O começo dessa história é bastante conhecido: nos anos 1950, assustado com o popularidade crescente da televisão, o cinema inventou alguns truques pra trazer o público de volta às salas, e o mais importante deles foi a tela larga. Até então, as telas de cinema e televisão tinham tamanhos bem diferentes, mas a mesma proporção 1.33, ou seja, eram retângulos (no caso da TV, um retângulo com as bordas arredondadas) em que a largura era 33% maior que a altura.
A partir dos anos 1950, a TV continuou com a mesma proporção de 1.33, mas os filmes passaram a ser feitos no padrão europeu de 1.66, ou no padrão norte-americano de 1.85 ou ainda no "padrão Cinemascope" (também norte-americano, mas apenas para as grande produções) de 2.35, uma tela em que a largura é mais do que o dobro da altura.
"Luzes da cidade" (1931) foi rodado em proporção 1.33. "Blade runner" (1982) em 2.35. "Fanny e Alexandre" (1982) em 1.66. E "Sem destino" (1969) em 1.85.
Com isso, Hollywood conseguiu trazer parte do seu público de volta, mas criou um problema que terminou se voltando contra ela própria: como o público da TV continuou aumentando, o cinema veio a se tornar cada vez mais dependente da nova mídia, e a grande questão passou a ser: como exibir um filme rodado numa certa proporção dentro de uma tela que tem outra proporção? Ou, em outras palavras: como encaixar um retângulo dentro do outro, se eles têm proporções diferentes?
Se o filme foi rodado em 1.66 (padrão europeu), a diferença não é tão grande assim: apenas 20% da imagem não cabem na tela da TV (proporção 1.33). No caso do padrão norte-americano (1.85), a diferença já chega a 28%. E, para filmes rodados em Cinemascope (2.35), 43% da imagem, quase a metade, não cabe na TV.
Contra a geometria, não existe mágica. Classicamente, a questão tem três respostas possíveis, nenhuma delas perfeita: (1) cropagem - corta-se 20% ou 43% da imagem e reza-se pra que não tenha nada importante acontecendo nos cantos, o que quase nunca dá certo; (2) distorção - aperta-se a imagem no sentido da largura, de maneira que todos os objetos fiquem espichados verticalmente, e que os personagens fiquem todos com a cara do Marco Maciel; (3) barras: simplesmente coloca-se toda a imagem do filme original dentro da tela, em tamanho um pouco menor, e preenche-se o espaço que sobrar com barras pretas, o que os americanos chamam de "letterbox".
Qual é a forma menos pior de encaixar "Blade runner" na tela de TV? Cropando, distorcendo ou colocando barras?
Qualquer pessoa com um mínimo de noção de estética da imagem, ou ao menos com as informações corretas, sabe que a terceira opção (as barras pretas) é a menos ruim das três, pois é a única que preserva a imagem original do filme, ainda que em tamanho menor. Mas, como a televisão nunca se preocupou muito com estética ou informação correta, espalhou-se a lenda de que o público não aceita as tais barras: o espectador-médio-padrão-Homer-Simpson faria sempre o raciocínio do "eu paguei a TV inteira, portanto quero a tela inteira" - sem que ninguém se esforçasse em explicar pra ele que, nesse caso, ele nunca vai ter o filme inteiro.
Na prática, a televisão terminou inventando duas outras formas de encaixar o inencaixável: (4) o "pan & scan", uma tentativa de cropagem seletiva, em que as partes cortadas do filme podem estar ora do lado direito, ora do lado esquerdo, conforme onde está o centro de atenção da imagem em cada momento; e (5) a "mistureba" - um pouquinho de barras, um pouquinho de distorção e o resto de cropagem. Poupem-me de um comentário sobre a eficiência desses métodos.
No início dos anos 1980, quando se começou a discutir o que seria a televisão de alta definição, um engenheiro norte-americano chamado Kerns Powers sugeriu que ela tivesse uma proporção que fosse a média dos padrões já existentes, ou seja, 1.77. Seria uma forma de mostrar a imagem completa de qualquer filme ou programa de TV usando pequenas barras - verticais, para o que foi rodado em 1.33 ou 1.66; ou horizontais, para o que foi feito em 1.85 ou 2.35.
O novo problema é que o 1.77, que foi pensado como uma proporção média, passou a ser um novo padrão.
A programação de TV, ao menos no Brasil, continua sendo transmitida em 1.33 (no caso dos filmes, já cropado da imagem original). Mas os bares e restaurantes, as vitrines de lojas de eletrodomésticos, os dentistas, cabeleireiros e mesmo os lares dos novos consumidores já estão na era do 1.77. E "não pega bem" ter uma TV de tela larga pra mostrar qualquer coisa que seja na velha proporção 1.33, com aquelas barras laterais.
Portanto, é preciso dar um jeito. E o jeito mais fácil que os controles remotos dão é a teclinha "wide screen", que significa "aperte aqui se o programa que você está assistindo tiver sido rodado em 1.77", mas que todo mundo interpreta da forma mais fácil: "aperte aqui e o mundo todo vai se encaixar magicamente na sua nova TV pela qual você pagou tão caro". A imagem 1.33 é espichada 33% pros lados, e ocupa toda a tela 1.77.
Um dos resultados foi que, de repente, o Brasil passou a praticar futebol americano com os pés - as regras continuam as mesmas, mas a bola ficou oval, assim como a lua, o sol, o símbolo da Globo e qualquer outra coisa que um dia tenha sido redonda. O outro resultado foi que todos os atores, apresentadores e demais celebridades televisivas (inclusive os jogadores de futebol) ficaram 33% mais gordos.
E é por isso, na verdade, que os Ronaldos parecem estar tão fora de forma ultimamente.
Aperte na tecla "wide screen" e a tela fica uma maravilha. Mas e a bola? E o peso, a largura dos ombros, o formato do rosto?
TEM MAIS:
Mais sobre proporção de tela (aspect ratio) na Wikipédia em inglês.
A SMPTE, associação de engenheiros de TV dos EUA, reconhece a importância do trabalho do Dr Kerns Powers.
Na verdade, a imagem de uma esfera distorcida horizontalmente não toma a forma oval, mas de um elipsóide.