos. A resposta atribuída a Rogers (da qual eu não encontrei nenhum desmentido) é uma pérola: "Acredito que a escravidão é uma instituição muito caluniada. Se tivéssemos escravidão hoje, não haveria toda essa confusão da previdência social".

("I believe slavery is a much maligned institution; if we had slavery today, we would not have this welfare mess.")

Em 1996, Rogers liderou um boicote nacional dos batistas contra a Walt Disney Productions, acusada de "promover o homossexualismo". Em seus sermões, defendia a participação dos fiéis nas eleições e acusava de pecadores os que se abstinham. Chegou a escrever que "é dever do pastor influenciar as decisões políticas dos membros de sua congregação", mas nunca assumiu explicitamente o apoio a qualquer candidato - até porque, pela legislação dos Estados Unidos, as igrejas que fazem isso perdem o direito à isenção de impostos. Não que o apoio explícito fosse totalmente necessário: o próprio Rogers também escreveu que "se um pastor cumprir o seu papel, seus fiéis saberão piedosa e corretamente interpretar a palavra de Deus para escolher the right candidate" - mantive as três últimas palavras no original para chamar atenção que elas podem igualmente ser traduzidas por "o candidato certo" ou "o candidato da direita".

O texto do e-mail, contendo a "grande sacada" de que "não é possível distribuir renda", na verdade é um trecho de um sermão de 1984 chamado "God’s Way to Health, Wealth and Wisdom". 1931, indicado como data de redação, foi o ano em que o Pastor Rogers nasceu (ele morreu em 2005). Ou seja: embora as ideias sejam medievais, trata-se de um discurso recente, da era Reagan.

Não muito diferente do que Delfim Netto dizia no tempo da "nossa" ditadura: "Antes de dividir o bolo, é preciso fazê-lo crescer". Ou o que, na mesma época, dizia dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo de Diamantina entre 1947 e 1980 e um dos fundadores da TFP:

"Educai os fiéis no amor à ordem desigual que Deus quer. Em lugar de alimentar antipatia à desigualdade, ensinai-os a ter amor à desigualdade. Mostrai que está segundo a ordem da Providência que, dentro de certos limites, haja alguns miseráveis, para os quais se exerça a caridade individual e a organizada; muitos que lutem pelo pão quotidiano; muitos remediados que tenham sobras; alguns ricos que possam exercer em maior escala funções de caridade, de zelo, cultura, arte, progresso e apostolado; e até alguns poucos muitíssimo ricos, aos quais, além das funções de zelo e caridade, toque cultivar as virtudes da magnificência e da munificência. No corpo da sociedade, todas estas escalas de riqueza são úteis e necessárias."
("Carta pastoral sobre a seita comunista", Editora Vera Cruz, São Paulo, 1963, p. 142)

O que Rogers defende por questões econômicas e pragmáticas (distribuir renda gera vagabundos), dom Sigaud justificava pela teologia (Deus não quer e pronto). Até nisso nossos reacionários vão mais fundo que os americanos. Mas o argumento do pastor batista tem uma aparência científica, e jogá-lo pra década de 1930 torna-o ainda mais neutro, distante e, portanto, provavelmente correto.

Em resumo: não acredite em políticas de transferência de renda. Se os indicadores econômicos estão apontando que o governo Lula triplicou o salário mínimo real sem gerar inflação, que 20 milhões de pessoas saíram da linha da pobreza em 5 anos, que está surgindo no país uma nova classe média capaz de consumir, etc. - tudo isso é bobagem. Não é que não tenha acontecido, ou que os números sejam falsos: é que no fim não muda nada, simplesmente porque Deus não quer.

Claro que esse texto de 1931, que na verdade é de 1984 mas que poderia ser de 1963, virou corrente de e-mails em 2010, ano eleitoral. E, no Brasil, ninguém perde a sua isenção de impostos por ter candidato.
 

Pastor Adrian Rogers e Bispo Geraldo Sigaud: viva a desigualdade!

TEM MAIS

Artigo da Wikipédia em inglês sobre Adrian Rogers.

"Brasil cresce com um novo mercado de massa": artigo de Alberto Tamer no Estado de São Paulo (13/02/2010).

Resolução da Southern Baptist Convention (presidida por Adrian Rogers) de boicotar a Disney, em junho de 1996.

 

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