3 EFES

Roteiro em modo texto: [ Download ]

               OS TRÊS EFES DO PROFESSOR DAMASCENO
               roteiro de Carlos Gerbase
               versão 3: 17 a 25 de outubro de 2006

               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

****************************************************************

CENA 1 - DOCUMENTÁRIO - CASA DO PROF. DAMASCENO - INTERIOR - DIA
/ TABLE-TOP

1. 1. O próprio Damasceno escrevendo (a mão, ou em máquina de
escrever) em sua casa, num ambiente cheio de livros.

               NARRADOR (V.S.)
               Segundo o professor Aníbal Damasceno Ferreira, a
               humanidade depende de três letras "efe": a fome, a
               foda e o fasma.

1. 2. Material de arquivo (fotos, vídeos e trechos de filmes),
além de imagens especialmente produzidas. Computações gráficas
simples, em 2D, completam a edição.

               NARRADOR (V.S.)
               Para sobreviver, o homem precisa vencer sua fome.
               Para perpetuar a espécie, tem que encontrar alguém
               para uma foda. Para se comunicar e viver em
               sociedade, ele deve saber criar e interpretar um
               fasma. Fasma é a representação da realidade, o ato
               de contar uma história sobre o mundo.

               Os primeiros fasmas nasceram em volta de uma
fogueira, em eras pré-históricas, quando os homens relatavam suas
caçadas e suas aventuras. Com o passar do tempo, os fasmas
sofisticaram-se, através do uso de desenhos, falas e textos
escritos. O cinema, inventado em 1895, é um fasma formado por
imagens fotográficas em movimento.

               A palavra "fasma" deriva do grego "phásma", que
significa simulacro. Aristóteles prefere "mimese", que significa
"imitação". Em qualquer dos casos, perde-se algo essencial: a
relação com os dois outros "efes", que dão ao "fasma" o
necessário senso de urgência e primitividade.

1. 3. William, 30 anos, mulato, roupas modestas e gastas, mas
limpas, com uma sacola de plástico na mão, passa pela porta do
edifício de Martina, mantida aberta por Seu Zé, 30 anos, que tem
um uniforme de porteiro. Os dois trocam um discreto aceno de
cabeça. William entra no elevador.

               NARRADOR (V.S.)
               Alguns especialistas acham que a suprema tarefa da
               humanidade é reunir os três efes num só momento
               mágico, em que se atingiria a plenitude
               existencial e a mais completa felicidade.

1. 4. Damasceno ainda escrevendo em seu caderno.

               NARRADOR (V.S.)
               Para o professor Damasceno, contudo, isso não
               passa de um sonho.

1. 5. William, no elevador, abre a sacola e pega uma pistola.

               NARRADOR (V.S.)
               Ou de um pesadelo.

1. 6. Damasceno fecha o caderno (ou tira a folha da máquina).

               NARRADOR (V.S.)
               Ou melhor, de um fasma.

1. 7. Martina, 30 anos, vestindo um robe, abre a porta do seu
apartamento. William aponta a pistola para ela.

(Nova trilha. Créditos iniciais sobrepostos nas cenas 2 a 9)

CENA 2 - BARRACO DE WILLIAM - INTERIOR - DIA

William abre os olhos em sua cama modesta. Senta na cama e acende
a luz, que ilumina um pequeno barraco de madeira, de uma única
peça. Está sozinho. Pega um pedaço de pão em cima da mesa. Começa
a comê-lo. Vai até a porta e olha para fora.

CENA 3 - BARRACO DE WILLIAM/VILA POPULAR - EXTERIOR - DIA

William passa por um carrinho de coleta de lixo, encostado no
barraco, e vai até os fundos do terreno, onde há uma cabine de
madeira podre caindo aos pedaços sobre uma fossa. Dá a última
mordida no pão. Entra e, sem fechar a porta, começa a fazer xixi.

CENA 4 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO DE SISSI E DIEGO/BANHEIRO -
INTERIOR - DIA

Sissi, 20 anos, está dormindo. Toca o despertador (6:30). Ela
acorda. Na penumbra, caminha, meio sonâmbula, até o banheiro, e
faz xixi. Volta ao quarto e acende a luz. Há duas camas, e numa
delas dorme Diego, 7 anos.

               SISSI
               Diego, tá na hora.

Diego não acorda. Sissi senta na cama, dá um beijo no menino,
tira as cobertas e faz com que ele saia da cama.

CENA 5 - BARRACO DE WILLIAM/VILA POPULAR - EXTERIOR - DIA

William sai da cabine e volta à frente da sua moradia. Com uma
chave que tira do bolso, abre um cadeado, liberando a corrente de
aço que mantém preso o carrinho de lixo à parede. Joga a corrente
dentro do barraco. Usa o cadeado para trancar a porta da frente.
Pega o carrinho e se afasta, rumo à saída da vila. Há barracos
nos dois lados da viela, e muito lixo acumulado pelo chão.

CENA 6 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO DE ADÃO - INTERIOR - DIA

Sissi entra no quarto de Adão, seu pai, 55 anos, que está
dormindo. Ela acende a luz.

               SISSI
               Pai, tá na hora.

Adão, que está virado para a parede, não olha para ela.

               ADÃO
               Apaga essa luz.

               SISSI
               Tu disse que hoje ia procurar emprego.

               ADÃO
               (irritado) Apaga a porra dessa luz. (grita) Agora!

Sissi apaga a luz e sai do quarto.

CENA 7 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - DIA

Diego, já vestido, está sentando na mesinha, esperando o café.
Várias garrafas de cerveja, uma de cachaça e copos sujos ocupam
boa parte do tampo da mesinha. Sissi, também pronta para sair,
abre a geladeira, pega uma garrafa de leite (a única) e um resto
de manteiga. Sacode a garrafa. Está quase vazia. Mesmo assim,
despeja o que resta num copo.

               SISSI
               (para Diego) Toma. É o que tem.

Diego bebe num gole só. Sissi procura alguma coisa num armário.
Acha um pacote de pão de sanduíche, com apenas uma fatia bem
pequena (aquela da casca). Passa manteiga no pão e entrega-o para
Diego, que não parece estar satisfeito. Mesmo assim, engole o
pão. Sissi abre a sua bolsa e tira uma carteira. Examina a
carteira. Está quase vazia: uma nota de cinco e duas de um real.
Pega as duas notas de um real e as entrega para Diego.

               SISSI
               Pro lanche. Vamos embora.

Os dois saem da cozinha.

CENA 8 - EDIFÍCIO DE SISSI/FACHADA/RUA - EXTERIOR - DIA

Sissi e Diego saem do edifício (pequeno, meio decadente) e
começam a caminhar. Uma carrocinha de lixo seco, puxada por
William, cruza por eles e segue em sentido oposto.

CENA 9 - RUA - EXTERIOR - DIA

William pára a carrocinha junto ao meio-fio e examina o conteúdo
de um saco de lixo grande. Vai pegando papel, embalagens
plásticas e pratos descartáveis. Num deles, dobrado, encontra um
pedaço de pizza. Examina a pizza. Olha em volta. Não há ninguém
por perto. William devora a pizza.

CENA 10 - ESCOLA PÚBLICA/FACHADA - EXTERIOR - DIA

Sissi dá um beijo em Diego. O menino corre para dentro da escola.
Sissi fica um tempo olhando para ele e depois sai.

CENA 11 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - DIA

A carrocinha de William pára na frente de um edifício novo, com
uma portaria toda envidraçada. William examina rapidamente o
conteúdo de uma lixeira grande. Acha uma garrafa plástica de
refrigerante e a coloca na carrocinha. Seu Zé, zelador do
edifício, que varria a calçada, aproxima-se dele.

               SEU ZÉ
               Passa aqui pelas onze, que a dona Martina quer
               jogar fora um monte de jornal velho.

               WILLIAM
               Não posso pegar agora?

               SEU ZÉ
               Não. Ela deve estar dormindo.

               WILLIAM
               Tá bom. (hesita) Seu Zé, o senhor não teria aí um
               pedaço de pão velho?

               SEU ZÉ
               Não.

William puxa a carrocinha e vai embora.

CENA 12 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA

Dois sanduíches são colocados sobre uma bandeja grande, com um
café da manhã completo. Martina, vestindo um robe, faz os últimos
ajustes na bandeja e sai da cozinha.

CENA 13 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - DIA

Martina abre a janela do quarto, iluminando-o e acordando
Rogério, 35 anos. Ele não parece muito satisfeito. Vira de lado,
evitando a luz mais intensa. Martina pega a bandeja e senta na
cama, perto de Rogério.

               MARTINA
               Surpresa.

Rogério abre os olhos e, de má vontade, senta na cama. Martina
ajeita melhor a bandeja e, antes de deitar ao lado de Rogério,
tira o robe. Está com uma camisola "sexy", curta, decotada e
cheia de babados.

               ROGÉRIO
               (olhando para a bandeja) Martina, eu tô de regime.

               MARTINA
               É tudo light.

Rogério toma um gole de suco e faz uma careta.

               ROGÉRIO
               Tá azedo.

Rogério olha para Martina pela primeira vez.

               ROGÉRIO
               Por que tudo isso?

               MARTINA
               Porque eu te amo.

               ROGÉRIO
               Não. É pra me animar. Tu acha que eu tô deprimido.

               MARTINA
               Normal. Hoje tá todo mundo meio deprimido.

Rogério afasta a bandeja e levanta da cama. Vai até a janela e
olha para fora. Depois volta-se para Martina.

               ROGÉRIO
               (irritado) Todo mundo? Tu acha que eu tô deprimido
               porque o Brasil perdeu a porra da copa do mundo?
               Eu convenci um cliente a produzir um comercial com
               o idiota do Parreira dizendo que uma boa empresa
               funciona como uma boa equipe de futebol. Sabe
               quanto custou pra botar esse comercial nos
               intervalos dos jogos? Oito milhões de reais! E
               hoje eu vou dizer pro cliente que essas coisas
               acontecem. (pausa) Quem sabe eu levo pra ele esse
               café maravilhoso, com esse suco azedo, pra ver se
               ele fica menos deprimido?

Martina olha para ele, desolada. Rogério respira fundo.

               ROGÉRIO
               Desculpa. (pausa) Eu vou tomar banho.

Rogério sai do quarto. Martina fica sozinha na cama, com sua
camisola "sexy" e sua bandeja de café intocada.

CENA 14 - SALA DE AULA UNIVERSITÁRIA - INTERIOR - DIA

Sissi olha para o professor, 45 anos, e toma notas num caderno.
Ao seu lado, uma colega, 20 anos, come batatinhas fritas. Sissi
olha com gula para as batatinhas enquanto ouve o professor.

               PROFESSOR
               Ifigênia pensa que está indo para seu casamento
               com Aquiles, mas, quando chega na ilha de Áulis,
               descobre que vai ser sacrificada para que os
               ventos empurrem a esquadra grega até Tróia.
               Primeiro ela resiste, mas depois, quando olha para
               os milhares de soldados passando fome, percebe que
               a sua vida não é nada frente ao destino da Grécia.
               Então ela decide morrer com honra, sem medo.
               Ifigênia, tão jovem e tão consciente, é a maior
               das heroínas da tragédia clássica. Muito obrigado,
               e até a semana que vem.

Os alunos levantam-se e começam a sair da sala. A colega de Sissi
percebe o olhar de Sissi para as batatinhas. Estende o pacote.

               COLEGA
               Quer?

               SISSI
               Não, obrigado.

A colega levanta e sai, deixando o pacote em cima da mesa. Sissi
espera que ela se afaste e pega o pacote. Descobre, decepcionada,
que só resta uma batatinha, que engole numa só bocada.

CENA 15 - ÔNIBUS - INTERIOR - DIA

O ônibus está numa parada de fim de linha, esperando a hora de
sair. Sissi aproxima-se da roleta e dá um vale-transporte para o
cobrador, 18 anos, que está comendo um grande cachorro-quente.

               COBRADOR
               Tudo bem?

               SISSI
               Tudo.

Ela não consegue tirar os olhos do cachorro-quente. O cobrador
percebe.

               COBRADOR
               Quer uma mordida?

               SISSI
               (sorrindo) Não.

               COBRADOR
               Tem certeza?

Sissi olha em volta. O ônibus está meio vazio. Não tem ninguém
olhando pra eles. Sissi sorri para o cobrador.

               SISSI
               Parece bom.

O cobrador estende o cachorro-quente.

               COBRADOR
               Pode morder.

Sissi morde rapidamente e começa a mastigar. O cobrador olha para
ela, meio sacana, estende a mão e segura o braço de Sissi.

               COBRADOR
               Eu largo às duas. Aí posso te pagar um inteiro.

Sissi, ainda mastigando, afasta o braço com um repelão e caminha
para a porta de saída. O ônibus arranca. O cobrador, que continua
comendo o cachorro-quente, sorri para Sissi. Termina o lanche e
lambe os dedos, cheios de maionese, ketchup e mostarda.

CENA 16 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA/DESPENSA - INTERIOR
- DIA

Martina está na cozinha lavando a louça, já vestida. Os dois
sanduíches estão em cima da mesa. Toca o porteiro eletrônico. Ela
atende.

               SEU ZÉ
               (OFF) É o rapaz de lixo limpo.

               MARTINA
               Manda subir.

Martina enxuga as mãos e vai para a sala. Examina-se rapidamente
no espelho. Toca a campainha. Ela abre a porta. É William,
sorridente.

               WILLIAM
               Bom dia. O Seu Zé disse que a senhora...

               MARTINA
               Pode entrar.

Os dois passam pela sala, pela cozinha e chegam na despensa, que
tem duas pilhas de jornais velhos, lado a lado. William pega uma
deles e vai saindo. Quando passam pela cozinha, Martina olha para
os dois sanduíches em cima da mesa.

               MARTINA
               William, tu não tá com fome?

William pára e olha para Martina, que aponta para os sanduíches.

               MARTINA
               O meu marido não teve tempo de comer. Pode pegar.

William, meio sem jeito, atrapalhado pela carga, pega um
sanduíche. Fica em dúvida sobre o que fazer a seguir.

               MARTINA
               Bota essas coisas no chão.

William faz o que Martina sugeriu e dá uma dentada no sanduíche.
Faz cara de quem gostou muito. William devora o sanduíche em
segundos.

               MARTINA
               Pega o outro.

               WILLIAM
               Não. Obrigado.

               MARTINA
               Senta, William. Eu faço questão.

William senta na mesinha. Martina abre a geladeira e pega uma
garrafa de suco de laranja. William agarra o segundo sanduíche.
Martina sorri e serve suco para William num copo bonito. William
sorri para ela. Ela sorri de volta.

CENA 17 - BAIA DE TELE-VENDAS - INTERIOR - DIA

Sissi, com fones de ouvido e microfone, tenta conseguir um
cliente. Há uma tela de computador bem na sua frente.

               SISSI
               ... em relação ao que a senhora paga atualmente,
               seria uma economia de quarenta por cento, e se a
               senhora entrar na promoção ainda hoje, ganha cem
               minutos grátis, para falar com cinco assinantes
               que a senhora indicar... (pausa) Claro, eu
               entendo... (pausa) Boa tarde para a senhora
               também.

Sissi desliga. Olha para o lado. Uma senhora, 60 anos, com uma
cesta de lanches, oferece seus artigos. Sissi faz que não com a
cabeça. Clica no computador. Espera um momento. Tenta dar um tom
simpático à sua voz.

               SISSI
               Boa tarde. É o senhor Oliveira? (pausa) Aqui é
               Cecília, da Líder Celular. (pausa) Alô, alô?

CENA 18 - SUPERMERCADO - INTERIOR - DIA

Martina empurra um carrinho quase cheio. Quando está se
aproximando do caixa, toca o seu celular. Ela atende.

               MARTINA
               Oi, amor. Tô no super. (pausa) Não faz mal. Eu
               entendo. (pausa) Não, só umas comprinhas pro
               jantar. (pausa) Tudo bem, amor. Te amo.

Martina desliga o celular e olha para o carrinho cheio.

CENA 19 - GRAMADO SUPLEMENTAR DE ESTÁDIO DE FUTEBOL - EXTERIOR -
DIA

Está terminando o treino de um grupo de jogadores sub-20, no
gramado suplementar de um estádio de um grande clube. Sissi
chega, apressada, e se encosta na grade que cerca o campo. Uma
garota bonita, Giane, 18 anos, falsa loura, usando roupas que
oscilam entre a sofisticação e a breguice, aparece ao lado de
Sissi. As duas se beijam. Giane está agitada e nervosa.

               GIANE
               Oi, Sissi.

               SISSI
               Oi. Como tu tá linda! Essas roupas, esse cabelo...

               GIANE
               Tinta importada. Custou um monte de dinheiro.

               SISSI
               Tu ganhou na loteria?

Giane sorri amarelo.

               GIANE
               (preocupada) Outra hora eu te explico.

Seu Lopes, 50 anos, um homem corpulento, vestido com conjuntinho
safári, surge por trás delas.

               SEU LOPES
               Oi, garotas.

Seu Lopes inclina-se para beijar as duas.

               SEU LOPES
               Tu tá muito bonita, Giane.

               GIANE
               (seca) Obrigado.

               SEU LOPES
               (para Sissi) Boas notícias. O Estevão vai pra
               Europa.

Sissi, abalada, não consegue dizer nada.

               GIANE
               E o Vandeir?

               SEU LOPES
               Talvez no fim do ano. Antes ele vai pra São Paulo.

               GIANE
               Não vai coisa nenhuma. O salário é uma micharia.

               SEU LOPES
               Eu já te expliquei, menina, é uma vitrine...

               GIANE
               (cortando) Vitrine é a puta que pariu.

Um longo apito assinala o final do treino e parece despertar
Sissi do seu estupor.

               SISSI
               Que país?

               SEU LOPES
               Portugal, Espanha. (pausa) Ou Japão.

               SISSI
               O Japão não fica na Europa.

               SEU LOPES
               É? (olha para o campo) Olha os dois aí.

Estevão, 18 anos, e Vandeir, 19 anos, chegam perto da cerca.
Vandeir tem um brinco na orelha. Os dois beijam suas namoradas.

               ESTEVÃO
               (para Sissi) Oi, meu amor.

               SISSI
               Oi.

               VANDEIR
               (para Giane) Tu tá muito gata!

Giane dá uma voltinha. Seu Lopes aproxima-se de Estevão.

               SEU LOPES
               Pode fazer as malas.

               ESTEVÃO
               (entusiasmado) Qual é o time?

               SEU LOPES
               Ainda não sei. (pausa) Mas é o salário que tu
               pediu, mais casa, comida e roupa lavada.

Vandeir abraça Estevão, emocionado. Estevão olha para Sissi, que
retribui o olhar.

               SEU LOPES
               Vai te arrumar. Vamos assinar uns papéis com a tua
               mãe.

Estevão olha para Sissi.

               ESTEVÃO
               Combinei de sair com a Sissi.

               SEU LOPES
               Tu que sabe. A gente se vê por aí.

Seu Lopes dá as costas para todos e caminha na direção do
estacionamento de carros. Estevão fica nervoso. Olha para Sissi,
como pedindo desculpas.

               ESTEVÃO
               (gritando) Espera aí. Já tô indo. (para Sissi) Eu
               te ligo assim que der, tá? Te amo.

Estevão e Vandeir saem correndo. Sissi e Giane estão sozinhas
outra vez.

               GIANE
               Não sei como o Estevão suporta esse escroto.

               SISSI
               Eu sei. O escroto deu um carro pra ele.

               GIANE
               Tu chama aquilo de carro? (olha com atenção para
               Sissi) Sissi, o que é isso?

Sissi enxuga algumas lágrimas com o dorso da mão.

               SISSI
               Ele me disse que preferia ficar aqui. Mas ele tem
               que ajudar a mãe dele.

               GIANE
               O Vandeir tá sempre me dizendo a mesma coisa. O
               pai tá doente, o irmão precisa de remédio.

Sissi continua chorando.

               GIANE
               Ah, Meu Deus! Não é o fim do mundo. Vem aqui.
               (abraça Sissi) Eu vou te contar uma coisa. Eu
               cheguei assim pro Vandeir e perguntei: e se a
               gente tivesse um pouco mais de grana, se pudesse
               alugar um apartamentinho pra nós dois, tu ficava
               em Porto Alegre? (pausa) Sabe o que ele disse?

               SISSI
               (fungando) Não.

               GIANE
               Ele disse que ficava.

               SISSI
               (surpresa e confusa) Vocês alugaram um
               apartamento?

               GIANE
               Não. Mas a gente já foi duas vezes em motel. Suíte
               de luxo.

               SISSI
               Com que dinheiro?

               GIANE
               Larguei a lancheria. Tenho um emprego novo.

               SISSI
               Onde?

               GIANE
               Em lugar nenhum. (pensa um pouco) Em vários
               lugares. (baixinho) Eu disse pro Vandeir que virei
               representante de roupas, que todo dia eu vendo
               vinte, trinta peças, e tiro uma comissão.

               SISSI
               Roupas de que marca?

               GIANE
               Ai, meu Deus! Sissi, cai na real. Não tem roupa
               nenhuma. (pausa) Eu tô me virando.

               SISSI
               Se virando?

               GIANE
               É. Tô me virando. Tiro uns duzentos por dia. Às
               vezes, até mais. Só hoje de tarde ganhei
               trezentos.

Sissi finalmente entende. Olha para Giane por algum tempo, sem
dizer nada. Depois respira fundo e consegue falar.

               SISSI
               Eu tô com fome. Não como nada desde ontem. Tu pode
               me emprestar vinte?

Giane sorri para Sissi e abre a carteira.

CENA 20 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA - INTERIOR - NOITE

Martina está na cozinha, terminando de fazer um prato pequeno,
mas bacana. Os apetrechos que usa - e a maneira como ela os
manipula - revelam que Martina tem intimidade com a culinária. Dá
os últimos acabamentos e leva a comida para a sala.

Senta na mesa. Abre uma garrafa de vinho. Serve-se. Vai até um
aparelho de som e coloca uma música. Volta a sentar-se. Dá a
primeira garfada. Engole. Vai dar outra. Mastiga, mas não
consegue engolir. Cospe o que tem na boca num guardanapo. Toma
outro gole de vinho. Olha para o prato. Afasta-o.

CENA 21 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE

Martina sai do elevador com uma marmita e um pacotinho nas mãos.
Num canto da portaria, há quatro pequenos monitores, mostrando a
rua em frente ao edifício, a porta da frente da portaria, o
interior da portaria e dentro do elevador. Seu Zé vai abrir a
porta do edifício para ela.

               MARTINA
               Obrigado. Mas eu não vou sair. O senhor já jantou?

               SEU ZÉ
               Não senhora.

Martina aproxima-se de Seu Zé e estende a marmita. Seu Zé não
pega a marmita.

               MARTINA
               Eu trouxe pro senhor. O meu marido não veio jantar
               em casa.

               SEU ZÉ
               Muito obrigado, Dona Martina.

Martina entrega o pacotinho. Sorri para ele. Parece nervosa.

               MARTINA
               Eu tô com mais umas coisas pra jogar fora. O
               senhor tem algum contato com aquele rapaz do lixo
               seco?

               SEU ZÉ
               A senhora quer que eu fale com ele? Amanhã
               mesmo...

               MARTINA
               (cortando) Não tem pressa. Obrigado, Seu Zé.

Martina dá as costas para Seu Zé. Sorri, nervosa.

CENA 22 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA - INTERIOR - NOITE

Sissi limpa a sala, enquanto seu pai assiste televisão. Diego
dorme no sofá.

               SISSI
               Conseguiu alguma coisa hoje?

               ADÃO
               Fica quieta. Eu tô vendo TV.

Toca o celular de Sissi. Ela atende.

               SISSI
               Já tô descendo.

               ADÃO
               Vai sair?

               SISSI
               Vou.

Sissi pega o irmão no colo e leva-o na direção do quarto. Cruza a
sala outra vez, para sair.

               ADÃO
               Traz pão e leite pro café.

Sissi pára por um momento. Olha para o pai, quase perdendo a
calma. Mas prefere seguir em frente e sai do apartamento.

CENA 23 - CARRO DE ESTEVÃO - INTERIOR - NOITE

Sissi está no carro de Estevão, um Gol caindo aos pedaços.

               SISSI
               Então, como foi?

               ESTEVÃO
               Normal. A mãe assinou uns papéis que o Seu Lopes
               precisava. Depois a gente foi jantar.

               SISSI
               Tu assinou também?

               ESTEVÃO
               Assinei.

               SISSI
               E já sabe pra que clube tu vai? Ou pelo menos o
               país?

               ESTEVÃO
               (irritado) Não.

               SISSI
               Já tem as passagens?

               ESTEVÃO
               Ainda não.

Estevão dirige em silêncio por algum tempo. Sissi estende o braço
e faz um carinho no cabelo de Estevão.

               SISSI
               Eu te amo.

               ESTEVÃO
               Eu também. Vamos no drive?

               SISSI
               Eu não gosto de ir lá, Estevão.

Estevão pára o carro e puxa o freio de mão.

               ESTEVÃO
               Tem pouca gasolina. Ou a gente vai no drive, ou
               faz aqui mesmo.

Sissi olha em volta. É uma rua mal iluminada, perto de uma vila
popular.

CENA 24 - CARRO DE ESTEVÃO/DRIVE-IN - INTERIOR - NOITE

O carro de Estevão entra num drive-in (estacionamento com
pequenos boxes cercados, destinados a encontros sexuais) e
estaciona.

               ESTEVÃO
               Quando eu voltar, vou ter dinheiro pra motel.

               SISSI
               (sorrindo) Claro.

Os dois se abraçam e se beijam. Começam a transar meio vestidos,
com dificuldade, pois o carro é pequeno.

CENA 25 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Martina está lendo na cama, de pijama bem comportado. Rogério
entra no quarto, já tirando o paletó. Está um pouco bêbado. Beija
Martina, que sente o bafo do marido.

               MARTINA
               Como foi a reunião?

               ROGÉRIO
               (tirando a roupa) O Borges teve uma idéia: já que
               o cliente se fudeu mesmo, pra não perder a conta o
               negócio é mostrar que ele tem outras coisas a
               ganhar ficando com a gente. A Marlúcia achou a
               idéia ótima e liberou a verba. A velha é foda.

               MARTINA
               E o que vocês fizeram?

               ROGÉRIO
               Eu e o Borges pegamos o cara no hotel e mostramos
               pra ele alguns prazeres dessa cidade.

Rogério deita na cama, só de cueca e camiseta. Abraça Martina,
que coloca o livro de lado. Beija Martina, mas é um beijo
agressivo demais. Martina vira o rosto.

               MARTINA
               Tu tá com um bafo horrível.

               ROGÉRIO
               Foda-se. Tu não queria trepar hoje de manhã?

               MARTINA
               Vai escovar os dentes, pelo menos.

               ROGÉRIO
               Não precisa me beijar mais. Não é a tua boca que
               eu quero. Faz o favor de tirar esse pijama de
               vovozinha e vira essa bunda pra cima.

               MARTINA
               Não.

               ROGÉRIO
               Então vai te fuder!

Rogério levanta da cama e tenta vestir-se outra vez. Tem
dificuldade para colocar a calça e quase se desequilibra.

               ROGÉRIO
               A gente devia, sendo marido e mulher, se divertir
               junto. Mas eu posso me divertir por aí, não tem
               problema...

Consegue botar a calça. Vai botar a camisa.

               MARTINA
               Hoje de manhã tu nem olhou pra mim.

               ROGÉRIO
               Hoje de manhã eu tava mal. Agora eu tô melhor.
               Quer dizer, eu tava melhor. Fiquei mal de novo.

Martina tira o pijama rapidamente.

               MARTINA
               Se tu quiser, pode ficar bem outra vez.

Rogério olha para Martina, em dúvida. Martina sorri.

               ROGÉRIO
               Tu sabe que eu te adoro, gatinha.

Rogério tira as calças outra vez e vai para a cama.

CENA 26 - CARRO DE ESTEVÃO/DRIVE-IN - INTERIOR - NOITE

Sissi é obrigada a ficar numa posição incômoda e começa a sentir
uma cãibra na perna.

               SISSI
               Ai!

               ESTEVÃO
               Que foi?

               SISSI
               Cãibra.

Sissi interrompe a transa.

               SISSI
               Eu já te disse que nessa posição é ruim.

               ESTEVÃO
               Tudo bem. (olha pro relógio) Eu tenho que ir
               mesmo, tá na hora.

Sissi olha pra Estevão, decepcionada. Estevão faz um carinho no
rosto dela. Os dois se beijam.

               SISSI
               Eu tenho que comprar pão e leite. Tu pode passar
               naquele posto perto da minha casa?

               ESTEVÃO
               Claro.

Estevão vai dar a partida. O motor gira um pouco e depois pára.
Estevão tenta de novo. Nada.

CENA 27 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Rogério e Martina estão transando. Ela de costas, ele por cima.
Os dois não se olham. Ela não está curtindo nem um pouco. Ele,
bêbado, transa como um idiota, se acaba e desaba por cima dela.
Depois rola pro outro lado.

CENA 28 - FACHADA EDIFÍCIO DE SISSI - EXTERIOR - NOITE

Um táxi pára na frente do edifício. Sissi beija Estevão e sai do
carro, com uma pequena sacola de plástico na mão. Estevão se
aproxima da janela.

               ESTEVÃO
               Um dia nós vamos morar juntos, Sissi. É a coisa
               que eu mais quero na vida.

O táxi arranca. Sissi entra devagar no edifício.

CENA 29 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - NOITE

Sissi, triste, come pão com manteiga e toma um leite na mesa da
cozinha.

CENA 30 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA/DESPENSA - INTERIOR
- DIA

Martina, bem vestida, com um avental, está fazendo um omelete
caprichado. Na mesa, uma travessa com pão, dois pratos e dois
copos com suco de laranja. Olha para o relógio na parede: oito e
meia. O porteiro eletrônico toca. Ela pega o interfone
imediatamente.

               MARTINA
               Pode deixar subir.

Termina o omelete e tira o avental. Coloca o omelete nos pratos.
Toca a campainha. Ela vai atender. Abre a porta, com um sorriso
nervoso no rosto. É Sissi, que está com uma sacola na mão.

               SISSI
               Oi, tia.

Martina, surpresa, não sai da frente da porta.

               SISSI
               A escola do Diego é aqui perto, e eu resolvi
               passar.

               MARTINA
               Que bom... Entra.

Sissi entra na sala.

               MARTINA
               Senta.

               SISSI
               Que cheiro gostoso, tia.

               MARTINA
               Eu tava fazendo o café. Quer um pouco de omelete?

               SISSI
               Eu aceito. Tu sabe que eu não sou de fazer
               cerimônia.

Quando entram na cozinha, Sissi vê a mesa posta para dois.

               MARTINA
               Eu pensei que o Rogério ia comer comigo, mas ele
               teve que sair correndo.

As duas sentam.

               SISSI
               O tio trabalha um monte, né? Tá sempre correndo.

               MARTINA
               É verdade.

Sissi começa a comer com vontade. O porteiro toca outra vez.
Martina vai atender.

               MARTINA
               Sim?

               SEU ZÉ
               (OFF) É o rapaz do lixo limpo.

Martina hesita um pouco, mas acaba respondendo:

               MARTINA
               Manda ele subir.

Coloca o interfone no gancho.

               MARTINA
               (para Sissi) É só um instante.

Martina vai até a despensa e olha o balde do lixo limpo. Está
vazio. Pega uma caixa de papelão, cheia de vidros, tira os vidros
e desmonta a caixa. Toca a campainha. Martina, com a caixa na
mão, vai abrir a porta. É William.

               WILLIAM
               Bom dia. O Seu Zé disse que a senhora queria que
               eu pegasse umas coisas.

Martina entrega a caixa pra ele.

               MARTINA
               Hoje é só isso aqui.

William pega a caixa, meio confuso.

               MARTINA
               Tem mais coisa, mas agora eu não posso... Quem
               sabe tu volta pelas onze?

               WILLIAM
               Pode ser.

               MARTINA
               (sorridente) Combinado. Tchau.

Martina fecha a porta. Volta para a cozinha. Sissi já comeu todo
o omelete e está rapando as sobras com o pão. Martina fica
admirada.

               MARTINA
               Não quer mais? Come o meu. Eu tô sem fome.

               SISSI
               Não. Eu tô satisfeita.

               MARTINA
               Tem certeza?

Sissi olha para o outro prato.

               SISSI
               Já que insiste...

Martina sorri e troca os pratos. Sissi come.

               SISSI
               Tá muito bom, tia! Tu é a melhor cozinheira da
               família, disparado.

               MARTINA
               Aprendi muito com a tua mãe.

As duas estão sentadas no sofá. Sissi toma uma xícara de café com
leite.

               MARTINA
               Tu não tem aula hoje?

               SISSI
               Tô matando. Não gosto muito de grego. (hesita um
               pouco) Aí resolvi fazer a visita. Eu queria falar
               contigo sobre uma coisa.

Abre a sacola e tira um pacote embrulhado em papel de presente.
Martina olha para o pacote, desconfiada.

               SISSI
               Tia, eu tô precisando de uns conselhos. (respira
               fundo) Na verdade, tia, eu vou fazer uma coisa...

Sissi pára de falar, sem coragem para seguir adiante.

               MARTINA
               (sorrindo) Sissi, pode falar.

               SISSI
               Há um tempo atrás, quando a mãe já tava doente, na
               cama, eu fui ajudar ela a arrumar o guarda-roupa.
               E achei esse pacote. Perguntei pra mãe o que era,
               e ele disse que não lembrava. Aí eu abri, e ela
               disse que eram uma coisas que tu deu pra ela.

               MARTINA
               Eu posso olhar?

Sissi estende o pacote para Martina. Martina abre o pacote e
examina o seu conteúdo: várias calcinhas muito pequenas, sutiãs
cheios de rendas, uma meia 7/8 de náilon preto e uma cinta-liga.
Martina olha para Sissi, sem dizer nada.

               SISSI
               Ela disse que essas coisas eram tuas. Que tu deu
               pra ela quando... Parou de fazer programa. (baixa
               os olhos) Ela me fez jurar que eu nunca contaria
               isso pra ninguém. Pediu que eu jogasse tudo fora,
               mas eu não consegui.

Martina olha para a sobrinha. Parece chocada demais para
responder. Quando se recupera, tenta sorrir.

               MARTINA
               A tua mãe devia estar muito perturbada.

               SISSI
               Então essas coisas não eram tuas?

               MARTINA
               Não.

Sissi fica pálida. Leva a mão à altura do estômago.

               SISSI
               É que... Tu conhecia a mãe. Acho que ela nunca
               contou uma mentira na vida.

               MARTINA
               Eu não disse que ela mentiu. Disse que tava
               perturbada. Confusa. Talvez os remédios, sei lá...

Martina devolve as coisas para Sissi, que fecha o pacote e coloca
na bolsa.

               SISSI
               Claro. Eu entendo. (pensa um pouco) Desculpe, tia.
               Eu banquei a idiota.

               MARTINA
               De jeito nenhum, Sissi.

Sissi olha o relógio.

               SISSI
               Eu tenho que ir.

As duas levantam-se. Sissi beija Martina.

               SISSI
               Tchau. Desculpa mesmo, tia.

Sissi caminha para a porta de saída. Martina abre a porta.

               SISSI
               Foi o melhor omelete que eu já comi na minha vida.
               De verdade.

Sissi engole em seco e leva a mão à garganta.

               MARTINA
               Sissi, tu tá te sentido bem?

               SISSI
               Acho que eu comi muito depressa. (engole em seco
               outra vez) Será que eu posso ir no banheiro?

Martina está na porta do banheiro social, ouvindo Sissi
terminando de vomitar.

               MARTINA
               Tudo bem, Sissi?

Barulho de água correndo na pia. Sissi sai, tentando sorrir.

               SISSI
               Já passou. Eu tenho que ir.

Sissi apressa-se, na direção da porta. Martina vai atrás dela.
Abraçam-se. Sissi sai. Martina fecha a porta. Senta no sofá.
Pensa um pouco.

CENA 31 - FACHADA EDIFÍCIO DE SISSI - EXTERIOR - DIA

Um carro, dirigido por Martina, estaciona na frente do edifício.
Martina sai do carro e bate no porteiro eletrônico.

               ADÃO
               (OFF) Sim.

               MARTINA
               É a Martina.

               ADÃO
               (OFF) Que Martina?

               MARTINA
               (impaciente) A irmã da tua mulher.

CENA 32 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA - INTERIOR - DIA

Martina e Adão (de pijama) conversam na sala.

               ADÃO
               Não notei nada, não.

               MARTINA
               Ela tá muito magra.

               ADÃO
               Ela sempre foi meio desmilingüida.

               MARTINA
               Ela sempre foi muito bonita. E agora tá
               esquelética.

               ADÃO
               (meio irritado) E o que tu quer que eu faça?

               MARTINA
               Que vá procurar trabalho, em vez de ficar de
               pijama em casa.

               ADÃO
               (agora irritado mesmo) Tu veio aqui pra me encher
               o saco? Pode sair.

Adão levanta. Martina continua sentada.

               MARTINA
               É um absurdo essa menina ficar te sustentando.

Adão aproxima-se de Martina.

               ADÃO
               Tu tem idéia de em quantas empresas eu já fui
               pedir emprego? (pausa) Eu sou velho demais até pra
               lavar carro na garagem da esquina.

               MARTINA
               (constrangida) Eu só estou preocupado com ela,
               Adão.

               ADÃO
               E porque ficou preocupada com ela agora? Não
               lembro de tu ter ligado pra cá desde que a Rosana
               morreu.

Martina olha para Adão e não consegue responder. Martina levanta-
se.

               MARTINA
               Desculpe, Adão. Se eu souber de alguém que esteja
               precisando...

               ADÃO
               (cortando) Sabe quantas vezes eu já ouvi essa
               frase?

CENA 33 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA

Borges, 30 anos, elegante e atlético, além de muito sorridente,
conversa com Rogério. Ambos estão de terno e paletó. Em cima da
mesa, muitas fotos e catálogos de modelos, que eles vão
examinando enquanto conversam.

               BORGES
               Não contei todos os detalhes, mas a Marlúcia
               entendeu. (mostra uma foto) Essa aqui é bonita.

               ROGÉRIO
               Muito baixinha.

               BORGES
               Se a conta ficar conosco, eu vou ter uma
               bonificação no Natal. Ela não ficou muito
               satisfeita quando viu a despesa da noitada: quase
               três mil reais.

               ROGÉRIO
               Caralho!

               BORGES
               Cada garrafa de champanhe era 500 paus. E a menina
               do Gilson foi 800. (mostra outra foto) Essa aqui é
               bem alta, um metro e oitenta e um.

               ROGÉRIO
               Mas não fala. E eu, será que eu fico?

               BORGES
               (meio sacana) Acho que depende de ti.

               ROGÉRIO
               Como assim?

               BORGES
               A Marlúcia me fez várias perguntas... Se tu também
               tinha aproveitado a noite, como tava o teu
               casamento... Essas coisas.

               ROGÉRIO
               Tu tá brincando, Borges.

               BORGES
               Não. (mostra outra foto) Eu lembro dessa. (lê o
               nome atrás da foto) Vanessa. É esperta, sabe das
               coisas.

               ROGÉRIO
               Ela é casada.

               BORGES
               A Vanessa? Não sabia.

               ROGÉRIO
               Não, Borges. A Marlúcia.

               BORGES
               E tu também. Empate. (aproxima-se mais de Rogério)
               Eu tenho certeza que ela tava jogando verde. Eu
               disse que tu tava meio depressivo, o que é normal,
               considerando o que aconteceu. E que tu tá
               precisando de... Compreensão. Foi isso que eu
               disse: "O Rogério tá precisando de compreensão".
               (bate com o dedo na foto de Vanessa) Acho que a
               Vanessa é perfeita. Vou chamar pra uma entrevista.
               E depois vou apresentar pro nosso cliente.

               ROGÉRIO
               Cara, tu tá perdendo completamente a noção...

               BORGES
               Sem segundas intenções, claro. (olha para Rogério
               e sorri) Eu li ontem uma frase muito legal, do
               Hölderlin - conhece? - o cara é genial, "Lá onde
               cresce o perigo, cresce também o que salva". Pensa
               nisso, Rogério. (pausa) Pensa bem, porque a
               salvação tá batendo na tua porta.

CENA 34 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - DIA

Martina está chegando de carro. A carrocinha de William está
estacionada na frente do edifício. Ele está organizando as coisas
na carrocinha. Martina pára o carro e abre a janela.

               MARTINA
               Oi, tudo bom? Desculpa, eu esqueci.

               WILLIAM
               Não tem problema.

               MARTINA
               É que eu não separei ainda o que eu vou te dar. Tu
               pode voltar ao meio-dia?

               WILLIAM
               Claro.

CENA 35 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA - INTERIOR - DIA

Na cozinha, Martina está terminando de fazer um belo almoço. Um
peixe está fritando na frigideira e há alguma coisa no
microondas. Olha para o relógio. Sai da cozinha, bota a mesa, com
precisão e rapidez. Volta para a cozinha. Coloca a comida em duas
travessas. Toca o porteiro eletrônico. Ela atende.

               SEU ZÉ
               (OFF) É o rapaz do...

               MARTINA
               (cortando) Manda subir.

Martina leva as travessas para a mesa. Pega um vinho e um saca-
rolha. Abre o vinho. Toca a campainha. Ela abre.

               MARTINA
               Entra, por favor.

               WILLIAM
               Com licença.

William entra e vê a mesa posta.

               MARTINA
               William, eu gostaria muito que tu almoçasse
               comigo.

William olha para Martina, surpreso.

CENA 36 - RESTAURANTE - INTERIOR - DIA

Marlúcia, 55 anos, bem vestida, mas com as marcas da idade
evidentes no rosto e no corpo, está almoçando com Rogério numa
mesa discreta, no fundo de um restaurante.

               MARLÚCIA
               Ainda bem que tu aceitou meu convite.

               ROGÉRIO
               Foi um prazer.

               MARLÚCIA
               Será? Não sei. A comida pode ser boa, mas a
               companhia de uma velha nunca é agradável.

               ROGÉRIO
               (constrangido) A companhia está ótima.

               MARLÚCIA
               O Borges me disse que tu tá um pouco deprimido.

               ROGÉRIO
               O Borges não me conhece. Eu tô ótimo.

Marlúcia ri.

               MARLÚCIA
               Ótimo? Depois do que aconteceu? (toma um gole de
               vinho) Tu tá brincando.

Rogério baixa os olhos.

               MARLÚCIA
               Ele disse que vocês vão dar um jeito de segurar a
               conta, e que eu não devo pedir a tua demissão.
               (pausa) Tu deve imaginar que a tua saída é muito
               provável, não é?

               ROGÉRIO
               Esse almoço é pra isso? Pra anunciar minha
               demissão?

               MARLÚCIA
               Não. Esse almoço é pra gente ver o que vai
               acontecer daqui pra frente. Nesse momento, nesse
               exato momento, tu tá precisando de compreensão.
               (pausa) E acho que é o que eu preciso também.
               Compreensão.

Marlúcia toma mais um gole de vinho e olha para Rogério. Sorri,
tentando ser sensual.

CENA 37 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - DIA

O almoço já está no fim. William está raspando o prato. Martina
olha para ele e toma um gole de vinho, terminando o cálice.

               MARTINA
               Não vai tomar o vinho, William?

               WILLIAM
               Claro. Desculpa. Eu esqueci.

Pega o cálice e toma mais da metade, como se fosse cerveja.

               WILLIAM
               Muito bom. (olha para o prato de Martina, quase
               intocado) A senhora mal comeu.

Martina enche seu cálice de vinho.

               MARTINA
               Eu tava sem fome. Mas não te preocupa. O maior
               prazer
               de quem cozinha é ver os outros comendo.

William sorri, confuso. Toma mais vinho. Martina também toma.

CENA 38 - RESTAURANTE POPULAR - INTERIOR - DIA

Sissi come um prato-feito com Giane. As duas tomam Coca-Cola.

               GIANE
               Tá na agenda. Trinta e um de dezembro. Aí eu paro.

               SISSI
               E como tu vai fazer pra pagar o apartamento?

               GIANE
               Eu já vou ter juntado dinheiro pra um ano de
               aluguel. Depois disso, ou o Vandeir dá um jeito e
               consegue um contrato decente, ou eu é que pico a
               mula. (pausa; pensa um pouco) Ai, meu Deus! Deus
               me livre! Eu amo aquele moleque.

Toca o celular de Giane. Ela atende.

               GIANE
               Alô, é a Michele.

Giane olha pro relógio.

               GIANE
               Posso às três, se o Heitor me levar. (pausa) Me
               pega lá em casa. Combinado. (baixinho) Duzentos e
               trinta. (pausa; sorri) Tu é um anjo. Tchau.

Giane fecha o celular. Sissi olha para Giane, curiosa.

               GIANE
               Era a Brigite. Disse que aumentou meu cachê e pôs
               minha foto na capa do site.

               SISSI
               Tem site?

               GIANE
               Claro que tem site.

               SISSI
               Com fotos tuas?

               GIANE
               (ri) Claro que tem fotos minhas. Custaram uma
               nota. Sem fotos boas ninguém te conhece, e ninguém
               liga pra Brigite, e aí ela não liga pra mim. Fecha
               a boca, Sissi! Não aparece o meu rosto. Fica
               assim... Tipo uma nuvem em cima do rosto.

               SISSI
               E como... Os caras escolhem?

               GIANE
               Eles têm outros interesses além do rosto.

               SISSI
               Então é assim? Um telefonema, e tu vai ganhar
               duzentos e trinta reais?

               GIANE
               Cento e oitenta. Cinqüenta eu deposito pra
               Brigite. E fica todo mundo feliz.

               SISSI
               Como é essa Brigite?

               GIANE
               Nunca vi na vida. Mas é simpática. Se tu quiser,
               eu ligo e te apresento pra ela.

CENA 39 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA

William coloca os pratos sujos na pia da cozinha, enquanto
Martina abre a geladeira.

               MARTINA
               Tem sorvete de creme e petit gateau. Gosta?

William olha para Martina, sem jeito.

               WILLIAM
               (confuso) Acho que gosto. Do sorvete eu gosto. Mas
               eu tenho que ir, dona Martina. Fica pra outra
               hora. Tenho um material pra pegar às três da
               tarde.

Martina fecha a geladeira.

               MARTINA
               Um café, pelo menos.

               WILLIAM
               Não tomo café. Me deixa nervoso.

               MARTINA
               (sorrindo) Então tá. Paciência. Mas antes de tu
               sair, eu vou te pedir um favor. Eu quero tirar uma
               foto. De recordação. Posso?

               WILLIAM
               Pode.

Martina pega uma câmera pequena, em cima da geladeira, e
fotografa William. Martina olha a foto no visor da câmera.

               MARTINA
               Ficou boa. Quer ver?

Antes que William responda, Martina se aproxima, mostra a foto e,
num rompante, beija William na boca. Ele não esboça qualquer
reação. Ela se afasta. Os dois ficam se olhando por algum tempo,
ambos constrangidos.

               WILLIAM
               Tem... Algum material pra eu levar?

               MARTINA
               Hoje não... Quem sabe outro dia.

Martina sai da cozinha. William a segue. Martina abre a porta da
sala. William sai, sem dizer nada. Martina fecha a porta.

CENA 40 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA

Vanessa, 20 anos, a modelo escolhida pela foto na cena 33, está
sentada ao lado de Borges.

               BORGES
               (para Vanessa) O nosso cliente adorou tuas fotos.
               (para Rogério) Eu já expliquei pra Vanessa que o
               teu destino está nas mãos dela.

               ROGÉRIO
               (espantado) Como assim?

               BORGES
               Semana que vem ela faz a foto pro anúncio. E ela
               precisa estar maravilhosa. (pausa) A Vanessa sabe
               que essa campanha tem que dar certo.

               VANESSA
               (simpática e ingênua) Se depender de mim...

               ROGÉRIO
               (confuso) Nós nem temos uma campanha.

               BORGES
               Claro que temos. (para Vanessa) Não liga pra ele.
               (para Rogério) Já está tudo aprovado pela
               Marlúcia. (para Vanessa) Tu pode esperar só um
               minuto ali fora?

Vanessa sai.

               BORGES
               Hoje de noite vou levar a Vanessa e o Gilson pra
               jantar. É o teu emprego, e tu vai conosco.

               ROGÉRIO
               (tenso) Não posso. Tenho compromisso.

               BORGES
               Desmarca.

               ROGÉRIO
               (gritando) Não posso, caralho! E é tua culpa!

Borges vai dizer alguma coisa, mas desiste. Sorri.

               BORGES
               (malicioso) Ah... Tudo bem, cara. Então... Boa
               sorte pra todos nós.

Borges sai, sorridente. Rogério olha pela janela. Pega um lápis.
Força o lápis até quebrá-lo.

CENA 41 - PARQUE - EXTERIOR - DIA

Martina e Sissi conversam enquanto caminham no parque.

               MARTINA
               De quanto tempo é o teu intervalo?

               SISSI
               Vinte minutos.

               MARTINA
               Então eu vou ser rápida. (respira fundo antes de
               falar) Eu menti pra ti. Aquelas roupas eram
               minhas.

Sissi olha para Martina, meio constrangida.

               MARTINA
               E eu fui... Aquilo que a tua mãe falou é verdade.
               Durou menos de um ano. Aí conheci o Rogério e tudo
               se ajeitou. Mas eu não queria jogar aquelas coisas
               fora e dei pra tua mãe. Achava que ela poderia
               usar. Ela reclamava que a vida sexual dela era sem
               graça, que o Adão era um idiota na cama. A gente
               confiava tanto uma na outra...

Caminham em silêncio por algum tempo.

               MARTINA
               Eu tenho saudade. Desde que a Rosana morreu, só
               consigo falar de mim pro analista.

               SISSI
               Eu também sinto falta de conversar com a mãe.

               MARTINA
               Acho que todo mundo precisa de alguém que não
               cobre pra ficar prestando atenção no que tu fala.

               SISSI
               É. (hesita um pouco) Tem uma coisa que eu tô
               pensando em fazer... Por isso fui te visitar
               aquele dia.

Martina sorri e abraça Sissi.

               MARTINA
               Quando eu era criança, na escola, e queria trocar
               um segredo com uma amiga, uma dizia o que tava
               pensando - tem que ser bem resumido - e a outra
               logo depois fazia a mesma coisa, sem pensar. E só
               depois se falava a respeito. O que tu acha?

               SISSI
               Legal.

               MARTINA
               Então eu vou dizer. E logo depois tu diz, OK?

               SISSI
               OK.

               MARTINA
               Eu tô morrendo de tesão por um papeleiro.

               SISSI
               Eu resolvi ser garota de programa.

As duas se olham, apavoradas.

               MARTINA
               Acho que nós vamos precisar de mais de vinte
               minutos.

CENA 42 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA

Rogério entra na sala com um copo de água na mão. Senta. Rogério
pega um envelope pequeno no bolso e o examina, sem abrir. Pega o
telefone.

               ROGÉRIO
               Sandra, liga pra Marlúcia.

Coloca o fone no gancho. Abre o envelope. É uma caixa de Viagra.
Pega um comprimido e toma. Guarda a caixa de Viagra na gaveta.
Toca o telefone. Ele atende.

               ROGÉRIO
               Pode passar. (pausa) Oi, Marlúcia. Tudo certo?
               (pausa) Oito horas, combinado. Tchau.

Rogério coloca o fone no gancho. Pensa um pouco. Abre a gaveta,
tira a caixa de Viagra. Pega outro comprimido e toma.

CENA 43 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE

Martina abre um vinho, com alguma dificuldade. Sissi está sentada
com ela na sala.

               SISSI
               Tem uma amiga minha que tá ganhando trezentos
               reais por dia.

               MARTINA
               Que maravilha. O que ela faz?

A rolha sai. Martina serve dois cálices.

               SISSI
               Faz programa.

               MARTINA
               Tira essa história da cabeça. Eu posso te
               emprestar alguma coisa por mês, até o teu pai
               conseguir um emprego.

Martina alcança um cálice para Sissi. Batem os cálices. Começam a
beber.

               SISSI
               De jeito nenhum, tia.

               MARTINA
               Isso não é vida pra ti, Sissi.

Martina levanta, abre a bolsa, pega a carteira e começa a fazer
um cheque.

               MARTINA
               Vou te dar trezentos reais. Tu devolve quando
               puder.

               SISSI
               Nem pensar.

Martina termina o cheque. Entrega para Sissi, que o guarda, meio
constrangida.

               SISSI
               Obrigado, tia.

               MARTINA
               E não se fala mais nisso. Sissi, tu quer conhecer
               o meu papeleiro? Eu tenho uma foto.

               SISSI
               Quero.

Martina pega a câmera e vai sentar-se ao lado de Sissi. Mostra a
foto no visor da câmera.

               SISSI
               Ele é bonito!

               MARTINA
               É, né? E sabe de uma coisa? Ele tem cheiro bom!
               Sissi, tu acha que eu tô louca?

               SISSI
               (sorrindo) Não sei, tia.

               MARTINA
               E o pior tu não sabe. (hesita) Desde que eu vi o
               William pela primeira vez eu tenho uma fantasia
               com ele. Só de pensar... Ai, Sissi, que loucura!

Martina ri. Sissi olha para a tia, cada vez mais espantada.

CENA 44 - MOTEL 0 (QUARTO DE LUXO) - INTERIOR - NOITE

Rogério e Marlúcia na cama, nus, em baixo dos lençóis. Ela está
fumando.

               MARLÚCIA
               Eu não gostaria que tu pensasse que isso que
               aconteceu entre nós foi uma troca, quer dizer, tu
               me come e eu mantenho o teu emprego. Seria uma
               coisa... meio sórdida.

Rogério dá um beijo no rosto de Marlúcia.

               ROGÉRIO
               Não foi uma coisa sórdida. Foi uma coisa boa.

               MARLÚCIA
               Essa história do Borges dizer que, se o cliente
               ficar, tu fica também... Isso é muito relativo. Tu
               sabe que o Borges é ambicioso. Ele não tá fazendo
               todo esse esforço por ti. É por ele.

               ROGÉRIO
               Entendi.

Marlúcia abraça Rogério.

               MARLÚCIA
               Posso ligar a TV?

               ROGÉRIO
               Claro.

               MARLÚCIA
               Faz tempo que eu não vejo um pornô.

Marlúcia aciona o controle remoto. Passamos a ouvir os gemidos de
um filme pornográfico.

               MARLÚCIA
               (olhando para a TV) Que luz horrível. (troca o
               canal; pequena mudança nos gemidos) Esse é melhor.
               A primeira coisa a fazer é a mais dolorosa: tu sai
               da mídia e volta pra criação, o que implica também
               na perda de alguns benefícios. Tu sabe como é.

               ROGÉRIO
               (espantado) E quem entra no meu lugar?

               MARLÚCIA
               O Borges. É o prêmio dele.

Rogério sai da cama, indignado, e começa a se vestir.

               MARLÚCIA
               Eu imaginei que tu ia ficar indignado. Mas pensa
               bem, antes de fazer bobagem. E confia em mim.

               ROGÉRIO
               Tu podia ter me dito isso antes.

               MARLÚCIA
               E estragar a trepada? De jeito nenhum.

               ROGÉRIO
               Eu peço demissão.

               MARLÚCIA
               E vai conseguir emprego onde?

               ROGÉRIO
               Eu tenho mais de dez anos de experiência...

               MARLÚCIA
               (cortando, enfática, sem perder a calma) Tu não tá
               compreendendo. Eu detesto o Borges. Ele não vai
               durar. Eu gosto de ti. Gosto bastante. (pausa)
               Confia em mim. (sorri) E volta pra cama.

Rogério olha para Marlúcia, em dúvida.

CENA 45 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE

Martina e Sissi continuam conversando e bebendo. A garrafa da
cena anterior está vazia. Há outra garrafa em cima da mesa, já
pela metade. As duas mulheres estão um pouco bêbadas.

               MARTINA
               Uma vez, na saída do cinema, eu tava com o Rogério
               e um gordo careca se aproximou, estendeu a mão pra
               mim e falou: "Não lembra de mim? Eu lembro de ti".
               (toma mais um gole de vinho) Eu quase desmaiei,
               achei que ele era um cliente, e o Rogério já tava
               olhando pro cara, meio desconfiado.

               SISSI
               O tio não sabe de nada?

Martina faz o sinal da cruz.

               MARTINA
               Deus me livre. Ninguém sabe, Sissi. Só eu e tu. Eu
               nunca usei meu nome de verdade.

               SISSI
               E o careca ali, segurando a tua mão.

               MARTINA
               É. Aí ele largou minha mão, se afastou um pouco e
               disse. Eu sou o Pinto, Martina. Teu colega no
               terceiro ano. O cara que te deu cola e te salvou
               em Geometria Descritiva.

               SISSI
               (rindo) Que loucura.

               MARTINA
               Aí olhei o cara de novo, e, juro por Deus, era
               como se o cabelo crescesse naquela careca, e eu vi
               o idiota que me salvou no terceiro ano. Aí eu
               apontei pro Rogério e disse assim: "Esse é o
               Rogério, meu marido". E os dois apertaram as mãos.
               E acho que conversamos sobre o filme.

A porta de entrada abre e Rogério entra, com ar cansado. As duas
mulheres levantam-se. Martina beija Rogério.

               SISSI
               Oi, tio.

               ROGÉRIO
               Oi. (olha para as garrafas) Estão fazendo uma
               festa?

               MARTINA
               Não. É só um encontro familiar. Quer um copo?

               ROGÉRIO
               Quero.

Rogério senta numa poltrona, longe de Martina, que lhe alcança um
cálice com vinho.

               MARTINA
               Como foi a reunião?

Rogério toma um gole.

               ROGÉRIO
               O que tu quer primeiro: a notícia boa ou a ruim?

               MARTINA
               Primeiro a boa.

               ROGÉRIO
               Não vou ser demitido.

               MARTINA
               (sorrindo) Eu te disse, querido.

               ROGÉRIO
               Agora a ruim: vou ganhar a metade do que eu
               ganhava.

               MARTINA
               Isso é contra a lei.

               ROGÉRIO
               O salário continua o mesmo. Mas eu vou perder
               todos os adicionais. Eu não preciso aceitar,
               claro, e posso procurar outro emprego. O que tu
               acha?

Martina olha para Rogério, preocupada, e não sabe o que dizer.
Sissi levanta-se, constrangida.

               SISSI
               Tio, eu já tava saindo. (para Martina) Foi ótimo,
               tia.

As duas se abraçam.

CENA 46 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE

Sissi sai do elevador. Seu Zé abre a porta para ela. Sissi hesita
e não sai.

               SISSI
               Eu... Esqueci de deixar uma coisa pra Martina. Tem
               alguma caixa postal aqui na portaria?

               SEU ZÉ
               Tem, sim senhora.

Seu Zé mostra o armário com as caixas postais. Sissi abre a
bolsa, tira o cheque de Martina e empurra-o, rapidamente, na
fenda da caixa postal do apartamento de Martina.

               SISSI
               Boa noite.

               SEU ZÉ
               Boa noite.

Sissi sai do edifício.

CENA 47 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA/COZINHA - INTERIOR - NOITE

Sissi entra, com uma sacola pequena de supermercado nas mãos.
Adão está vendo TV.

               ADÃO
               Trouxe alguma coisa?

               SISSI
               Leite e pão.

               ADÃO
               O Diego foi dormir sem comer.

               SISSI
               Amanhã de manhã dou um café reforçado pra ele.

Na cozinha, pai e filha comem pão com manteiga e tomam leite.

               ADÃO
               Não me aceitaram no estacionamento. Eu tô muito
               velho pro serviço. (pausa) Eles tão procurando uma
               secretária. O salário é razoável.

               SISSI
               Que turno?

               ADÃO
               Normal. Manhã e tarde.

               SISSI
               Eu não posso pai. Tem a faculdade. Mas eu vou sair
               do tele-marketing. Vou fazer... (hesita; não
               encontra a palavra) Representação de uma marca de
               roupa. Uma amiga minha tá ganhando bem, e eu vou
               ajudar ela. Essa geladeira vai ficar cheia, pai.

Adão olha para a filha e sorri, cético.

CENA 48 - SHOPPING/ÁREA DE ALIMENTAÇÃO - INTERIOR - DIA

Giane e Sissi conversam numa mesa da área de alimentação. Giane
está segurando um celular.

               GIANE
               (para o seu interlocutor) Vou passar pra ela.
               (para Sissi, sorridente) Vai dar tudo certo.

               SISSI
               Alô? (pausa) A Giane... (fica nervosa) Quer dizer,
               a Michele me explicou. (pausa) Entendi. Pensei
               em... Helena. (pausa) Sobrenome? Sei lá. (pausa)
               Velasquez? Pode ser. (pausa) A Giane me falou em
               duzentos. (pausa; fecha o bocal e fala para Giane)
               Ela diz que tem que ser cento e cinqüenta no
               início.

               GIANE
               É o que ela fez comigo.

               SISSI
               (de volta ao celular) Combinado. (olha em volta)
               Posso. Ele tá aqui? (pausa) A Giane me avisou.
               (pausa) Pretendo fazer as fotos ainda nessa
               semana. (pausa) Tudo bem. (pausa) Tchau.

Sissi desliga o celular e devolve-o para Giane.

               SISSI
               Ela disse que um tal de Marco Aurélio já vai
               sentar aqui conosco.

Giane olha em volta e vê Marco Aurélio, 25 anos, que se aproxima
da mesa. Ele chega e beija as duas garotas.

               MARCO AURÉLIO
               Oi, Michele.

               GIANE
               Oi, tudo bom?

               MARCO AURÉLIO
               (olhando para Sissi) Prazer, Marco Aurélio.

               SISSI
               Prazer, Cecília. Não!... Helena.

Marco Aurélio senta.

               GIANE
               Eu já expliquei tudo pra ela.

               MARCO AURÉLIO
               Tudo? Tem certeza?

               GIANE
               Eu falei sobre o depósito pra Brigite, toda
               segunda-feira, dei o número da conta, essas
               coisas.

               MARCO AURÉLIO
               Ótimo. (olha atentamente para a Sissi) Nós vamos
               colocar no site que tu é totalmente iniciante.
               Isso significa que o cliente não vai esperar um
               atendimento muito especial. Só o básico: uma
               chupada e sexo vaginal. Tu beija só se quiser. Aí
               tu toma banho, conversa um pouco e, se o cara
               quiser, tu dá outra chupada e mais sexo vaginal.
               Tu tem direito a pedir camisinha sempre, tanto na
               chupada quanto no vaginal. Fica duas horas com o
               cara e vai embora. (percebe que Sissi está
               chocada) Tudo certo, Helena?

               SISSI
               Tudo certo.

               MARCO AURÉLIO
               A Brigite também quer saber se tu topa fazer anal
               e quanto tu cobra de extra.

Sissi não responde. Olha para Marco Aurélio, mas parece que não
vê ninguém.

               GIANE
               Sissi, ele fez uma pergunta.

               SISSI
               Desculpe. Que pergunta?

               GIANE
               Se tu faz sexo anal. Eu não faço, mas tem umas
               garotas que cobram até 100 reais de extra.

Sissi olha para Giane e não diz nada.

               MARCO AURÉLIO
               (para Giane) A tua amiga sabe sobre o que nós
               estamos falando?

               GIANE
               Claro que sabe. Eu vou ajudar ela. Deixa comigo.

Marco Aurélio olha para Sissi, desconfiado.

CENA 49 - BAIA DE TELE-VENDAS - INTERIOR - DIA

Sissi trabalha, com fones de ouvido e microfone.

               SISSI
               ... e se o senhor entrar na promoção ainda hoje,
               ganha cem minutos grátis, para falar com cinco
               assinantes que o senhor indicar...

Martina aproxima-se da baia, conduzida por um supervisor, 30
anos. Acena e depois faz um sinal de "posso esperar" para Sissi,
que está surpresa com a visita. O supervisor fica perto delas,
com cara de aborrecido.

               SISSI
               (no microfone) Muito obrigado pela sua atenção.

Desliga e olha para a sua tia.

               MARTINA
               Não quero atrapalhar.

               SUPERVISOR
               A sua tia disse que era urgente. Eu avisei pra ela
               que a empresa não permite visitas.

               MARTINA
               Tu pode sair um pouquinho, Sissi?

               SUPERVISOR
               Ela não pode sair.

               SISSI
               Ninguém te perguntou.

Sissi sorri e tira os fones e o microfone.

               SISSI
               Vou sair, mas não vai ser um pouquinho.

Estende os aparelhos para o supervisor.

               SISSI
               Se quiser, pode ficar no meu lugar. Ou então
               enfia.

CENA 50 - PARQUE - EXTERIOR - DIA

As duas conversam num banco. Marina abre a bolsa e estende um
envelope para Sissi.

               MARTINA
               Se tu não aceitar, eu nunca vou me perdoar na
               vida.

Sissi olha para o envelope, mas não pega.

               MARTINA
               Nós ainda temos uma grana no banco.

               SISSI
               Eu tô decidida, tia. (pensa um pouco) Se eu pegar
               esse envelope sabe o que eu vou fazer com o
               dinheiro? Vou pagar as fotos pro site.

               MARTINA
               Que site?

               SISSI
               O que anuncia o serviço. Já falei com a dona, a
               que vai me agenciar.

               MARTINA
               (chocada) Eu não vou permitir...

               SISSI
               Não vou viver de favor de ninguém, e não volto
               praquele emprego de merda. Guarda esse envelope.

Martina não guarda. Sissi levanta.

               SISSI
               Adorei a visita, tia. Eu tenho ir.

Sissi abaixa-se, beija a tia e afasta-se, em passos rápidos.

CENA 51 - ESCRITÓRIO DE BETINHO/RECEPÇÃO - INTERIOR - DIA

Giane está sentada, sozinha, na pequena recepção de um escritório
modesto, típico das galerias do centro de Porto Alegre. Há muitas
fotos de mulheres penduradas na parede, algumas de bom gosto,
outras bem longe disso. A porta abre e sai uma garota, 20 anos,
maquiada demais. Atrás dela também sai Betinho, 25 anos, com pose
de malandro. Giane levanta-se. Os dois se beijam.

               BETINHO
               Cadê a sua amiga?

               GIANE
               Ela ficou lá em baixo.

               BETINHO
               Por quê?

               GIANE
               Ficou envergonhada.

               BETINHO
               Envergonhada de quê?

               GIANE
               Ela tá começando, Betinho. Daqui a pouco ela sobe.

               BETINHO
               (sorrindo) Tá bom. Vamos entrar?

CENA 52 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA

Betinho senta atrás de uma escrivaninha velha e indica uma
cadeira à sua frente para Giane. Numa mesa auxiliar, um
computador divide o espaço exíguo com estantes de plástico cheias
de CDs e uma câmera fotográfica digital. Assim que senta, Giane
abre a bolsa e pega quatro notas de cinqüenta reais. Estende-as
para Betinho.

               GIANE
               Tá aqui.

Betinho conta.

               BETINHO
               Só tem duzentos.

               GIANE
               Depois ela dá o resto.

Betinho coloca o dinheiro em cima da mesa, na frente de Giane.

               BETINHO
               Já tô fazendo desconto. O preço de tabela é...

               GIANE
               (cortando) Que tabela, Betinho? Não faz onda.

               BETINHO
               A minha tabela. Se é pra fazer serviço porco,
               contrata o Vanderlei.

CENA 53 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE/LANCHERIA -
INTERIOR - DIA

Sissi termina de comer um pastel. Passa o dedo no prato, pegando
as migalhas. Leva o dedo à boca. Olha para os outros
freqüentadores da lancheria e para o liquidificador, onde uma
vitamina está sendo preparada. Parece nervosa.

CENA 54 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA

               GIANE
               (sedutora, inclinando-se na direção de Betinho) Tu
               tá muito chato. Vamos negociar.

               BETINHO
               (sorrindo) Eu conheço o teu negócio. Ele não enche
               a barriga de ninguém.

Giane suspira e abre a bolsa.

               GIANE
               Tá bom. Eu consigo mais cinqüenta.

Betinho levanta e coloca a câmera numa sacola de equipamentos
fotográficos. Põe a sacola no ombro.

               BETINHO
               Tchau, Giane. Eu tenho trabalho daqui a meia-hora.

               GIANE
               Eu consegui o motel pra amanhã. Dá uma força.

               BETINHO
               Dou. E tu me dá quatrocentos reais.

Betinho passa por Giane e abre a porta olhando para ela, Não
percebe que Sissi está de pé, junto à porta. Giane vê a amiga.

               GIANE
               Essa é a Sissi.

Betinho vê Sissi. Os dois se olham. Sissi está nervosa.

               SISSI
               Oi.

               BETINHO
               Oi.

Por mais alguns segundos, os dois apenas se olham. Sissi tenta
sorrir. Betinho recua um pouco.

               BETINHO
               Entra, por favor.

Sissi entra. Betinho larga a sacola e indica uma cadeira ao lado
de Giane. Sissi senta. Betinho também senta e não desgruda os
olhos de Sissi. Giane percebe e sorri.

               BETINHO
               Então... Tu precisa de umas fotos...

Sissi sorri para ele, envergonhada.

CENA 55 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA

Martina está na cozinha, com uma cara péssima, cabelo todo
desgrenhado, tomando café de roupão. Toca o interfone. Ela vai
atender.

               SEU ZÉ
               (OFF) É o rapaz do lixo limpo.

               MARTINA
               Diz pra ele que hoje eu não tenho nada.

Martina desliga o interfone e volta a sentar. Dá mais uma mordida
no pão. De repente, levanta e vão até o interfone. Aperta o
botão.

               SEU ZÉ
               (OFF) Sim?

               MARTINA
               O rapaz do lixo ainda tá aí?

               SEU ZÉ
               Já tá lá na rua. Mas se a senhora quiser...

               MARTINA
               Chama ele, por favor.

Martina desliga o interfone e corre na direção do quarto.

CENA 56 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE/ELEVADOR - INTERIOR -
DIA

Betinho, Giane e Sissi descem no elevador cheio de freqüentadores
da galeria. Betinho olha para Sissi. Sissi olha para o chão.
Giane olha para Betinho e sorri.

CENA 57 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA

William está comendo um sanduíche, enquanto Martina coloca leite
quente numa xícara. Ela continua de roupão, mas ajeitou um pouco
o cabelo e passou batom.

               MARTINA
               Hoje vai ter que ser café solúvel.

               WILLIAM
               Não tem problema.

Ela prepara o café para William. Enquanto ela serve, os dois
começam a se olhar, primeiro por poucos instantes, desviando os
olhos, depois com mais tempo e mais intensidade.

               MARTINA
               Açúcar ou adoçante?

               WILLIAM
               Açúcar.

Martina senta e começa servir café para ela mesma. A troca de
olhares se intensifica. Martina coloca leite em sua xícara, que
fica cheia e começa a transbordar sem que ela perceba. Num
rompante, os dois se inclinam sobre a mesa e se beijam.

CENA 58 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE - INTERIOR - DIA

Betinho, com a sacola no ombro, beija Sissi e Giane.

               BETINHO
               (para Sissi) Não te preocupa. Vai dar tudo certo.

Betinho se afasta. Depois de alguns passos, pára, volta-se para
as duas e abana, sorridente. Elas abanam de volta. Ele vai
embora, ainda mais feliz. As duas se olham. Giane faz uma cara
divertida. Sissi está envergonhada.

CENA 59 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA

Martina e William beijam-se, de pé, contra a geladeira. Martina
passa a mão no peito de William, que a leva na direção da pia,
sem parar de beijar. William segura Martina e a faz sentar na
pia. Os dois se abraçam. William vai tirando o roupão de Martina,
que está de baby-doll. Martina consegue tirar a camisa de
William. De repente, contudo, Martina volta a fechar o roupão e
empurra William.

               MARTINA
               Eu não consigo.

               WILLIAM
               A senhora me desculpe. Eu não devia...

               MARTINA
               (cortando) A culpa foi minha. Eu te mandei subir.

               WILLIAM
               Não. Hoje eu nem devia ter passado aqui.

               MARTINA
               Então, por que passou? Tava com fome?

               WILLIAM
               (hesita um pouco) Não. Passei pra ver a senhora.

               MARTINA
               Só ver?

CENA 60 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - DIA

William deita-se sobre Martina na cama. Os dois começam a tirar a
roupa, beijando-se sem parar. Parece que a transa finalmente vai
acontecer. Mas, depois de muitas carícias, Martina afasta-se mais
uma vez. Recoloca o roupão, mas não sai da cama.

               MARTINA
               Eu não vou conseguir.

               WILLIAM
               Eu entendo. Aqui nessa cama deve ser difícil pra
               ti.

               MARTINA
               A cama não é o problema.

               WILLIAM
               Então é o meu cheiro.

               MARTINA
               Tu tem um cheiro mais maravilhoso.

Martina aproxima-se de William.

               MARTINA
               É que... Eu queria te pedir uma coisa.

William olha para Marina, sem entender.

CENA 61 - MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - DIA

Giane está fazendo a maquiagem em Sissi, que veste um roupão de
banho. Betinho faz ajustes num tripé que sustenta um flash
simples. Giane termina a maquiagem, abre uma sacola e começa e
mostrar calcinhas e sutiãs para Sissi.

               GIANE
               Tem essa, de rendinhas, e essa outra aqui, com
               esse furinho, que são as mais bonitas.

               SISSI
               Nem pensar. Com furinho, nem pensar.

               GIANE
               (falando baixinho) Sissi, tu também vai tirar sem
               nada. Que diferença faz?

               SISSI
               Prefiro "sem nada" que "com furinho".

               BETINHO
               Eu tô pronto.

Betinho olha para as duas.

               GIANE
               (para Sissi) Rendinhas ou furinho?

               SISSI
               Rendinhas.

Sissi levanta-se, decidida, e troca a calcinha, ainda vestindo o
roupão. Depois tira o roupão, ficando só de calcinha e sutã.
Volta-se para Betinho.

               SISSI
               Meu rosto não vai aparecer, tem certeza?

Betinho fica impressionado com a beleza de Sissi.

               BETINHO
               Tenho. Vamos começar na banheira?

               SISSI
               Na banheira, de calcinha de renda?

               BETINHO
               É. Tem razão. Então começamos na cama.

Sissi olha para Giane, nervosa.

               GIANE
               Vamos deixar a cama pra depois.

               SISSI
               Tô com um pouco de frio.

               BETINHO
               Ela tá com frio, Giane. Não tem um casaquinho?

Giane olha para Betinho, espantada.

               GIANE
               Casaquinho? Nunca vi casaquinho nesse tipo de
               foto.

               BETINHO
               Tem uns casaquinhos meio transparentes, sabe?

               GIANE
               Não inventa moda! Nas minhas fotos não teve
               casaquinho nenhum.

Betinho aproxima-se do console e liga o ar-condicionado.

               BETINHO
               Pronto. Já vai esquentar.

               SISSI
               Obrigado.

               BETINHO
               De nada. Vamos lá? (indicando uma cadeira) Senta
               ali. Vamos começar com uns retratos.

               SISSI
               Mas o meu rosto não pode aparecer.

               BETINHO
               Nós vamos fazer de um jeito que não apareça o
               rosto. Se aparecer um pouquinho, a gente borra no
               photoshop.

               GIANE
               Fica aquela nuvenzinha na cara que eu te mostrei.

Betinho já está com a câmera a postos.

               BETINHO
               Joga o cabelo pra frente, Sissi.

Sissi obedece. Giane ajuda. Betinho enquadra.

               BETINHO
               Agora, vira o rosto pro lado.

Sissi obedece.

               BETINHO
               Assim... Assim... Perfeito.

Betinho aperta o botão. O flash dispara.

CENA 62 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - DIA

Martina e William na porta de saída, ainda fechada. William está
com um saco de lixo na mão.

               WILLIAM
               Eu não sei se vou conseguir fazer direito.

               MARTINA
               Tudo bem. É só uma brincadeira. Eu não sou louca,
               William. Só vou te ligar quando for totalmente
               seguro. Pode confiar em mim.

Martina beija William, que sorri, meio encabulado.

CENA 63 - MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - DIA

Sissi retoca a maquiagem no banheiro. Giane conversa com Betinho
em voz baixa.

               GIANE
               Que palhaçada é essa? Ela nem tirou o sutiã ainda.

               BETINHO
               Tu disse que era pra ir devagar.

               GIANE
               Não tão devagar. Eu tenho compromisso daqui a uma
               hora. A Brigite não vai aceitar essas fotos.

               BETINHO
               Por quê? Elas estão ficando ótimas.

               GIANE
               Tem que mostrar o corpo dela. Peito, bunda, tudo.
               Ela tá depilada. Eu já conferi.

Sissi volta.

               GIANE
               Sissi, querida, agora vamos fazer sem o sutiã.

Sissi olha para Betinho como quem pede ajuda. Giane olha para
Betinho, reafirmando sua ordem.

               BETINHO
               OK, Sissi. Vamos lá.

Betinho afasta-se bastante e troca a objetiva da câmera.

               BETINHO
               Pode tirar.

Sissi respira fundo e aproxima as mãos do sutiã. Hesita um pouco.
Betinho vira-se de costas e regula alguma coisa na câmera. Só
então Sissi tira o sutiã. Giane fica pasma e aproxima-se de
Betinho. Cochicha no ouvido dele.

               GIANE
               Comigo tu ficou bem perto em todas as fotos.

               BETINHO
               É que eu ainda não tinha essa tele.

               GIANE
               E não virou de costas.

               BETINHO
               A menina é iniciante.

Betinho vira-se para Sissi, que imediatamente cobre os seios com
as mãos.

               GIANE
               (para Sissi, ríspida) Abaixa essas mãos, Sissi.

               BETINHO
               Calma. A gente pode começar assim. (para Sissi) O
               principal, Sissi, é que a gente mostre que o teu
               corpo é a suprema promessa da felicidade.

               GIANE
               O quê?

               BETINHO
               Tem que deixar espaço pra imaginação. O que é a
               beleza? É a promessa da felicidade. (para Sissi)
               Tem que descobrir um pouquinho mais. Assim...

Sissi descobre um pouco mais os seios.

               BETINHO
               Agora vira o rosto. Perfeito. Tá lindo!

Betinho ergue a câmera. Giane olha para os dois, incrédula.

CENA 64 - APARTAMENTO DE MARTINA - INTERIOR - DIA

Sissi e Martina olham para as provas das fotos, impressas em
papel ofício. Apesar de algumas poses serem mais explícitas que
as mostradas na cena anterior, ainda são bastante discretas.

               MARTINA
               Estão lindas.

               SISSI
               Acha mesmo?

               MARTINA
               Claro.

               SISSI
               O Betinho - o fotógrafo, sabe? - foi bem querido.
               A Giane tinha me dito que ele gostava de tirar uma
               casquinha, mas que nada, ele foi legal.

               MARTINA
               E agora?

               SISSI
               Agora elas vão pro site.

Toca o celular. Sissi atende

               SISSI
               Alô. (pausa) Oi, Betinho. (para Martina) É o
               próprio. (pausa maior) Certo. Eu passo aí.

Desliga. Parece confusa.

               SISSI
               Ele disse que as fotos estão com problema. Eu vou
               lá falar com ele. (pausa) Tia, a senhora pode me
               emprestar trinta reais? Eu tenho que comprar umas
               coisas pro Diego.

CENA 65 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA

Betinho olha para Sissi, com ar preocupado. Sissi está com os
contatos na mão.

               BETINHO
               Nunca aconteceu antes. Acho que foi um problema de
               compressão. Os arquivos estão corrompidos.

               SISSI
               A Giane disse pra mim pegar o dinheiro de volta.
               Ela já falou com outro fotógrafo.

               BETINHO
               Que fotógrafo?

               SISSI
               Vanderlei, acho.

               BETINHO
               O Vanderlei? Nem pensar. Ele vai se aproveitar de
               ti.

               SISSI
               Pode me dar os duzentos reais de volta?

Betinho não responde, nem faz menção de pegar a carteira.

               SISSI
               Por favor?

               BETINHO
               É que... Eu tava mentindo. As fotos não têm
               problema nenhum. Mas não posso mandar essas fotos
               pra Brigite.

               SISSI
               Por quê?

               BETINHO
               Porque... Não é vida pra ti.

Giane entra no escritório.

               GIANE
               Betinho, o que aconteceu?

               SISSI
               Ele disse que as fotos não têm problema nenhum.

               GIANE
               Tu tá tirando onda com a gente? Manda essas fotos
               pra Brigite agora, ou então devolve o dinheiro!
               (para Sissi) Já marquei com o Vanderlei. (para
               Betinho) Devolve a grana, Betinho, ou tu vai
               passar o resto da vida fotografando vaca na
               Expointer.

Betinho olha para as duas, sem saber o que fazer.

               BETINHO
               (vencido) Tá bom. Eu mando as fotos.

               GIANE
               Ótimo. Semana que vem a Sissi te passa os duzentos
               que estão faltando.

               BETINHO
               (deprimido, para Sissi) Não precisa. Tá pago.

As duas olham pra ele, espantadas.

CENA 66 - BAR - INTERIOR - NOITE

Rogério e Borges conversam e tomam cerveja.

               BORGES
               Ouvi falar que o Tadeu, em São Paulo, vai dançar.
               E aí eu vou pro lugar dele, e tu vem pro meu
               lugar. Tá tudo esquematizado, cara.

               ROGÉRIO
               Quem te disse que o Tadeu vai dançar?

               BORGES
               A Marlúcia. (malicioso) A tua Marlúcia.

               ROGÉRIO
               Minha porra nenhuma.

               BORGES
               (sorrindo) Tá bom. A minha Marlúcia.

               ROGÉRIO
               O que tu quer dizer com isso?

               BORGES
               (inocente) Eu? Nada?

               ROGÉRIO
               Tu também comeu a Marlúcia.

               BORGES
               Eu?

               ROGÉRIO
               (quase gritando) Comeu, sim!

               BORGES
               Calma, Rogério. Fala mais baixo.

               ROGÉRIO
               Tu é o cara mais escroto do universo.

               BORGES
               Eu sou o cara que salvou o teu emprego.

               ROGÉRIO
               Como é que tu consegue? Tu é muito podre!

               BORGES
               Sabe como eu consigo? Na última vez que eu fui no
               motel com ela, eu disse que ia ficar mais um
               pouco, que tava começando um jogo na TV que eu não
               queria perder. Ela saiu, e eu chamei a puta mais
               gostosa dessa cidade. Sabe quanto ela custa?
               Seiscentos reais. Só de pensar nela, eu já fico
               com tesão. É assim que eu consigo. Se tu quiser,
               eu te passo o telefone. (pausa) Ela aceita cartão
               de crédito.

CENA 67 - APTO. DE SISSI/QUARTO DE SISSI - INTERIOR - NOITE

Sissi lê uma história para Diego, que está quase dormindo. O
livro tem cara de ser novo. Também há um estojo grande de canetas
"zero quilômetro" sobre as cobertas.

               SISSI
               O lobo soprou e soprou, mas a casa não desabou.

               DIEGO
               Por que não desabou?

               SISSI
               Porque essa casa era de tijolo.

               DIEGO
               E aí o lobo não conseguiu entrar?

               SISSI
               Não.

               DIEGO
               Tu disse que o lobo queria comer os porquinhos.

               SISSI
               Disse.

               DIEGO
               (quase dormindo) Então ele tava com fome, né?

               SISSI
               Devia estar.

               DIEGO
               Coitado do lobo...

Diego dorme. Sissi fecha o livro. Deita em sua própria cama.
Acende a luz de cabeceira. Pega um livro sobre tragédias gregas.
Tenta ler.

               ADÃO
               (OFF) Sissi?

Sissi vê seu pai no vão da porta.

               ADÃO
               O Diego já dormiu?

               SISSI
               Já.

               ADÃO
               Eu trouxe pão e leite. Tu vai querer?

CENA 68 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - NOITE

Pai e filha comem pão e tomam leite.

               ADÃO
               O Diego adorou os presentes.

               SISSI
               Eu disse pra ele que vamos fazer a festinha de
               aniversário assim que der. Onde tu conseguiu
               dinheiro pra comida, pai?

               ADÃO
               Eu trabalhei.

               SISSI
               (muito feliz) Tu conseguiu um emprego?

               ADÃO
               Não. Eu consegui uma rua.

               SISSI
               Uma rua?

               ADÃO
               Negociei com o dono. Vou trabalhar lá nas terças e
               quintas e dou vinte por cento pra ele.

               SISSI
               Trabalhar em quê?

               ADÃO
               Cuidando dos carros. Deu quase cinco reais hoje, e
               eu já paguei a parte dele.

Sissi olha para o pai, que continua comendo, impassível.

CENA 69 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA

Martina e Sissi conversam. Sissi está nervosa.

               MARTINA
               Sissi, liga e cancela tudo. É perigoso.

               SISSI
               Eu não tenho medo dos caras, tia. A Giane disse
               que Brigite tem amigos na polícia, e ninguém se
               passa com as gps dela. Eu tenho medo de não fazer
               direito, de estragar tudo. A Giane me deu umas
               dicas, disse que eu tenho que gemer... Eu não
               solto nem um ai quando tô trepando. Como tu fazia?

Martina ri.

               MARTINA
               O segredo é começar baixinho, pro cara não
               perceber que é encenação. Se logo no começo tu já
               começa a gritar, fica falso.

               SISSI
               Como é que se faz, assim, baixinho?

               MARTINA
               Ai, Sissi. Que absurdo.

               SISSI
               Por favor, tia.

               MARTINA
               Era assim... (geme) Ahhhh...

Sissi ri. Martina também.

               SISSI
               Só isso? (tenta imitar) Ahhh...

               MARTINA
               Começa assim, depois vai aumentando.

               SISSI
               Faz, tia, por favor.

               MARTINA
               (gemendo) Ahhhh... Ahhhh... Ahhhhhhhhhhhh...

               SISSI
               (imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh...

               MARTINA
               Depois fica mais forte. (mais alto) Ahhhhh...
               Ahhhh... Ahhh...

               SISSI
               (imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh...

               MARTINA
               E tem que ficar virando a cabeça de um lado pro
               outro. (sacode a cabeça) Ahhhh... Ahhhhh...
               Ahhhh...

               SISSI
               (imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh...

               MARTINA
               Dependendo do gosto cliente, dá pra ser mais
               escandalosa e gritar um pouquinho. (gritando)
               Tipo... Aiiii... Aiiii... Aiiiiiii...

               SISSI
               (imitando os gritos) Aiiii... Aiiii... Aiiiiiii...

CENA 70 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - DIA

Rogério entra no elevador e aperta o botão do seu apartamento. O
elevador começa a subir.

CENA 71 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA

Continua a palhaçada. As duas riem bastante.

               MARTINA
               Tinha uns que me pediam pra falar uns palavrões.

               SISSI
               Palavrões?

               MARTINA
               É. Mas eu não gostava. Muita baixaria. Aí, pro
               cara não ficar brabo, eu tinha que caprichar muito
               e fazia o meu gemido especial. O cara achava que
               tava gozando, e gozava também.

               SISSI
               Como era o especial?

               MARTINA
               (entre risos) Não consigo mais fazer.

               SISSI
               Faz tia, por favor.

CENA 72 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR DO APARTAMENTO - INTERIOR
- DIA

Rogério sai do elevador, com a chave na mão. Quando coloca a
chave na fechadura, ouve vozes, abafadas, mas bem evidentes.

               MARTINA
               (OFF) Aiiiiii... Ahh... Aiaiaiaiaiaiaiaiaia...

Rogério congela. Ouve uns risos abafados. Encosta o ouvido na
porta e escuta.

               SISSI
               (OFF) Aiiiiii... Ahh... Aiaiaiaiaiaiaiaiaia...

Rogério gira a chave, abre a porta e entra rápido no apartamento.

CENA 73 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA

As duas mulheres, sentadas frente a frente, olham para Rogério,
assustadas e tentam se recompor.

               MARTINA
               Eu tava contando pra Sissi um filme que eu vi.

               ROGÉRIO
               Que filme?

               MARTINA
               Não lembro o nome. Vi quando era pequena. Era uma
               comédia italiana. Tinha um campeonato de gemidos
               eróticos. Uma velha de oitenta anos ganhou.

Rogério fica olhando para as duas por um tempo.

               SISSI
               Desculpe, tio. Eu que fiz a tia gritar daquele
               jeito.

               ROGÉRIO
               Tudo bem. (para Martina) Tem alguma coisa pro
               almoço?

               MARTINA
               Eu faço num instante.

Rogério sai da sala. Toca o celular de Sissi. As duas se olham e
enxugam os olhos, que ainda estão cheios de lágrimas. Ela atende.

               SISSI
               Alô. (pausa) Oi, Brigite. (pausa) Mas ainda são...
               (pausa) Certo. O táxi me pega às quinze pras duas.
               (pausa) Depois, direto lá. (pausa) Entendi.
               (pausa) Obrigado. Tchau.

Sissi desliga o telefone e olha para Martina.

               SISSI
               (baixinho) A Brigite botou as fotos, e um cliente
               já marcou. Eu começo amanhã.

As duas se olham, e agora não há mais brincadeira alguma.

CENA 74 - APARTAMENTO DE SISSI/BANHEIRO - INTERIOR - DIA

Giane observa Sissi terminando de passar batom.

               GIANE
               Tá ótimo. Tá linda, Sissi. Que roupa tu vai usar?

Sissi vira-se para Giane.

               SISSI
               Essa aqui tá ruim?

Giane olha para o jeans e a blusa de Sissi.

               GIANE
               A calça tinha que estar mais apertada na bunda,
               mas pra essa hora, tá legal. O mais importante é o
               que tem em baixo. Deixa eu ver.

               SISSI
               Ver o quê?

               GIANE
               A calcinha e o sutiã.

Sissi hesita um pouco, mas depois tira a roupa. Está com uma
roupa de baixo bem discreta. Giane faz cara de quem não gostou.

               GIANE
               Não dá. Isso é calcinha de freira. Bota uma
               menorzinha.

               SISSI
               Essa é a menor de todas. (em dúvida) Eu tenho...
               Umas coisas antigas...

               GIANE
               Deixa eu ver.

Sissi sai do banheiro.

CENA 75 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO - INTERIOR - DIA

Sissi pega o pacote com as lingeries de Martina no fundo armário.
Abre o pacote e olha para as peças de roupa.

               SISSI
               (para si mesma) Cento e vinte reais. Cento e vinte
               reais. Cento e vinte reais.

CENA 76 - APARTAMENTO DE SISSI/BANHEIRO - INTERIOR - DIA

Giane olha para Sissi, espantada.

               GIANE
               Onde tu conseguiu essas coisas?

Sissi está usando a lingerie de Martina.

               SISSI
               Não interessa. Essas tão boas?

               GIANE
               Tão. São meio antigas, mas devem funcionar.

               SISSI
               Ótimo.

Sissi começa a se vestir.

               GIANE
               O motorista se chama Heitor. É meio bagaceiro,
               luta jiu-jitsu, mas é de confiança. Se o cliente
               não se comportar, é só ligar pra ele.

CENA 77 - ESCOLA PÚBLICA/FACHADA - EXTERIOR - DIA

Diego corre na direção de Sissi e Giane. Sissi abraça Diego.

               DIEGO
               (admirado) Como tu tá bonita, Sissi.

               SISSI
               Obrigado. Essa é a minha amiga Giane.

Giane beija Diego e mexe no cabelo dele.

               GIANE
               Que amor.

               DIEGO
               (para Sissi) Parece que tu vai numa festa.

               SISSI
               É que eu tô começando num emprego novo.

               DIEGO
               Eu sei. O vô me falou que tu vai ser atriz.

               SISSI
               Atriz?

               DIEGO
               É. Tu vai fazer representação. Quem faz
               representação não é atriz?

Sissi sorri amarelo para Diego.

CENA 78 - RUA DE SHOPPING - EXTERIOR - DIA

Um táxi, dirigido por Heitor, 25 anos, estaciona. Giane e Sissi
se aproximam dele.

               GIANE
               Oi, Heitor.

               HEITOR
               Oi, Michele.

               GIANE
               Essa é a Helena.

               HEITOR
               (para Sissi) Prazer.

Giane abraça forte Sissi.

               GIANE
               Vai dar tudo certo.

               SISSI
               Claro que vai.

Sissi entra no táxi, que arranca. Giane abana.

CENA 79 - TÁXI - INTERIOR/EXTERIOR - DIA

Heitor dirige e tenta observar Sissi pelo espelho. Sissi abre a
bolsa, pega um óculos escuro e o coloca.

               HEITOR
               Nova com a Brigite?

               SISSI
               Hahã.

               HEITOR
               Veio do interior?

               SISSI
               Não.

               HEITOR
               Trabalhava com quem antes?

Sissi não responde. Heitor dirige em silêncio por um tempo.

               HEITOR
               É a primeira vez, né?

               SISSI
               A Brigite te falou?

               HEITOR
               Não. Se tu quiser, eu fico te esperando no
               estacionamento do motel. Cobro trinta e cinco
               reais, e a corrida fica por conta.

               SISSI
               Não precisa.

               HEITOR
               Tu que sabe. Tem umas meninas que gostam. Se
               sentem mais seguras. (pausa) A Giane te explicou
               que tu pode me chamar, se o cara complicar?

               SISSI
               Explicou.

Heitor sorri, tranqüilizador.

               HEITOR
               Vai dar tudo certo.

Sissi tenta sorrir de volta, mas não consegue.

CENA 80 - PORTARIA DE MOTEL 2 - EXTERIOR - DIA

O táxi de Heitor está parado na portaria. Ele fala com o
interfone.

               HEITOR
               É a Helena. O Juliano tá esperando por ela.

               VOZ DE MULHER
               (OFF) Box vinte e dois.

O portão abre. O táxi entra.

CENA 81 - PÁTIO DE MOTEL 2 - EXTERIOR - DIA

O táxi pára no box 22, que está com o toldo abaixado. Sissi
desembarca.

               HEITOR
               Tem certeza que não quer que eu espere?

               SISSI
               Tenho. Obrigada.

O táxi arranca. Sissi passa pela fresta entre o toldo e a parede
e entra no box.

CENA 82 - BOX DE MOTEL 2/ESCADA/PORTA DO QUARTO - INTERIOR - DIA

Está muito escuro no box. Sissi tem certa dificuldade de ver onde
está a escada. Avança devagar, pelo lado de um carro pequeno, até
achar um interruptor. Acende a luz. Agora pode ver melhor o
carro: além de pequeno, é velho e está sujo. Sissi olha para a
escada. Pensa um pouco. Depois segue em frente. Sobe as escadas
lentamente. Chega na porta. Não bate de imediato. Respira fundo.
Bate. Ouve passos aproximando-se. A porta abre. Sissi vê Betinho,
que sorri para ela.

               BETINHO
               Oi.

               SISSI
               O que tu tá fazendo aqui?

               BETINHO
               Não quer entrar?

               SISSI
               Onde está o cliente, o Juliano?

               BETINHO
               Entra, por favor.

Sissi entra, desconfiada.

CENA 83 - QUARTO DE MOTEL 2 - INTERIOR - DIA

Sissi fica parada perto da porta. Betinho dá um sorriso amarelo.

               BETINHO
               Eu te enganei, desculpa. Vou te pagar, mas não
               quero transar contigo.

               SISSI
               Não tô entendendo.

               BETINHO
               Eu tô apaixonado.

Sissi olha para ele, confusa. Betinho abre a carteira e pega três
notas de cinqüenta reais. Estende as notas para Sissi. Sissi não
pega o dinheiro.

               BETINHO
               Eu te amo, de verdade.

               SISSI
               Tu nem me conhece.

               BETINHO
               Eu quero conhecer.

               SISSI
               Mas eu não quero. Eu tenho um namorado e tô
               apaixonada por ele. Eu só preciso de dinheiro.

               BETINHO
               Então pega, por favor.

Sissi, em vez de apanhar o dinheiro, pega o celular e começa a
discar.

               BETINHO
               O que tu tá fazendo?

               SISSI
               Chamando o táxi. Eu vou embora.

               BETINHO
               Não.

               SISSI
               (ainda discando) Eu não vou transar contigo.

               BETINHO
               Eu já disse: não quero transar. Vamos conversar.

               SISSI
               Meu emprego de antes era conversar. Cansei de
               conversar. (no telefone) Heitor? Pode me pegar?
               (pausa) Não. Tá tudo bem. Depois te explico.

Sissi desliga o celular.

               BETINHO
               Não faz isso. Por favor, Sissi.

Sissi guarda o celular. Pega uma das notas de cinqüenta.

               SISSI
               Vou ter que pagar o táxi. (pausa) Pra ti, meu nome
               é Helena. Tchau.

Sissi dá meia volta e sai do quarto, batendo a porta atrás de si.
Betinho guarda o dinheiro, triste.

CENA 84 - TÁXI - INTERIOR/EXTERIOR - DIA

Heitor dirige e conversa com Sissi.

               HEITOR
               Eu sempre achei esse guri meio fora da casinha,
               mas essa foi demais. Vou avisar a Brigite. O cara
               tem que ser profissional.

               SISSI
               Acho que ele não fez por mal. Deixa assim.

               HEITOR
               Tu que sabe. Pra onde vamos?

               SISSI
               Não sei. Eu tenho que trocar de roupa.

Toca o celular de Sissi. Ela atende.

               SISSI
               Alô. (pausa) Oi, Brigite. (pausa; hesita um pouco)
               Não. Já tô liberada.

CENA 85 - RUA DE SHOPPING - EXTERIOR - DIA

O táxi de Heitor está parado. Sissi desce, e o carro arranca.
Sissi olha o relógio de pulso e caminha na direção de uma das
entradas do prédio. Betinho aparece de repente ao lado dela.
Sissi pega o celular.

               SISSI
               Vou ligar pra Brigite e avisar que tu tá me
               seguindo.

               BETINHO
               Não, por favor.

               SISSI
               Então vai embora e me deixa em paz.

               BETINHO
               Eu tenho uma proposta. Uma proposta séria. Uma
               amiga minha trabalha numa agência de modelos. Uma
               agência grande. Eu posso te apresentar pra ele e,
               se ela achar que tu tem alguma chance, eu faço um
               book pra ti, e aí tu consegue uns trabalhos de...

Sissi começa a discar.

               BETINHO
               Tu não acredita em mim?

               SISSI
               Não. (pausa) Alô, Brigite? É a Helena.

               BETINHO
               Tudo bem, eu vou embora!

               SISSI
               (no celular) Só um pouquinho.

Sissi olha para Betinho, que vai se afastando aos poucos.

               SISSI
               (no celular) Agora tá tudo bem. Tchau.

Betinho caminha para longe de Sissi. Um carro pára na calçada,
perto da entrada do shopping. Sissi olha para o carro e caminha
na sua direção. O motorista é Borges. Sissi aproxima-se do carro.
Borges abre a janela e olha para Sissi.

               BORGES
               Helena?

               SISSI
               Sou eu.

Borges abre a porta.

               BORGES
               Entra.

Sissi entra.

               BORGES
               Prazer, Borges.

Os dois trocam beijos no rosto. O carro arranca. Betinho,
desolado, vê o carro se afastando. Num rompante, corre para a rua
e chama um táxi.

CENA 86 - CARRO DE BORGES - INTERIOR/EXTERIOR - DIA

Borges e Sissi conversam. A mão de Borges acaricia o joelho de
Sissi.

               BORGES
               Tem preferência por algum motel?

               SISSI
               Não.

               BORGES
               Impressão minha, ou tu tá nervosa?

               SISSI
               Impressão.

               BORGES
               A Brigite disse que tu é iniciante. Começou
               quando?

               SISSI
               Há seis meses, mais ou menos.

               BORGES
               Duvido. Aposto que começou semana passada. Mas pra
               mim tá ótimo. Odeio PPP.

               SISSI
               O que é isso?

               BORGES
               Papo padrão de puta. É sempre igual: vou fazer
               programa só até o final do ano, juntar um dinheiro
               pra ajudar a família e pagar a faculdade, depois
               vou casar com meu namorado e ter filhos.

Borges sorri para Sissi, que sorri amarelo de volta. Borges
acaricia com mais força.

CENA 87 - FACHADA DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA

O carro de Borges entra no motel. O táxi de Betinho pára alguns
metros antes da entrada e Betinho desce. Betinho caminha um pouco
e depois senta no meio-fio.

CENA 88 - QUARTO DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA

Sissi tira a roupa devagar, enquanto Borges toma banho fora de
quadro.

               BORGES
               (OFF) Não quer mesmo tomar banho?

               SISSI
               Acabo de tomar.

               BORGES
               (OFF) Tudo bem. Passou o nervosismo?

               SISSI
               Passou.

               BORGES
               (OFF) Não parece.

Borges vem para o quarto, com uma toalha enrolada na cintura.
Sissi está com a calcinha e o sutiã de Martina. Tenta sorrir.
Borges olha para ela. Parece satisfeito.

               BORGES
               Posso te dar um conselho?

               SISSI
               Acho que sim.

Borges aproxima-se e acaricia os seios de Sissi.

               BORGES
               Não bota silicone nos peitos. Gosto deles assim.

               SISSI
               Obrigado.

Borges beija o pescoço de Sissi.

               BORGES
               Tu tá tremendo.

               SISSI
               Não tô não.

Sissi estende o braço e enfia a mão na fenda da toalha. Borges
sorri.

               BORGES
               Tu não parece uma puta, não fala como uma puta e
               não faz nada que uma puta deve fazer. (pausa) Mas
               não tem problema. Olha pra mim.

Sissi levanta os olhos.

               BORGES
               Tira essa mão. Tá gelada.

Sissi tira. Borges acaricia os cabelos de Sissi.

               BORGES
               Eu gosto de namorar. Tu não gosta? Finge que eu
               sou teu namorado.

Borges beija Sissi no rosto e vai se aproximando da boca, mas,
quando a toca, Sissi recua.

               SISSI
               Eu não beijo na boca.

Borges se irrita.

               BORGES
               Não beija na boca? (aponta para a cama) Então
               deita!

Sissi não deita.

               BORGES
               (gritando) Deita, porra!

Sissi deita.

               BORGES
               Se não quer ser namoradinha, vai ter que ser puta.

Borges aproxima-se da cama.

CENA 89 - FACHADA DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA

Betinho continua esperando, sentado no meio-fio. O portão do
motel abre e o carro de Borges sai. Betinho vê o carro passar,
sem Sissi em seu interior. O portão fecha outra vez. Betinho
aproxima-se da portaria e olha por uma fresta do portão. Vê Sissi
sentada num banco.

               BETINHO
               Sissi.

Sissi olha para ele, séria. O portão abre. Sissi sai devagar e
fica parada na frente de Betinho.

               BETINHO
               Vou chamar um táxi.

               SISSI
               Já chamei. Deve estar chegando.

Os dois se olham por algum tempo. Então, sem aviso prévio, Sissi
abraça-se a Betinho, que a abraça também. Sissi chora
discretamente, de modo que Betinho não perceba. O abraço se
prolonga.

               SISSI
               O que tu tava fazendo aqui?

               BETINHO
               Te esperando.

               SISSI
               Tu é louco.

O táxi de Heitor estaciona. Heitor olha para Betinho,
desconfiado, e abre a porta para Sissi.

               SISSI
               (para Betinho) Tchau.

               BETINHO
               Fica comigo, Sissi.

               SISSI
               Eu tenho que trabalhar.

Sissi vai entrar, mas Betinho a segura pelo braço.

               SISSI
               Me solta.

               HEITOR
               Solta ela!

               BETINHO
               Tu não precisa disso, Sissi.

Heitor sai do carro e vai direto pra cima de Betinho, que não
larga o braço de Sissi. Heitor acerta-lhe um soco na barriga.
Betinho grita de dor e cai no chão. Heitor vai continuar batendo,
mas Sissi se mete no meio dos dois e impede que a surra continue.

               SISSI
               Chega! Vamos embora, pelo amor de Deus.

               HEITOR
               (para Betinho, ainda caído) Se tu te meter de novo
               com ela, vai parar no hospital. Ou no cemitério.

Heitor entra no carro, seguido por Sissi, que ainda troca um
olhar com Betinho. O táxi arranca.

CENA 90 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - NOITE

Martina e Rogério estão sentados na mesinha. Rogério come uma
fatia de uma grande torta de chocolate recém cortada.

               MARTINA
               Só acho estranho ser no fim de semana.

               ROGÉRIO
               Se eu perder o emprego vou estar livre todos os
               dias, de segunda a domingo.

               MARTINA
               Quer que eu te leve no aeroporto?

               ROGÉRIO
               Não. O Borges vem me pegar. Se tudo der em São
               Paulo, a minha situação melhora bastante.
               Hummmm... Tá demais. E tu nem me avisou que tinha.
               Quando tu fez?

               MARTINA
               Hoje de tarde.

               ROGÉRIO
               Mas eu te disse que ia viajar. E essa torta é
               imensa.

               MARTINA
               Eu já tinha começado quando tu ligou.

               ROGÉRIO
               Vê se não come tudo. Vou querer na segunda-feira.
               (aponta para a torta). Isso aqui tu sabe fazer.

Toca a campainha. Ele enfia mais um pedaço na boca.

               ROGÉRIO
               Deve ser o Borges. Vou pegar minhas coisas.

Rogério levanta. Martina vai atender.

CENA 91 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA/CORREDOR/ELEVADOR -
INTERIOR - NOITE

Martina abre a porta. É Sissi. Seu rosto demonstra cansaço. Todo
o seu corpo demonstra cansaço. Já trocou de roupa, mas a
maquiagem não foi retirada com cuidado e está meio borrada.

               SISSI
               Oi, tia. (pausa) Eu... Comecei hoje.

Martina fica meio sem jeito e não sabe o que dizer. Ouvimos o
elevador movimentando-se.

               MARTINA
               Entra, Sissi.

Sissi vai entrar, mas hesita. Ouvimos o barulho de um celular
chamando.

               SISSI
               Tu tá sozinha?

               MARTINA
               O Rogério já vai sair.

               ROGÉRIO
               (OFF) Quem é, Martina?

               SISSI
               (assustada, baixinho) Eu volto amanhã. (estende um
               pacote para Martina) Muito obrigado, tia.

Martina pega o pacote.

               SISSI
               Tchau.

Sissi beija Martina rapidamente, volta para o elevador e aperta o
botão. Rogério aparece na porta do apartamento, com o celular
numa mão e a mala na outra.

               ROGÉRIO
               O Borges ligou. Está aí em baixo.

Olha para o corredor e vê Sissi.

               ROGÉRIO
               Oi, Sissi.

               SISSI
               Oi, tio.

               ROGÉRIO
               Tá chegando?

               SISSI
               Não. Eu... Vim só entregar uma coisa pra tia.

               MARTINA
               Não quer mesmo entrar?

               SISSI
               Não. Obrigado.

O elevador chega. Sissi abre a porta.

               MARTINA
               (para Rogério) Não vai aproveitar o elevador?

               ROGÉRIO
               (meio atrapalhado) Vou, claro.

Rogério beija Martina.

               ROGÉRIO
               Tchau, amor.

               MARTINA
               Tchau.

Rogério e Sissi entram no elevador.

CENA 92 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE

O carro de Borges está parado, com o motor ligado, um pouco
adiante da entrada do edifício. Borges toma um gole de cerveja de
uma latinha. Giane está ao seu lado.

               BORGES
               A Helena confirmou, Michele?

               GIANE
               Tava fora de área. Vou ligar outra vez.

Giane pega o celular e começa a discar.

               BORGES
               Sabe, no começo, ela parecia uma virgem, mas
               depois que esquentou, foi demais. E era de
               verdade! Eu sei quando uma mulher tá me enrolando.
               (pausa) Nunca vi ninguém gemer de tesão como essa
               tua amiga. Vai crescendo... É uma loucura.

               GIANE
               (sorrindo) Tá tocando.

CENA 93 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE

Sissi e Rogério no elevador. Toca o celular. Sissi atende.

               SISSI
               Oi.

CENA 94 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE

Giane fala no celular.

               GIANE
               Oi, Helena. Que bom que tu atendeu. To indo pra
               casa de um amigo meu. (pausa) Ele te conhece, te
               viu hoje de tarde... Te adorou. Onde tu tá?

CENA 95 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE

Sissi no elevador. Rogério olha pro chão.

               SISSI
               Eu tô indo pra casa.

CENA 96 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE

Giane continua no celular.

               GIANE
               (pausa) E ele tem um amigo que quer te conhecer.
               (pausa) Quinhentos reais até domingo de noite.
               Limpos. Sem comissão pra Brigite.

CENA 97 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR/PORTARIA - INTERIOR -
NOITE

O elevador chega no térreo. A porta abre. Rogério abre a porta
para Sissi, que continua falando.

               SISSI
               Sem comissão? (hesita) Obrigado, Giane. Eu já
               tenho compromisso. (pausa) Desculpa. Tchau.

Sissi desliga o celular. Estão perto da porta de saída. Seu Zé
abre a porta pra eles.

               ROGÉRIO
               (nervoso) Tu não quer uma carona?

               SISSI
               Não, obrigado. Eu vou a pé. Tô pertinho de casa.
               (beija Rogério) Tchau, tio.

               ROGÉRIO
               Tchau, Sissi.

CENA 98 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE

Rogério e Sissi saem do prédio juntos. O carro de Borges está
estacionado à esquerda. Sissi vai para a direita. Rogério vai
para a esquerda e entra no banco de trás do carro.

               BORGES
               (para Rogério) Essa é a Michele.

               ROGÉRIO
               Prazer. E a tua amiga?

               GIANE
               Não vai rolar. Já tinha compromisso.

               BORGES
               (para Rogério) Não te preocupa. (para Giane) Liga
               pra Brigite e pergunta se a Paula tá livre. (para
               Rogério) A grande vantagem da Paula é que ela
               gosta de cozinhar, e a gente tem que repor as
               energias...

Borges ri da própria piada, toma um gole de cerveja e liga o
carro.

CENA 99 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - NOITE

Martina dá um jeito de preencher a fatia de bolo que ficou
faltando na torta e a coloca na geladeira. Pega o pacote aberto
sobre a mesa e examina seu conteúdo: suas antigas lingeries e
três notas de dez reais.

CENA 100 - GRAMADO SUPLEMENTAR DE ESTÁDIO DE FUTEBOL - EXTERIOR -
DIA

Sissi, nervosa, espera a saída de Estevão, que caminha para fora
do campo ao lado de Vandeir. O Seu Lopes está ali perto, bem
sorridente, conversando com um sujeito de terno e gravata, 40
anos. Quando os dois jogadores se aproximam. Sissi abraça Estevão
bem forte. Ele estranha.

               ESTEVÃO
               O que é isso, Sissi?

               VANDEIR
               Oi, Sissi.

Sissi nem ouve. Vandeir ri e segue em frente.

               ESTEVÃO
               Sissi, eu tô todo suado.

               SISSI
               Não faz mal. Eu te amo muito.

               ESTEVÃO
               Eu também.

               SISSI
               Eu tenho uma surpresa pra ti.

               ESTEVÃO
               E eu tenho que falar contigo. Mas primeiro vou
               tomar banho.

Sissi não se desgruda. Estevão olha para Seu Lopes por cima do
ombro de Sissi. Seu Lopes sorri e faz sinal de positivo. O
sujeito de terno e gravata ri e acena para Estevão.

               ESTEVÃO
               Sissi, tá ficando chato.

Sissi se desgruda um pouco.

               SISSI
               Desculpa. Vamos sair?

               ESTEVÃO
               Vamos. Mas eu tenho que voltar às seis.

Sissi volta a abraçar Estevão, feliz.

               SISSI
               Te prepara. Hoje não vai ter pobreza.

Seu Lopes e o sujeito de terno e gravata olham para os dois e
sorriem.

CENA 101 - QUARTO DE MOTEL 4 - INTERIOR - DIA

Estevão e Sissi estão transando. Vemos os dois rostos juntos,
febris e apaixonados. Estevão está prestes a se acabar.

               SISSI
               Espera, ainda não.

Sissi escapa de Estevão, estende a mão e pega uma garrafa de
champanha quase no fim. Serve sua taça e toma um gole. Estevão
olha para ela, ofegante e confuso.

               SISSI
               Nós temos que aproveitar bem tudo isso. (pausa)
               Sabe que eu nunca me senti tão feliz em toda a
               minha vida?

Sissi estende a taça para ele.

               ESTEVÃO
               Eu não agüento mais.

               SISSI
               Não agüenta mais beber?

               ESTEVÃO
               Nem beber, nem trepar.

Sissi sorri.

               SISSI
               Tu não é um atleta? Atleta tem que agüentar.

Sissi beija Estevão. Continua sorridente. Tão sorridente que seu
sorriso parece uma máscara de sorriso.

               SISSI
               (tomando mais um gole de champanha) Lembra que eu
               te disse que tinha uma surpresa pra ti?

Sissi pega a carteira na bolsa. Abre a carteira e pega um monte
de notas de dinheiro. Abre-as como um leque.

               ESTEVÃO
               O que é isso?

               SISSI
               Meu novo emprego. Sou representante de vendas.

Estevão olha para o dinheiro, sem entender.

               SISSI
               Nós podemos alugar um apartamento pra nós. Já
               pensou? Morar juntos! (pausa, o sorriso se desfaz
               no seu rosto) O que foi, Estevão?

               ESTEVÃO
               Eu... Vou pra Europa depois de amanhã.

Sissi olha para Estevão, mas parece não entender.

               ESTEVÃO
               Assinei o contrato antes do treino, com um
               espanhol. (pausa) A minha mãe vai junto. O Seu
               Lopes também.

               SISSI
               É mentira. O Lopes tá te enrolando há mais de um
               ano. Qual é a prova que tu tem?

Estevão levanta e pega um envelope no bolso da calça. Dá o
envelope para Sissi, que o abre e tira duas passagens aéreas.

               ESTEVÃO
               A minha. E a da minha mãe.

Sissi confere. O destino é Madri. Guarda os bilhetes e devolve o
envelope para Estevão.

               ESTEVÃO
               Eu tentei te contar no carro, mas não consegui.

Sissi olha para Estevão, mas parece que não o vê.

               ESTEVÃO
               (sem convicção) Depois de um ano, eu tenho direito
               a mais duas passagens, e aí vou mandar uma pra ti.

Sissi continua olhando para Estevão, sem reação visível.

CENA 102 - FACHADA DE MOTEL 4 - INTERIOR - DIA

Sissi sai do motel. Betinho está esperando por ela, sentado no
meio-fio. Ele levanta-se. Sissi olha para ele, mas caminha no
sentido oposto.

               BETINHO
               Sissi. Eu só quero conversar.

Sissi segue caminhando, em passos rápidos e decididos.

               BETINHO
               Sissi, por favor.

Sissi não olha para trás.

CENA 103 - RUAS/AVENIDAS - INTERIOR - DIA-NOITE

Sissi caminha, sempre com Betinho atrás dela. Ela não olha para
trás. Sissi passa por várias ruas. Atravessa avenidas. Cruza
bairros. O dia termina. A iluminação pública acende, assim como
os faróis dos carros. Betinho segue atrás dela. Sissi entra na
rua do edifício de Martina e caminha na direção dele.

CENA 104 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE

Sissi aproxima-se da portaria no exato momento em que William
está entrando no edifício, pela porta aberta pelo Seu Zé, que
segura uma vassoura. William, com uma sacola nas mãos, encaminha-
se para o elevador. Sissi aproxima-se do Seu Zé, que volta a
varrer o chão na frente da porta de entrada. Betinho pára na
frente do edifício.

               SISSI
               A Martina está?

               SEU ZÉ
               Está, sim, senhora. O rapaz do lixo limpo acaba de
               entrar. Ele vai fazer um serviço no apartamento.

Seu Zé abre a porta. Sissi hesita. Olha para a rua, de onde
Betinho olha para ela, com um meio-sorriso bobo no rosto. Sissi
entra no edifício.

CENA 105 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE

O único elevador está subindo. Sissi olha em volta e vê os quatro
pequenos monitores, que mostram a rua em frente ao edifício (onde
está Betinho), a porta da frente da portaria (onde está Seu Zé),
o interior da portaria (onde está a própria Sissi) e o elevador
(onde está William). Sissi fica olhando para este último monitor.

CENA 106 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE

Na tela do monitor observado por Sissi, William mexe na cintura,
tira uma pistola e a examina. Depois guarda a pistola na cintura
outra vez.

CENA 107 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE

Sissi, apavorada, olha para o monitor até que William sai do
elevador. Sissi chama o elevador e corre para a porta de saída.

CENA 108 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE

Sissi aproxima-se de Seu Zé.

               SISSI
               O cara tem uma arma.

               SEU ZÉ
               Que cara?

               SISSI
               O cara que entrou agora.

Betinho aproxima-se dos dois, curioso.

               SEU ZÉ
               Impossível. Eu conheço o...

               SISSI
               (cortando) Eu vi a arma. O senhor tem que chamar a
               polícia. Liga pro 190.

               SEU ZÉ
               Tem uma delegacia aqui perto.

               SISSI
               Então liga. E também liga pro tio.

Seu Zé corre para a portaria. Sissi, meio desnorteada, vai atrás
dele. Betinho a segue. Seu Zé disca. O elevador chega. Sissi e
Betinho entram no elevador.

CENA 109 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE

Sissi e Betinho sobem juntos, sem se falar.

CENA 110 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

Sissi e Betinho saem do elevador e caminham até a porta. Sissi
encosta o ouvido na madeira. Nada. Sissi pensa em bater na
campainha, mas Betinho a impede.

               BETINHO
               É melhor não assustar o cara.

CENA 111 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

A torta de chocolate, ladeada por duas colheres grandes, uma
garrafa de vinho e dois cálices, está em cima da penteadeira.
William, sentado numa cadeira, aponta a arma para Martina, que
está de pé, perto da cama. Vemos nitidamente que a arma é de
brinquedo. William faz um sinal e Martina começa a tirar sua
roupa, devagar. A lingerie que veste por baixo do vestido é toda
preta. William sorri. Martina fica só de calcinha, sutiã e
sandálias de salto alto, ao melhor estilo Helmut Newton. William
pega uma fita crepe e cordas na sua sacola. Levanta-se. Caminha
na direção de Martina.

CENA 112 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

Seu Zé sai do elevador e aproxima-se de Sissi e Betinho.

               SEU ZÉ
               A polícia está vindo. O Seu Rogério também.

CENA 113 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Martina está deitada na cama. William, inclinado sobre ela,
termina de amarrar seus pulsos no espaldar da cama. Seus
tornozelos já estão amarrados nos pés da cama. William pega a
fita crepe e olha para Martina.

               WILLIAM
               Tem certeza?

               MARTINA
               Se não, eu posso gritar.

William destaca um pedaço da fita e amordaça Martina.

CENA 114 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

Três policiais, com as armas na mão, saem do elevador.

               POLICIAL 1
               (para Seu Zé) Não tem a chave?

               SEU ZÉ
               Não. Mas o dono tá chegando, e ele tem.

O policial 1 olha para os outros dois.

               POLICIAL 1
               Então vamos esperar.

CENA 115 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

William passa sensualmente a arma de brinquedo pelo corpo de
Martina. William começa a beijá-la.

CENA 116 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

Rogério e Borges saem do elevador. Borges e Sissi se vêem, se
reconhecem e ficam surpresos, mas, depois de um momento de
hesitação, nenhum dos dois fala nada.

               POLICIAL 1
               (para Rogério e Borges) Cadê a chave?

Rogério passa a chave para o policial 1.

               POLICIAL 1
               (para os outros policiais) Vamos entrar em
               silêncio. Ele é um só, nós somos três. Eu cuido
               dele. Vocês fazem a segurança da vítima. (para os
               outros) Ninguém mais entra, a não ser que eu
               chame. Ninguém!

CENA 117 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

William, sempre com a arma na mão, beija todo o corpo de Martina.

CENA 118 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE

A porta abre, e os três policiais entram, silenciosos. O policial
1 encosta a porta com cuidado e orienta a revista. Um dos
policiais vai para a cozinha. Os outros dois seguem na direção do
quarto.

CENA 119 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

Seu Zé, Sissi, Betinho, Rogério e Borges continuam perto da
porta, esperando, nervosos.

CENA 120 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

William tira a camisa. Martina olha para ele, sorridente. William
a "ameaça" com o revólver.

CENA 121 - APARTAMENTO DE MARTINA/CORREDOR- INTERIOR - NOITE

Os policiais aproximam-se da porta do quarto. O policial 1, à
frente dos outros, é o primeiro a ver o que está acontecendo.

CENA 122 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

William arranca o sutiã de Martina com o cano do revólver.

CENA 123 - APARTAMENTO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

O policial 1, tenso, está em dúvida sobre o momento da invasão.

CENA 124 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

William, ainda com a arma na mão, vai beijar os seios de Martina,
mas, de repente, pára. Vai até a penteadeira, coloca o revólver
sobre ela. Com uma colher, pega um bom pedaço da torta e,
voltando para a cama, coloca um pouco de torta nos dois seios de
Martina. Olha para os seios lambuzados de chocolate e abre um
grande sorriso. Ajoelha-se e começa a lamber um dos seios. O
policial 1 faz uma contagem silenciosa até três para os outros
policiais. No "três", invadem o quarto, com o policial 1 à
frente, apontando sua arma para William.

               POLICIAL 1
               (gritando) Parado!

William e Martina olham para o policial 1 e, apavorados, não
esboçam qualquer reação. A imagem congela.

CENA 125 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Com a imagem congelada, ouvimos a seguinte locução (mesmo locutor
da cena 1):

               NARRADOR (V.S.)
               Temos, neste momento raríssimo, a presença
               simultânea dos 3 efes fundamentais da existência
               humana: a fome, a foda e o fasma. De acordo com os
               estudos do professor Damasceno, as conseqüências
               desta extraordinária conjunção são imprevisíveis.

CENA 126 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

A imagem descongela. O policial 2 atira-se em cima de William e
derruba-o no chão, enquanto Martina tenta desesperadamente
soltar-se, sem conseguir. O policial 1 pega a arma de brinquedo e
a examina. O policial 3 começa a ajudar Martina, desamarrando a
cordas do seu pulso direito. O policial 2, de joelhos sobre as
costas de William, algema-o. Com seu braço finalmente livre,
Martina arranca a fita crepe.

               MARTINA
               (gritando) Não! É um engano. Ele não fez nada.

CENA 127 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

Seu Zé, Sissi, Betinho, Rogério e Borges, através da porta
entreaberta, ouvem os gritos de Martina, abafados, mas
perfeitamente nítidos.

               MARTINA
               (OFF) Solta ele! Solta ele!

Rogério olha para Sissi, confuso. Borges empurra um pouco a
porta. Agora os gritos ficam mais altos.

               MARTINA
               (OFF) Nós combinamos tudo. Solta ele!

Rogério entra no apartamento, seguido de todos os outros.

CENA 128 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Rogério entra no quarto e vê a seguinte cena: Martina, só de
calcinha, meias e sandálias de salto alto, lambuzada de chocolate
nos seios, e ainda amarrada pelos tornozelos na cama, está
abraçada em William, que continua deitado no chão, algemado, com
o policial 2 ajoelhado em suas costas, enquanto os outros dois
policiais, atarantados, não sabem o que fazer. Martina não
percebe que Rogério está no quarto.

               MARTINA
               (gritando para os policiais) Era uma brincadeira!
               Eu pedi que ele fizesse tudo. Pelo amor de Deus: o
               revólver é de brinquedo.

O policial 2 olha para o policial 1, como que perguntando o que
fazer. O policial 1 não esboça qualquer reação.

               MARTINA
               William, tu tá bem?

               WILLIAM
               Tô.

               MARTINA
               Era só uma fantasia que eu tinha. Soltem ele.

Rogério dá mais um passo em frente e finalmente Martina pode vê-
lo. Não diz nada. O policial 1 percebe que Rogério entrou.

               POLICIAL 1
               (para Rogério) O senhor conhece esse sujeito?

               ROGÉRIO
               Não.

Sissi entra no quarto. Martina a vê.

               MARTINA
               Explica pra eles, Sissi.

               SISSI
               Ele é... (hesita um pouco) Namorado da minha tia.

Rogério olha para Sissi, surpreso. Borges, Betinho e Seu Zé se
espremem para ver alguma coisa. Martina se enrola no lençol.

               MARTINA
               (para Rogério) Tu não tava em São Paulo?

Rogério não sabe o que dizer. Borges decide socorrer Rogério, e
os dois acabam falando ao mesmo tempo.

               BORGES
               Nós não fomos.

               ROGÉRIO
               Voltamos hoje.

Os dois se olham, percebendo a mancada.

               MARTINA
               (para Rogério) Tu me enganou!

               ROGÉRIO
               Eu? E tu, tu fez o quê? (gritando) Sua puta!

Sissi se adianta.

               SISSI
               Não fala assim da minha tia.

               ROGÉRIO
               Falo sim. Não te mete, fedelha.

Betinho se adianta.

               BETINHO
               Olha o respeito. Baixa esse dedo.

               ROGÉRIO
               Baixo coisa nenhuma.

Sissi dá um tapa na mão de Rogério.

               BORGES
               Olha só a puta!

               BETINHO
               (para Borges) Repete, se tu é homem!

               BORGES
               Claro. A tua mulher não sei, Rogério, mas essa
               aqui (aponta para Sissi) eu garanto que é puta
               mesmo.

Betinho se joga em cima de Borges. Os dois caem no chão e rolam
para fora do quarto. O policial 3 vai apartar. William continua
algemado, no chão. Rogério olha para Martina.

               ROGÉRIO
               Eu nunca pensei que um dia...

               MARTINA
               Nem eu, Rogério. Nem eu.

               POLICIAL 3
               (OFF) Eu preciso de ajuda.

               POLICIAL 1
               (para policial 2) Solta ele.

O policial 2 tira as algemas de William e sai do quarto. William
levanta-se e olha para os seus pulsos, vermelhos e machucados. O
policial 1 está com um ar cansado.

               POLICIAL 1
               (para Martina e William) Vou ter que pegar
               depoimento de vocês. (para Sissi e Rogério) Vocês
               também. Vou esperar na sala.

O policial, na saída, lança um olhar de cobiça para a torta de
chocolate. Martina percebe.

               MARTINA
               Pode levar a torta.

               POLICIAL 1
               A senhora tem certeza?

               MARTINA
               Claro.

               POLICIAL 1
               Então vamos deixar o seu depoimento pra amanhã. A
               senhora passa lá na delegacia?

               MARTINA
               Passo.

O policial pega a torta, sorridente.

               POLICIAL 1
               Boa noite. (para Rogério) E o senhor vem comigo.

Saem. Betinho cruza com eles na porta e entra no quarto, com a
camisa rasgada. Martina olha para e depois para Sissi.

               MARTINA
               Quem é esse?

Sissi olha para Betinho.

               SISSI
               O nome dele é Betinho. Ele grudou em mim, não sai
               do meu pé.

               BETINHO
               Eu tô apaixonado por ela.

               SISSI
               Acho que ele é doido.

               MARTINA
               (sorrindo) Acho que todo apaixonado é um doido. Eu
               sou doida, não resta a menor dúvida. (para
               William) Tu não acha que eu sou doida?

               WILLIAM
               Completamente doida. (pausa) Como é que tu dá a
               minha torta de chocolate praquele cara?

Martina e Sissi sorriem. Betinho, malandro, coloca o braço sobre
o ombro de Sissi. Sissi não o repele. Betinho sorri, feliz e
ainda mais apaixonado. Sissi olha para Betinho e sorri também.
Martina e William olham para o novo casal. A imagem congela com
os quatro em quadro.

               NARRADOR (V.S.)
               Para o professor Damasceno, a existência humana
               oferece raríssimos momentos de plena felicidade.
               Além de raríssimos, eles também são efêmeros,
               fugazes, quase intangíveis. Mas, teorias à parte,
               está provado: mesmo que seja por um instante, vale
               a pena.

FADE-OUT

CRÉDITOS FINAIS

***************************************************************

(c) Carlos Gerbase, 2006-2007
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
25/10/2006

AnexoTamanho
3efesrot.txt132.88 KB