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OS TRÊS EFES DO PROFESSOR DAMASCENO
roteiro de Carlos Gerbase
versão 3: 17 a 25 de outubro de 2006
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - DOCUMENTÁRIO - CASA DO PROF. DAMASCENO - INTERIOR - DIA
/ TABLE-TOP
1. 1. O próprio Damasceno escrevendo (a mão, ou em máquina de
escrever) em sua casa, num ambiente cheio de livros.
NARRADOR (V.S.)
Segundo o professor Aníbal Damasceno Ferreira, a
humanidade depende de três letras "efe": a fome, a
foda e o fasma.
1. 2. Material de arquivo (fotos, vídeos e trechos de filmes),
além de imagens especialmente produzidas. Computações gráficas
simples, em 2D, completam a edição.
NARRADOR (V.S.)
Para sobreviver, o homem precisa vencer sua fome.
Para perpetuar a espécie, tem que encontrar alguém
para uma foda. Para se comunicar e viver em
sociedade, ele deve saber criar e interpretar um
fasma. Fasma é a representação da realidade, o ato
de contar uma história sobre o mundo.
Os primeiros fasmas nasceram em volta de uma
fogueira, em eras pré-históricas, quando os homens relatavam suas
caçadas e suas aventuras. Com o passar do tempo, os fasmas
sofisticaram-se, através do uso de desenhos, falas e textos
escritos. O cinema, inventado em 1895, é um fasma formado por
imagens fotográficas em movimento.
A palavra "fasma" deriva do grego "phásma", que
significa simulacro. Aristóteles prefere "mimese", que significa
"imitação". Em qualquer dos casos, perde-se algo essencial: a
relação com os dois outros "efes", que dão ao "fasma" o
necessário senso de urgência e primitividade.
1. 3. William, 30 anos, mulato, roupas modestas e gastas, mas
limpas, com uma sacola de plástico na mão, passa pela porta do
edifício de Martina, mantida aberta por Seu Zé, 30 anos, que tem
um uniforme de porteiro. Os dois trocam um discreto aceno de
cabeça. William entra no elevador.
NARRADOR (V.S.)
Alguns especialistas acham que a suprema tarefa da
humanidade é reunir os três efes num só momento
mágico, em que se atingiria a plenitude
existencial e a mais completa felicidade.
1. 4. Damasceno ainda escrevendo em seu caderno.
NARRADOR (V.S.)
Para o professor Damasceno, contudo, isso não
passa de um sonho.
1. 5. William, no elevador, abre a sacola e pega uma pistola.
NARRADOR (V.S.)
Ou de um pesadelo.
1. 6. Damasceno fecha o caderno (ou tira a folha da máquina).
NARRADOR (V.S.)
Ou melhor, de um fasma.
1. 7. Martina, 30 anos, vestindo um robe, abre a porta do seu
apartamento. William aponta a pistola para ela.
(Nova trilha. Créditos iniciais sobrepostos nas cenas 2 a 9)
CENA 2 - BARRACO DE WILLIAM - INTERIOR - DIA
William abre os olhos em sua cama modesta. Senta na cama e acende
a luz, que ilumina um pequeno barraco de madeira, de uma única
peça. Está sozinho. Pega um pedaço de pão em cima da mesa. Começa
a comê-lo. Vai até a porta e olha para fora.
CENA 3 - BARRACO DE WILLIAM/VILA POPULAR - EXTERIOR - DIA
William passa por um carrinho de coleta de lixo, encostado no
barraco, e vai até os fundos do terreno, onde há uma cabine de
madeira podre caindo aos pedaços sobre uma fossa. Dá a última
mordida no pão. Entra e, sem fechar a porta, começa a fazer xixi.
CENA 4 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO DE SISSI E DIEGO/BANHEIRO -
INTERIOR - DIA
Sissi, 20 anos, está dormindo. Toca o despertador (6:30). Ela
acorda. Na penumbra, caminha, meio sonâmbula, até o banheiro, e
faz xixi. Volta ao quarto e acende a luz. Há duas camas, e numa
delas dorme Diego, 7 anos.
SISSI
Diego, tá na hora.
Diego não acorda. Sissi senta na cama, dá um beijo no menino,
tira as cobertas e faz com que ele saia da cama.
CENA 5 - BARRACO DE WILLIAM/VILA POPULAR - EXTERIOR - DIA
William sai da cabine e volta à frente da sua moradia. Com uma
chave que tira do bolso, abre um cadeado, liberando a corrente de
aço que mantém preso o carrinho de lixo à parede. Joga a corrente
dentro do barraco. Usa o cadeado para trancar a porta da frente.
Pega o carrinho e se afasta, rumo à saída da vila. Há barracos
nos dois lados da viela, e muito lixo acumulado pelo chão.
CENA 6 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO DE ADÃO - INTERIOR - DIA
Sissi entra no quarto de Adão, seu pai, 55 anos, que está
dormindo. Ela acende a luz.
SISSI
Pai, tá na hora.
Adão, que está virado para a parede, não olha para ela.
ADÃO
Apaga essa luz.
SISSI
Tu disse que hoje ia procurar emprego.
ADÃO
(irritado) Apaga a porra dessa luz. (grita) Agora!
Sissi apaga a luz e sai do quarto.
CENA 7 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - DIA
Diego, já vestido, está sentando na mesinha, esperando o café.
Várias garrafas de cerveja, uma de cachaça e copos sujos ocupam
boa parte do tampo da mesinha. Sissi, também pronta para sair,
abre a geladeira, pega uma garrafa de leite (a única) e um resto
de manteiga. Sacode a garrafa. Está quase vazia. Mesmo assim,
despeja o que resta num copo.
SISSI
(para Diego) Toma. É o que tem.
Diego bebe num gole só. Sissi procura alguma coisa num armário.
Acha um pacote de pão de sanduíche, com apenas uma fatia bem
pequena (aquela da casca). Passa manteiga no pão e entrega-o para
Diego, que não parece estar satisfeito. Mesmo assim, engole o
pão. Sissi abre a sua bolsa e tira uma carteira. Examina a
carteira. Está quase vazia: uma nota de cinco e duas de um real.
Pega as duas notas de um real e as entrega para Diego.
SISSI
Pro lanche. Vamos embora.
Os dois saem da cozinha.
CENA 8 - EDIFÍCIO DE SISSI/FACHADA/RUA - EXTERIOR - DIA
Sissi e Diego saem do edifício (pequeno, meio decadente) e
começam a caminhar. Uma carrocinha de lixo seco, puxada por
William, cruza por eles e segue em sentido oposto.
CENA 9 - RUA - EXTERIOR - DIA
William pára a carrocinha junto ao meio-fio e examina o conteúdo
de um saco de lixo grande. Vai pegando papel, embalagens
plásticas e pratos descartáveis. Num deles, dobrado, encontra um
pedaço de pizza. Examina a pizza. Olha em volta. Não há ninguém
por perto. William devora a pizza.
CENA 10 - ESCOLA PÚBLICA/FACHADA - EXTERIOR - DIA
Sissi dá um beijo em Diego. O menino corre para dentro da escola.
Sissi fica um tempo olhando para ele e depois sai.
CENA 11 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - DIA
A carrocinha de William pára na frente de um edifício novo, com
uma portaria toda envidraçada. William examina rapidamente o
conteúdo de uma lixeira grande. Acha uma garrafa plástica de
refrigerante e a coloca na carrocinha. Seu Zé, zelador do
edifício, que varria a calçada, aproxima-se dele.
SEU ZÉ
Passa aqui pelas onze, que a dona Martina quer
jogar fora um monte de jornal velho.
WILLIAM
Não posso pegar agora?
SEU ZÉ
Não. Ela deve estar dormindo.
WILLIAM
Tá bom. (hesita) Seu Zé, o senhor não teria aí um
pedaço de pão velho?
SEU ZÉ
Não.
William puxa a carrocinha e vai embora.
CENA 12 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA
Dois sanduíches são colocados sobre uma bandeja grande, com um
café da manhã completo. Martina, vestindo um robe, faz os últimos
ajustes na bandeja e sai da cozinha.
CENA 13 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - DIA
Martina abre a janela do quarto, iluminando-o e acordando
Rogério, 35 anos. Ele não parece muito satisfeito. Vira de lado,
evitando a luz mais intensa. Martina pega a bandeja e senta na
cama, perto de Rogério.
MARTINA
Surpresa.
Rogério abre os olhos e, de má vontade, senta na cama. Martina
ajeita melhor a bandeja e, antes de deitar ao lado de Rogério,
tira o robe. Está com uma camisola "sexy", curta, decotada e
cheia de babados.
ROGÉRIO
(olhando para a bandeja) Martina, eu tô de regime.
MARTINA
É tudo light.
Rogério toma um gole de suco e faz uma careta.
ROGÉRIO
Tá azedo.
Rogério olha para Martina pela primeira vez.
ROGÉRIO
Por que tudo isso?
MARTINA
Porque eu te amo.
ROGÉRIO
Não. É pra me animar. Tu acha que eu tô deprimido.
MARTINA
Normal. Hoje tá todo mundo meio deprimido.
Rogério afasta a bandeja e levanta da cama. Vai até a janela e
olha para fora. Depois volta-se para Martina.
ROGÉRIO
(irritado) Todo mundo? Tu acha que eu tô deprimido
porque o Brasil perdeu a porra da copa do mundo?
Eu convenci um cliente a produzir um comercial com
o idiota do Parreira dizendo que uma boa empresa
funciona como uma boa equipe de futebol. Sabe
quanto custou pra botar esse comercial nos
intervalos dos jogos? Oito milhões de reais! E
hoje eu vou dizer pro cliente que essas coisas
acontecem. (pausa) Quem sabe eu levo pra ele esse
café maravilhoso, com esse suco azedo, pra ver se
ele fica menos deprimido?
Martina olha para ele, desolada. Rogério respira fundo.
ROGÉRIO
Desculpa. (pausa) Eu vou tomar banho.
Rogério sai do quarto. Martina fica sozinha na cama, com sua
camisola "sexy" e sua bandeja de café intocada.
CENA 14 - SALA DE AULA UNIVERSITÁRIA - INTERIOR - DIA
Sissi olha para o professor, 45 anos, e toma notas num caderno.
Ao seu lado, uma colega, 20 anos, come batatinhas fritas. Sissi
olha com gula para as batatinhas enquanto ouve o professor.
PROFESSOR
Ifigênia pensa que está indo para seu casamento
com Aquiles, mas, quando chega na ilha de Áulis,
descobre que vai ser sacrificada para que os
ventos empurrem a esquadra grega até Tróia.
Primeiro ela resiste, mas depois, quando olha para
os milhares de soldados passando fome, percebe que
a sua vida não é nada frente ao destino da Grécia.
Então ela decide morrer com honra, sem medo.
Ifigênia, tão jovem e tão consciente, é a maior
das heroínas da tragédia clássica. Muito obrigado,
e até a semana que vem.
Os alunos levantam-se e começam a sair da sala. A colega de Sissi
percebe o olhar de Sissi para as batatinhas. Estende o pacote.
COLEGA
Quer?
SISSI
Não, obrigado.
A colega levanta e sai, deixando o pacote em cima da mesa. Sissi
espera que ela se afaste e pega o pacote. Descobre, decepcionada,
que só resta uma batatinha, que engole numa só bocada.
CENA 15 - ÔNIBUS - INTERIOR - DIA
O ônibus está numa parada de fim de linha, esperando a hora de
sair. Sissi aproxima-se da roleta e dá um vale-transporte para o
cobrador, 18 anos, que está comendo um grande cachorro-quente.
COBRADOR
Tudo bem?
SISSI
Tudo.
Ela não consegue tirar os olhos do cachorro-quente. O cobrador
percebe.
COBRADOR
Quer uma mordida?
SISSI
(sorrindo) Não.
COBRADOR
Tem certeza?
Sissi olha em volta. O ônibus está meio vazio. Não tem ninguém
olhando pra eles. Sissi sorri para o cobrador.
SISSI
Parece bom.
O cobrador estende o cachorro-quente.
COBRADOR
Pode morder.
Sissi morde rapidamente e começa a mastigar. O cobrador olha para
ela, meio sacana, estende a mão e segura o braço de Sissi.
COBRADOR
Eu largo às duas. Aí posso te pagar um inteiro.
Sissi, ainda mastigando, afasta o braço com um repelão e caminha
para a porta de saída. O ônibus arranca. O cobrador, que continua
comendo o cachorro-quente, sorri para Sissi. Termina o lanche e
lambe os dedos, cheios de maionese, ketchup e mostarda.
CENA 16 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA/DESPENSA - INTERIOR
- DIA
Martina está na cozinha lavando a louça, já vestida. Os dois
sanduíches estão em cima da mesa. Toca o porteiro eletrônico. Ela
atende.
SEU ZÉ
(OFF) É o rapaz de lixo limpo.
MARTINA
Manda subir.
Martina enxuga as mãos e vai para a sala. Examina-se rapidamente
no espelho. Toca a campainha. Ela abre a porta. É William,
sorridente.
WILLIAM
Bom dia. O Seu Zé disse que a senhora...
MARTINA
Pode entrar.
Os dois passam pela sala, pela cozinha e chegam na despensa, que
tem duas pilhas de jornais velhos, lado a lado. William pega uma
deles e vai saindo. Quando passam pela cozinha, Martina olha para
os dois sanduíches em cima da mesa.
MARTINA
William, tu não tá com fome?
William pára e olha para Martina, que aponta para os sanduíches.
MARTINA
O meu marido não teve tempo de comer. Pode pegar.
William, meio sem jeito, atrapalhado pela carga, pega um
sanduíche. Fica em dúvida sobre o que fazer a seguir.
MARTINA
Bota essas coisas no chão.
William faz o que Martina sugeriu e dá uma dentada no sanduíche.
Faz cara de quem gostou muito. William devora o sanduíche em
segundos.
MARTINA
Pega o outro.
WILLIAM
Não. Obrigado.
MARTINA
Senta, William. Eu faço questão.
William senta na mesinha. Martina abre a geladeira e pega uma
garrafa de suco de laranja. William agarra o segundo sanduíche.
Martina sorri e serve suco para William num copo bonito. William
sorri para ela. Ela sorri de volta.
CENA 17 - BAIA DE TELE-VENDAS - INTERIOR - DIA
Sissi, com fones de ouvido e microfone, tenta conseguir um
cliente. Há uma tela de computador bem na sua frente.
SISSI
... em relação ao que a senhora paga atualmente,
seria uma economia de quarenta por cento, e se a
senhora entrar na promoção ainda hoje, ganha cem
minutos grátis, para falar com cinco assinantes
que a senhora indicar... (pausa) Claro, eu
entendo... (pausa) Boa tarde para a senhora
também.
Sissi desliga. Olha para o lado. Uma senhora, 60 anos, com uma
cesta de lanches, oferece seus artigos. Sissi faz que não com a
cabeça. Clica no computador. Espera um momento. Tenta dar um tom
simpático à sua voz.
SISSI
Boa tarde. É o senhor Oliveira? (pausa) Aqui é
Cecília, da Líder Celular. (pausa) Alô, alô?
CENA 18 - SUPERMERCADO - INTERIOR - DIA
Martina empurra um carrinho quase cheio. Quando está se
aproximando do caixa, toca o seu celular. Ela atende.
MARTINA
Oi, amor. Tô no super. (pausa) Não faz mal. Eu
entendo. (pausa) Não, só umas comprinhas pro
jantar. (pausa) Tudo bem, amor. Te amo.
Martina desliga o celular e olha para o carrinho cheio.
CENA 19 - GRAMADO SUPLEMENTAR DE ESTÁDIO DE FUTEBOL - EXTERIOR -
DIA
Está terminando o treino de um grupo de jogadores sub-20, no
gramado suplementar de um estádio de um grande clube. Sissi
chega, apressada, e se encosta na grade que cerca o campo. Uma
garota bonita, Giane, 18 anos, falsa loura, usando roupas que
oscilam entre a sofisticação e a breguice, aparece ao lado de
Sissi. As duas se beijam. Giane está agitada e nervosa.
GIANE
Oi, Sissi.
SISSI
Oi. Como tu tá linda! Essas roupas, esse cabelo...
GIANE
Tinta importada. Custou um monte de dinheiro.
SISSI
Tu ganhou na loteria?
Giane sorri amarelo.
GIANE
(preocupada) Outra hora eu te explico.
Seu Lopes, 50 anos, um homem corpulento, vestido com conjuntinho
safári, surge por trás delas.
SEU LOPES
Oi, garotas.
Seu Lopes inclina-se para beijar as duas.
SEU LOPES
Tu tá muito bonita, Giane.
GIANE
(seca) Obrigado.
SEU LOPES
(para Sissi) Boas notícias. O Estevão vai pra
Europa.
Sissi, abalada, não consegue dizer nada.
GIANE
E o Vandeir?
SEU LOPES
Talvez no fim do ano. Antes ele vai pra São Paulo.
GIANE
Não vai coisa nenhuma. O salário é uma micharia.
SEU LOPES
Eu já te expliquei, menina, é uma vitrine...
GIANE
(cortando) Vitrine é a puta que pariu.
Um longo apito assinala o final do treino e parece despertar
Sissi do seu estupor.
SISSI
Que país?
SEU LOPES
Portugal, Espanha. (pausa) Ou Japão.
SISSI
O Japão não fica na Europa.
SEU LOPES
É? (olha para o campo) Olha os dois aí.
Estevão, 18 anos, e Vandeir, 19 anos, chegam perto da cerca.
Vandeir tem um brinco na orelha. Os dois beijam suas namoradas.
ESTEVÃO
(para Sissi) Oi, meu amor.
SISSI
Oi.
VANDEIR
(para Giane) Tu tá muito gata!
Giane dá uma voltinha. Seu Lopes aproxima-se de Estevão.
SEU LOPES
Pode fazer as malas.
ESTEVÃO
(entusiasmado) Qual é o time?
SEU LOPES
Ainda não sei. (pausa) Mas é o salário que tu
pediu, mais casa, comida e roupa lavada.
Vandeir abraça Estevão, emocionado. Estevão olha para Sissi, que
retribui o olhar.
SEU LOPES
Vai te arrumar. Vamos assinar uns papéis com a tua
mãe.
Estevão olha para Sissi.
ESTEVÃO
Combinei de sair com a Sissi.
SEU LOPES
Tu que sabe. A gente se vê por aí.
Seu Lopes dá as costas para todos e caminha na direção do
estacionamento de carros. Estevão fica nervoso. Olha para Sissi,
como pedindo desculpas.
ESTEVÃO
(gritando) Espera aí. Já tô indo. (para Sissi) Eu
te ligo assim que der, tá? Te amo.
Estevão e Vandeir saem correndo. Sissi e Giane estão sozinhas
outra vez.
GIANE
Não sei como o Estevão suporta esse escroto.
SISSI
Eu sei. O escroto deu um carro pra ele.
GIANE
Tu chama aquilo de carro? (olha com atenção para
Sissi) Sissi, o que é isso?
Sissi enxuga algumas lágrimas com o dorso da mão.
SISSI
Ele me disse que preferia ficar aqui. Mas ele tem
que ajudar a mãe dele.
GIANE
O Vandeir tá sempre me dizendo a mesma coisa. O
pai tá doente, o irmão precisa de remédio.
Sissi continua chorando.
GIANE
Ah, Meu Deus! Não é o fim do mundo. Vem aqui.
(abraça Sissi) Eu vou te contar uma coisa. Eu
cheguei assim pro Vandeir e perguntei: e se a
gente tivesse um pouco mais de grana, se pudesse
alugar um apartamentinho pra nós dois, tu ficava
em Porto Alegre? (pausa) Sabe o que ele disse?
SISSI
(fungando) Não.
GIANE
Ele disse que ficava.
SISSI
(surpresa e confusa) Vocês alugaram um
apartamento?
GIANE
Não. Mas a gente já foi duas vezes em motel. Suíte
de luxo.
SISSI
Com que dinheiro?
GIANE
Larguei a lancheria. Tenho um emprego novo.
SISSI
Onde?
GIANE
Em lugar nenhum. (pensa um pouco) Em vários
lugares. (baixinho) Eu disse pro Vandeir que virei
representante de roupas, que todo dia eu vendo
vinte, trinta peças, e tiro uma comissão.
SISSI
Roupas de que marca?
GIANE
Ai, meu Deus! Sissi, cai na real. Não tem roupa
nenhuma. (pausa) Eu tô me virando.
SISSI
Se virando?
GIANE
É. Tô me virando. Tiro uns duzentos por dia. Às
vezes, até mais. Só hoje de tarde ganhei
trezentos.
Sissi finalmente entende. Olha para Giane por algum tempo, sem
dizer nada. Depois respira fundo e consegue falar.
SISSI
Eu tô com fome. Não como nada desde ontem. Tu pode
me emprestar vinte?
Giane sorri para Sissi e abre a carteira.
CENA 20 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA - INTERIOR - NOITE
Martina está na cozinha, terminando de fazer um prato pequeno,
mas bacana. Os apetrechos que usa - e a maneira como ela os
manipula - revelam que Martina tem intimidade com a culinária. Dá
os últimos acabamentos e leva a comida para a sala.
Senta na mesa. Abre uma garrafa de vinho. Serve-se. Vai até um
aparelho de som e coloca uma música. Volta a sentar-se. Dá a
primeira garfada. Engole. Vai dar outra. Mastiga, mas não
consegue engolir. Cospe o que tem na boca num guardanapo. Toma
outro gole de vinho. Olha para o prato. Afasta-o.
CENA 21 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE
Martina sai do elevador com uma marmita e um pacotinho nas mãos.
Num canto da portaria, há quatro pequenos monitores, mostrando a
rua em frente ao edifício, a porta da frente da portaria, o
interior da portaria e dentro do elevador. Seu Zé vai abrir a
porta do edifício para ela.
MARTINA
Obrigado. Mas eu não vou sair. O senhor já jantou?
SEU ZÉ
Não senhora.
Martina aproxima-se de Seu Zé e estende a marmita. Seu Zé não
pega a marmita.
MARTINA
Eu trouxe pro senhor. O meu marido não veio jantar
em casa.
SEU ZÉ
Muito obrigado, Dona Martina.
Martina entrega o pacotinho. Sorri para ele. Parece nervosa.
MARTINA
Eu tô com mais umas coisas pra jogar fora. O
senhor tem algum contato com aquele rapaz do lixo
seco?
SEU ZÉ
A senhora quer que eu fale com ele? Amanhã
mesmo...
MARTINA
(cortando) Não tem pressa. Obrigado, Seu Zé.
Martina dá as costas para Seu Zé. Sorri, nervosa.
CENA 22 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA - INTERIOR - NOITE
Sissi limpa a sala, enquanto seu pai assiste televisão. Diego
dorme no sofá.
SISSI
Conseguiu alguma coisa hoje?
ADÃO
Fica quieta. Eu tô vendo TV.
Toca o celular de Sissi. Ela atende.
SISSI
Já tô descendo.
ADÃO
Vai sair?
SISSI
Vou.
Sissi pega o irmão no colo e leva-o na direção do quarto. Cruza a
sala outra vez, para sair.
ADÃO
Traz pão e leite pro café.
Sissi pára por um momento. Olha para o pai, quase perdendo a
calma. Mas prefere seguir em frente e sai do apartamento.
CENA 23 - CARRO DE ESTEVÃO - INTERIOR - NOITE
Sissi está no carro de Estevão, um Gol caindo aos pedaços.
SISSI
Então, como foi?
ESTEVÃO
Normal. A mãe assinou uns papéis que o Seu Lopes
precisava. Depois a gente foi jantar.
SISSI
Tu assinou também?
ESTEVÃO
Assinei.
SISSI
E já sabe pra que clube tu vai? Ou pelo menos o
país?
ESTEVÃO
(irritado) Não.
SISSI
Já tem as passagens?
ESTEVÃO
Ainda não.
Estevão dirige em silêncio por algum tempo. Sissi estende o braço
e faz um carinho no cabelo de Estevão.
SISSI
Eu te amo.
ESTEVÃO
Eu também. Vamos no drive?
SISSI
Eu não gosto de ir lá, Estevão.
Estevão pára o carro e puxa o freio de mão.
ESTEVÃO
Tem pouca gasolina. Ou a gente vai no drive, ou
faz aqui mesmo.
Sissi olha em volta. É uma rua mal iluminada, perto de uma vila
popular.
CENA 24 - CARRO DE ESTEVÃO/DRIVE-IN - INTERIOR - NOITE
O carro de Estevão entra num drive-in (estacionamento com
pequenos boxes cercados, destinados a encontros sexuais) e
estaciona.
ESTEVÃO
Quando eu voltar, vou ter dinheiro pra motel.
SISSI
(sorrindo) Claro.
Os dois se abraçam e se beijam. Começam a transar meio vestidos,
com dificuldade, pois o carro é pequeno.
CENA 25 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
Martina está lendo na cama, de pijama bem comportado. Rogério
entra no quarto, já tirando o paletó. Está um pouco bêbado. Beija
Martina, que sente o bafo do marido.
MARTINA
Como foi a reunião?
ROGÉRIO
(tirando a roupa) O Borges teve uma idéia: já que
o cliente se fudeu mesmo, pra não perder a conta o
negócio é mostrar que ele tem outras coisas a
ganhar ficando com a gente. A Marlúcia achou a
idéia ótima e liberou a verba. A velha é foda.
MARTINA
E o que vocês fizeram?
ROGÉRIO
Eu e o Borges pegamos o cara no hotel e mostramos
pra ele alguns prazeres dessa cidade.
Rogério deita na cama, só de cueca e camiseta. Abraça Martina,
que coloca o livro de lado. Beija Martina, mas é um beijo
agressivo demais. Martina vira o rosto.
MARTINA
Tu tá com um bafo horrível.
ROGÉRIO
Foda-se. Tu não queria trepar hoje de manhã?
MARTINA
Vai escovar os dentes, pelo menos.
ROGÉRIO
Não precisa me beijar mais. Não é a tua boca que
eu quero. Faz o favor de tirar esse pijama de
vovozinha e vira essa bunda pra cima.
MARTINA
Não.
ROGÉRIO
Então vai te fuder!
Rogério levanta da cama e tenta vestir-se outra vez. Tem
dificuldade para colocar a calça e quase se desequilibra.
ROGÉRIO
A gente devia, sendo marido e mulher, se divertir
junto. Mas eu posso me divertir por aí, não tem
problema...
Consegue botar a calça. Vai botar a camisa.
MARTINA
Hoje de manhã tu nem olhou pra mim.
ROGÉRIO
Hoje de manhã eu tava mal. Agora eu tô melhor.
Quer dizer, eu tava melhor. Fiquei mal de novo.
Martina tira o pijama rapidamente.
MARTINA
Se tu quiser, pode ficar bem outra vez.
Rogério olha para Martina, em dúvida. Martina sorri.
ROGÉRIO
Tu sabe que eu te adoro, gatinha.
Rogério tira as calças outra vez e vai para a cama.
CENA 26 - CARRO DE ESTEVÃO/DRIVE-IN - INTERIOR - NOITE
Sissi é obrigada a ficar numa posição incômoda e começa a sentir
uma cãibra na perna.
SISSI
Ai!
ESTEVÃO
Que foi?
SISSI
Cãibra.
Sissi interrompe a transa.
SISSI
Eu já te disse que nessa posição é ruim.
ESTEVÃO
Tudo bem. (olha pro relógio) Eu tenho que ir
mesmo, tá na hora.
Sissi olha pra Estevão, decepcionada. Estevão faz um carinho no
rosto dela. Os dois se beijam.
SISSI
Eu tenho que comprar pão e leite. Tu pode passar
naquele posto perto da minha casa?
ESTEVÃO
Claro.
Estevão vai dar a partida. O motor gira um pouco e depois pára.
Estevão tenta de novo. Nada.
CENA 27 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
Rogério e Martina estão transando. Ela de costas, ele por cima.
Os dois não se olham. Ela não está curtindo nem um pouco. Ele,
bêbado, transa como um idiota, se acaba e desaba por cima dela.
Depois rola pro outro lado.
CENA 28 - FACHADA EDIFÍCIO DE SISSI - EXTERIOR - NOITE
Um táxi pára na frente do edifício. Sissi beija Estevão e sai do
carro, com uma pequena sacola de plástico na mão. Estevão se
aproxima da janela.
ESTEVÃO
Um dia nós vamos morar juntos, Sissi. É a coisa
que eu mais quero na vida.
O táxi arranca. Sissi entra devagar no edifício.
CENA 29 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - NOITE
Sissi, triste, come pão com manteiga e toma um leite na mesa da
cozinha.
CENA 30 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA/DESPENSA - INTERIOR
- DIA
Martina, bem vestida, com um avental, está fazendo um omelete
caprichado. Na mesa, uma travessa com pão, dois pratos e dois
copos com suco de laranja. Olha para o relógio na parede: oito e
meia. O porteiro eletrônico toca. Ela pega o interfone
imediatamente.
MARTINA
Pode deixar subir.
Termina o omelete e tira o avental. Coloca o omelete nos pratos.
Toca a campainha. Ela vai atender. Abre a porta, com um sorriso
nervoso no rosto. É Sissi, que está com uma sacola na mão.
SISSI
Oi, tia.
Martina, surpresa, não sai da frente da porta.
SISSI
A escola do Diego é aqui perto, e eu resolvi
passar.
MARTINA
Que bom... Entra.
Sissi entra na sala.
MARTINA
Senta.
SISSI
Que cheiro gostoso, tia.
MARTINA
Eu tava fazendo o café. Quer um pouco de omelete?
SISSI
Eu aceito. Tu sabe que eu não sou de fazer
cerimônia.
Quando entram na cozinha, Sissi vê a mesa posta para dois.
MARTINA
Eu pensei que o Rogério ia comer comigo, mas ele
teve que sair correndo.
As duas sentam.
SISSI
O tio trabalha um monte, né? Tá sempre correndo.
MARTINA
É verdade.
Sissi começa a comer com vontade. O porteiro toca outra vez.
Martina vai atender.
MARTINA
Sim?
SEU ZÉ
(OFF) É o rapaz do lixo limpo.
Martina hesita um pouco, mas acaba respondendo:
MARTINA
Manda ele subir.
Coloca o interfone no gancho.
MARTINA
(para Sissi) É só um instante.
Martina vai até a despensa e olha o balde do lixo limpo. Está
vazio. Pega uma caixa de papelão, cheia de vidros, tira os vidros
e desmonta a caixa. Toca a campainha. Martina, com a caixa na
mão, vai abrir a porta. É William.
WILLIAM
Bom dia. O Seu Zé disse que a senhora queria que
eu pegasse umas coisas.
Martina entrega a caixa pra ele.
MARTINA
Hoje é só isso aqui.
William pega a caixa, meio confuso.
MARTINA
Tem mais coisa, mas agora eu não posso... Quem
sabe tu volta pelas onze?
WILLIAM
Pode ser.
MARTINA
(sorridente) Combinado. Tchau.
Martina fecha a porta. Volta para a cozinha. Sissi já comeu todo
o omelete e está rapando as sobras com o pão. Martina fica
admirada.
MARTINA
Não quer mais? Come o meu. Eu tô sem fome.
SISSI
Não. Eu tô satisfeita.
MARTINA
Tem certeza?
Sissi olha para o outro prato.
SISSI
Já que insiste...
Martina sorri e troca os pratos. Sissi come.
SISSI
Tá muito bom, tia! Tu é a melhor cozinheira da
família, disparado.
MARTINA
Aprendi muito com a tua mãe.
As duas estão sentadas no sofá. Sissi toma uma xícara de café com
leite.
MARTINA
Tu não tem aula hoje?
SISSI
Tô matando. Não gosto muito de grego. (hesita um
pouco) Aí resolvi fazer a visita. Eu queria falar
contigo sobre uma coisa.
Abre a sacola e tira um pacote embrulhado em papel de presente.
Martina olha para o pacote, desconfiada.
SISSI
Tia, eu tô precisando de uns conselhos. (respira
fundo) Na verdade, tia, eu vou fazer uma coisa...
Sissi pára de falar, sem coragem para seguir adiante.
MARTINA
(sorrindo) Sissi, pode falar.
SISSI
Há um tempo atrás, quando a mãe já tava doente, na
cama, eu fui ajudar ela a arrumar o guarda-roupa.
E achei esse pacote. Perguntei pra mãe o que era,
e ele disse que não lembrava. Aí eu abri, e ela
disse que eram uma coisas que tu deu pra ela.
MARTINA
Eu posso olhar?
Sissi estende o pacote para Martina. Martina abre o pacote e
examina o seu conteúdo: várias calcinhas muito pequenas, sutiãs
cheios de rendas, uma meia 7/8 de náilon preto e uma cinta-liga.
Martina olha para Sissi, sem dizer nada.
SISSI
Ela disse que essas coisas eram tuas. Que tu deu
pra ela quando... Parou de fazer programa. (baixa
os olhos) Ela me fez jurar que eu nunca contaria
isso pra ninguém. Pediu que eu jogasse tudo fora,
mas eu não consegui.
Martina olha para a sobrinha. Parece chocada demais para
responder. Quando se recupera, tenta sorrir.
MARTINA
A tua mãe devia estar muito perturbada.
SISSI
Então essas coisas não eram tuas?
MARTINA
Não.
Sissi fica pálida. Leva a mão à altura do estômago.
SISSI
É que... Tu conhecia a mãe. Acho que ela nunca
contou uma mentira na vida.
MARTINA
Eu não disse que ela mentiu. Disse que tava
perturbada. Confusa. Talvez os remédios, sei lá...
Martina devolve as coisas para Sissi, que fecha o pacote e coloca
na bolsa.
SISSI
Claro. Eu entendo. (pensa um pouco) Desculpe, tia.
Eu banquei a idiota.
MARTINA
De jeito nenhum, Sissi.
Sissi olha o relógio.
SISSI
Eu tenho que ir.
As duas levantam-se. Sissi beija Martina.
SISSI
Tchau. Desculpa mesmo, tia.
Sissi caminha para a porta de saída. Martina abre a porta.
SISSI
Foi o melhor omelete que eu já comi na minha vida.
De verdade.
Sissi engole em seco e leva a mão à garganta.
MARTINA
Sissi, tu tá te sentido bem?
SISSI
Acho que eu comi muito depressa. (engole em seco
outra vez) Será que eu posso ir no banheiro?
Martina está na porta do banheiro social, ouvindo Sissi
terminando de vomitar.
MARTINA
Tudo bem, Sissi?
Barulho de água correndo na pia. Sissi sai, tentando sorrir.
SISSI
Já passou. Eu tenho que ir.
Sissi apressa-se, na direção da porta. Martina vai atrás dela.
Abraçam-se. Sissi sai. Martina fecha a porta. Senta no sofá.
Pensa um pouco.
CENA 31 - FACHADA EDIFÍCIO DE SISSI - EXTERIOR - DIA
Um carro, dirigido por Martina, estaciona na frente do edifício.
Martina sai do carro e bate no porteiro eletrônico.
ADÃO
(OFF) Sim.
MARTINA
É a Martina.
ADÃO
(OFF) Que Martina?
MARTINA
(impaciente) A irmã da tua mulher.
CENA 32 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA - INTERIOR - DIA
Martina e Adão (de pijama) conversam na sala.
ADÃO
Não notei nada, não.
MARTINA
Ela tá muito magra.
ADÃO
Ela sempre foi meio desmilingüida.
MARTINA
Ela sempre foi muito bonita. E agora tá
esquelética.
ADÃO
(meio irritado) E o que tu quer que eu faça?
MARTINA
Que vá procurar trabalho, em vez de ficar de
pijama em casa.
ADÃO
(agora irritado mesmo) Tu veio aqui pra me encher
o saco? Pode sair.
Adão levanta. Martina continua sentada.
MARTINA
É um absurdo essa menina ficar te sustentando.
Adão aproxima-se de Martina.
ADÃO
Tu tem idéia de em quantas empresas eu já fui
pedir emprego? (pausa) Eu sou velho demais até pra
lavar carro na garagem da esquina.
MARTINA
(constrangida) Eu só estou preocupado com ela,
Adão.
ADÃO
E porque ficou preocupada com ela agora? Não
lembro de tu ter ligado pra cá desde que a Rosana
morreu.
Martina olha para Adão e não consegue responder. Martina levanta-
se.
MARTINA
Desculpe, Adão. Se eu souber de alguém que esteja
precisando...
ADÃO
(cortando) Sabe quantas vezes eu já ouvi essa
frase?
CENA 33 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA
Borges, 30 anos, elegante e atlético, além de muito sorridente,
conversa com Rogério. Ambos estão de terno e paletó. Em cima da
mesa, muitas fotos e catálogos de modelos, que eles vão
examinando enquanto conversam.
BORGES
Não contei todos os detalhes, mas a Marlúcia
entendeu. (mostra uma foto) Essa aqui é bonita.
ROGÉRIO
Muito baixinha.
BORGES
Se a conta ficar conosco, eu vou ter uma
bonificação no Natal. Ela não ficou muito
satisfeita quando viu a despesa da noitada: quase
três mil reais.
ROGÉRIO
Caralho!
BORGES
Cada garrafa de champanhe era 500 paus. E a menina
do Gilson foi 800. (mostra outra foto) Essa aqui é
bem alta, um metro e oitenta e um.
ROGÉRIO
Mas não fala. E eu, será que eu fico?
BORGES
(meio sacana) Acho que depende de ti.
ROGÉRIO
Como assim?
BORGES
A Marlúcia me fez várias perguntas... Se tu também
tinha aproveitado a noite, como tava o teu
casamento... Essas coisas.
ROGÉRIO
Tu tá brincando, Borges.
BORGES
Não. (mostra outra foto) Eu lembro dessa. (lê o
nome atrás da foto) Vanessa. É esperta, sabe das
coisas.
ROGÉRIO
Ela é casada.
BORGES
A Vanessa? Não sabia.
ROGÉRIO
Não, Borges. A Marlúcia.
BORGES
E tu também. Empate. (aproxima-se mais de Rogério)
Eu tenho certeza que ela tava jogando verde. Eu
disse que tu tava meio depressivo, o que é normal,
considerando o que aconteceu. E que tu tá
precisando de... Compreensão. Foi isso que eu
disse: "O Rogério tá precisando de compreensão".
(bate com o dedo na foto de Vanessa) Acho que a
Vanessa é perfeita. Vou chamar pra uma entrevista.
E depois vou apresentar pro nosso cliente.
ROGÉRIO
Cara, tu tá perdendo completamente a noção...
BORGES
Sem segundas intenções, claro. (olha para Rogério
e sorri) Eu li ontem uma frase muito legal, do
Hölderlin - conhece? - o cara é genial, "Lá onde
cresce o perigo, cresce também o que salva". Pensa
nisso, Rogério. (pausa) Pensa bem, porque a
salvação tá batendo na tua porta.
CENA 34 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - DIA
Martina está chegando de carro. A carrocinha de William está
estacionada na frente do edifício. Ele está organizando as coisas
na carrocinha. Martina pára o carro e abre a janela.
MARTINA
Oi, tudo bom? Desculpa, eu esqueci.
WILLIAM
Não tem problema.
MARTINA
É que eu não separei ainda o que eu vou te dar. Tu
pode voltar ao meio-dia?
WILLIAM
Claro.
CENA 35 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA - INTERIOR - DIA
Na cozinha, Martina está terminando de fazer um belo almoço. Um
peixe está fritando na frigideira e há alguma coisa no
microondas. Olha para o relógio. Sai da cozinha, bota a mesa, com
precisão e rapidez. Volta para a cozinha. Coloca a comida em duas
travessas. Toca o porteiro eletrônico. Ela atende.
SEU ZÉ
(OFF) É o rapaz do...
MARTINA
(cortando) Manda subir.
Martina leva as travessas para a mesa. Pega um vinho e um saca-
rolha. Abre o vinho. Toca a campainha. Ela abre.
MARTINA
Entra, por favor.
WILLIAM
Com licença.
William entra e vê a mesa posta.
MARTINA
William, eu gostaria muito que tu almoçasse
comigo.
William olha para Martina, surpreso.
CENA 36 - RESTAURANTE - INTERIOR - DIA
Marlúcia, 55 anos, bem vestida, mas com as marcas da idade
evidentes no rosto e no corpo, está almoçando com Rogério numa
mesa discreta, no fundo de um restaurante.
MARLÚCIA
Ainda bem que tu aceitou meu convite.
ROGÉRIO
Foi um prazer.
MARLÚCIA
Será? Não sei. A comida pode ser boa, mas a
companhia de uma velha nunca é agradável.
ROGÉRIO
(constrangido) A companhia está ótima.
MARLÚCIA
O Borges me disse que tu tá um pouco deprimido.
ROGÉRIO
O Borges não me conhece. Eu tô ótimo.
Marlúcia ri.
MARLÚCIA
Ótimo? Depois do que aconteceu? (toma um gole de
vinho) Tu tá brincando.
Rogério baixa os olhos.
MARLÚCIA
Ele disse que vocês vão dar um jeito de segurar a
conta, e que eu não devo pedir a tua demissão.
(pausa) Tu deve imaginar que a tua saída é muito
provável, não é?
ROGÉRIO
Esse almoço é pra isso? Pra anunciar minha
demissão?
MARLÚCIA
Não. Esse almoço é pra gente ver o que vai
acontecer daqui pra frente. Nesse momento, nesse
exato momento, tu tá precisando de compreensão.
(pausa) E acho que é o que eu preciso também.
Compreensão.
Marlúcia toma mais um gole de vinho e olha para Rogério. Sorri,
tentando ser sensual.
CENA 37 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - DIA
O almoço já está no fim. William está raspando o prato. Martina
olha para ele e toma um gole de vinho, terminando o cálice.
MARTINA
Não vai tomar o vinho, William?
WILLIAM
Claro. Desculpa. Eu esqueci.
Pega o cálice e toma mais da metade, como se fosse cerveja.
WILLIAM
Muito bom. (olha para o prato de Martina, quase
intocado) A senhora mal comeu.
Martina enche seu cálice de vinho.
MARTINA
Eu tava sem fome. Mas não te preocupa. O maior
prazer
de quem cozinha é ver os outros comendo.
William sorri, confuso. Toma mais vinho. Martina também toma.
CENA 38 - RESTAURANTE POPULAR - INTERIOR - DIA
Sissi come um prato-feito com Giane. As duas tomam Coca-Cola.
GIANE
Tá na agenda. Trinta e um de dezembro. Aí eu paro.
SISSI
E como tu vai fazer pra pagar o apartamento?
GIANE
Eu já vou ter juntado dinheiro pra um ano de
aluguel. Depois disso, ou o Vandeir dá um jeito e
consegue um contrato decente, ou eu é que pico a
mula. (pausa; pensa um pouco) Ai, meu Deus! Deus
me livre! Eu amo aquele moleque.
Toca o celular de Giane. Ela atende.
GIANE
Alô, é a Michele.
Giane olha pro relógio.
GIANE
Posso às três, se o Heitor me levar. (pausa) Me
pega lá em casa. Combinado. (baixinho) Duzentos e
trinta. (pausa; sorri) Tu é um anjo. Tchau.
Giane fecha o celular. Sissi olha para Giane, curiosa.
GIANE
Era a Brigite. Disse que aumentou meu cachê e pôs
minha foto na capa do site.
SISSI
Tem site?
GIANE
Claro que tem site.
SISSI
Com fotos tuas?
GIANE
(ri) Claro que tem fotos minhas. Custaram uma
nota. Sem fotos boas ninguém te conhece, e ninguém
liga pra Brigite, e aí ela não liga pra mim. Fecha
a boca, Sissi! Não aparece o meu rosto. Fica
assim... Tipo uma nuvem em cima do rosto.
SISSI
E como... Os caras escolhem?
GIANE
Eles têm outros interesses além do rosto.
SISSI
Então é assim? Um telefonema, e tu vai ganhar
duzentos e trinta reais?
GIANE
Cento e oitenta. Cinqüenta eu deposito pra
Brigite. E fica todo mundo feliz.
SISSI
Como é essa Brigite?
GIANE
Nunca vi na vida. Mas é simpática. Se tu quiser,
eu ligo e te apresento pra ela.
CENA 39 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA
William coloca os pratos sujos na pia da cozinha, enquanto
Martina abre a geladeira.
MARTINA
Tem sorvete de creme e petit gateau. Gosta?
William olha para Martina, sem jeito.
WILLIAM
(confuso) Acho que gosto. Do sorvete eu gosto. Mas
eu tenho que ir, dona Martina. Fica pra outra
hora. Tenho um material pra pegar às três da
tarde.
Martina fecha a geladeira.
MARTINA
Um café, pelo menos.
WILLIAM
Não tomo café. Me deixa nervoso.
MARTINA
(sorrindo) Então tá. Paciência. Mas antes de tu
sair, eu vou te pedir um favor. Eu quero tirar uma
foto. De recordação. Posso?
WILLIAM
Pode.
Martina pega uma câmera pequena, em cima da geladeira, e
fotografa William. Martina olha a foto no visor da câmera.
MARTINA
Ficou boa. Quer ver?
Antes que William responda, Martina se aproxima, mostra a foto e,
num rompante, beija William na boca. Ele não esboça qualquer
reação. Ela se afasta. Os dois ficam se olhando por algum tempo,
ambos constrangidos.
WILLIAM
Tem... Algum material pra eu levar?
MARTINA
Hoje não... Quem sabe outro dia.
Martina sai da cozinha. William a segue. Martina abre a porta da
sala. William sai, sem dizer nada. Martina fecha a porta.
CENA 40 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA
Vanessa, 20 anos, a modelo escolhida pela foto na cena 33, está
sentada ao lado de Borges.
BORGES
(para Vanessa) O nosso cliente adorou tuas fotos.
(para Rogério) Eu já expliquei pra Vanessa que o
teu destino está nas mãos dela.
ROGÉRIO
(espantado) Como assim?
BORGES
Semana que vem ela faz a foto pro anúncio. E ela
precisa estar maravilhosa. (pausa) A Vanessa sabe
que essa campanha tem que dar certo.
VANESSA
(simpática e ingênua) Se depender de mim...
ROGÉRIO
(confuso) Nós nem temos uma campanha.
BORGES
Claro que temos. (para Vanessa) Não liga pra ele.
(para Rogério) Já está tudo aprovado pela
Marlúcia. (para Vanessa) Tu pode esperar só um
minuto ali fora?
Vanessa sai.
BORGES
Hoje de noite vou levar a Vanessa e o Gilson pra
jantar. É o teu emprego, e tu vai conosco.
ROGÉRIO
(tenso) Não posso. Tenho compromisso.
BORGES
Desmarca.
ROGÉRIO
(gritando) Não posso, caralho! E é tua culpa!
Borges vai dizer alguma coisa, mas desiste. Sorri.
BORGES
(malicioso) Ah... Tudo bem, cara. Então... Boa
sorte pra todos nós.
Borges sai, sorridente. Rogério olha pela janela. Pega um lápis.
Força o lápis até quebrá-lo.
CENA 41 - PARQUE - EXTERIOR - DIA
Martina e Sissi conversam enquanto caminham no parque.
MARTINA
De quanto tempo é o teu intervalo?
SISSI
Vinte minutos.
MARTINA
Então eu vou ser rápida. (respira fundo antes de
falar) Eu menti pra ti. Aquelas roupas eram
minhas.
Sissi olha para Martina, meio constrangida.
MARTINA
E eu fui... Aquilo que a tua mãe falou é verdade.
Durou menos de um ano. Aí conheci o Rogério e tudo
se ajeitou. Mas eu não queria jogar aquelas coisas
fora e dei pra tua mãe. Achava que ela poderia
usar. Ela reclamava que a vida sexual dela era sem
graça, que o Adão era um idiota na cama. A gente
confiava tanto uma na outra...
Caminham em silêncio por algum tempo.
MARTINA
Eu tenho saudade. Desde que a Rosana morreu, só
consigo falar de mim pro analista.
SISSI
Eu também sinto falta de conversar com a mãe.
MARTINA
Acho que todo mundo precisa de alguém que não
cobre pra ficar prestando atenção no que tu fala.
SISSI
É. (hesita um pouco) Tem uma coisa que eu tô
pensando em fazer... Por isso fui te visitar
aquele dia.
Martina sorri e abraça Sissi.
MARTINA
Quando eu era criança, na escola, e queria trocar
um segredo com uma amiga, uma dizia o que tava
pensando - tem que ser bem resumido - e a outra
logo depois fazia a mesma coisa, sem pensar. E só
depois se falava a respeito. O que tu acha?
SISSI
Legal.
MARTINA
Então eu vou dizer. E logo depois tu diz, OK?
SISSI
OK.
MARTINA
Eu tô morrendo de tesão por um papeleiro.
SISSI
Eu resolvi ser garota de programa.
As duas se olham, apavoradas.
MARTINA
Acho que nós vamos precisar de mais de vinte
minutos.
CENA 42 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA
Rogério entra na sala com um copo de água na mão. Senta. Rogério
pega um envelope pequeno no bolso e o examina, sem abrir. Pega o
telefone.
ROGÉRIO
Sandra, liga pra Marlúcia.
Coloca o fone no gancho. Abre o envelope. É uma caixa de Viagra.
Pega um comprimido e toma. Guarda a caixa de Viagra na gaveta.
Toca o telefone. Ele atende.
ROGÉRIO
Pode passar. (pausa) Oi, Marlúcia. Tudo certo?
(pausa) Oito horas, combinado. Tchau.
Rogério coloca o fone no gancho. Pensa um pouco. Abre a gaveta,
tira a caixa de Viagra. Pega outro comprimido e toma.
CENA 43 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE
Martina abre um vinho, com alguma dificuldade. Sissi está sentada
com ela na sala.
SISSI
Tem uma amiga minha que tá ganhando trezentos
reais por dia.
MARTINA
Que maravilha. O que ela faz?
A rolha sai. Martina serve dois cálices.
SISSI
Faz programa.
MARTINA
Tira essa história da cabeça. Eu posso te
emprestar alguma coisa por mês, até o teu pai
conseguir um emprego.
Martina alcança um cálice para Sissi. Batem os cálices. Começam a
beber.
SISSI
De jeito nenhum, tia.
MARTINA
Isso não é vida pra ti, Sissi.
Martina levanta, abre a bolsa, pega a carteira e começa a fazer
um cheque.
MARTINA
Vou te dar trezentos reais. Tu devolve quando
puder.
SISSI
Nem pensar.
Martina termina o cheque. Entrega para Sissi, que o guarda, meio
constrangida.
SISSI
Obrigado, tia.
MARTINA
E não se fala mais nisso. Sissi, tu quer conhecer
o meu papeleiro? Eu tenho uma foto.
SISSI
Quero.
Martina pega a câmera e vai sentar-se ao lado de Sissi. Mostra a
foto no visor da câmera.
SISSI
Ele é bonito!
MARTINA
É, né? E sabe de uma coisa? Ele tem cheiro bom!
Sissi, tu acha que eu tô louca?
SISSI
(sorrindo) Não sei, tia.
MARTINA
E o pior tu não sabe. (hesita) Desde que eu vi o
William pela primeira vez eu tenho uma fantasia
com ele. Só de pensar... Ai, Sissi, que loucura!
Martina ri. Sissi olha para a tia, cada vez mais espantada.
CENA 44 - MOTEL 0 (QUARTO DE LUXO) - INTERIOR - NOITE
Rogério e Marlúcia na cama, nus, em baixo dos lençóis. Ela está
fumando.
MARLÚCIA
Eu não gostaria que tu pensasse que isso que
aconteceu entre nós foi uma troca, quer dizer, tu
me come e eu mantenho o teu emprego. Seria uma
coisa... meio sórdida.
Rogério dá um beijo no rosto de Marlúcia.
ROGÉRIO
Não foi uma coisa sórdida. Foi uma coisa boa.
MARLÚCIA
Essa história do Borges dizer que, se o cliente
ficar, tu fica também... Isso é muito relativo. Tu
sabe que o Borges é ambicioso. Ele não tá fazendo
todo esse esforço por ti. É por ele.
ROGÉRIO
Entendi.
Marlúcia abraça Rogério.
MARLÚCIA
Posso ligar a TV?
ROGÉRIO
Claro.
MARLÚCIA
Faz tempo que eu não vejo um pornô.
Marlúcia aciona o controle remoto. Passamos a ouvir os gemidos de
um filme pornográfico.
MARLÚCIA
(olhando para a TV) Que luz horrível. (troca o
canal; pequena mudança nos gemidos) Esse é melhor.
A primeira coisa a fazer é a mais dolorosa: tu sai
da mídia e volta pra criação, o que implica também
na perda de alguns benefícios. Tu sabe como é.
ROGÉRIO
(espantado) E quem entra no meu lugar?
MARLÚCIA
O Borges. É o prêmio dele.
Rogério sai da cama, indignado, e começa a se vestir.
MARLÚCIA
Eu imaginei que tu ia ficar indignado. Mas pensa
bem, antes de fazer bobagem. E confia em mim.
ROGÉRIO
Tu podia ter me dito isso antes.
MARLÚCIA
E estragar a trepada? De jeito nenhum.
ROGÉRIO
Eu peço demissão.
MARLÚCIA
E vai conseguir emprego onde?
ROGÉRIO
Eu tenho mais de dez anos de experiência...
MARLÚCIA
(cortando, enfática, sem perder a calma) Tu não tá
compreendendo. Eu detesto o Borges. Ele não vai
durar. Eu gosto de ti. Gosto bastante. (pausa)
Confia em mim. (sorri) E volta pra cama.
Rogério olha para Marlúcia, em dúvida.
CENA 45 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE
Martina e Sissi continuam conversando e bebendo. A garrafa da
cena anterior está vazia. Há outra garrafa em cima da mesa, já
pela metade. As duas mulheres estão um pouco bêbadas.
MARTINA
Uma vez, na saída do cinema, eu tava com o Rogério
e um gordo careca se aproximou, estendeu a mão pra
mim e falou: "Não lembra de mim? Eu lembro de ti".
(toma mais um gole de vinho) Eu quase desmaiei,
achei que ele era um cliente, e o Rogério já tava
olhando pro cara, meio desconfiado.
SISSI
O tio não sabe de nada?
Martina faz o sinal da cruz.
MARTINA
Deus me livre. Ninguém sabe, Sissi. Só eu e tu. Eu
nunca usei meu nome de verdade.
SISSI
E o careca ali, segurando a tua mão.
MARTINA
É. Aí ele largou minha mão, se afastou um pouco e
disse. Eu sou o Pinto, Martina. Teu colega no
terceiro ano. O cara que te deu cola e te salvou
em Geometria Descritiva.
SISSI
(rindo) Que loucura.
MARTINA
Aí olhei o cara de novo, e, juro por Deus, era
como se o cabelo crescesse naquela careca, e eu vi
o idiota que me salvou no terceiro ano. Aí eu
apontei pro Rogério e disse assim: "Esse é o
Rogério, meu marido". E os dois apertaram as mãos.
E acho que conversamos sobre o filme.
A porta de entrada abre e Rogério entra, com ar cansado. As duas
mulheres levantam-se. Martina beija Rogério.
SISSI
Oi, tio.
ROGÉRIO
Oi. (olha para as garrafas) Estão fazendo uma
festa?
MARTINA
Não. É só um encontro familiar. Quer um copo?
ROGÉRIO
Quero.
Rogério senta numa poltrona, longe de Martina, que lhe alcança um
cálice com vinho.
MARTINA
Como foi a reunião?
Rogério toma um gole.
ROGÉRIO
O que tu quer primeiro: a notícia boa ou a ruim?
MARTINA
Primeiro a boa.
ROGÉRIO
Não vou ser demitido.
MARTINA
(sorrindo) Eu te disse, querido.
ROGÉRIO
Agora a ruim: vou ganhar a metade do que eu
ganhava.
MARTINA
Isso é contra a lei.
ROGÉRIO
O salário continua o mesmo. Mas eu vou perder
todos os adicionais. Eu não preciso aceitar,
claro, e posso procurar outro emprego. O que tu
acha?
Martina olha para Rogério, preocupada, e não sabe o que dizer.
Sissi levanta-se, constrangida.
SISSI
Tio, eu já tava saindo. (para Martina) Foi ótimo,
tia.
As duas se abraçam.
CENA 46 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE
Sissi sai do elevador. Seu Zé abre a porta para ela. Sissi hesita
e não sai.
SISSI
Eu... Esqueci de deixar uma coisa pra Martina. Tem
alguma caixa postal aqui na portaria?
SEU ZÉ
Tem, sim senhora.
Seu Zé mostra o armário com as caixas postais. Sissi abre a
bolsa, tira o cheque de Martina e empurra-o, rapidamente, na
fenda da caixa postal do apartamento de Martina.
SISSI
Boa noite.
SEU ZÉ
Boa noite.
Sissi sai do edifício.
CENA 47 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA/COZINHA - INTERIOR - NOITE
Sissi entra, com uma sacola pequena de supermercado nas mãos.
Adão está vendo TV.
ADÃO
Trouxe alguma coisa?
SISSI
Leite e pão.
ADÃO
O Diego foi dormir sem comer.
SISSI
Amanhã de manhã dou um café reforçado pra ele.
Na cozinha, pai e filha comem pão com manteiga e tomam leite.
ADÃO
Não me aceitaram no estacionamento. Eu tô muito
velho pro serviço. (pausa) Eles tão procurando uma
secretária. O salário é razoável.
SISSI
Que turno?
ADÃO
Normal. Manhã e tarde.
SISSI
Eu não posso pai. Tem a faculdade. Mas eu vou sair
do tele-marketing. Vou fazer... (hesita; não
encontra a palavra) Representação de uma marca de
roupa. Uma amiga minha tá ganhando bem, e eu vou
ajudar ela. Essa geladeira vai ficar cheia, pai.
Adão olha para a filha e sorri, cético.
CENA 48 - SHOPPING/ÁREA DE ALIMENTAÇÃO - INTERIOR - DIA
Giane e Sissi conversam numa mesa da área de alimentação. Giane
está segurando um celular.
GIANE
(para o seu interlocutor) Vou passar pra ela.
(para Sissi, sorridente) Vai dar tudo certo.
SISSI
Alô? (pausa) A Giane... (fica nervosa) Quer dizer,
a Michele me explicou. (pausa) Entendi. Pensei
em... Helena. (pausa) Sobrenome? Sei lá. (pausa)
Velasquez? Pode ser. (pausa) A Giane me falou em
duzentos. (pausa; fecha o bocal e fala para Giane)
Ela diz que tem que ser cento e cinqüenta no
início.
GIANE
É o que ela fez comigo.
SISSI
(de volta ao celular) Combinado. (olha em volta)
Posso. Ele tá aqui? (pausa) A Giane me avisou.
(pausa) Pretendo fazer as fotos ainda nessa
semana. (pausa) Tudo bem. (pausa) Tchau.
Sissi desliga o celular e devolve-o para Giane.
SISSI
Ela disse que um tal de Marco Aurélio já vai
sentar aqui conosco.
Giane olha em volta e vê Marco Aurélio, 25 anos, que se aproxima
da mesa. Ele chega e beija as duas garotas.
MARCO AURÉLIO
Oi, Michele.
GIANE
Oi, tudo bom?
MARCO AURÉLIO
(olhando para Sissi) Prazer, Marco Aurélio.
SISSI
Prazer, Cecília. Não!... Helena.
Marco Aurélio senta.
GIANE
Eu já expliquei tudo pra ela.
MARCO AURÉLIO
Tudo? Tem certeza?
GIANE
Eu falei sobre o depósito pra Brigite, toda
segunda-feira, dei o número da conta, essas
coisas.
MARCO AURÉLIO
Ótimo. (olha atentamente para a Sissi) Nós vamos
colocar no site que tu é totalmente iniciante.
Isso significa que o cliente não vai esperar um
atendimento muito especial. Só o básico: uma
chupada e sexo vaginal. Tu beija só se quiser. Aí
tu toma banho, conversa um pouco e, se o cara
quiser, tu dá outra chupada e mais sexo vaginal.
Tu tem direito a pedir camisinha sempre, tanto na
chupada quanto no vaginal. Fica duas horas com o
cara e vai embora. (percebe que Sissi está
chocada) Tudo certo, Helena?
SISSI
Tudo certo.
MARCO AURÉLIO
A Brigite também quer saber se tu topa fazer anal
e quanto tu cobra de extra.
Sissi não responde. Olha para Marco Aurélio, mas parece que não
vê ninguém.
GIANE
Sissi, ele fez uma pergunta.
SISSI
Desculpe. Que pergunta?
GIANE
Se tu faz sexo anal. Eu não faço, mas tem umas
garotas que cobram até 100 reais de extra.
Sissi olha para Giane e não diz nada.
MARCO AURÉLIO
(para Giane) A tua amiga sabe sobre o que nós
estamos falando?
GIANE
Claro que sabe. Eu vou ajudar ela. Deixa comigo.
Marco Aurélio olha para Sissi, desconfiado.
CENA 49 - BAIA DE TELE-VENDAS - INTERIOR - DIA
Sissi trabalha, com fones de ouvido e microfone.
SISSI
... e se o senhor entrar na promoção ainda hoje,
ganha cem minutos grátis, para falar com cinco
assinantes que o senhor indicar...
Martina aproxima-se da baia, conduzida por um supervisor, 30
anos. Acena e depois faz um sinal de "posso esperar" para Sissi,
que está surpresa com a visita. O supervisor fica perto delas,
com cara de aborrecido.
SISSI
(no microfone) Muito obrigado pela sua atenção.
Desliga e olha para a sua tia.
MARTINA
Não quero atrapalhar.
SUPERVISOR
A sua tia disse que era urgente. Eu avisei pra ela
que a empresa não permite visitas.
MARTINA
Tu pode sair um pouquinho, Sissi?
SUPERVISOR
Ela não pode sair.
SISSI
Ninguém te perguntou.
Sissi sorri e tira os fones e o microfone.
SISSI
Vou sair, mas não vai ser um pouquinho.
Estende os aparelhos para o supervisor.
SISSI
Se quiser, pode ficar no meu lugar. Ou então
enfia.
CENA 50 - PARQUE - EXTERIOR - DIA
As duas conversam num banco. Marina abre a bolsa e estende um
envelope para Sissi.
MARTINA
Se tu não aceitar, eu nunca vou me perdoar na
vida.
Sissi olha para o envelope, mas não pega.
MARTINA
Nós ainda temos uma grana no banco.
SISSI
Eu tô decidida, tia. (pensa um pouco) Se eu pegar
esse envelope sabe o que eu vou fazer com o
dinheiro? Vou pagar as fotos pro site.
MARTINA
Que site?
SISSI
O que anuncia o serviço. Já falei com a dona, a
que vai me agenciar.
MARTINA
(chocada) Eu não vou permitir...
SISSI
Não vou viver de favor de ninguém, e não volto
praquele emprego de merda. Guarda esse envelope.
Martina não guarda. Sissi levanta.
SISSI
Adorei a visita, tia. Eu tenho ir.
Sissi abaixa-se, beija a tia e afasta-se, em passos rápidos.
CENA 51 - ESCRITÓRIO DE BETINHO/RECEPÇÃO - INTERIOR - DIA
Giane está sentada, sozinha, na pequena recepção de um escritório
modesto, típico das galerias do centro de Porto Alegre. Há muitas
fotos de mulheres penduradas na parede, algumas de bom gosto,
outras bem longe disso. A porta abre e sai uma garota, 20 anos,
maquiada demais. Atrás dela também sai Betinho, 25 anos, com pose
de malandro. Giane levanta-se. Os dois se beijam.
BETINHO
Cadê a sua amiga?
GIANE
Ela ficou lá em baixo.
BETINHO
Por quê?
GIANE
Ficou envergonhada.
BETINHO
Envergonhada de quê?
GIANE
Ela tá começando, Betinho. Daqui a pouco ela sobe.
BETINHO
(sorrindo) Tá bom. Vamos entrar?
CENA 52 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA
Betinho senta atrás de uma escrivaninha velha e indica uma
cadeira à sua frente para Giane. Numa mesa auxiliar, um
computador divide o espaço exíguo com estantes de plástico cheias
de CDs e uma câmera fotográfica digital. Assim que senta, Giane
abre a bolsa e pega quatro notas de cinqüenta reais. Estende-as
para Betinho.
GIANE
Tá aqui.
Betinho conta.
BETINHO
Só tem duzentos.
GIANE
Depois ela dá o resto.
Betinho coloca o dinheiro em cima da mesa, na frente de Giane.
BETINHO
Já tô fazendo desconto. O preço de tabela é...
GIANE
(cortando) Que tabela, Betinho? Não faz onda.
BETINHO
A minha tabela. Se é pra fazer serviço porco,
contrata o Vanderlei.
CENA 53 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE/LANCHERIA -
INTERIOR - DIA
Sissi termina de comer um pastel. Passa o dedo no prato, pegando
as migalhas. Leva o dedo à boca. Olha para os outros
freqüentadores da lancheria e para o liquidificador, onde uma
vitamina está sendo preparada. Parece nervosa.
CENA 54 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA
GIANE
(sedutora, inclinando-se na direção de Betinho) Tu
tá muito chato. Vamos negociar.
BETINHO
(sorrindo) Eu conheço o teu negócio. Ele não enche
a barriga de ninguém.
Giane suspira e abre a bolsa.
GIANE
Tá bom. Eu consigo mais cinqüenta.
Betinho levanta e coloca a câmera numa sacola de equipamentos
fotográficos. Põe a sacola no ombro.
BETINHO
Tchau, Giane. Eu tenho trabalho daqui a meia-hora.
GIANE
Eu consegui o motel pra amanhã. Dá uma força.
BETINHO
Dou. E tu me dá quatrocentos reais.
Betinho passa por Giane e abre a porta olhando para ela, Não
percebe que Sissi está de pé, junto à porta. Giane vê a amiga.
GIANE
Essa é a Sissi.
Betinho vê Sissi. Os dois se olham. Sissi está nervosa.
SISSI
Oi.
BETINHO
Oi.
Por mais alguns segundos, os dois apenas se olham. Sissi tenta
sorrir. Betinho recua um pouco.
BETINHO
Entra, por favor.
Sissi entra. Betinho larga a sacola e indica uma cadeira ao lado
de Giane. Sissi senta. Betinho também senta e não desgruda os
olhos de Sissi. Giane percebe e sorri.
BETINHO
Então... Tu precisa de umas fotos...
Sissi sorri para ele, envergonhada.
CENA 55 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA
Martina está na cozinha, com uma cara péssima, cabelo todo
desgrenhado, tomando café de roupão. Toca o interfone. Ela vai
atender.
SEU ZÉ
(OFF) É o rapaz do lixo limpo.
MARTINA
Diz pra ele que hoje eu não tenho nada.
Martina desliga o interfone e volta a sentar. Dá mais uma mordida
no pão. De repente, levanta e vão até o interfone. Aperta o
botão.
SEU ZÉ
(OFF) Sim?
MARTINA
O rapaz do lixo ainda tá aí?
SEU ZÉ
Já tá lá na rua. Mas se a senhora quiser...
MARTINA
Chama ele, por favor.
Martina desliga o interfone e corre na direção do quarto.
CENA 56 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE/ELEVADOR - INTERIOR -
DIA
Betinho, Giane e Sissi descem no elevador cheio de freqüentadores
da galeria. Betinho olha para Sissi. Sissi olha para o chão.
Giane olha para Betinho e sorri.
CENA 57 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA
William está comendo um sanduíche, enquanto Martina coloca leite
quente numa xícara. Ela continua de roupão, mas ajeitou um pouco
o cabelo e passou batom.
MARTINA
Hoje vai ter que ser café solúvel.
WILLIAM
Não tem problema.
Ela prepara o café para William. Enquanto ela serve, os dois
começam a se olhar, primeiro por poucos instantes, desviando os
olhos, depois com mais tempo e mais intensidade.
MARTINA
Açúcar ou adoçante?
WILLIAM
Açúcar.
Martina senta e começa servir café para ela mesma. A troca de
olhares se intensifica. Martina coloca leite em sua xícara, que
fica cheia e começa a transbordar sem que ela perceba. Num
rompante, os dois se inclinam sobre a mesa e se beijam.
CENA 58 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE - INTERIOR - DIA
Betinho, com a sacola no ombro, beija Sissi e Giane.
BETINHO
(para Sissi) Não te preocupa. Vai dar tudo certo.
Betinho se afasta. Depois de alguns passos, pára, volta-se para
as duas e abana, sorridente. Elas abanam de volta. Ele vai
embora, ainda mais feliz. As duas se olham. Giane faz uma cara
divertida. Sissi está envergonhada.
CENA 59 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA
Martina e William beijam-se, de pé, contra a geladeira. Martina
passa a mão no peito de William, que a leva na direção da pia,
sem parar de beijar. William segura Martina e a faz sentar na
pia. Os dois se abraçam. William vai tirando o roupão de Martina,
que está de baby-doll. Martina consegue tirar a camisa de
William. De repente, contudo, Martina volta a fechar o roupão e
empurra William.
MARTINA
Eu não consigo.
WILLIAM
A senhora me desculpe. Eu não devia...
MARTINA
(cortando) A culpa foi minha. Eu te mandei subir.
WILLIAM
Não. Hoje eu nem devia ter passado aqui.
MARTINA
Então, por que passou? Tava com fome?
WILLIAM
(hesita um pouco) Não. Passei pra ver a senhora.
MARTINA
Só ver?
CENA 60 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - DIA
William deita-se sobre Martina na cama. Os dois começam a tirar a
roupa, beijando-se sem parar. Parece que a transa finalmente vai
acontecer. Mas, depois de muitas carícias, Martina afasta-se mais
uma vez. Recoloca o roupão, mas não sai da cama.
MARTINA
Eu não vou conseguir.
WILLIAM
Eu entendo. Aqui nessa cama deve ser difícil pra
ti.
MARTINA
A cama não é o problema.
WILLIAM
Então é o meu cheiro.
MARTINA
Tu tem um cheiro mais maravilhoso.
Martina aproxima-se de William.
MARTINA
É que... Eu queria te pedir uma coisa.
William olha para Marina, sem entender.
CENA 61 - MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - DIA
Giane está fazendo a maquiagem em Sissi, que veste um roupão de
banho. Betinho faz ajustes num tripé que sustenta um flash
simples. Giane termina a maquiagem, abre uma sacola e começa e
mostrar calcinhas e sutiãs para Sissi.
GIANE
Tem essa, de rendinhas, e essa outra aqui, com
esse furinho, que são as mais bonitas.
SISSI
Nem pensar. Com furinho, nem pensar.
GIANE
(falando baixinho) Sissi, tu também vai tirar sem
nada. Que diferença faz?
SISSI
Prefiro "sem nada" que "com furinho".
BETINHO
Eu tô pronto.
Betinho olha para as duas.
GIANE
(para Sissi) Rendinhas ou furinho?
SISSI
Rendinhas.
Sissi levanta-se, decidida, e troca a calcinha, ainda vestindo o
roupão. Depois tira o roupão, ficando só de calcinha e sutã.
Volta-se para Betinho.
SISSI
Meu rosto não vai aparecer, tem certeza?
Betinho fica impressionado com a beleza de Sissi.
BETINHO
Tenho. Vamos começar na banheira?
SISSI
Na banheira, de calcinha de renda?
BETINHO
É. Tem razão. Então começamos na cama.
Sissi olha para Giane, nervosa.
GIANE
Vamos deixar a cama pra depois.
SISSI
Tô com um pouco de frio.
BETINHO
Ela tá com frio, Giane. Não tem um casaquinho?
Giane olha para Betinho, espantada.
GIANE
Casaquinho? Nunca vi casaquinho nesse tipo de
foto.
BETINHO
Tem uns casaquinhos meio transparentes, sabe?
GIANE
Não inventa moda! Nas minhas fotos não teve
casaquinho nenhum.
Betinho aproxima-se do console e liga o ar-condicionado.
BETINHO
Pronto. Já vai esquentar.
SISSI
Obrigado.
BETINHO
De nada. Vamos lá? (indicando uma cadeira) Senta
ali. Vamos começar com uns retratos.
SISSI
Mas o meu rosto não pode aparecer.
BETINHO
Nós vamos fazer de um jeito que não apareça o
rosto. Se aparecer um pouquinho, a gente borra no
photoshop.
GIANE
Fica aquela nuvenzinha na cara que eu te mostrei.
Betinho já está com a câmera a postos.
BETINHO
Joga o cabelo pra frente, Sissi.
Sissi obedece. Giane ajuda. Betinho enquadra.
BETINHO
Agora, vira o rosto pro lado.
Sissi obedece.
BETINHO
Assim... Assim... Perfeito.
Betinho aperta o botão. O flash dispara.
CENA 62 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - DIA
Martina e William na porta de saída, ainda fechada. William está
com um saco de lixo na mão.
WILLIAM
Eu não sei se vou conseguir fazer direito.
MARTINA
Tudo bem. É só uma brincadeira. Eu não sou louca,
William. Só vou te ligar quando for totalmente
seguro. Pode confiar em mim.
Martina beija William, que sorri, meio encabulado.
CENA 63 - MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - DIA
Sissi retoca a maquiagem no banheiro. Giane conversa com Betinho
em voz baixa.
GIANE
Que palhaçada é essa? Ela nem tirou o sutiã ainda.
BETINHO
Tu disse que era pra ir devagar.
GIANE
Não tão devagar. Eu tenho compromisso daqui a uma
hora. A Brigite não vai aceitar essas fotos.
BETINHO
Por quê? Elas estão ficando ótimas.
GIANE
Tem que mostrar o corpo dela. Peito, bunda, tudo.
Ela tá depilada. Eu já conferi.
Sissi volta.
GIANE
Sissi, querida, agora vamos fazer sem o sutiã.
Sissi olha para Betinho como quem pede ajuda. Giane olha para
Betinho, reafirmando sua ordem.
BETINHO
OK, Sissi. Vamos lá.
Betinho afasta-se bastante e troca a objetiva da câmera.
BETINHO
Pode tirar.
Sissi respira fundo e aproxima as mãos do sutiã. Hesita um pouco.
Betinho vira-se de costas e regula alguma coisa na câmera. Só
então Sissi tira o sutiã. Giane fica pasma e aproxima-se de
Betinho. Cochicha no ouvido dele.
GIANE
Comigo tu ficou bem perto em todas as fotos.
BETINHO
É que eu ainda não tinha essa tele.
GIANE
E não virou de costas.
BETINHO
A menina é iniciante.
Betinho vira-se para Sissi, que imediatamente cobre os seios com
as mãos.
GIANE
(para Sissi, ríspida) Abaixa essas mãos, Sissi.
BETINHO
Calma. A gente pode começar assim. (para Sissi) O
principal, Sissi, é que a gente mostre que o teu
corpo é a suprema promessa da felicidade.
GIANE
O quê?
BETINHO
Tem que deixar espaço pra imaginação. O que é a
beleza? É a promessa da felicidade. (para Sissi)
Tem que descobrir um pouquinho mais. Assim...
Sissi descobre um pouco mais os seios.
BETINHO
Agora vira o rosto. Perfeito. Tá lindo!
Betinho ergue a câmera. Giane olha para os dois, incrédula.
CENA 64 - APARTAMENTO DE MARTINA - INTERIOR - DIA
Sissi e Martina olham para as provas das fotos, impressas em
papel ofício. Apesar de algumas poses serem mais explícitas que
as mostradas na cena anterior, ainda são bastante discretas.
MARTINA
Estão lindas.
SISSI
Acha mesmo?
MARTINA
Claro.
SISSI
O Betinho - o fotógrafo, sabe? - foi bem querido.
A Giane tinha me dito que ele gostava de tirar uma
casquinha, mas que nada, ele foi legal.
MARTINA
E agora?
SISSI
Agora elas vão pro site.
Toca o celular. Sissi atende
SISSI
Alô. (pausa) Oi, Betinho. (para Martina) É o
próprio. (pausa maior) Certo. Eu passo aí.
Desliga. Parece confusa.
SISSI
Ele disse que as fotos estão com problema. Eu vou
lá falar com ele. (pausa) Tia, a senhora pode me
emprestar trinta reais? Eu tenho que comprar umas
coisas pro Diego.
CENA 65 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA
Betinho olha para Sissi, com ar preocupado. Sissi está com os
contatos na mão.
BETINHO
Nunca aconteceu antes. Acho que foi um problema de
compressão. Os arquivos estão corrompidos.
SISSI
A Giane disse pra mim pegar o dinheiro de volta.
Ela já falou com outro fotógrafo.
BETINHO
Que fotógrafo?
SISSI
Vanderlei, acho.
BETINHO
O Vanderlei? Nem pensar. Ele vai se aproveitar de
ti.
SISSI
Pode me dar os duzentos reais de volta?
Betinho não responde, nem faz menção de pegar a carteira.
SISSI
Por favor?
BETINHO
É que... Eu tava mentindo. As fotos não têm
problema nenhum. Mas não posso mandar essas fotos
pra Brigite.
SISSI
Por quê?
BETINHO
Porque... Não é vida pra ti.
Giane entra no escritório.
GIANE
Betinho, o que aconteceu?
SISSI
Ele disse que as fotos não têm problema nenhum.
GIANE
Tu tá tirando onda com a gente? Manda essas fotos
pra Brigite agora, ou então devolve o dinheiro!
(para Sissi) Já marquei com o Vanderlei. (para
Betinho) Devolve a grana, Betinho, ou tu vai
passar o resto da vida fotografando vaca na
Expointer.
Betinho olha para as duas, sem saber o que fazer.
BETINHO
(vencido) Tá bom. Eu mando as fotos.
GIANE
Ótimo. Semana que vem a Sissi te passa os duzentos
que estão faltando.
BETINHO
(deprimido, para Sissi) Não precisa. Tá pago.
As duas olham pra ele, espantadas.
CENA 66 - BAR - INTERIOR - NOITE
Rogério e Borges conversam e tomam cerveja.
BORGES
Ouvi falar que o Tadeu, em São Paulo, vai dançar.
E aí eu vou pro lugar dele, e tu vem pro meu
lugar. Tá tudo esquematizado, cara.
ROGÉRIO
Quem te disse que o Tadeu vai dançar?
BORGES
A Marlúcia. (malicioso) A tua Marlúcia.
ROGÉRIO
Minha porra nenhuma.
BORGES
(sorrindo) Tá bom. A minha Marlúcia.
ROGÉRIO
O que tu quer dizer com isso?
BORGES
(inocente) Eu? Nada?
ROGÉRIO
Tu também comeu a Marlúcia.
BORGES
Eu?
ROGÉRIO
(quase gritando) Comeu, sim!
BORGES
Calma, Rogério. Fala mais baixo.
ROGÉRIO
Tu é o cara mais escroto do universo.
BORGES
Eu sou o cara que salvou o teu emprego.
ROGÉRIO
Como é que tu consegue? Tu é muito podre!
BORGES
Sabe como eu consigo? Na última vez que eu fui no
motel com ela, eu disse que ia ficar mais um
pouco, que tava começando um jogo na TV que eu não
queria perder. Ela saiu, e eu chamei a puta mais
gostosa dessa cidade. Sabe quanto ela custa?
Seiscentos reais. Só de pensar nela, eu já fico
com tesão. É assim que eu consigo. Se tu quiser,
eu te passo o telefone. (pausa) Ela aceita cartão
de crédito.
CENA 67 - APTO. DE SISSI/QUARTO DE SISSI - INTERIOR - NOITE
Sissi lê uma história para Diego, que está quase dormindo. O
livro tem cara de ser novo. Também há um estojo grande de canetas
"zero quilômetro" sobre as cobertas.
SISSI
O lobo soprou e soprou, mas a casa não desabou.
DIEGO
Por que não desabou?
SISSI
Porque essa casa era de tijolo.
DIEGO
E aí o lobo não conseguiu entrar?
SISSI
Não.
DIEGO
Tu disse que o lobo queria comer os porquinhos.
SISSI
Disse.
DIEGO
(quase dormindo) Então ele tava com fome, né?
SISSI
Devia estar.
DIEGO
Coitado do lobo...
Diego dorme. Sissi fecha o livro. Deita em sua própria cama.
Acende a luz de cabeceira. Pega um livro sobre tragédias gregas.
Tenta ler.
ADÃO
(OFF) Sissi?
Sissi vê seu pai no vão da porta.
ADÃO
O Diego já dormiu?
SISSI
Já.
ADÃO
Eu trouxe pão e leite. Tu vai querer?
CENA 68 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - NOITE
Pai e filha comem pão e tomam leite.
ADÃO
O Diego adorou os presentes.
SISSI
Eu disse pra ele que vamos fazer a festinha de
aniversário assim que der. Onde tu conseguiu
dinheiro pra comida, pai?
ADÃO
Eu trabalhei.
SISSI
(muito feliz) Tu conseguiu um emprego?
ADÃO
Não. Eu consegui uma rua.
SISSI
Uma rua?
ADÃO
Negociei com o dono. Vou trabalhar lá nas terças e
quintas e dou vinte por cento pra ele.
SISSI
Trabalhar em quê?
ADÃO
Cuidando dos carros. Deu quase cinco reais hoje, e
eu já paguei a parte dele.
Sissi olha para o pai, que continua comendo, impassível.
CENA 69 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA
Martina e Sissi conversam. Sissi está nervosa.
MARTINA
Sissi, liga e cancela tudo. É perigoso.
SISSI
Eu não tenho medo dos caras, tia. A Giane disse
que Brigite tem amigos na polícia, e ninguém se
passa com as gps dela. Eu tenho medo de não fazer
direito, de estragar tudo. A Giane me deu umas
dicas, disse que eu tenho que gemer... Eu não
solto nem um ai quando tô trepando. Como tu fazia?
Martina ri.
MARTINA
O segredo é começar baixinho, pro cara não
perceber que é encenação. Se logo no começo tu já
começa a gritar, fica falso.
SISSI
Como é que se faz, assim, baixinho?
MARTINA
Ai, Sissi. Que absurdo.
SISSI
Por favor, tia.
MARTINA
Era assim... (geme) Ahhhh...
Sissi ri. Martina também.
SISSI
Só isso? (tenta imitar) Ahhh...
MARTINA
Começa assim, depois vai aumentando.
SISSI
Faz, tia, por favor.
MARTINA
(gemendo) Ahhhh... Ahhhh... Ahhhhhhhhhhhh...
SISSI
(imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh...
MARTINA
Depois fica mais forte. (mais alto) Ahhhhh...
Ahhhh... Ahhh...
SISSI
(imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh...
MARTINA
E tem que ficar virando a cabeça de um lado pro
outro. (sacode a cabeça) Ahhhh... Ahhhhh...
Ahhhh...
SISSI
(imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh...
MARTINA
Dependendo do gosto cliente, dá pra ser mais
escandalosa e gritar um pouquinho. (gritando)
Tipo... Aiiii... Aiiii... Aiiiiiii...
SISSI
(imitando os gritos) Aiiii... Aiiii... Aiiiiiii...
CENA 70 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - DIA
Rogério entra no elevador e aperta o botão do seu apartamento. O
elevador começa a subir.
CENA 71 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA
Continua a palhaçada. As duas riem bastante.
MARTINA
Tinha uns que me pediam pra falar uns palavrões.
SISSI
Palavrões?
MARTINA
É. Mas eu não gostava. Muita baixaria. Aí, pro
cara não ficar brabo, eu tinha que caprichar muito
e fazia o meu gemido especial. O cara achava que
tava gozando, e gozava também.
SISSI
Como era o especial?
MARTINA
(entre risos) Não consigo mais fazer.
SISSI
Faz tia, por favor.
CENA 72 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR DO APARTAMENTO - INTERIOR
- DIA
Rogério sai do elevador, com a chave na mão. Quando coloca a
chave na fechadura, ouve vozes, abafadas, mas bem evidentes.
MARTINA
(OFF) Aiiiiii... Ahh... Aiaiaiaiaiaiaiaiaia...
Rogério congela. Ouve uns risos abafados. Encosta o ouvido na
porta e escuta.
SISSI
(OFF) Aiiiiii... Ahh... Aiaiaiaiaiaiaiaiaia...
Rogério gira a chave, abre a porta e entra rápido no apartamento.
CENA 73 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA
As duas mulheres, sentadas frente a frente, olham para Rogério,
assustadas e tentam se recompor.
MARTINA
Eu tava contando pra Sissi um filme que eu vi.
ROGÉRIO
Que filme?
MARTINA
Não lembro o nome. Vi quando era pequena. Era uma
comédia italiana. Tinha um campeonato de gemidos
eróticos. Uma velha de oitenta anos ganhou.
Rogério fica olhando para as duas por um tempo.
SISSI
Desculpe, tio. Eu que fiz a tia gritar daquele
jeito.
ROGÉRIO
Tudo bem. (para Martina) Tem alguma coisa pro
almoço?
MARTINA
Eu faço num instante.
Rogério sai da sala. Toca o celular de Sissi. As duas se olham e
enxugam os olhos, que ainda estão cheios de lágrimas. Ela atende.
SISSI
Alô. (pausa) Oi, Brigite. (pausa) Mas ainda são...
(pausa) Certo. O táxi me pega às quinze pras duas.
(pausa) Depois, direto lá. (pausa) Entendi.
(pausa) Obrigado. Tchau.
Sissi desliga o telefone e olha para Martina.
SISSI
(baixinho) A Brigite botou as fotos, e um cliente
já marcou. Eu começo amanhã.
As duas se olham, e agora não há mais brincadeira alguma.
CENA 74 - APARTAMENTO DE SISSI/BANHEIRO - INTERIOR - DIA
Giane observa Sissi terminando de passar batom.
GIANE
Tá ótimo. Tá linda, Sissi. Que roupa tu vai usar?
Sissi vira-se para Giane.
SISSI
Essa aqui tá ruim?
Giane olha para o jeans e a blusa de Sissi.
GIANE
A calça tinha que estar mais apertada na bunda,
mas pra essa hora, tá legal. O mais importante é o
que tem em baixo. Deixa eu ver.
SISSI
Ver o quê?
GIANE
A calcinha e o sutiã.
Sissi hesita um pouco, mas depois tira a roupa. Está com uma
roupa de baixo bem discreta. Giane faz cara de quem não gostou.
GIANE
Não dá. Isso é calcinha de freira. Bota uma
menorzinha.
SISSI
Essa é a menor de todas. (em dúvida) Eu tenho...
Umas coisas antigas...
GIANE
Deixa eu ver.
Sissi sai do banheiro.
CENA 75 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO - INTERIOR - DIA
Sissi pega o pacote com as lingeries de Martina no fundo armário.
Abre o pacote e olha para as peças de roupa.
SISSI
(para si mesma) Cento e vinte reais. Cento e vinte
reais. Cento e vinte reais.
CENA 76 - APARTAMENTO DE SISSI/BANHEIRO - INTERIOR - DIA
Giane olha para Sissi, espantada.
GIANE
Onde tu conseguiu essas coisas?
Sissi está usando a lingerie de Martina.
SISSI
Não interessa. Essas tão boas?
GIANE
Tão. São meio antigas, mas devem funcionar.
SISSI
Ótimo.
Sissi começa a se vestir.
GIANE
O motorista se chama Heitor. É meio bagaceiro,
luta jiu-jitsu, mas é de confiança. Se o cliente
não se comportar, é só ligar pra ele.
CENA 77 - ESCOLA PÚBLICA/FACHADA - EXTERIOR - DIA
Diego corre na direção de Sissi e Giane. Sissi abraça Diego.
DIEGO
(admirado) Como tu tá bonita, Sissi.
SISSI
Obrigado. Essa é a minha amiga Giane.
Giane beija Diego e mexe no cabelo dele.
GIANE
Que amor.
DIEGO
(para Sissi) Parece que tu vai numa festa.
SISSI
É que eu tô começando num emprego novo.
DIEGO
Eu sei. O vô me falou que tu vai ser atriz.
SISSI
Atriz?
DIEGO
É. Tu vai fazer representação. Quem faz
representação não é atriz?
Sissi sorri amarelo para Diego.
CENA 78 - RUA DE SHOPPING - EXTERIOR - DIA
Um táxi, dirigido por Heitor, 25 anos, estaciona. Giane e Sissi
se aproximam dele.
GIANE
Oi, Heitor.
HEITOR
Oi, Michele.
GIANE
Essa é a Helena.
HEITOR
(para Sissi) Prazer.
Giane abraça forte Sissi.
GIANE
Vai dar tudo certo.
SISSI
Claro que vai.
Sissi entra no táxi, que arranca. Giane abana.
CENA 79 - TÁXI - INTERIOR/EXTERIOR - DIA
Heitor dirige e tenta observar Sissi pelo espelho. Sissi abre a
bolsa, pega um óculos escuro e o coloca.
HEITOR
Nova com a Brigite?
SISSI
Hahã.
HEITOR
Veio do interior?
SISSI
Não.
HEITOR
Trabalhava com quem antes?
Sissi não responde. Heitor dirige em silêncio por um tempo.
HEITOR
É a primeira vez, né?
SISSI
A Brigite te falou?
HEITOR
Não. Se tu quiser, eu fico te esperando no
estacionamento do motel. Cobro trinta e cinco
reais, e a corrida fica por conta.
SISSI
Não precisa.
HEITOR
Tu que sabe. Tem umas meninas que gostam. Se
sentem mais seguras. (pausa) A Giane te explicou
que tu pode me chamar, se o cara complicar?
SISSI
Explicou.
Heitor sorri, tranqüilizador.
HEITOR
Vai dar tudo certo.
Sissi tenta sorrir de volta, mas não consegue.
CENA 80 - PORTARIA DE MOTEL 2 - EXTERIOR - DIA
O táxi de Heitor está parado na portaria. Ele fala com o
interfone.
HEITOR
É a Helena. O Juliano tá esperando por ela.
VOZ DE MULHER
(OFF) Box vinte e dois.
O portão abre. O táxi entra.
CENA 81 - PÁTIO DE MOTEL 2 - EXTERIOR - DIA
O táxi pára no box 22, que está com o toldo abaixado. Sissi
desembarca.
HEITOR
Tem certeza que não quer que eu espere?
SISSI
Tenho. Obrigada.
O táxi arranca. Sissi passa pela fresta entre o toldo e a parede
e entra no box.
CENA 82 - BOX DE MOTEL 2/ESCADA/PORTA DO QUARTO - INTERIOR - DIA
Está muito escuro no box. Sissi tem certa dificuldade de ver onde
está a escada. Avança devagar, pelo lado de um carro pequeno, até
achar um interruptor. Acende a luz. Agora pode ver melhor o
carro: além de pequeno, é velho e está sujo. Sissi olha para a
escada. Pensa um pouco. Depois segue em frente. Sobe as escadas
lentamente. Chega na porta. Não bate de imediato. Respira fundo.
Bate. Ouve passos aproximando-se. A porta abre. Sissi vê Betinho,
que sorri para ela.
BETINHO
Oi.
SISSI
O que tu tá fazendo aqui?
BETINHO
Não quer entrar?
SISSI
Onde está o cliente, o Juliano?
BETINHO
Entra, por favor.
Sissi entra, desconfiada.
CENA 83 - QUARTO DE MOTEL 2 - INTERIOR - DIA
Sissi fica parada perto da porta. Betinho dá um sorriso amarelo.
BETINHO
Eu te enganei, desculpa. Vou te pagar, mas não
quero transar contigo.
SISSI
Não tô entendendo.
BETINHO
Eu tô apaixonado.
Sissi olha para ele, confusa. Betinho abre a carteira e pega três
notas de cinqüenta reais. Estende as notas para Sissi. Sissi não
pega o dinheiro.
BETINHO
Eu te amo, de verdade.
SISSI
Tu nem me conhece.
BETINHO
Eu quero conhecer.
SISSI
Mas eu não quero. Eu tenho um namorado e tô
apaixonada por ele. Eu só preciso de dinheiro.
BETINHO
Então pega, por favor.
Sissi, em vez de apanhar o dinheiro, pega o celular e começa a
discar.
BETINHO
O que tu tá fazendo?
SISSI
Chamando o táxi. Eu vou embora.
BETINHO
Não.
SISSI
(ainda discando) Eu não vou transar contigo.
BETINHO
Eu já disse: não quero transar. Vamos conversar.
SISSI
Meu emprego de antes era conversar. Cansei de
conversar. (no telefone) Heitor? Pode me pegar?
(pausa) Não. Tá tudo bem. Depois te explico.
Sissi desliga o celular.
BETINHO
Não faz isso. Por favor, Sissi.
Sissi guarda o celular. Pega uma das notas de cinqüenta.
SISSI
Vou ter que pagar o táxi. (pausa) Pra ti, meu nome
é Helena. Tchau.
Sissi dá meia volta e sai do quarto, batendo a porta atrás de si.
Betinho guarda o dinheiro, triste.
CENA 84 - TÁXI - INTERIOR/EXTERIOR - DIA
Heitor dirige e conversa com Sissi.
HEITOR
Eu sempre achei esse guri meio fora da casinha,
mas essa foi demais. Vou avisar a Brigite. O cara
tem que ser profissional.
SISSI
Acho que ele não fez por mal. Deixa assim.
HEITOR
Tu que sabe. Pra onde vamos?
SISSI
Não sei. Eu tenho que trocar de roupa.
Toca o celular de Sissi. Ela atende.
SISSI
Alô. (pausa) Oi, Brigite. (pausa; hesita um pouco)
Não. Já tô liberada.
CENA 85 - RUA DE SHOPPING - EXTERIOR - DIA
O táxi de Heitor está parado. Sissi desce, e o carro arranca.
Sissi olha o relógio de pulso e caminha na direção de uma das
entradas do prédio. Betinho aparece de repente ao lado dela.
Sissi pega o celular.
SISSI
Vou ligar pra Brigite e avisar que tu tá me
seguindo.
BETINHO
Não, por favor.
SISSI
Então vai embora e me deixa em paz.
BETINHO
Eu tenho uma proposta. Uma proposta séria. Uma
amiga minha trabalha numa agência de modelos. Uma
agência grande. Eu posso te apresentar pra ele e,
se ela achar que tu tem alguma chance, eu faço um
book pra ti, e aí tu consegue uns trabalhos de...
Sissi começa a discar.
BETINHO
Tu não acredita em mim?
SISSI
Não. (pausa) Alô, Brigite? É a Helena.
BETINHO
Tudo bem, eu vou embora!
SISSI
(no celular) Só um pouquinho.
Sissi olha para Betinho, que vai se afastando aos poucos.
SISSI
(no celular) Agora tá tudo bem. Tchau.
Betinho caminha para longe de Sissi. Um carro pára na calçada,
perto da entrada do shopping. Sissi olha para o carro e caminha
na sua direção. O motorista é Borges. Sissi aproxima-se do carro.
Borges abre a janela e olha para Sissi.
BORGES
Helena?
SISSI
Sou eu.
Borges abre a porta.
BORGES
Entra.
Sissi entra.
BORGES
Prazer, Borges.
Os dois trocam beijos no rosto. O carro arranca. Betinho,
desolado, vê o carro se afastando. Num rompante, corre para a rua
e chama um táxi.
CENA 86 - CARRO DE BORGES - INTERIOR/EXTERIOR - DIA
Borges e Sissi conversam. A mão de Borges acaricia o joelho de
Sissi.
BORGES
Tem preferência por algum motel?
SISSI
Não.
BORGES
Impressão minha, ou tu tá nervosa?
SISSI
Impressão.
BORGES
A Brigite disse que tu é iniciante. Começou
quando?
SISSI
Há seis meses, mais ou menos.
BORGES
Duvido. Aposto que começou semana passada. Mas pra
mim tá ótimo. Odeio PPP.
SISSI
O que é isso?
BORGES
Papo padrão de puta. É sempre igual: vou fazer
programa só até o final do ano, juntar um dinheiro
pra ajudar a família e pagar a faculdade, depois
vou casar com meu namorado e ter filhos.
Borges sorri para Sissi, que sorri amarelo de volta. Borges
acaricia com mais força.
CENA 87 - FACHADA DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA
O carro de Borges entra no motel. O táxi de Betinho pára alguns
metros antes da entrada e Betinho desce. Betinho caminha um pouco
e depois senta no meio-fio.
CENA 88 - QUARTO DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA
Sissi tira a roupa devagar, enquanto Borges toma banho fora de
quadro.
BORGES
(OFF) Não quer mesmo tomar banho?
SISSI
Acabo de tomar.
BORGES
(OFF) Tudo bem. Passou o nervosismo?
SISSI
Passou.
BORGES
(OFF) Não parece.
Borges vem para o quarto, com uma toalha enrolada na cintura.
Sissi está com a calcinha e o sutiã de Martina. Tenta sorrir.
Borges olha para ela. Parece satisfeito.
BORGES
Posso te dar um conselho?
SISSI
Acho que sim.
Borges aproxima-se e acaricia os seios de Sissi.
BORGES
Não bota silicone nos peitos. Gosto deles assim.
SISSI
Obrigado.
Borges beija o pescoço de Sissi.
BORGES
Tu tá tremendo.
SISSI
Não tô não.
Sissi estende o braço e enfia a mão na fenda da toalha. Borges
sorri.
BORGES
Tu não parece uma puta, não fala como uma puta e
não faz nada que uma puta deve fazer. (pausa) Mas
não tem problema. Olha pra mim.
Sissi levanta os olhos.
BORGES
Tira essa mão. Tá gelada.
Sissi tira. Borges acaricia os cabelos de Sissi.
BORGES
Eu gosto de namorar. Tu não gosta? Finge que eu
sou teu namorado.
Borges beija Sissi no rosto e vai se aproximando da boca, mas,
quando a toca, Sissi recua.
SISSI
Eu não beijo na boca.
Borges se irrita.
BORGES
Não beija na boca? (aponta para a cama) Então
deita!
Sissi não deita.
BORGES
(gritando) Deita, porra!
Sissi deita.
BORGES
Se não quer ser namoradinha, vai ter que ser puta.
Borges aproxima-se da cama.
CENA 89 - FACHADA DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA
Betinho continua esperando, sentado no meio-fio. O portão do
motel abre e o carro de Borges sai. Betinho vê o carro passar,
sem Sissi em seu interior. O portão fecha outra vez. Betinho
aproxima-se da portaria e olha por uma fresta do portão. Vê Sissi
sentada num banco.
BETINHO
Sissi.
Sissi olha para ele, séria. O portão abre. Sissi sai devagar e
fica parada na frente de Betinho.
BETINHO
Vou chamar um táxi.
SISSI
Já chamei. Deve estar chegando.
Os dois se olham por algum tempo. Então, sem aviso prévio, Sissi
abraça-se a Betinho, que a abraça também. Sissi chora
discretamente, de modo que Betinho não perceba. O abraço se
prolonga.
SISSI
O que tu tava fazendo aqui?
BETINHO
Te esperando.
SISSI
Tu é louco.
O táxi de Heitor estaciona. Heitor olha para Betinho,
desconfiado, e abre a porta para Sissi.
SISSI
(para Betinho) Tchau.
BETINHO
Fica comigo, Sissi.
SISSI
Eu tenho que trabalhar.
Sissi vai entrar, mas Betinho a segura pelo braço.
SISSI
Me solta.
HEITOR
Solta ela!
BETINHO
Tu não precisa disso, Sissi.
Heitor sai do carro e vai direto pra cima de Betinho, que não
larga o braço de Sissi. Heitor acerta-lhe um soco na barriga.
Betinho grita de dor e cai no chão. Heitor vai continuar batendo,
mas Sissi se mete no meio dos dois e impede que a surra continue.
SISSI
Chega! Vamos embora, pelo amor de Deus.
HEITOR
(para Betinho, ainda caído) Se tu te meter de novo
com ela, vai parar no hospital. Ou no cemitério.
Heitor entra no carro, seguido por Sissi, que ainda troca um
olhar com Betinho. O táxi arranca.
CENA 90 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - NOITE
Martina e Rogério estão sentados na mesinha. Rogério come uma
fatia de uma grande torta de chocolate recém cortada.
MARTINA
Só acho estranho ser no fim de semana.
ROGÉRIO
Se eu perder o emprego vou estar livre todos os
dias, de segunda a domingo.
MARTINA
Quer que eu te leve no aeroporto?
ROGÉRIO
Não. O Borges vem me pegar. Se tudo der em São
Paulo, a minha situação melhora bastante.
Hummmm... Tá demais. E tu nem me avisou que tinha.
Quando tu fez?
MARTINA
Hoje de tarde.
ROGÉRIO
Mas eu te disse que ia viajar. E essa torta é
imensa.
MARTINA
Eu já tinha começado quando tu ligou.
ROGÉRIO
Vê se não come tudo. Vou querer na segunda-feira.
(aponta para a torta). Isso aqui tu sabe fazer.
Toca a campainha. Ele enfia mais um pedaço na boca.
ROGÉRIO
Deve ser o Borges. Vou pegar minhas coisas.
Rogério levanta. Martina vai atender.
CENA 91 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA/CORREDOR/ELEVADOR -
INTERIOR - NOITE
Martina abre a porta. É Sissi. Seu rosto demonstra cansaço. Todo
o seu corpo demonstra cansaço. Já trocou de roupa, mas a
maquiagem não foi retirada com cuidado e está meio borrada.
SISSI
Oi, tia. (pausa) Eu... Comecei hoje.
Martina fica meio sem jeito e não sabe o que dizer. Ouvimos o
elevador movimentando-se.
MARTINA
Entra, Sissi.
Sissi vai entrar, mas hesita. Ouvimos o barulho de um celular
chamando.
SISSI
Tu tá sozinha?
MARTINA
O Rogério já vai sair.
ROGÉRIO
(OFF) Quem é, Martina?
SISSI
(assustada, baixinho) Eu volto amanhã. (estende um
pacote para Martina) Muito obrigado, tia.
Martina pega o pacote.
SISSI
Tchau.
Sissi beija Martina rapidamente, volta para o elevador e aperta o
botão. Rogério aparece na porta do apartamento, com o celular
numa mão e a mala na outra.
ROGÉRIO
O Borges ligou. Está aí em baixo.
Olha para o corredor e vê Sissi.
ROGÉRIO
Oi, Sissi.
SISSI
Oi, tio.
ROGÉRIO
Tá chegando?
SISSI
Não. Eu... Vim só entregar uma coisa pra tia.
MARTINA
Não quer mesmo entrar?
SISSI
Não. Obrigado.
O elevador chega. Sissi abre a porta.
MARTINA
(para Rogério) Não vai aproveitar o elevador?
ROGÉRIO
(meio atrapalhado) Vou, claro.
Rogério beija Martina.
ROGÉRIO
Tchau, amor.
MARTINA
Tchau.
Rogério e Sissi entram no elevador.
CENA 92 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE
O carro de Borges está parado, com o motor ligado, um pouco
adiante da entrada do edifício. Borges toma um gole de cerveja de
uma latinha. Giane está ao seu lado.
BORGES
A Helena confirmou, Michele?
GIANE
Tava fora de área. Vou ligar outra vez.
Giane pega o celular e começa a discar.
BORGES
Sabe, no começo, ela parecia uma virgem, mas
depois que esquentou, foi demais. E era de
verdade! Eu sei quando uma mulher tá me enrolando.
(pausa) Nunca vi ninguém gemer de tesão como essa
tua amiga. Vai crescendo... É uma loucura.
GIANE
(sorrindo) Tá tocando.
CENA 93 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE
Sissi e Rogério no elevador. Toca o celular. Sissi atende.
SISSI
Oi.
CENA 94 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE
Giane fala no celular.
GIANE
Oi, Helena. Que bom que tu atendeu. To indo pra
casa de um amigo meu. (pausa) Ele te conhece, te
viu hoje de tarde... Te adorou. Onde tu tá?
CENA 95 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE
Sissi no elevador. Rogério olha pro chão.
SISSI
Eu tô indo pra casa.
CENA 96 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE
Giane continua no celular.
GIANE
(pausa) E ele tem um amigo que quer te conhecer.
(pausa) Quinhentos reais até domingo de noite.
Limpos. Sem comissão pra Brigite.
CENA 97 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR/PORTARIA - INTERIOR -
NOITE
O elevador chega no térreo. A porta abre. Rogério abre a porta
para Sissi, que continua falando.
SISSI
Sem comissão? (hesita) Obrigado, Giane. Eu já
tenho compromisso. (pausa) Desculpa. Tchau.
Sissi desliga o celular. Estão perto da porta de saída. Seu Zé
abre a porta pra eles.
ROGÉRIO
(nervoso) Tu não quer uma carona?
SISSI
Não, obrigado. Eu vou a pé. Tô pertinho de casa.
(beija Rogério) Tchau, tio.
ROGÉRIO
Tchau, Sissi.
CENA 98 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE
Rogério e Sissi saem do prédio juntos. O carro de Borges está
estacionado à esquerda. Sissi vai para a direita. Rogério vai
para a esquerda e entra no banco de trás do carro.
BORGES
(para Rogério) Essa é a Michele.
ROGÉRIO
Prazer. E a tua amiga?
GIANE
Não vai rolar. Já tinha compromisso.
BORGES
(para Rogério) Não te preocupa. (para Giane) Liga
pra Brigite e pergunta se a Paula tá livre. (para
Rogério) A grande vantagem da Paula é que ela
gosta de cozinhar, e a gente tem que repor as
energias...
Borges ri da própria piada, toma um gole de cerveja e liga o
carro.
CENA 99 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - NOITE
Martina dá um jeito de preencher a fatia de bolo que ficou
faltando na torta e a coloca na geladeira. Pega o pacote aberto
sobre a mesa e examina seu conteúdo: suas antigas lingeries e
três notas de dez reais.
CENA 100 - GRAMADO SUPLEMENTAR DE ESTÁDIO DE FUTEBOL - EXTERIOR -
DIA
Sissi, nervosa, espera a saída de Estevão, que caminha para fora
do campo ao lado de Vandeir. O Seu Lopes está ali perto, bem
sorridente, conversando com um sujeito de terno e gravata, 40
anos. Quando os dois jogadores se aproximam. Sissi abraça Estevão
bem forte. Ele estranha.
ESTEVÃO
O que é isso, Sissi?
VANDEIR
Oi, Sissi.
Sissi nem ouve. Vandeir ri e segue em frente.
ESTEVÃO
Sissi, eu tô todo suado.
SISSI
Não faz mal. Eu te amo muito.
ESTEVÃO
Eu também.
SISSI
Eu tenho uma surpresa pra ti.
ESTEVÃO
E eu tenho que falar contigo. Mas primeiro vou
tomar banho.
Sissi não se desgruda. Estevão olha para Seu Lopes por cima do
ombro de Sissi. Seu Lopes sorri e faz sinal de positivo. O
sujeito de terno e gravata ri e acena para Estevão.
ESTEVÃO
Sissi, tá ficando chato.
Sissi se desgruda um pouco.
SISSI
Desculpa. Vamos sair?
ESTEVÃO
Vamos. Mas eu tenho que voltar às seis.
Sissi volta a abraçar Estevão, feliz.
SISSI
Te prepara. Hoje não vai ter pobreza.
Seu Lopes e o sujeito de terno e gravata olham para os dois e
sorriem.
CENA 101 - QUARTO DE MOTEL 4 - INTERIOR - DIA
Estevão e Sissi estão transando. Vemos os dois rostos juntos,
febris e apaixonados. Estevão está prestes a se acabar.
SISSI
Espera, ainda não.
Sissi escapa de Estevão, estende a mão e pega uma garrafa de
champanha quase no fim. Serve sua taça e toma um gole. Estevão
olha para ela, ofegante e confuso.
SISSI
Nós temos que aproveitar bem tudo isso. (pausa)
Sabe que eu nunca me senti tão feliz em toda a
minha vida?
Sissi estende a taça para ele.
ESTEVÃO
Eu não agüento mais.
SISSI
Não agüenta mais beber?
ESTEVÃO
Nem beber, nem trepar.
Sissi sorri.
SISSI
Tu não é um atleta? Atleta tem que agüentar.
Sissi beija Estevão. Continua sorridente. Tão sorridente que seu
sorriso parece uma máscara de sorriso.
SISSI
(tomando mais um gole de champanha) Lembra que eu
te disse que tinha uma surpresa pra ti?
Sissi pega a carteira na bolsa. Abre a carteira e pega um monte
de notas de dinheiro. Abre-as como um leque.
ESTEVÃO
O que é isso?
SISSI
Meu novo emprego. Sou representante de vendas.
Estevão olha para o dinheiro, sem entender.
SISSI
Nós podemos alugar um apartamento pra nós. Já
pensou? Morar juntos! (pausa, o sorriso se desfaz
no seu rosto) O que foi, Estevão?
ESTEVÃO
Eu... Vou pra Europa depois de amanhã.
Sissi olha para Estevão, mas parece não entender.
ESTEVÃO
Assinei o contrato antes do treino, com um
espanhol. (pausa) A minha mãe vai junto. O Seu
Lopes também.
SISSI
É mentira. O Lopes tá te enrolando há mais de um
ano. Qual é a prova que tu tem?
Estevão levanta e pega um envelope no bolso da calça. Dá o
envelope para Sissi, que o abre e tira duas passagens aéreas.
ESTEVÃO
A minha. E a da minha mãe.
Sissi confere. O destino é Madri. Guarda os bilhetes e devolve o
envelope para Estevão.
ESTEVÃO
Eu tentei te contar no carro, mas não consegui.
Sissi olha para Estevão, mas parece que não o vê.
ESTEVÃO
(sem convicção) Depois de um ano, eu tenho direito
a mais duas passagens, e aí vou mandar uma pra ti.
Sissi continua olhando para Estevão, sem reação visível.
CENA 102 - FACHADA DE MOTEL 4 - INTERIOR - DIA
Sissi sai do motel. Betinho está esperando por ela, sentado no
meio-fio. Ele levanta-se. Sissi olha para ele, mas caminha no
sentido oposto.
BETINHO
Sissi. Eu só quero conversar.
Sissi segue caminhando, em passos rápidos e decididos.
BETINHO
Sissi, por favor.
Sissi não olha para trás.
CENA 103 - RUAS/AVENIDAS - INTERIOR - DIA-NOITE
Sissi caminha, sempre com Betinho atrás dela. Ela não olha para
trás. Sissi passa por várias ruas. Atravessa avenidas. Cruza
bairros. O dia termina. A iluminação pública acende, assim como
os faróis dos carros. Betinho segue atrás dela. Sissi entra na
rua do edifício de Martina e caminha na direção dele.
CENA 104 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE
Sissi aproxima-se da portaria no exato momento em que William
está entrando no edifício, pela porta aberta pelo Seu Zé, que
segura uma vassoura. William, com uma sacola nas mãos, encaminha-
se para o elevador. Sissi aproxima-se do Seu Zé, que volta a
varrer o chão na frente da porta de entrada. Betinho pára na
frente do edifício.
SISSI
A Martina está?
SEU ZÉ
Está, sim, senhora. O rapaz do lixo limpo acaba de
entrar. Ele vai fazer um serviço no apartamento.
Seu Zé abre a porta. Sissi hesita. Olha para a rua, de onde
Betinho olha para ela, com um meio-sorriso bobo no rosto. Sissi
entra no edifício.
CENA 105 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE
O único elevador está subindo. Sissi olha em volta e vê os quatro
pequenos monitores, que mostram a rua em frente ao edifício (onde
está Betinho), a porta da frente da portaria (onde está Seu Zé),
o interior da portaria (onde está a própria Sissi) e o elevador
(onde está William). Sissi fica olhando para este último monitor.
CENA 106 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE
Na tela do monitor observado por Sissi, William mexe na cintura,
tira uma pistola e a examina. Depois guarda a pistola na cintura
outra vez.
CENA 107 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE
Sissi, apavorada, olha para o monitor até que William sai do
elevador. Sissi chama o elevador e corre para a porta de saída.
CENA 108 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE
Sissi aproxima-se de Seu Zé.
SISSI
O cara tem uma arma.
SEU ZÉ
Que cara?
SISSI
O cara que entrou agora.
Betinho aproxima-se dos dois, curioso.
SEU ZÉ
Impossível. Eu conheço o...
SISSI
(cortando) Eu vi a arma. O senhor tem que chamar a
polícia. Liga pro 190.
SEU ZÉ
Tem uma delegacia aqui perto.
SISSI
Então liga. E também liga pro tio.
Seu Zé corre para a portaria. Sissi, meio desnorteada, vai atrás
dele. Betinho a segue. Seu Zé disca. O elevador chega. Sissi e
Betinho entram no elevador.
CENA 109 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE
Sissi e Betinho sobem juntos, sem se falar.
CENA 110 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
Sissi e Betinho saem do elevador e caminham até a porta. Sissi
encosta o ouvido na madeira. Nada. Sissi pensa em bater na
campainha, mas Betinho a impede.
BETINHO
É melhor não assustar o cara.
CENA 111 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
A torta de chocolate, ladeada por duas colheres grandes, uma
garrafa de vinho e dois cálices, está em cima da penteadeira.
William, sentado numa cadeira, aponta a arma para Martina, que
está de pé, perto da cama. Vemos nitidamente que a arma é de
brinquedo. William faz um sinal e Martina começa a tirar sua
roupa, devagar. A lingerie que veste por baixo do vestido é toda
preta. William sorri. Martina fica só de calcinha, sutiã e
sandálias de salto alto, ao melhor estilo Helmut Newton. William
pega uma fita crepe e cordas na sua sacola. Levanta-se. Caminha
na direção de Martina.
CENA 112 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
Seu Zé sai do elevador e aproxima-se de Sissi e Betinho.
SEU ZÉ
A polícia está vindo. O Seu Rogério também.
CENA 113 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
Martina está deitada na cama. William, inclinado sobre ela,
termina de amarrar seus pulsos no espaldar da cama. Seus
tornozelos já estão amarrados nos pés da cama. William pega a
fita crepe e olha para Martina.
WILLIAM
Tem certeza?
MARTINA
Se não, eu posso gritar.
William destaca um pedaço da fita e amordaça Martina.
CENA 114 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
Três policiais, com as armas na mão, saem do elevador.
POLICIAL 1
(para Seu Zé) Não tem a chave?
SEU ZÉ
Não. Mas o dono tá chegando, e ele tem.
O policial 1 olha para os outros dois.
POLICIAL 1
Então vamos esperar.
CENA 115 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
William passa sensualmente a arma de brinquedo pelo corpo de
Martina. William começa a beijá-la.
CENA 116 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
Rogério e Borges saem do elevador. Borges e Sissi se vêem, se
reconhecem e ficam surpresos, mas, depois de um momento de
hesitação, nenhum dos dois fala nada.
POLICIAL 1
(para Rogério e Borges) Cadê a chave?
Rogério passa a chave para o policial 1.
POLICIAL 1
(para os outros policiais) Vamos entrar em
silêncio. Ele é um só, nós somos três. Eu cuido
dele. Vocês fazem a segurança da vítima. (para os
outros) Ninguém mais entra, a não ser que eu
chame. Ninguém!
CENA 117 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
William, sempre com a arma na mão, beija todo o corpo de Martina.
CENA 118 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE
A porta abre, e os três policiais entram, silenciosos. O policial
1 encosta a porta com cuidado e orienta a revista. Um dos
policiais vai para a cozinha. Os outros dois seguem na direção do
quarto.
CENA 119 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
Seu Zé, Sissi, Betinho, Rogério e Borges continuam perto da
porta, esperando, nervosos.
CENA 120 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
William tira a camisa. Martina olha para ele, sorridente. William
a "ameaça" com o revólver.
CENA 121 - APARTAMENTO DE MARTINA/CORREDOR- INTERIOR - NOITE
Os policiais aproximam-se da porta do quarto. O policial 1, à
frente dos outros, é o primeiro a ver o que está acontecendo.
CENA 122 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
William arranca o sutiã de Martina com o cano do revólver.
CENA 123 - APARTAMENTO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
O policial 1, tenso, está em dúvida sobre o momento da invasão.
CENA 124 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
William, ainda com a arma na mão, vai beijar os seios de Martina,
mas, de repente, pára. Vai até a penteadeira, coloca o revólver
sobre ela. Com uma colher, pega um bom pedaço da torta e,
voltando para a cama, coloca um pouco de torta nos dois seios de
Martina. Olha para os seios lambuzados de chocolate e abre um
grande sorriso. Ajoelha-se e começa a lamber um dos seios. O
policial 1 faz uma contagem silenciosa até três para os outros
policiais. No "três", invadem o quarto, com o policial 1 à
frente, apontando sua arma para William.
POLICIAL 1
(gritando) Parado!
William e Martina olham para o policial 1 e, apavorados, não
esboçam qualquer reação. A imagem congela.
CENA 125 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
Com a imagem congelada, ouvimos a seguinte locução (mesmo locutor
da cena 1):
NARRADOR (V.S.)
Temos, neste momento raríssimo, a presença
simultânea dos 3 efes fundamentais da existência
humana: a fome, a foda e o fasma. De acordo com os
estudos do professor Damasceno, as conseqüências
desta extraordinária conjunção são imprevisíveis.
CENA 126 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
A imagem descongela. O policial 2 atira-se em cima de William e
derruba-o no chão, enquanto Martina tenta desesperadamente
soltar-se, sem conseguir. O policial 1 pega a arma de brinquedo e
a examina. O policial 3 começa a ajudar Martina, desamarrando a
cordas do seu pulso direito. O policial 2, de joelhos sobre as
costas de William, algema-o. Com seu braço finalmente livre,
Martina arranca a fita crepe.
MARTINA
(gritando) Não! É um engano. Ele não fez nada.
CENA 127 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
Seu Zé, Sissi, Betinho, Rogério e Borges, através da porta
entreaberta, ouvem os gritos de Martina, abafados, mas
perfeitamente nítidos.
MARTINA
(OFF) Solta ele! Solta ele!
Rogério olha para Sissi, confuso. Borges empurra um pouco a
porta. Agora os gritos ficam mais altos.
MARTINA
(OFF) Nós combinamos tudo. Solta ele!
Rogério entra no apartamento, seguido de todos os outros.
CENA 128 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE
Rogério entra no quarto e vê a seguinte cena: Martina, só de
calcinha, meias e sandálias de salto alto, lambuzada de chocolate
nos seios, e ainda amarrada pelos tornozelos na cama, está
abraçada em William, que continua deitado no chão, algemado, com
o policial 2 ajoelhado em suas costas, enquanto os outros dois
policiais, atarantados, não sabem o que fazer. Martina não
percebe que Rogério está no quarto.
MARTINA
(gritando para os policiais) Era uma brincadeira!
Eu pedi que ele fizesse tudo. Pelo amor de Deus: o
revólver é de brinquedo.
O policial 2 olha para o policial 1, como que perguntando o que
fazer. O policial 1 não esboça qualquer reação.
MARTINA
William, tu tá bem?
WILLIAM
Tô.
MARTINA
Era só uma fantasia que eu tinha. Soltem ele.
Rogério dá mais um passo em frente e finalmente Martina pode vê-
lo. Não diz nada. O policial 1 percebe que Rogério entrou.
POLICIAL 1
(para Rogério) O senhor conhece esse sujeito?
ROGÉRIO
Não.
Sissi entra no quarto. Martina a vê.
MARTINA
Explica pra eles, Sissi.
SISSI
Ele é... (hesita um pouco) Namorado da minha tia.
Rogério olha para Sissi, surpreso. Borges, Betinho e Seu Zé se
espremem para ver alguma coisa. Martina se enrola no lençol.
MARTINA
(para Rogério) Tu não tava em São Paulo?
Rogério não sabe o que dizer. Borges decide socorrer Rogério, e
os dois acabam falando ao mesmo tempo.
BORGES
Nós não fomos.
ROGÉRIO
Voltamos hoje.
Os dois se olham, percebendo a mancada.
MARTINA
(para Rogério) Tu me enganou!
ROGÉRIO
Eu? E tu, tu fez o quê? (gritando) Sua puta!
Sissi se adianta.
SISSI
Não fala assim da minha tia.
ROGÉRIO
Falo sim. Não te mete, fedelha.
Betinho se adianta.
BETINHO
Olha o respeito. Baixa esse dedo.
ROGÉRIO
Baixo coisa nenhuma.
Sissi dá um tapa na mão de Rogério.
BORGES
Olha só a puta!
BETINHO
(para Borges) Repete, se tu é homem!
BORGES
Claro. A tua mulher não sei, Rogério, mas essa
aqui (aponta para Sissi) eu garanto que é puta
mesmo.
Betinho se joga em cima de Borges. Os dois caem no chão e rolam
para fora do quarto. O policial 3 vai apartar. William continua
algemado, no chão. Rogério olha para Martina.
ROGÉRIO
Eu nunca pensei que um dia...
MARTINA
Nem eu, Rogério. Nem eu.
POLICIAL 3
(OFF) Eu preciso de ajuda.
POLICIAL 1
(para policial 2) Solta ele.
O policial 2 tira as algemas de William e sai do quarto. William
levanta-se e olha para os seus pulsos, vermelhos e machucados. O
policial 1 está com um ar cansado.
POLICIAL 1
(para Martina e William) Vou ter que pegar
depoimento de vocês. (para Sissi e Rogério) Vocês
também. Vou esperar na sala.
O policial, na saída, lança um olhar de cobiça para a torta de
chocolate. Martina percebe.
MARTINA
Pode levar a torta.
POLICIAL 1
A senhora tem certeza?
MARTINA
Claro.
POLICIAL 1
Então vamos deixar o seu depoimento pra amanhã. A
senhora passa lá na delegacia?
MARTINA
Passo.
O policial pega a torta, sorridente.
POLICIAL 1
Boa noite. (para Rogério) E o senhor vem comigo.
Saem. Betinho cruza com eles na porta e entra no quarto, com a
camisa rasgada. Martina olha para e depois para Sissi.
MARTINA
Quem é esse?
Sissi olha para Betinho.
SISSI
O nome dele é Betinho. Ele grudou em mim, não sai
do meu pé.
BETINHO
Eu tô apaixonado por ela.
SISSI
Acho que ele é doido.
MARTINA
(sorrindo) Acho que todo apaixonado é um doido. Eu
sou doida, não resta a menor dúvida. (para
William) Tu não acha que eu sou doida?
WILLIAM
Completamente doida. (pausa) Como é que tu dá a
minha torta de chocolate praquele cara?
Martina e Sissi sorriem. Betinho, malandro, coloca o braço sobre
o ombro de Sissi. Sissi não o repele. Betinho sorri, feliz e
ainda mais apaixonado. Sissi olha para Betinho e sorri também.
Martina e William olham para o novo casal. A imagem congela com
os quatro em quadro.
NARRADOR (V.S.)
Para o professor Damasceno, a existência humana
oferece raríssimos momentos de plena felicidade.
Além de raríssimos, eles também são efêmeros,
fugazes, quase intangíveis. Mas, teorias à parte,
está provado: mesmo que seja por um instante, vale
a pena.
FADE-OUT
CRÉDITOS FINAIS
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(c) Carlos Gerbase, 2006-2007
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
25/10/2006
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