ANCHIETANOS - longa

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               ANCHIETANOS
               roteiro de Jorge Furtado,
               Carlos Gerbase
               e Giba Assis Brasil

               primeiro tratamento - 11/02/1993
               (formato de longa-metragem - não realizado)

               projeto: Casa de Cinema de Porto Alegre

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CENA 1 - CORREDOR DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA

Um corredor de colégio, largo, comprido e vazio. Azulejos na
parede, basculantes, piso preto de pedra. Ouvem-se ao longe, um
andar acima, passos que se aproximam. É um salto de madeira, e o
som dos passos ecoa pelo colégio vazio. O ritmo muda quando os
passos começam a descer a escada. O som cresce e se aproxima. Uma
mulher GORDINHA, provavelmente uma professora, aparece no
corredor, saindo da escada. Ela caminha alguns passos no corredor
e some. Os passos agora descem a escada e se afastam. Ouve-se
muito longe uma porta que abre e fecha. O corredor, largo,
comprido e vazio, agora está vazio até de sons. Nada acontece.

Toca a sirene.

Mil ADOLESCENTES explodem no corredor. Correm, riem, xingam,
abanam, beijam, mascam, pulam, gaguejam, falam, coçam, apertam,
sacodem, sentam, levantam, caminham, falam e, principalmente,
gritam. São loiros, morenos, ruivos, sardentos, cheios de
espinha, gordos, de aparelho, de boné, baixos, altos, de óculos,
meninos, meninas, magros e brancos.

Toca a sirene.

No corredor vazio, comprido, largo e silencioso, um copo de
plástico quebrado é sacudido pelo vento.

CENA 2 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

MAURÍCIO, um professor baixinho troncudo com cara de cavalo,
vestindo um terno xadrez, termina de fazer a chamada dos alunos.

               CHICO (OFF)
               Eu lembro de um professor de alguma coisa que, no
               primeiro dia de aula, acho que era segundo
               ginasial, se apresentou com uma frase incrível:

               MAURÍCIO
               Meu nome é muito mau. Meu nome é Maurício.

Os ALUNOS, todos meninos (entre eles CHICO, LUCIANO e EMÍLIO),
ficam paralisados, olhando o professor Maurício, que começa a
escrever uma série de coisas no quadro, muito animado. Ele tem
gestos teatrais e parece excessivamente simpático.

               CHICO (OFF)
               Todos nós, cinqüenta pré-adolescentes idiotas e
               cheios de espinhas, ficamos momentaneamente
               paralisados pela súbita e coletiva revelação de
               que um professor, adulto, responsável pela nossa
               educação nos próximos oito meses, era muito mais
               idiota que nós.

CENA 3 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR

CHICO está caminhando por um estúdio de televisão, vazio, em
frente a um grande céu aerografado. Magro, não muito alto, trinta
anos, Chico tem a aparência de quem está cansado demais para
conseguir dormir. Caminha olhando para o chão. O estúdio tem
restos de uma festa, pratos plásticos, copos e garrafas,
espalhados sobre mesas improvisadas.

               CHICO (OFF)
               Eu esqueci o nome de muitos professores que tive,
               mas o nome do Maurício continua ocupando algum
               arquivo morto do meu cérebro. O que prova que ser
               idiota às vezes dá resultado.

Chico esbarra numa mesa. Um copo plástico cai no chão.

CENA 4 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA

Os alunos chegam para as aulas: descem de ônibus escolares,
kombis e carros e vão entrando na escola. Os PAIS, as MÃES e as
EMPREGADAS se despedem das crianças. Gritaria geral.

               CHICO (OFF)
               O ano era mil novecentos e sessenta e nove,
               Brasil, e quase todas as pessoas que existiam
               tinham dez anos. Todo mundo bem alimentado com
               três refeições diárias, grapete, pastelina e
               kibamba. É claro que, não muito longe dali, atrás
               das sete montanhas, depois das sete florestas, na
               casa dos sete anões, uma quadrilha de assaltantes
               tomava conta do país. Hoje todo mundo sabe. Eu
               fiquei sabendo quase dez anos depois. Até ali, nós
               éramos o futuro do país do futuro.

CENA 5 - CLÍNICA - INTERIOR, DIA

LISA sentada num banco de praça. Lisa, trinta anos, é bonita e
triste. Chico está ao seu lado.

               LISA
               (cantando) Onde o arco-íris é ponte, onde vivem os
               imortais...

CENA 6 - CASAS E TELEVISÃO (ARQUIVO)

               LISA (OFF)
               ... do trovão é deus guarda-mor, o barra-limpa, o
               grande Thor!

Bebês e crianças comendo na frente da televisão. Comem mingau,
bolacha, arroz com feijão, sucrilhos, pão, bolo, doce, bebem
leite, suco, coca-cola. Assistem de tudo: abertura de Thor,
Vigilante rodoviário, Shazam e Xerife, Hebe, Família Trapo, Três
patetas, Tom e Jerry, Silvio Santos, Jornal nacional, filmes de
terror, comerciais.

Edição de trilhas de TV.

               CHICO (OFF)
               Eu gostava do Thor porque ele era imortal. O pior
               era o Homem de Ferro, que era cardíaco. Achava
               ridículo um super-herói cardíaco. Hoje não acho
               mais.

               LISA (OFF)
               Eu lembro o nome do Vigilante rodoviário: tenente
               Carlos. Eu lembro dos Incas Venusianos, do
               Reizinho, dos Patrulheiros Toddy, do Perdidos no
               espaço e dos três irmãos Cartwright, do Bonanza:
               Adam, Little Joe e...

A televisão desliga, fica só aquele pontinho luminoso no meio da
tela.

CENA 7 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA

Lisa, no banco de praça, não lembra o nome do terceiro irmão
Cartwright.

               LISA
               Você lembra o nome do outro?

               CHICO
               Não.

Chico olha o relógio.

               LISA
               Eu também não. Eu passei a maior parte da minha
               infância mudando de uma casa para outra. Mas eu
               não lembro de casa nenhuma. Eu só lembro do que eu
               via na televisão.

Chico levanta. Eles estão num pequeno jardim interno, cercado de
muros altos. Uma ENFERMEIRA caminha ao fundo.

               CHICO
               Eu preciso ir.

               LISA
               Eu sabia o nome e o jeito de todas as pessoas da
               televisão e é só disso que eu me lembro, agora.
               Toda a memória que me sobrou foi criada por
               roteiristas americanos. (ri) A Carolina esteve
               aqui esses dias. (pausa) Eu não lembro mais o nome
               do terceiro irmão Cartwright. Não que isso tenha
               alguma importância.

CENA 8 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE

Chico caminhando pelo estúdio. O fundo agora é uma multidão
pintada na parede. Chico encontra um balão sobre a mesa. Pega o
balão.

               CHICO (OFF)
               Nenhuma importância.  

CENA 9 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA

Chico, Emílio, Luciano e outros meninos observam a chegada de
Roal no colégio. ROAL é um menino louro, com um topete enorme.
Ele desce de um carrão com motorista.

               CHICO (OFF)
               Todos nós tínhamos dinheiro, o que não nos impedia
               de odiar secretamente os que tinham mais dinheiro
               que nós. E mais ainda o Roal, que, tendo mais
               dinheiro que todos os outros, ainda ganhou um
               mini-bug no concurso da Toddy. Logo o Roal foi
               ganhar o mini-bug! Ali eu comecei a me tornar um
               ateu marxista. E o penteado do cara então? Pelo
               amor de deus! O cara era um completo imbecil!
               Também, com esse nome: Roal. Pelo amor de deus!

De repente, Luciano interrompe a brincadeira e aponta para um
carro que chega ao estacionamento. Os guris correm para ver de
perto. O carro estaciona. Dele desce um GORDO ENORME, com as
naturais dificuldades de um gordo enorme ao sair de um carro.

               CHICO (OFF)
               Tinha um gordo que dava aulas de técnicas
               comerciais. A gente fingia que aprendia a fazer
               notas, descontos e faturas. O gordo era muito
               gordo e o banco do carro dele era afundado no
               chão. Era impressionante.

CENA 10 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

A PROFESSORA DE INGLÊS, uma senhora baixinha, 50 anos, bate uma
caneta na mesa para chamar a atenção dos alunos.

               PROFESSORA
               Atention, please... Listen: élefant!

No quadro negro está escrito: "Elephant". Os alunos, todos
meninos, respiram fundo, entediados. Luciano levanta a mão.

               CHICO (OFF)
               Quase sempre era o Luciano quem começava.

               LUCIANO
               Cavalo!

               PROFESSORA
               (rindo) No, no, no.

               ALUNO 2
               Vaca!

               CHICO
               Jumenta!

               PROFESSORA
               No, no, no.

               CHICO (OFF)
               O mais católico, quase sempre o Emílio, acabava
               com a tortura.

               EMÍLIO
               Elefante.

A professora fazia um gesto de "That's it!".

               CHICO (OFF)
               E ela recomeçava.

               PROFESSORA
               (Escrevendo "Hippopotamus" no quadro)
               Ráipopótamusss...

               LUCIANO
               Macaco!

               ALUNO 2
               Minhoca!

               CHICO
               Égua!

CENA 11 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE

Chico acende alguns refletores do estúdio. Os refletores iluminam
uma parede onde a palavra "DAVI" se repete dezenas de vezes, em
relevo, formando uma retícula.
               
               CHICO (OFF)
               Tinha um professor louco, de física, que parecia o
               Hortelino do mundo bizarro, que além de tudo tinha
               um assistente com um olho de vidro. O assistente
               chamava a gente para o quadro-negro e a gente
               nunca sabia para quem ele estava olhando.

CENA 12 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

O ASSISTENTE do professor de física, com um olho de vidro, chama
alguém ao quadro.

               ASSISTENTE
               Você! Você mesmo aí!

               CHICO
               Quem? Eu?

Chico levanta-se e caminha para o quadro. A sala de aula agora
tem MENINAS.

               CHICO (OFF)
               Isso foi em 72, quando eu tinha aula de física. E
               aí já tinha meninas na escola. No início não, era
               um colégio jesuíta, masculino. Aí os padres
               compraram um outro colégio, só de meninas, e elas
               entraram de bando na nossa aula. Quase rodei em
               física. Quase que todos nós rodamos em física.

Chico sobe na base de um gerador Van Der Graaf, uma espécie de
banqueta de metal. O Assistente do professor explica alguma coisa
para a classe mas Chico não ouve, fascinado pela visão das
meninas, que olham todas para ele.

               CHICO (OFF)
               Todas elas eram lindas, maravilhosas, puras,
               perfumadas, educadas, tímidas e, obviamente,
               brancas. Esqueci de dizer isso: naquela época,
               todos nós éramos brancos.

O assistente liga o gerador Van Der Graaf. Os cabelos de Chico se
arrepiam. As meninas morrem de rir.

CENA 13 - MUSEU DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA

A turma de Chico entra, caminhando em fila, no salão de
exposições do museu da escola. Chico, 12 anos, troca olhares com
Carolina através das vitrines. Eles se cruzam várias vezes,
sempre separados por pacas, tatus e cotias empalhadas.

               CHICO (OFF)
               Eu me apaixonei por Carolina às duas e trinta e
               oito da tarde de uma quinta-feira, nove de junho,
               dia de Anchieta. Não me lembro o ano, acho que era
               setenta e dois, mas foi numa aula de ciências, no
               museu do colégio. Tinha uma aranha enorme, peluda,
               e um monte de bicho empalhado no museu. Carolina
               era linda como um Blastocerus Dichotomus, pura
               como um Troquilídeo. Eu acho que agora bicho
               empalhado deve ser politicamente incorreto, mas na
               época ainda não tinham inventado a ecologia.

CENA 14 - CENÁRIO DE ALICE - INTERIOR/NOITE

Um cenário de teatro infantil. CAROLINA, 25 anos, bonita, um
jeito de menina acentuado pelo figurino da peça, dá o texto final
de "Alice no País das Maravilhas".

               CAROLINA
               Ao final imaginou a irmã já transformada em mulher
               adulta, e como ela conservaria, através dos anos,
               o coração simples e afetuoso da época de sua
               infância. Ela estava cercada de outras crianças e
               fazia os olhos delas brilharem quando lhes
               constava histórias curiosas, talvez até mesmo o
               sonho do País das Maravilhas, de há muito tempo
               atrás.

Chico, com uma criança de 2 anos (JOSÉ) no colo, LUCIANO e
ANDREW, no meio de uma platéia de mães com seus filhos, batem
palmas. Os outros atores entram em cena. Carolina agradece.

CENA 15 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

No quadro-negro, alguém escreve o nome WITTGENSTEIN. É ABRAÃO, um
professor baixinho, precocemente careca e de fala mansa, que não
tem qualquer controle sobre o caos à sua volta, e não parece se
importar muito com isso. Ele fala fazendo muito gestos e sempre
olhando para cima, o que lhe confere uma certa dignidade e impede
que ele enxergue o óbvio: não há um só aluno prestando atenção ao
que ele diz. Uma menina se penteia com o auxílio de um espelho,
um menino desenha uma mulher nua no tampo de sua classe, um grupo
se diverte com um joguinho qualquer. Ao fundo, de pé, quatro
meninos conversam animadamente, sem ao menos se preocupar em
baixar a voz.

               CHICO (OFF)
               Eu lembro também do Abraão, o professor de
               filosofia, isso já no científico. Eu nunca entendi
               como foi que um judeu foi dar aula de filosofia
               num colégio jesuíta. A gente aproveitava as aulas
               dele para jogar fruta-flor, passar bilhetinhos ou
               conversar sobre qualquer coisa. Só muitos anos
               depois eu fui descobrir o que era filosofia.

De repente, uma coisa verde e gosmenta jogada não se sabe de onde
explode no quadro, cobrindo parte de um esquema de história da
filosofia e respingando no rosto e na camisa de Abraão. Ele
interrompe o seu discurso sobre Wittgenstein e, pela primeira
vez, encara a turma. Silêncio total.

               CHICO (OFF)
               Teve uma única vez em que o Abraão conseguiu ser
               ouvido na aula. Ali a gente podia ter aprendido
               alguma coisa de filosofia. Mas ele resolveu contar
               uma história.

Abraão, calmamente, tira os óculos e limpa-os com um lenço.
Depois, recoloca os óculos e volta a encarar a turma, que
permanece em absoluto silêncio.

               ABRAÃO
               Cinco anos atrás, na melhor escola técnica de
               Israel, os alunos pediram ao diretor para não ter
               mais aulas de filosofia, história e ciências
               sociais. Afinal, eles iam ser engenheiros,
               técnicos, matemáticos, e achavam aquilo tudo uma
               perda de tempo.

Pausa. Os alunos todos olham para Abraão, concordando com seus
colegas israelenses, mas sem se mexer.

               ABRAÃO
               O diretor disse que concordava em mudar o
               currículo, desde que os alunos fizessem um
               trabalho extra nas férias: eles tinham que
               apresentar o projeto de um grande sistema de
               encanamento ligando o norte ao sul de Israel, e
               que fosse capaz de transportar por dia três mil
               litros de sangue.

Nova pausa. Alguns alunos se olham, curiosos com a história.

               ABRAÃO
               Os alunos se dividiram em grupos: alguns estudaram
               técnicas de conservação de sangue, outros
               pesquisaram qual seria o melhor material para
               fazer os canos, que minérios do país poderiam ser
               usados, como aproveitar o relevo da região, como
               bombear o sangue de um lugar pro outro. Quando
               acabaram as férias, entregaram o projeto pro
               diretor.

Pausa. Abraão finge que tem o projeto nas mãos e o examina,
virando as páginas com atenção.

               ABRAÃO
               O diretor examinou o projeto e disse: "Muito bem,
               o projeto de vocês é ótimo. Mas eu acabo de
               resolver que, a partir deste semestre, vocês vão
               ter O DOBRO de aulas de filosofia, história e
               ciências sociais."

Pausa. Abraão encara os alunos, procurando um único que tenha
entendido a atitude do diretor. Mas estão todos perplexos. Abraão
sorri e se prepara para explicar.

Neste momento, toca a campainha. Os alunos, imediatamente,
abandonam a perplexidade e saem correndo da sala. Abraão fica
parado, impotente. A sala se esvazia. Apenas CAROLINA permanece
sentada, olhando para Abraão, como que entendendo tudo. Chico
pára na porta e fica esperando Carolina. Abraão olha para ela por
alguns instantes e depois vira-se para juntar suas coisas e ir
embora. Carolina fica sozinha na sala.

               CHICO (OFF)
               Uma semana depois, Carolina encontrou o Abraão no
               bar do colégio e perguntou por que o diretor da
               escola de Israel resolveu fazer aquilo. Ele olhou,
               deu um sorriso e disse que, se ela tinha
               perguntado, era porque não precisava mais da
               resposta. (pausa) Carolina podia ter se apaixonado
               por ele. Mas ele era judeu.

CENA 16 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE

No estúdio, Chico está deitado no chão, sobre uma cama
improvisada de cobertores e folhas de isopor. Ao fundo, a
multidão aerografada. Carolina examina um monte de fitas, anota
dados das fitas numa prancheta.

               CHICO
               Carolina, você quer me ouvir?

               CAROLINA
               Não, Chico, não quero te ouvir. Eu já te ouvi
               demais. Você tem sempre uma belíssima
               justificativa pra tua covardia, você tem sempre
               uma ótima desculpa pra fazer o que é mais fácil,
               mais cômodo e mais conveniente.

               CHICO
               Carolina, isso é um trabalho, um emprego. Você
               acha tão vergonhoso ser pago pra fazer um
               trabalho?

               CAROLINA
               (rindo) Ah, Chico, até parece que você acredita
               nisso. Você devia ter sido ator. Você seria um
               ótimo ator. E sabe por que você não foi? Por que
               você tem medo, medo de se expor.

               CHICO
               Carolina, por favor. Se você quer ir embora, se
               você quer abandonar mais um trabalho pela metade,
               tudo bem, o problema é seu. Mas eu vou ter pedir
               favor: não me analisa.

               CAROLINA
               Tudo bem, então eu vou lhe responder
               profissionalmente. Você me convidou para trabalhar
               na produtora durante a campanha. Eu agradeci e
               aceitei, eu precisava da grana. Eu já fui paga,
               agora eu vou embora. Profissionalmente.

               CHICO
               E agora que a campanha terminou e a gente vai
               poder tocar os nossos projetos, você vai embora.
               Por quê?

               CAROLINA
               Problema meu.

               CHICO
               Então me responde como amiga.

               CAROLINA
               Como amiga? Tudo bem, eu vou lhe responder como
               amiga. Eu vou me embora por que você é um canalha.
               Você pensa que é uma ilha cercada de canalhas,
               todos os canalhas pensam isso.

               CHICO
               (erguendo-se) Deixa ver se eu entendi... Nós
               fizemos um trabalho, juntos, um trabalho que tinha
               o mesmo objetivo. Mas eu sou um canalha por fazer
               melhor aquilo que precisava ser feito.

Carolina termina de arrumar as fitas e anotar os dados.

               CAROLINA
               Você fez mais do que precisava ser feito. E você
               gostou de fazer. Você só faz o que gosta.

               CHICO
               Quem disse que eu gosto?

Vai saindo.

               CAROLINA
               Você faz e parece gostar. Pra mim é o suficiente.
               Tchau, Chico.

Chico fica sozinho no estúdio vazio.

CENA 17 - BIBLIOTECA - INTERIOR/DIA

Chico está sentado na biblioteca, lendo Asterix.

               CHICO (OFF)
               Eu me apaixonei por Lisa às dez e vinte cinco de
               uma manhã de outono, não lembro o dia. Eu estava
               lendo Asterix na biblioteca. A sobrevivência nos
               recreios era mais difícil que na floresta de
               Carnutes, onde os irredutíveis gauleses faziam
               tremer os imperialistas romanos. Eu achava que a
               biblioteca era um território livre, silencioso e
               seguro. Eu ainda não sabia como os livros podiam
               ser perigosos.

LISA senta na outra ponta da mesa. Chico levanta os olhos. Ela
sorri, ele também. Ele volta a olhar para o livro.

               CHICO (OFF)
               Ela está lendo um livro em francês. Acho que é em
               francês. Vou perguntar. Vou perguntar porra
               nenhuma, vou ficar na minha. Vou fingir que ela
               nem está aqui.

Chico ergue os olhos outra vez. Lisa está lendo, aparentemente
compenetrada.

               CHICO (OFF)
               Tinha um monte de mesas vazias e ela sentou
               exatamente na minha. É lance, só pode ser lance.

Lisa pega da bolsa, meio escondida, uma bolacha.

               CHICO (OFF)
               Ela está comendo bolacha. Por isso ela sentou
               aqui, porque não pode comer na biblioteca e nesta
               mesa a Dona Irene não pode ver. É isso, claro, não
               podia ser lance, essa mina é muito estranha. Comer
               bolacha na biblioteca. Pelo menos ela podia me
               oferecer uma. Tô morrendo de fome. Tudo bem, vou
               ficar na minha, vou ficar na minha.

Chico volta a prestar atenção no Asterix.

               LISA
               Tem horas?

               CHICO
               (nervoso) Não, obrigado.

               LISA
               O teu relógio não funciona?

               CHICO
               Ah, horas... Faltam cinco.

               LISA
               Cinco o quê?

               CHICO
               Cinco minutos pra acabar o recreio. São dez e
               vinte e cinco.

               LISA
               Quer uma bolacha?

               CHICO
               Não, obrigado.

Chico volta a olhar para o livro.

               CHICO (OFF)
               Por que você disse não, sua anta? A guria
               ofereceu, você tava a fim. Agora azar, vou ficar
               na minha. Vou ficar na minha!

Chico volta a erguer os olhos. Pelo decote de Lisa, percebe uma
nesga de sutiã preto.

               CHICO (OFF)
               Ela tá de sutiã. Sutiã preto! Ai meu deus do céu,
               ai meu deus do céu... Vou ficar na minha, vou
               ficar na minha. Sutiã preto, ela nem tem muito
               peito. A bundinha é ótima, mas peito ela quase não
               tem. Ou será que tem?

Lisa olha para ele e fecha o último botão da blusa. Chico baixa
os olhos rapidamente, constrangido.

               CHICO (OFF)
               Ela se deu conta que eu tava olhando os peitos
               dela. Azar, quem mandou usar sutiã preto. Vou
               ficar na minha.

Lisa levanta, pega a bolsa e vem sentar ao lado de Chico.

               LISA
               Você já fez o trabalho de física?

               CHICO
               Do pêndulo? Não.

               LISA
               A gente podia fazer junto, lá em casa.

               CHICO
               Legal. Quando?

               LISA
               Hoje à tarde.

               CHICO
               Tudo bem.

Lisa pega um papel e anota um endereço. Entrega para Chico.

               LISA
               É bem aqui perto, conhece a rua?

Chico faz que sim.

               LISA
               Duas horas?

               CHICO
               Duas horas.

               LISA
               Legal.

Lisa levanta e vai saindo. Luciano chega.

               LUCIANO
               Oi, Lisa.

Luciano senta ao lado de Chico.

               LUCIANO
               Essa mina é louca mas é muito gostosa. O Emílio te
               mostrou o cavador?

               CHICO
               (ainda em estado de choque) Acho que não.

               LUCIANO
               O Emílio comprou um cavador bárbaro. Ele disse que
               hoje ninguém ganha dele, que ele vai se fechar na
               defesa.

               CHICO
               (lembrando-se) O campeonato! Não vai poder ser
               hoje.

               LUCIANO
               Como? Você disse que tava tudo certo!

               CHICO
               É que a minha mãe tem novena e elas vão usar a
               garagem.

               LUCIANO
               Novena??? Porra, Chico, hoje de manhã eu ainda
               falei contigo do campeonato, você esqueceu que...

Lisa volta.

               LISA
               Esqueci minhas bolachas. (para Luciano) Você já
               fez o trabalho de física?

               CHICO
               Já.

               LUCIANO
               (estranhando) Por quê?

               LISA
               A gente podia fazer um grupo de três. Eu e o Chico
               vamos trabalhar lá em casa, às duas.

               LUCIANO
               Hoje? (olhando para Chico) Hoje. Tudo bem. Eu vou
               com o Chico.

               LISA
               Legal.

Lisa sai. Luciano e Chico ficam olhando Lisa se afastar, enquanto
Emílio chega, excitado.

               EMÍLIO
               (abrindo a sua pasta para mostrar algo) Chico,
               aposto que você nunca viu um cavador de acrílico
               com três camadas...

               CHICO
               (distraído) Não...

               LUCIANO
               (cortando) Não vai ter campeonato hoje, Emílio.

               EMÍLIO
               Por quê???

Chico olha para a porta da biblioteca, por onde Lisa vai saindo,
conversando com uma colega.

               LUCIANO
               Novena. Eu e o Chico temos novena.

Emílio fica olhando para eles, com o cavador na mão, achando que
os dois estão tirando sarro da cara dele, mas sem muita certeza.
               

CENA 18 - CASA DE LISA - INTERIOR/DIA

Chico, Luciano e Lisa estão sentados no chão da sala, entre
papéis e gráficos espalhados. Lisa está maravilhosamente sedutora
vestindo uma bermuda e um pulôver velho. Chico e Luciano estão
hipnotizados. Lisa gesticula e dá instruções sobre o melhor modo
de realizar uma experiência científica com um pêndulo. Chico deve
contar a oscilação, Luciano deve medir a amplitude enquanto ela,
de pés descalços sobre um pufe cor-de-laranja, segura o pêndulo.
Ela segura o pêndulo, que se move lentamente. Chico e Luciano
ficam parados, de pé, sem conseguir tirar os olhos dela.

               CHICO (OFF)
               Eu fui colega do Luciano desde o jardim da
               infância. Ele era tão idiota quanto eu, o que
               sempre é muito prático, a gente se entende fácil.

CENA 19 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA

Um grupo de trinta pessoas acompanha um enterro. Chico, Luciano e
Andrew caminham em silêncio, lado a lado, pelos corredores do
cemitério. Nas paredes destacam-se as fotos e os nomes esculpidos
dos mortos. Alguns túmulos têm flores de plástico.

               CHICO (OFF)
               Eu vi o Luciano pela última vez no enterro do
               Velho, acho que já faz dois meses. Não o meu
               velho, que continua vivo, aliás cada vez mais
               vivo. Luis Carlos Silveira Velho, um cara que me
               ensinou muita coisa. O Andrew, é claro, também
               estava lá.

Chico olha para Andrew no momento exato em que estoura o flash de
um fotógrafo.

CENA 20 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA

DOIS TIMES DE FUTEBOL de adolescentes e um JUIZ esperam a
cobrança de um pênalti. O batedor é Chico. O goleiro é ANDREW.
Chico ajeita a bola. Andrew chuta a trave para limpar a chuteira.
Chico toma distância. Andrew coloca-se no centro do campo. Chico
olha para um canto da goleira. Andrew olha para a bola. Chico
olha para o outro canto da goleira. Andrew olha para os pés de
Chico. Chico e Andrew se olham. Chico corre para a bola.

               CHICO (OFF)
               Andrew, hoje todo mundo sabe, não era anchietano.
               Eu achei que a gente tinha se visto pela primeira
               vez em 74, na semifinal do Interescolar Pérola, um
               campeonato de futebol patrocinado por um óleo de
               soja, que reuniu os times do Colégio Anchieta e da
               Escola Técnica de Viamão. Andrew jogava no gol. A
               escola vencedora receberia o troféu no Revista
               Pérola, um programa de televisão, sábado de manhã.
               O time deles tinha melhor saldo e jogava pelo
               empate. A gente teve um pênalti a nosso favor bem
               no fim do jogo. Eu bati o pênalti.

Chico aproxima-se da bola. Andrew flexiona os joelhos. Chico
chuta a bola. Andrew salta. A bola dirige-se para o canto
esquerdo do gol. Andrew pulou para a direita. A bola continua seu
caminho para as redes. Andrew tenta inverter a direção do seu
salto. É muito tarde. Andrew estica a perna para a esquerda,
inutilmente. A bola aproxima-se das redes. Andrew cai junto ao
poste direito. A bola bate no poste esquerdo. O time de Andrew
comemora. Chico fica parado, mãos na cintura. Andrew levanta e é
abraçado. Luciano dá um tapinha de consolo nas costas de Chico. O
juiz apita o final da partida.

               CHICO (OFF)
               Nossa amizade futura só se tornou possível porque
               o time deles foi massacrado na final pelo Colégio
               Militar, grande campeão do Interescolar Pérola 74.

CENA 21 - BAR DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE

Um bar de faculdade, apinhado de gente e forrado de cartazes.
Luciano faz um discurso num megafone. Por trás dele, Chico segura
um gravador e, com outro estudante, uma faixa de pano onde está
escrito: "ISTO É UMA FAIXA DE PANO". O gravador toca "AMAPOLA".  

               LUCIANO
               A Aliança Místico-Anarquista Pró Orgasmos e Livre
               Arbítrio, AMAPOLA, pede um minuto de atenção aos
               nossos distintos eleitores. Exigimos anistia
               ampla, geral e irrestrita a todos os condenados
               por crimes políticos. Exigimos que o professor de
               editoração escove os dentes antes das aulas.
               Exigimos que todos os congressos da UNE sejam
               realizados em cidades com praia. Exigimos a
               renúncia imediata do presidente dos Estados Unidos
               da América. Exigimos eleições livres e diretas em
               todos os níveis. Se nossas exigências não forem
               atendidas em 48 horas nós ficaremos bastante
               chateados. Muito obrigado!

A platéia ri, vaia e aplaude. Na platéia, Andrew acha graça, mas
não muito. Chico, Luciano e seu companheiro de chapa distribuem
panfletos, impressos em páginas arrancadas de uma lista
telefônica.

               CHICO (OFF)
               Eu só reencontrei Andrew na faculdade, em setenta
               e nove. Eu era candidato a secretário numa das
               chapas na eleição pro diretório acadêmico.

Chico oferece um panfleto a Andrew. Gentilmente, Andrew recusa.

               CHICO (OFF)
               Andrew era vice na chapa da situação.

CENA 22 - AUDITÓRIO DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE     

O candidato da situação, um BAIXINHO com um cavanhaque, faz um
discurso inflamado. Andrew está ao seu lado.

               BAIXINHO
               O inimigo mais perigoso não está na direita,
               companheiros. O inimigo mais perigoso está
               camuflado de progressista e tenta ridicularizar a
               luta dos estudantes.

Luciano está de pijama e segura um travesseiro. Parte da platéia
se diverte. O Baixinho está cada vez mais irado.

               BAIXINHO
               Mas esta luta vai continuar. Ao lado dos
               operários, dos camponeses, das donas de casa, dos
               funcionários públicos, os estudantes vão continuar
               resistindo à ditadura militar, ao arrocho salarial
               e ao ensino alienante. Operários foram presos em
               São Paulo por lutar pelo direito de greve.
               (olhando para Luciano) E isso não é engraçado,
               companheiro. A luta dos camponeses por terra
               para...

               LUCIANO
               Engraçado é chamar alguém de camponês. Camponês
               usa gorro de lã e ceroula, e mora em Sherwood!

               BAIXINHO
               Eu não lhe concedi aparte, companheiro!

               LUCIANO
               O seu discurso é importado e a tradução é muito
               ruim! Aqui nunca ninguém viu um camponês, no
               Brasil não existe camponês. Chama um agricultor de
               camponês e ele acerta o seu pé com a enxada.

               BAIXINHO
               O seu discurso serve à ditadura, companheiro. O
               anarquismo é a direita vestida de palhaço.

               LUCIANO
               O que serve à direita é a incompetência da
               esquerda.

Os dois gritam ao mesmo tempo. Luciano pega um grande
despertador. O despertador toca, aumentando o caos. A platéia
vaia, grita e aplaude.

CENA 23 - RESTAURANTE UNIVERSITÁRIO - INTERIOR/DIA

Chico está terminando de almoçar. Andrew procura um lugar e acaba
sentando ao lado de Chico.

               CHICO
               Parabéns.

Andrew vê Chico.

               ANDREW
               Tudo bem? Obrigado. Eu sou só o vice. Vice é quase
               o mesmo que nada. (pausa) A campanha de vocês foi
               ótima. É importante que alguém questione a forma
               como se faz política estudantil.

Andrew começa a comer. Pelo jeito está com muita fome.

               CHICO
               Desde que não toque no conteúdo.

               ANDREW
               O conteúdo é sempre o mesmo: derrubar e começar a
               construir de novo.

               CHICO
               Sempre igual? Será que a política não pode ser
               feita de maneira mais... divertida?

               ANDREW
               A realidade nem sempre é divertida. Você não vai
               comer o pão?

               CHICO
               Não, pode pegar.

Andrew pega o pão que Chico não comeu. Parte o pão e começa a
comer com o molho da carne.

               CHICO
               Você lembra da semifinal do Interescolar Pérola de
               setenta e quatro?

               ANDREW
               Semifinal? Não. Eu lembro da final.

               CHICO
               Nosso time jogou contra o teu na semifinal. Foi
               zero a zero, vocês se classificaram para a final
               pelo saldo de gols.

               ANDREW
               Não lembro. Mas eu lembro que a gente perdeu a
               final pros milicos. Foi tudo armado.

Chico acha graça.

               ANDREW
               Você não acredita? O juiz e um bandeirinha eram
               militares da reserva.

               CHICO
               Você acha que a ditadura militar estava preocupada
               com o resultado do Interescolar Pérola? Eu vi a
               final. Vocês levaram um banho de bola, cinco a um.
               
               ANDREW
               Veja bem, a imagem que a direita tentava passar
               dos militares era a de...

               CHICO
               Tudo bem, Andrew, não precisa me convencer de
               nada. A campanha já terminou, vocês ganharam. O
               Interescolar Pérola também já terminou e vocês
               perderam. Ou você ainda quer revanche?(pausa)
               Você ainda joga futebol?

               ANDREW
               Não. Eu nunca gostei muito de futebol. Por isso
               jogava no gol. (pausa) Eu lembrei da semifinal.
               Você estudava no Anchieta?

Chico confirma.

               ANDREW
               Lembra de Vila Oliva?

               CHICO
               Claro.

               ANDREW
               Eu morava lá. Meu pai era o zelador.

               CHICO
               Sei. Eu não lembro de você.

               ANDREW
               Claro que não. Mas eu lembro de vocês.

               CHICO
               Vocês quem, cara pálida?

               ANDREW
               Vocês. Os anchietanos. O que eu mais me lembro é
               que vocês falavam muito alto, vocês gritavam quase
               todo o tempo. Crianças ricas quando estão felizes
               gritam muito. (acrescentando) Crianças pobres
               também, só que é mais raro.

               CHICO
               Eu adorava ir na Vila Oliva. A gente ia uma vez
               por semestre, cada turma. (pausa) Eu ficava
               esperando o dia, na véspera eu mal conseguia
               dormir pensando no campeonato de futebol, na
               viagem de ônibus, nas gurias. Principalmente nas
               gurias.

Chico levanta, pega a bandeja. Andrew vê que Chico vai devolver a
bandeja com uma laranja intacta.

               ANDREW
               Posso pegar a laranja?

               CHICO
               Pode. Nós não vamos comer a laranja.

CENA 24 - ENTRADA DE VILA OLIVA - EXTERIOR/DIA

Um ônibus escolar ultrapassa o portão da Vila Oliva. O ônibus
está cheio de crianças, que gritam muito. O PAI DE ANDREW, um
homem alto, moreno, fecha o portão. A seu lado, Andrew, com 11
anos, o ajuda. O ônibus pára e as crianças começam a descer,
tremendamente excitadas, gritando e correndo. Os meninos, com
uniformes de futebol, dirigem-se ao ginásio. Andrew fica em
silêncio, olhando os anchietanos que se afastam.

CENA 25 - GINÁSIO DE VILA OLIVA - INTERIOR/DIA

Final da manhã. No ginásio, DOIS TIMES disputam uma partida de
futebol de salão. Chico e Luciano jogam no mesmo time. O JUIZ é
um professor, em trajes civis. Na arquibancada, Emílio está
torcendo, ao lado de Carolina. Lisa chega e senta ao lado de
Emílio.

               LISA
               Você não vai jogar?

               EMÍLIO
               Não. Eu não jogo muito bem.

               LISA
               E daí?

               EMÍLIO
               Acho que eles gostam de ganhar.

               LISA
               Ganhar o quê? Aquelas medalhas horríveis?

Luciano faz um golaço. O time inteiro corre pro abraço. Carolina
e Emílio vibram. Lisa sai correndo, invade o campo e participa da
comemoração. Ela gruda em Chico e fala alguma coisa no ouvido
dele, sempre fazendo de conta que está festejando o gol. Chico
faz uma cara de surpresa.

               CAROLINA
               (para Emílio) Essa guria é louca, pirada.

               EMÍLIO
               É. Completamente.

Lisa volta correndo e senta outra vez ao lado de Emílio.

               LISA
               Quanto tá o jogo?

               EMÍLIO
               Três a zero.

               LISA
               Isso é muito ou pouco?

               EMÍLIO
               É bastante. O jogo tá ganho.

               LISA
               Legal. (E grita, escandalosamente:) Vamo lá,
               Chico!

Chico está com a bola. Olha para Lisa. Ela está de pé, linda,
usando um casaco como se fosse uma bandeira. E ri. É uma bela
visão. Chico passa a bola para Luciano e corre para receber.
Luciano lança. O zagueiro adversário chega antes e corta. Chico,
que vinha correndo, choca-se com ele e cai no chão, cara de dor.
O juiz marca a falta.

               ZAGUEIRO
               (para o juiz) Não foi nada, seu juiz!

Chico está segurando a perna e gritando de dor. Os companheiros
de time vêm ver o que aconteceu com ele. O juiz-professor fica
preocupado.

               JUIZ
               Quê que houve, Chico?

               CHICO
               Ai, ai. Tá doendo muito.

               LUCIANO
               Não faz onda, Chico. Não foi nada. (E tenta
               levantá-lo do chão)

               CHICO
               (enquanto grita de dor) Minha perna, minha perna!

Luciano volta a colocá-lo no chão. O juiz examina a perna. Mais
gritos de Chico.

               JUIZ
               Acho que não foi nada grave.

               LUCIANO
               Levanta aí, Chico, não faz onda.

               CHICO
               Não dá mesmo, Luck. Vamos botar o reserva.

               LUCIANO
               (surpreendido) Que reserva? Tá louco?

O juiz carrega Chico pra fora da quadra. No meio do caminho,
Chico fala:

               CHICO
               O Emílio. Bota o Emílio.

Carolina, Lisa e Emílio vêm pra examinar Chico.

               LUCIANO
               Pirou na jogada?

               CHICO
               (para Emílio) Entra, Emílio! O jogo já tá no fim.

               EMÍLIO
               Eu?

               CHICO
               (passando a camiseta para Emílio) Vai lá, entra.

Emílio não tem coragem. Mas Lisa dá um empurrão nele. Luciano não
está entendendo nada. Mas o juiz já voltou pro campo. A falta
precisa ser batida. Luciano chega perto de Emílio.
 
               LUCIANO
               Fica na defesa.

Luciano bate a falta. A bola bate na barreira e vai no pé de
Emílio. Ele está tão nervoso que não consegue fazer absolutamente
nada. O time adversário toma a bola facilmente e faz o gol. A
torcida adversária vibra. Luciano fica louco. Vai correndo até
Chico, que continua deitado.

               LUCIANO
               Volta, cara.

               CHICO
               Não dá. Tá doendo muito.

               LUCIANO
               Você me paga! (E vai correndo até Emílio. Grita
               pra ele:) Vai pro ataque! E não sai de lá!

Carolina está preocupada com Chico.

               CAROLINA
               Será que você não quebrou a perna?

               CHICO
               Não. No máximo, rompi os ligamentos.

               LISA
               Eu sei fazer massagem pros ligamentos.

Lisa começa a massagear a coxa de Chico.)

               CAROLINA
               (desconfiada) Ligamentos não é no joelho?

               CHICO
               Também tem na coxa. Tem ligamento no corpo todo.
               Ai, ai! Cuidado, Lisa.

O jogo continua. Emílio está parado, sozinho, do outro lado do
campo. O resto do time agüenta a pressão dos adversários. Então
Luciano corta com a cabeça uma cobrança de escanteio e a bola vai
direitinho no pé de Emílio. O goleiro do outro time sai do gol,
desesperado. Emílio não sabe o que fazer. Mas decide: é agora!
Fecha os olhos e dá um bico. No ângulo. Golaço. O time corre pro
abraço. Lisa invade o campo outra vez. Chico levanta e corre
atrás, esquecendo de mancar. Pula no bolinho. Carolina não
entende nada. Emílio chora de alegria.

CENA 26 - BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA

Umas pedras, na beira do rio. É um local de acesso difícil, pois
é preciso descer o morro por um caminho em declive acentuado.
Chico e Lisa estão de pé, lado a lado, encostados numa pedra. Ele
ainda está com o fardamento do jogo. Ela soltou o cabelo e está
ainda mais linda.

               CHICO
               Você prometeu.

               LISA
               Prometi.

               CHICO
               Então cumpre.

               LISA
               Você pensou que eu ia dar pra trás?

               CHICO
               Não sei... Essas coisas...

               LISA
               (cortando) Se eu falei, eu cumpro.

Lisa levanta a blusa devagar, mostrando os seios. Chico olha para
eles, completamente abobado.

               LISA
               Gostou? São meio pequenos, né?

               CHICO
               Não. São bonitos. Muito bonitos.

Lisa chega um pouco mais perto de Chico.

               LISA
               Eu prometi que te deixava pegar.

Chico está paralisado. Não consegue nem levantar a mão. Lisa
percebe o estado de Chico e sorri.

               LISA
               Eu te ajudo.

Pega a mão direita de Chico e a leva até os seios. Chico sua.
Lisa larga a mão de Chico, que imediatamente a recolhe. Ele está
grudado numa pedra, todo encolhido.

               LISA
               (puxando a blusa de volta) Bom, eu cumpri a minha
               palavra. (pausa)  E sabe, Chico, até que eu
               gostei.

               CHICO
               Eu também gostei.

               LISA
               Nem parece.

               CHICO
               Eu gostei. Gostei muito.

               LISA
               Vamos voltar?

               CHICO
               Não.

               LISA
               O que nós vamos ficar fazendo aqui?

               CHICO
               Eu quero um beijo.

               LISA
               Isso eu não prometi.

               CHICO
               (ganhando coragem e chegando perto) Mas eu quero.

               LISA
               Não sei... Você não é meio namorado da Carolina?

               CHICO
               Não.

               LISA
               Então tudo bem.

Lisa fecha os olhos, esperando um superbeijo. Mas Chico dá um
beijinho muito recatado. Lisa fica decepcionada, mas disfarça.

               CHICO
               Agora vamos voltar.

Chico sai, tão feliz que quase esquece Lisa. Ele sobe a longa
escadaria correndo. Lisa vai ficando para trás. Lisa ouve um
ruído, percebe que há alguém no mato.

               LISA
               Quem está aí?

Ninguém responde. Lisa entra no mato por uma trilha. Ouve passos
de alguém que se afasta. Lisa chega numa clareira. Há uma grande
pedra de onde se avista a beira do rio, o lugar onde Lisa estava
com Chico. Não há ninguém ali, e é impossível seguir adiante.
Lisa se volta e dá de cara com Carolina. Ela tem os olhos
vermelhos e tenta esconder o choro.

               CAROLINA
               Oi, Lisa. O pôr-do-sol está lindo. Você gosta mais
               do nascer ou do pôr-do-sol?

Lisa fica confusa, surpresa com a pergunta de Carolina.

               LISA
               Não sei... acho que são iguais.

               CAROLINA
               Iguais? Imagine! Claro que não são iguais. O pôr-
               do-sol é muito mais vermelho, o nascer do sol é
               mais branco. E o pôr-do-sol é mais devagar, não
               sei por que, mas é. Eu lembro de um dia, na praia,
               a gente...

Lisa segura o braço de Carolina

               LISA
               Carolina. Ele é só um guri bobo. Não precisa ficar
               triste por causa dele.

Carolina fica em silêncio. Seca os olhos na manga da blusa. Lisa
passa os braço sobre o ombro de Carolina.

               LISA
               Vamos voltar, tá ficando escuro.

CENA 27 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA

Carolina toma um refrigerante no balcão do bar do aeroporto.
Chico, Luciano e Lisa estão parados, sem assunto.

               LISA
               A temperatura externa de um vôo de jato chega a
               quarenta graus abaixo de zero.

Todos concordam, sem muito interesse. Ficam em silêncio.

               CAROLINA
               Eu sei que vocês não vão escrever.

Todos reagem ao mesmo tempo.

               LUCIANO
               Ai, meu deus...

               CHICO
               Carolina, não começa com esse papo de novo. A
               gente já disse que vai escrever.

               CAROLINA
               Eu sempre digo que vou escrever e nunca escrevo.

               LUCIANO
               É que você é uma mentirosa, cínica, falsa e
               trapaceira. E nós não.

A MÃE DE CAROLINA se aproxima. Ao fundo, o PAI DE CAROLINA, um
coronel fardado, se despede de outros militares.

               MÃE DE CAROLINA
               Agora nós temos que ir, filha.

Carolina pega sua sacola. Todo mundo se despede.

               CAROLINA
               Dessa vez eu vou escrever. Eu já vou começar a
               escrever agora, no avião.

CENA 28 - RUAS DA CIDADE - EXTERIOR/DIA

Algumas ruas do centro da cidade às seis e meia da manhã (no
verão). Ainda há pouco movimento, mas já tem gente indo pro
trabalho. O sol está atrás dos edifícios.

CENA 29 - BANCA DE JORNAL - EXTERIOR/DIA

Chico, cara de sono, compra um jornal que exibe a manchete:
"COMEÇA O VESTIBULAR". Chico sai caminhando, lendo o jornal.

CENA 30 - QUARTO DE LUCIANO - INTERIOR/DIA

O rádio-relógio está funcionando no quarto de Luciano, que dorme
pesadamente.

               LOCUTOR (OFF)
               ...o épico da família Terra-Cambará. E agora as
               últimas dicas para a prova de português, com o
               professor Dalbém.

               PROFESSOR DALBÉM (OFF)
               Sempre há pelo menos duas questões de acentuação
               no vestibular Unificado. Lembre que todas as
               proparoxítonas são acentuadas. As paroxítonas
               terminadas em ditongo crescente...

Luciano continua dormindo. Na mesinha de cabeceira, um envelope
de comprimidos. Três comprimidos já foram usados.

A MÃE DE LUCIANO, de camisola, entra no quarto. Desliga o rádio-
relógio. Sacode Luciano, mas ele não reage. Então ela percebe o
envelope de calmante. Fica apavorada e sai do quarto.

CENA 31 - PARADA DE ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA

Chico, na parada de ônibus, lê o jornal. Olha o relógio, olha
para o fim da rua, volta a ler o jornal.

A partir daí, intercalam-se as cenas *** e ***.

O pai e a mãe de Luciano no quarto dele. A mãe está com um copo
de água na mão. Joga uns pingos no rosto de Luciano, que reage,
mas muito devagar.

               PAI
               Eu avisei que era perigoso dar calmante pro guri.

               MÃE
               Um só não tinha problema. Luciano! Luciano, meu
               filho!
               PAI
               (sacudindo Luciano com força) Acorda, desgraçado.

Chico está na parada de ônibus. Um ônibus passa, mas ele não
pega. Olha para o relógio. Sai da parada.

O telefone toca na sala. A mãe vai atender.

               MÃE DE LUCIANO
               (nervosa) Alô?

É Chico, que está num telefone público.

               CHICO
               Dona Alice? Eu estou esperando o Luciano, ele já
               saiu de casa?

               MÃE
               Ele está no banho, mas ainda não acordou. Vai
               indo, meu filho. Nós vamos levar ele de carro.

No banheiro da casa de Luciano. Ele está de pé, no box, pelado,
amparado pelo pai. A água vem forte, molhando o pijama do pai.

               PAI (furioso)
               Acorda, Luciano!

Luciano, agora um pouco mais acordado, com a água correndo pelo
rosto, olha para o pai, faz uma cara de espanto e pergunta:

               LUCIANO
               Pai, por que você tá tomando banho de roupa?

Chico no ônibus. Olha para um papel, onde estão rabiscadas
algumas coisas. Dá pra ver que são regras de acentuação.

               CHICO (murmurando)
               Paroxítonas terminadas em ditongo...

Luciano, vestido, mas ainda muito sonolento, está sentado na
mesinha da copa. O pai enfia uma xícara de café preto na sua
boca. A mãe passa manteiga numa fatia de pão.

               PAI
               Sabe quanto eu gastei no cursinho desse
               débil-mental?

               MÃE
               Calma, Guilherme. Ele vai fazer a prova. Não vai,
               meu filho?

               LUCIANO (arrastando as palavras)
               Proparoxítonas... (longa pausa) todas.
               Paroxítonas... as que terminam em ditongo
               crescente... ditongo... crescente... (fecha os
               olhos e dorme sentado)

CENA 32 - ENTRADA DE COLÉGIO - EXTERIOR/DIA

Um colégio grande, com uma porta enorme, e alguns VESTIBULANDOS
entrando, em passo acelerado. O PORTEIRO faz sinal para que eles
se apressem. Chico está parado, do lado de fora de porta,
esperando, nervoso. Olha para o relógio. Aproxima-se do porteiro.

               CHICO
               Quanto falta?

               FISCAL
               Um minuto. Entra logo.

Um carro estaciona. O pai de Luciano dirige. O próprio está no
banco da frente, dormindo. A mãe, nervosíssima, está no banco de
trás. Chico vai correndo até o carro para ajudar. Mas Luciano tem
que ser praticamente arrastado. O porteiro não deixa os pais de
Luciano entrarem. A porta é fechada. Chico não agüenta o peso de
Luciano. Os dois escorregam até ficar sentados no chão. Chico
pede ajuda. Uns RAPAZES se prontificam. Levam Luciano até a sala
dele, sob os olhares espantados dos OUTROS ESTUDANTES.

CENA 33 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

Chico, com a prova à sua frente, murmura.

               CHICO
               Paroxítonas terminadas...

CENA 34 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

Luciano, com a prova à sua frente, dorme sentado.

CENA 35 - RUA - EXTERIOR/DIA

Chico olhando para a frente. Surge uma mão com um pincel.
Lambuzam a cara de Chico com tinta vermelha. Depois derramam um
monte de talco no cabelo. Surge uma mão com uma tesoura, que
corta uma mecha do cabelo de Chico. Mais tinta. Lambança geral.

CENA 36 - JUNTA DE ALISTAMENTO - INTERIOR/DIA

Luciano está sentado a uma mesa. À sua frente, um SARGENTO.

               SARGENTO
               QUER servir?

               LUCIANO
               Não.

               SARGENTO
               Por quê?

               LUCIANO
               Eu tenho que estudar.

               SARGENTO
               (enquanto olha uma ficha à sua frente) Tem o
               comprovante de matrícula na faculdade?

               LUCIANO
               Não.

               SARGENTO
               Você é arrimo de família?

               LUCIANO
               Não.

               SARGENTO
               Tem algum problema físico?

               LUCIANO
               Asma. Já entreguei o atestado.

               SARGENTO
               Asma? Sabe quantos caras com asma eu já
               entrevistei hoje? Doze. Tem uma epidemia de asma
               na cidade. Asma e pé-chato. Você é o
               décimo-terceiro. Sabe o quê que eu acho? Que vocês
               não querem servir a pátria! (Carimbando a ficha)
               Exame médico na quinta. E não falta. (Ameaçador)
               Se você não vem... a gente busca em casa.

CENA 37 - SALA DE EXAMES - INTERIOR/DIA

Luciano, pelado, ao lado de outros CINCO CARAS, também pelados.
Um OFICIAL-MÉDICO passeia entre eles, com um estetoscópio na mão.
Pára na frente de Luciano. Ausculta o pulmão.

               OFICIAL-MÉDICO
               Asma?

               LUCIANO
               Sim, senhor. Desde que eu tenho dois anos.

               OFICIAL-MÉDICO
               (bem alto) Todos vocês têm asma?

               PELADO 1
               Eu tenho bronquite alérgica.

               OFICIAL-MÉDICO
               (auscultando o pelado 1) E tem mesmo! Vai, meu
               filho, te veste. (O pelado começa imediatamente a
               se vestir) Dá um abraço no doutor Mânica. E vê se
               cura essa bronquite, viu?

O oficial-médico continua a passear entre os pelados. Ausculta um
pouco, manda tossir, manda levantar os braços, manda mostrar a
língua. Finalmente pára bem no meio da fila e discursa:

               OFICIAL-MÉDICO
               Cinco rapazes fortes, bem-nutridos, com todos os
               dentes, sem nenhuma doença venérea. Ideais para o
               Exército. Mas vocês têm asma. Algum de vocês,
               apesar de ter asma, quer servir? (Silêncio total)
               Não? Que pena. Sabe, eu já vi muito soldado curar
               asma aqui no 18. Sargento, faltam quantos recrutas
               pra completar o contingente?

               SARGENTO
               Um, capitão.

               OFICIAL-MÉDICO
               Um? Só um? Que pena. Quem será que vai curar a
               asma graças ao Exército Brasileiro?

CENA 38 - BARBEARIA DO EXÉRCITO - INTERIOR/DIA

Uma mecha de cabelo cai no chão, misturando-se a um monte de
outras mechas, de todos os tamanhos e cores. Uma máquina de
cortar cabelo, zunindo como um marimbondo furioso, faz o seu
serviço. O som irritante se mistura ao Hino do Exército,
assoviado com maestria pelo BARBEIRO. Acompanhamos, em detalhe,
uma das "raspadas", que acaba revelando o rosto de Luciano,
estático, olhando para o infinito. Ao seu lado, mais uns TRINTA
ADOLESCENTES esperam a vez. O barbeiro desliga a máquina e pára
de assoviar quando considera o corte pronto. Luciano levanta da
cadeira e é logo substituído por outro RECRUTA. A máquina volta a
zumbir. O barbeiro recomeça o Hino do Exército.

CENA 39 - RUAS PRÓXIMAS AO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA

Um coturno pequeno atravessa a rua. Um tênis Adidas com três
listras azuis desce de um táxi. Um coturno bem grande desce de um
ônibus.

CENA 40 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA

O primeiro coturno, o pequeno, já está entrando no saguão do
aeroporto. A câmara sobe, revelando uma calça jeans preta com
umas tachinhas. Sobe mais um pouco, mostrando a bunda de Lisa. Um
remendo dos Sex Pistols adorna a paisagem. Agora vemos o tênis
Adidas, também no saguão. Quando a câmara sobe, revela uma pasta
de plástico com a inscrição "COMUNICAÇÃO", na mão de Chico. O
coturno grande também está no saguão. A câmara sobe por uma calça
verde-oliva, até a mão de Luciano, que segura a "cobertura" de
passeio. Voltamos para Lisa, mais especificamente para as suas
costas. Jaqueta de couro preta. A câmara sobe até a nuca, que
está quase raspada. Lisa exibe um corte "meio-moicano" azul. Lisa
afasta-se da câmara, rumo ao setor de desembarque. Agora estamos
nas costas de Chico. Ao subir, a câmara mostra que o seu cabelo
está quase a zero. Chico afasta-se da câmara. Finalmente, as
costas de Luciano. A câmara sobe e mostra um típico corte militar
(nuca raspada e um pouco de cabelo em cima). Luciano afasta-se da
câmara. Um plano mais aberto de cima. Os três encontram-se perto
do desembarque.

CENA 41 - PÁTIO DO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA

Final da escada do avião, no nível da pista. Um sapato feminino
entra em quadro por cima. Vemos depois as pernas de Carolina. E,
a seguir, a sua barriga, bastante proeminente, uns oito meses de
gravidez. Vemos o rosto de Carolina, tenso, enquanto ela caminha
rumo ao setor de desembarque. Entra no prédio do aeroporto.

CENA 42 - AEROPORTO/SETOR DE DESEMBARQUE - INTERIOR/DIA

Carolina sai do setor de bagagens e olha em frente. Três carecas
abanam para ela. Ela não reconhece de imediato. Olha pra trás,
achando que eles podem estar abanando para outra pessoa. Mas não
há ninguém. Ela olha outra vez e sorri: são eles. Os três a
abraçam. Também estão surpreendidos pela barriga dela.

               CAROLINA
               (rindo) Meu Deus, quê que houve com vocês?
               Epidemia de piolho?

               LUCIANO
               (fazendo continência) Soldado cento e trinta e
               dois, Luciano, da Companhia de Comando da Terceira
               Região Militar.

               CHICO
               Aluno zero sete nove três, barra setenta e sete.
               Bixo.

               LISA
               Sem número. Você gosta de azul?

Os quatro se abraçam mais uma vez, emocionados, fazendo um
bolinho que atrapalha a saída dos outros passageiros.

CENA 43 - BERÇÁRIO DO HOSPITAL - INTERIOR/DIA

Nas janelas do berçário do hospital, Luciano e Chico abanam para
um bebê (José). Lisa se junta a eles. Ficam os três fazendo
gracinhas. Uma AUXILIAR DE ENFERMAGEM empurra o carrinho para
fora da sala. Os três saem da janela. No corredor, brigam para
decidir quem empurra o carrinho, apesar dos olhares repressores
da auxiliar de enfermagem. Chegam à porta do quarto de Carolina.
Entram. Carolina está na cama. Beijos generalizados. A auxiliar
de enfermagem pega o bebê e o coloca no colo de Carolina, para
que ela dê de mamar. Mas o bebê não parece muito a fim.

               AUXILIAR DE ENFERMAGEM
               Se a senhora precisar, é só me chamar. Tem que
               insistir. Ele é meio preguiçoso. (E sai do quarto)

               LUCIANO
               Vai, meu irmão, aproveita que essa comida aí é
               boa.

               CHICO
               É, aproveita enquanto você não tem que engolir a
               bóia do quartel.

               CAROLINA
               Coitadinho... (para o bebê) Você não vai ser bobo
               que nem o tio Luck, vai?

               CHICO
               É, pelo amor de Deus, já chega um panaca na turma.

               LUCIANO
               Falando em panaca, eu ainda tenho que passar em
               dois bancos antes de voltar pro quartel.

               LISA
               É assim que você serve à pátria? Indo em banco?

               LUCIANO
               Não, normalmente eu lavo banheiro e sirvo
               cafezinho.

               LISA
               Por mim, dava pra matar todos os milicos do mundo.
               (Ela percebe que falou besteira e tenta
               consertar.) Quer dizer, tem exceções... Tem os
               caras que apesar de serem milicos...

               CAROLINA
               Não enrola, Lisa.

               LISA
               Não... É que o teu pai, por exemplo, eu sempre
               achei que ele...

               CAROLINA
               (cortando) O meu pai, por exemplo, é um grande
               filho-da-puta.

Fica um clima pesado no quarto.

               CAROLINA
               Eu descobri muitas coisas no Rio. Descobri o que o
               meu pai realmente faz no Exército. (pausa) Acho
               que, pessoalmente, ele nunca torturou ninguém. Mas
               nem isso eu tenho mais certeza. (pausa) Vocês não
               me perguntaram quem era o pai da criatura.

               LUCIANO
               Se você não falou é porque não interessa.

               CAROLINA
               Interessa pra mim. (olhando para o bebê) E talvez
               interesse pra ele. (pausa) Saí de casa, fui morar
               com uma colega do colégio. Aí eu conheci um cara
               super legal, me apaixonei por ele, pensei que ele
               era o cara da minha vida, fiquei grávida. E
               descobri que o cara conhecia muito bem o meu pai.
               (pausa) É isso. O pai dele (e aponta outra vez
               para o bebê) é um milico filho-da-puta, que foi
               mandado pelo avô milico filho-da-puta pra me
               vigiar.

Chico, Lisa e Luciano não sabem o que dizer. Estão surpresos
demais.

               CAROLINA
               Ele fugiu, com medo que o meu pai acabasse com
               ele. O que seria bem possível. E eu não quis
               abortar, apesar de todas as ameaças. Fugi de novo,
               pra cá. E encontrei vocês. Final feliz.

Chico, Lisa e Luciano continuam mudos. Carolina sorri.

               CAROLINA
               Eu tenho sorte.

Lisa segura a mão de Carolina. Chico e Luciano ficam olhando o
filho de Carolina.

               CHICO
               Neto e filho de milicos filhos-da-puta. Tem tudo
               pra ser boa gente.

               LUCIANO
               Provavelmente ele não vai ser milico.

               CHICO
               A não ser que ele durma demais.

               LUCIANO
               Provavelmente o filho dele vai ser milico.

               CHICO
               A criatura já tem nome?

               CAROLINA
               José.

               CHICO
               Por que não José Francisco?

               LUCIANO
               Ou José Luciano?

               CAROLINA
               Que horror!

               LISA
               Já sei! José de Anchieta!

               LUCIANO
               Evidente!

               CHICO
               Óbvio!

               CAROLINA
               José de nada, só José. José do que ele quiser.

               LUCIANO
               É muito comprido.

CENA 44 - FRENTE DA CASA DE LISA - EXTERIOR/NOITE

O carro de Chico pára em frente à casa de Lisa. Ele desce,
apressado, e caminha em direção à casa. A porta da casa de Lisa
se abre. Lisa sai, seguida pela mãe, DILMA, que está segurando
alguma coisa na mão. Chico pára. A mãe pega o braço de Lisa,
ansiosa. Imediatamente começam a discutir. Chico não consegue
ouvir direito. Só chegam até ele algumas palavras como "doente" e
"velha". Lisa vem caminhando em direção a Chico. A mãe vem atrás.

               CHICO
               O que foi, Lisa?

               LISA
               Vamos embora daqui.

Lisa abre a porta do carro, entra e fecha a porta violentamente.
Dilma se debruça na janela.

               LISA
               Vamos embora.

               DILMA
               Me respeita! Eu sou sua mãe!

Chico percebe que Dilma está drogada, ou bêbada.

               LISA
               (olhando fixamente para a frente) Chico, vamos
               embora!

Chico entra no carro.

               CHICO
               A sua mãe tá doente?

               DILMA
               Tô. Tô doente, e a minha própria filha se recusa a
               me ajudar.

               LISA
               (sempre olhando para a frente) Porra, Chico,
               arranca logo essa merda de carro!

               DILMA
               Olha pra mim, olha pra mim!

               LISA
               Antes te olha no espelho. Chico, por favor!

Chico arranca. Lisa esconde o rosto entre as mãos. Chico fica
olhando a mãe de Lisa pelo retrovisor. Um MENINO vem atravessando
a rua de bicicleta. Chico, que está olhando para trás, não vê.
Lisa ergue os olhos.

               LISA
               Cuidado!

Chico buzina e dá uma freada brusca. A bicicleta passa raspando.
Chico pára o carro, tentando se acalmar. Olha para Lisa e para a
mãe de Lisa, na calçada.

               CHICO
               Será que eu não posso ajudar em alguma coisa?

               LISA
               Você sabe achar veia no braço?

Chico fica alguns segundos olhando para Lisa e, pelo espelho,
para Dilma, ainda na calçada.

               CHICO
               Não.

               LISA
               Vamos embora daqui, Chico.

O carro se afasta.

CENA 45 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Lisa está deitada no sofá da sala do apartamento de Chico. Na
parede, pôsters de cinema, uma prateleira feita com tijolos, um
som. No balcão da cozinha, Chico faz café.

               LISA
               Ela começou a se picar há pouco tempo. Antes, só
               cheirava. Eu tô com medo, é perigoso.

               CHICO
               Tem um centro médico em São Paulo, no interior, eu
               acho, onde trabalha um cara muito legal...
 
               LISA
               Ela não precisa de médico. Precisa de alguém que
               cuide dela, que trate ela que nem criança. Minha
               mãe precisa de uma mãe.

               CHICO
               Todo mundo precisa.

Chico vem sentar no sofá. Lisa deita no colo dele. Chico começa a
acariciar os cabelos de Lisa.

               LISA
               Hoje eu fui na casa da Carolina.

               CHICO
               Ela já foi pra casa?

               LISA
               Desde terça. (pausa) Vendo a Carolina com o José,
               me deu uma puta inveja. Ela passou por tanta
               merda, tanta coisa ruim, e a impressão que me deu
               é que ela tá tranqüila, que a vida dela tá
               recomeçando agora, e que ela se transformou. E
               isso é muito bom.

Chico pára de acariciar Lisa.

               LISA
               Continua.

Chico volta a acariciar. Toma coragem. Aproxima-se e dá um beijo
em Lisa. Leve, mas quente. Afasta-se, como quem perdeu a coragem.

               LISA
               Continua.

Chico está indeciso. Mas decide prosseguir. Mais um beijo. Desta
vez, Lisa toma a iniciativa logo que os lábios se tocam. É um
beijo de verdade. Longo e molhado. Afastam-se. Chico estende a
mão devagar. Primeiro acaricia os seios de Lisa por cima da
camiseta. Depois, coloca a mão na barra da camiseta e vai subindo
o tecido devagar. Descobre os dois seios. Inclina-se e beija um,
depois o outro. Afasta-se outra vez. Olha para Lisa. Lisa tira de
vez a camiseta.

               LISA
               Continua.

Mas Chico está paralisado.

               LISA
               Continua.

Como Chico não reage, Lisa pega a mão direita de Chico e a conduz
até o cinto da sua (dela) calça.

               LISA
               Continua. (E ajeita-se no sofá, facilitando o
               trabalho de Chico)

Chico abre o cinto. Depois desabotoa a calça. Lisa estende as
pernas. Chico tira os coturnos dela. Puxa a calça pra baixo até
ela sair. E fica olhando Lisa, que agora está só de calcinha.

               LISA
               Continua.

Chico inclina-se. Novo beijo longo. Depois, Chico vai lentamente
- e sempre beijando - conduzindo sua cabeça para baixo. O rosto
de Lisa, de olhos fechados, feliz. Mas, de repente, abre os
olhos, insatisfeita e ameaça:

               LISA
               Se eu tiver que dizer "continua" mais uma vez, só
               mais uma vez, eu vou embora.

Pouco depois, Lisa volta a fechar os olhos. A câmara aproxima-se
muito, o mais possível, dos seus lábios. E então ela murmura, tão
baixinho que só os espectadores do filme podem ouvir:

               LISA
               Continua, continua, continua...

CENA 46 - ESCOMBROS DE QUARTEL - EXTERIOR/NOITE

Ruínas do que já foi um quartel no centro da cidade. Uma grande
placa avisa: "ÁREA MILITAR, NÃO ULTRAPASSE". Da construção
original, sobrou só um pequeno quarto, onde ficam dois beliches
utilizados como dormitório da guarda. Há uma casamata, bem na
esquina da rua. Luciano, de guarda na casamata, tenta ler "Um
Estranho numa Terra Estranha", edição de bolso, mas o sono não
deixa. Ele guarda o livro. Tira o carregador do FAL e olha as
balas. Ele está fazendo isso quando surge o SARGENTO-RONDA.
Luciano assume a posição de "sentido" e se apresenta.

               LUCIANO
               Soldado cento e trinta e dois, Luciano, da
               Companhia de Comando da Terceira Região Militar.

               SARGENTO
               (olhando para as balas) Tudo em ordem, soldado?

               LUCIANO
               Serviço sem alteração, sargento.

               SARGENTO
               Por que tá mexendo no FAL?

               LUCIANO
               Eu estava verificando a munição, sargento.

O Sargento pensa em dar uma mijada, mas desiste, não vale a pena.

               SARGENTO
               Boa noite. (Faz continência e sai.)

               LUCIANO
               (respondendo à continência) Boa noite, sargento.
               (Fica olhando o sargento se afastar.)

Luciano começa a recolocar as balas no carregador. Coloca duas.
Quando está colocando a terceira, sente uma mão se enfiando pelo
meio das suas pernas. É RODRIGUES, milico como ele, mas com um ar
mais "marginal". Luciano se vira rápido, em posição de defesa.

               RODRIGUES
               Ah, deixa eu segurar o seu FAL, deixa.

               LUCIANO
               Porra, Rodrigues, não enche o saco.

               RODRIGUES
               Você sabe o quê que o Joaquim disse quando eu
               acordei ele? (com sotaque de colono alemão) Eu
               pedi que me acordassem quinze minutos antes! E
               faltam só cinco! (Pára de imitar) Que cara bem
               trouxa!

               LUCIANO
               Deixa o guri em paz, Rodrigues.

Rodrigues percebe um casal no outro lado da rua. Ela é Marli, uma
prostituta; ele é SIDMAR, um prostituto.

               RODRIGUES
               Olha ali a Marli! (Assobia) Ô Marli, vem aqui.

O casal acena e atravessa a rua, na direção da casamata.

               LUCIANO
               Pelo amor de Deus, Rodrigues. Não vai fazer
               besteira.

               RODRIGUES
               Fica frio, militar. (O casal chega) Marli, eu tô
               me sentindo tão sozinho...

               MARLI
               Isso aí a gente resolve rápido.

               SIDMAR
               E eu podia ajudar...

               LUCIANO
               Rodrigues...

               RODRIGUES
               (Para Sidmar) Sidmar, se você botar o pé aqui, eu
               juro que te enfio essa baioneta no rabo, entendeu?

               SIDMAR
               Ai, que morte gloriosa.

               RODRIGUES
               Entra, Marli.

Nesse momento, vindo da casamata, chega JOAQUIM, um milico alto,
alemão, com ar estúpido e desengonçado.

               JOAQUIM
               O que está acontecendo?

               RODRIGUES
               Não te mete, Joaquim.

               JOAQUIM
               Eu não vou permitir que...

               RODRIGUES
               (já entrando, de mãos dadas com Marli) Não enche,
               Joaquim.

               JOAQUIM
               Alto! Alto! Eu vou denunciar, Rodrigues.

               RODRIGUES (OFF)
               (gritando) Experimenta, militar, pra ver o que
               acontece.

               LUCIANO
               (suspirando) Fica frio, Joaquim. Não vale a pena.
               O ronda já passou. Assume o posto que eu vou
               dormir.

Luciano sai, entra no alojamento. Joaquim fica sozinho com
Sidmar.

               SIDMAR
               Não fica triste, querido.

               JOAQUIM
               Some daqui.

               SIDMAR
               Tu é do interior?

               JOAQUIM
               Some.

               SIDMAR
               Aposto que tu é do interior, que nem eu. Eu sou de
               Santana, mas caí na vida em Bagé.

               JOAQUIM
               (tirando o FAL do ombro e engatilhando) Some, já!

               SIDMAR
               Ai, esse barulho, que coisa máscula.

CENA 47 - ALOJAMENTO - INTERIOR/NOITE

No interior do alojamento, Luciano tenta dormir, mas Rodrigues
está trepando com Marli e os dois fazem muito barulho.

               LUCIANO
               Pô, Rodrigues, eu quero dormir.

               RODRIGUES
               Ele quer dormir, Marli. Não faz escândalo.

E os dois se calam por um instante.

               RODRIGUES
               Ai, como o exército é bom!

Marli começa a rir. Luciano vira-se na cama.

CENA 48 - ESCOMBROS DO QUARTEL - EXTERIOR/NOITE

Sidmar está bem perto da casamata. Joaquim está com o FAL
apontado para ele, o olho na mira.

               JOAQUIM
               (destrava o FAL) Se você der mais um passo, eu
               atiro.

               SIDMAR
               Tu não ia fazer isso comigo... Olha, eu não vou
               fazer nada de mais. Eu prometo. A gente não pode
               só conversar?

               JOAQUIM
               Eu tô avisando, paisano, eu tenho instruções
               claras para ...

Mas a pressão do dedo já é suficiente e o FAL dispara. Sidmar é
atingido bem no meio da testa e cai. Luciano vem correndo.
Rodrigues e Marli se vestem, apavorados. Pouco depois, também
chega o sargento-ronda. Todos ficam em volta do cadáver. Joaquim
está branco, em estado de choque. Luciano fica paralisado,
olhando para o corpo.

               RODRIGUES
               Sargento, essa bicha também tentou entrar quando
               eu tava na hora. Eu mesmo alertei o Joaquim para
               tomar cuidado. Inclusive ele já tinha roubado uns
               tijolos.

               MARLI
               (chorando) O Sidmar nunca roubou ninguém.

               SARGENTO
               (para Joaquim) O que aconteceu, soldado?

               JOAQUIM
               (lívido, quase uma estátua) Ele queria entrar. Eu
               matei o cara, sargento.

               RODRIGUES
               Sargento, eu assisti tudo. O cara se jogou em cima
               do Joaquim. (abaixando-se) Inclusive ele tava
               segurando esse tijolo aqui.

Rodrigues pega um dos muitos tijolos no chão. O sargento pega o
tijolo e examina.

               SARGENTO
               Eu vou fazer um relatório. Soldado Joaquim, me
               acompanhe. Soldado Rodrigues, assuma o serviço.

               RODRIGUES
               Sim, senhor.

               SARGENTO
               Não mexam no corpo.

O sargento sai, com o tijolo na mão, acompanhado de Joaquim.

               LUCIANO
               (olhando para o cadáver) O Joaquim errou todos os
               tiros no treinamento. A pior pontaria da
               companhia.

               RODRIGUES
               (acendendo um cigarro e abraçando Marli, que chora
               baixinho) Treino é treino. Guerra é guerra. Na
               guerra o sujeito se supera.

Luciano fica olhando Sidmar sangrar entre os tijolos.

CENA 49 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA

Luciano está em sua mesa numa sala de redação. É um lugar meio
decadente, com obras incompletas, móveis improvisados e velhas
máquinas de escrever. Luciano pega, na gaveta, um saco plástico.
Dentro do saco, um tijolo. O saco está lacrado e tem várias
etiquetas do exército.

               LUCIANO
               O tijolo, prova número um do inquérito policial
               militar número dez mil quatrocentos e trinta e
               seis, barra setenta e nove, que obviamente não deu
               em nada, roubado da sede da auditoria pelo soldado
               Luciano de Almeida.

Luciano põe sobre a mesa um roteiro.

               LUCIANO
               "O Tijolo", roteiro inédito de Luciano de Almeida,
               para caso especial de televisão a ser dirigido por
               Francisco Freire. A Carolina faz a Marli. O Abraão
               pode ser o Sidmar.

Chico pega o roteiro, folheia.

               LUCIANO
               Eu já contei pro Velho, ele achou interessante,
               que é o máximo que ele acha de qualquer coisa. O
               problema é o custo.

               CHICO
               Por que você não dirige?

               LUCIANO
               Por que eu não quero ser diretor, nem jornalista,
               nem trabalhar em televisão.

               CHICO
               E o que você está fazendo aqui?

               LUCIANO
               Juntando dinheiro para abrir uma padaria. Já tenho
               até um sócio uruguaio. Pra abrir uma padaria um
               sujeito precisa de um sócio uruguaio.

Chico acha graça.

               LUCIANO
               É sério.

O VELHO, um sujeito de uns quarenta e cinco anos, aparência
cansada, abre a porta que dá para a sala de redação. Faz um sinal
para Luciano. Ele levanta.

               LUCIANO
               Vamos lá. Cadê a fita?

Chico mostra uma fita de vídeo.

CENA 50 - FAZENDA DE SOJA - EXTERIOR/DIA

Fotos de uma pequena propriedade rural. Uma FAMÍLIA DE COLONOS
alemães posa pra foto em frente da casa. Detalhe da foto mostra
um menino de doze anos, UBIRAJARA.

               CHICO (OFF)
               Em 1968 esta pequena propriedade rural produzia
               milho, mandioca, alface, tomate e batata.
               Ubirajara tinha nove anos.

Imagens da fazenda hoje, coberta de soja.

               CHICO (OFF)
               Dez anos depois, o pai de Ubirajara morreu. A
               fazenda ficou para os cinco filhos, que resolveram
               plantar soja.

Depoimento de UBIRAJARA, hoje, com vinte e poucos anos. Fala dos
custos de produção, das dificuldades em pagar o financiamento
para o banco e da sua decisão de vir para Porto Alegre.

Ubirajara no ônibus, a caminho de Porto Alegre.

               CHICO (OFF)
               Todos os anos, milhares pequenos agricultores
               expulsos do campo vêm para Porto Alegre. Trazem na
               bagagem algumas roupas, nenhum dinheiro e o sonho
               de uma vida melhor.

Ubirajara trabalhando na construção de um prédio. Ubirajara num
bar, com amigos. Ubirajara, a mulher grávida e um filho pequeno,
na frente de um barraco.

               CHICO (OFF)
               Ubirajara mora na Restinga Velha, num barraco de
               uma peça. Sua mulher, Regina, trabalha como
               doméstica. Seu filho Ricardo, de seis anos, vende
               marcela na rua, para ajudar no orçamento. Regina
               está grávida.

Depoimento de Ubirajara: "Eu quero voltar". Edição de vários
depoimentos de COLONOS, no interior, e de MORADORES DA VILA. Os
colonos falam da vontade de vir para Porto Alegre. Os moradores
da vila dizem que querem voltar para o interior.

CENA 51 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA

Luciano desliga o vídeo e tira a fita. Entrega para Chico. O
VELHO está sentado em uma velha escrivaninha, cheia de fitas de
vídeo e papéis. Um jornal está aberto sobre a mesa. Um enorme
cinzeiro está cheio de baganas de cigarro. O Velho acende mais
um. Durante todo o diálogo ele divide a atenção entre Chico e o
jornal.

               VELHO
               (não muito animado) Interessante. Você já sabe o
               salário?

               CHICO
               O Luciano me disse. Tudo bem.

               VELHO
               E o horário?

               CHICO
               Madrugada, tudo bem.

               VELHO
               (para Luciano) O Andrew já terminou a edição?

               LUCIANO
               Deve estar terminando.

               VELHO
               Diz pra ele dar uma chegada aqui.

Luciano sai.

               VELHO
               A audiência do jornal é mínima, mas sempre tem
               alguém que acorda às sete da manhã e liga a tevê.
               O patrocinador principal é uma revenda de
               tratores, o jornal sempre tem matérias de
               agricultura, previsão do tempo, essas merdas. A
               editora chefe é a Dona Miriam Junqueira, conhece?

Chico faz que não.

               VELHO
               Ninguém conhece, nem o marido. Ela dorme às sete,
               chega na tevê às quatro, volta pra casa ao meio
               dia. Ela não dá a mínima pro texto das matérias,
               desde que não tenha três linguodentais fricativas
               na mesma frase. Eu já vi ela trocar a frase "os
               assaltantes são sete" por "os ladrões eram oito".
               É boa gente.

Chico acha graça. Andrew, com Luciano, entra na sala.

               VELHO
               O apresentador do jornal é Rubens Ribeiro, o
               imbecil mais bem penteado da cidade. Boa gente
               também. (pausa) Andrew, este é o Chico.

               ANDREW
               A gente já se conhece da faculdade. Tudo bem?

Cumprimentam-se.

               VELHO
               O Chico vai segurar a outra alça da mala.

               ANDREW
               Já avisou das linguodentais fricativas?

               VELHO
               Já. (para Chico) Passa no departamento de pessoal
               pra acertar tudo. Tem certificado de reservista?

               CHICO
               Tenho.

               VELHO
               Meu pai dizia que tudo que um ser humano precisa é
               um pênis, um emprego e um certificado de
               reservista.

               LUCIANO
               Então tá tudo em ordem.  

Chico fica esperando mais alguma instrução.

               VELHO
               É isso aí, pode ir. (pausa) Você já leu Dante?

Chico faz que não.

               VELHO
               Na porta do inferno estava escrito: "Aos que
               entram, esqueçam suas esperanças".

CENA 52 - VILA DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR/DIA

Seqüência sem diálogos.

Kombi da TV estaciona na frente de um bar, numa vila pobre de
periferia. A kombi é cercada por CRIANÇAS. Chico e Andrew descem
da kombi. Com eles, um CINEGRAFISTA, um OPERADOR DE VT e o
MOTORISTA. O motorista desce e entra no bar. Andrew está de terno
e gravata e segura o microfone. Chico dá instruções ao câmara. Um
CASAL vem falar com Andrew. Andrew reconhece o homem,
cumprimentam-se.

Andrew entrevista o casal. O homem aponta para o esgoto que sai
de uma fábrica, correndo a céu aberto e passando pelas casas.
Chico orienta o cinegrafista, que faz imagens das crianças
brincando no valão.

Os GUARDAS, na portaria da fábrica, não deixam Chico entrar para
fazer imagens. Chico filma o guarda fechando o portão, pondo a
mão na frente da lente.

CENA 53 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA

Prossegue a seqüência sem diálogos.

No monitor da ilha, imagens da vila, das crianças, da fábrica.
Andrew orienta o EDITOR, que edita a matéria. Chico, de pé, ao
seu lado, fica acompanhando o processo. Dona MIRIAM dá uma olhada
desinteressada nas imagens, faz alguma observação e vai embora.
Chico, insatisfeito, sugere uma mudança na edição. Andrew gosta
da idéia e orienta o editor, que opera o equipamento. Agora as
imagens dos guardas no portão aparecem intercaladas com as das
crianças brincando no esgoto. Andrew e o editor comentam que
ficou bom. Chico, no seu canto, fica muito satisfeito.

CENA 54 - COZINHA DE CAROLINA - INTERIOR/DIA

Carolina dá a papinha de José, que agora tem em torno de um ano
de idade. Ela tem cara de muito sono e ele está a mil, fazendo a
maior sujeirada. Chico está sentado ao lado dela. Toma café e tem
os olhos fixos na TV, onde Andrew está apresentando a matéria da
vila, microfone na mão, fábrica ao fundo.

               ANDREW
               ...e é a mesma fábrica que patrocinou (mostrando)
               esta revista de ecologia. Mas aqui, na vida real,
               a fábrica despeja milhares de litros de resíduos
               químicos sobre as casas destas pessoas. A fábrica
               já foi multada e preferiu pagar a multa a tratar o
               esgoto.

Os guardas na portaria da fábrica.

               ANDREW
               (na TV) Tentamos ouvir os responsáveis pela
               fábrica mas eles não quiseram nos receber. Parece
               que aqui a sujeira não está só do lado de fora.

               CHICO
               (para Carolina) Olha só essa edição agora...

José dá um tapão no prato e voa mingau pra tudo que é lado.

               CAROLINA
               José!

Carolina limpa a mesa com um pano.

               CHICO
               Viu só?

Na TV, o apresentador RUBENS RIBEIRO começa a dar a previsão do
tempo.

               CAROLINA
               Ótima matéria, Chico!

               CHICO
               Você não viu a edição.

               CAROLINA
               É um absurdo o que esses caras fazem. Pra
               economizar uns trocados eles jogam o lixo no meio
               das pessoas, destruindo tudo. E depois posam de
               defensores do meio ambiente.

               CHICO
               Você não viu a edição. A edição final sintetizava
               tudo.

Carolina levanta, limpa o rosto de José, enfia o bico na boca da
criatura, lava o prato na pia, faz dez coisas ao mesmo tempo,
quase automaticamente.

               CAROLINA
               Liga pro aeroporto e confirma a chegada.

               CHICO
               Já liguei, confirmado, nove e meia.

               CAROLINA
               Fica um pouco com o José que eu fico pronta em
               cinco minutos. Se o bico cair no chão, lava com
               água do filtro.

O bico cai no chão. Chico pega o bico, lava na água do filtro.

               CHICO
               Tinha uma coisa do movimento da mão do segurança
               juntar com uma zoom rápida no rosto da criança no
               lixo, você não viu...

Chico põe o bico na boca de José. Ele cospe e o bico cai no chão.
Chico faz uma cara de "ai, meu saco", recolhe o bico e lava no
filtro outra vez.

               CHICO
               (muito sorridente, para José) E a culpa é sua,
               seu... analfabeto. Porque é isso que você é: um
               inútil, analfabeto e egoísta. Você sabia que o
               filho de um búfalo quando nasce tem que sair
               caminhando em meia hora? Se ele não levanta
               rapidinho a manada vai embora e ele fica de almoço
               pros coiotes, não tem moleza não. (pausa) Tua mãe
               provavelmente vai te dar papinha até os dezoito.
               Aí você vai procurar outra trouxa que te dê
               papinha. Não pensa que você me engana, não, que eu
               te conheço.

Chico enfia o bico na boca de José. Ele joga o bico no chão.

               CHICO
               Agora azar o seu, garoto.

José começa a resmungar.

               CAROLINA
               (fora de cena) Dá o bico pra ele, Chico!

Chico junta o bico no chão, assopra, passa na camisa e põe na
boca de José.

CENA 55 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA

Chico e Carolina, ela com José no colo, entram no aeroporto.
Caminham rápido pelo saguão.

               CHICO
               O vôo já deve ter chegado.

               CAROLINA
               Ela deve estar nos esperando. (Aponta em frente)
               Olha lá o Luciano.

               CHICO
               (apertando o passo) Quem é aquela figura?

               CAROLINA
               Não sei.

Eles chegam perto de Luciano e de sua acompanhante, que veste um
traje "krishna" completo. Só então Luciano e Chico olham direito
para o rosto da "krishna": é Lisa. Os dois ficam completamente
patetas.

               LISA
               (sorrindo) Hare-krishna.

               CAROLINA
               (tentando aparentar normalidade, mas ainda
               desnorteado) Lisa... Ôi... Hare... Hare-krishna.

Chico, depois de um momento de hesitação, decide cumprimentar à
maneira ocidental, com um beijo, mas Lisa o detém com um gesto.

               LISA
               (sempre sorrindo, meio beatífica) Desculpe, Chico,
               mas o beijo é maia. Nós não somos casados.

Chico fica sem saber o que fazer.

               CHICO
               Apertar a mão pode?

               LISA
               (sorrindo) Pode.

Os dois apertam as mãos.

               LISA
               Que bom que vocês vieram. (pausa) Vocês podem me
               levar até o templo?

               CHICO
               Claro.

Os rapazes pegam as bagagens de Lisa, muito esquisitas. As duas
meninas vão na frente. Luciano segura Chico pelo braço, deixando
as duas se distanciarem um pouco.

               LUCIANO
               Ela vai morar num templo, e não beija mais
               ninguém?

               CHICO
               Pelo que eu entendi, só se for marido.

               LUCIANO
               Por Deus, essa é a maior demonstração de loucura
               que eu já vi na vida.

As duas meninas notam que Luciano e Chico ficaram pra trás.
Carolina faz sinais, chamando-os. Os dois vão correndo até elas.

CENA 56 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE

Chico, Luciano, Carolina e Lisa estão sentados em volta de uma
mesa, cabeça baixa. Silêncio absoluto, como se estivessem num
ritual religioso. O apartamento é decorado com tudo que há de
mais astral: krishnas, budas, macramês e batiques, samambaias e
George Harrison. Lisa já não veste a roupa krishna.

               CHICO (OFF)
               Um dia a Lisa me contou que inventava os sonhos
               pra contar para o analista. Ela ficava muito
               ansiosa por não lembrar dos sonhos e começou a
               inventar, a caminho da sessão, no táxi. Ela achava
               que dava no mesmo, que inventar pecados é quase o
               mesmo que cometê-los. Quase.

CENA 57 - CONSULTÓRIO DO ANALISTA DE LISA - INTERIOR/DIA

Lisa está sentada numa poltrona de couro e gesticula muito,
contando uma história. O ANALISTA escuta e fala algumas coisas.

               CHICO (OFF)
               O problema é que a maioria dos sonhos se passava
               num táxi, sempre com o motorista como personagem.
               O analista começou a achar que ela tinha uma
               fixação em táxi.

CENA 58 - BANCA DE REVISTAS - EXTERIOR/DIA

Lisa compra uma revista numa banca. O nome da revista é "BONS
SONHOS".

               CHICO (OFF)
               Aí ela comprou uma revista de interpretação de
               sonhos pra decorar um sonho qualquer que era dado
               como exemplo, pra contar pro analista.

CENA 59 - RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA

Lisa caminha nua pela rodoviária. Tenta se esconder com um
jornal. As PESSOAS passam por ela mas não prestam atenção. Um
GUARDA se aproxima.

               CHICO (OFF)
               Ela leu e contou que tinha sonhado que estava nua
               na rodoviária quando um guarda aparecia e pedia
               uma informação. O guarda queria saber onde ele
               podia pegar o ônibus para Caxias.

CENA 60 - CONSULTÓRIO - INTERIOR/DIA

Lisa termina de contar o sonho pro analista.

               CHICO (OFF)
               O analista disse que a análise estava mexendo com
               ela, que ela estava se sentindo exposta, que eles
               precisavam falar sobre o pai dela. A revista disse
               que sonhar com guarda é sinal de sorte e que
               sonhar com ônibus é camelo.

CENA 61 - BANCA DE BICHO - INTERIOR/DIA

Lisa conversa com o CAIXA DO BAR. Ele anota o palpite dela no
bicho: camelo.

               CHICO (OFF)
               Ela jogou uma grana no camelo, invertido do
               primeiro ao quinto. Alguma coisa dizia que o fato
               de ela ter escolhido especificamente aquele sonho
               na revista tinha algo a ver com algo, sei lá.

CENA 62 - CASA DE CÂMBIO - INTERIOR/DIA

Lisa deixa cair alguns dólares. Vai juntar e é ajudada por um
homem de mãos fortes, braços fortes e cabeça raspada. Ele é
KRISHNA.

               CHICO (OFF)
               Deu porco, mas ela conheceu um uruguaio na casa de
               câmbio onde foi trocar os dólares para jogar no
               bicho. O cara era krishna. Eu disse que achava
               estranho um krishna numa casa de câmbio mas ela
               não prestou atenção. Ela largou o analista.

CENA 63 - CASA DE LISA -  INTERIOR/NOITE

Os quatro em volta da mesa, ainda em silêncio.

               CHICO (OFF)
               Eles foram juntos pra Índia. Aí ela teve uma
               infecção por estafilococos e voltou pro Brasil.
               Duas semanas longe do uruguaio e ela deixou de ser
               krishna. Ela diz que lembra de todos os sonhos.
               Estes dias ela sonhou com um cavalo e jogou no
               bicho outra vez. Deu avestruz. É muito difícil
               ganhar na loteria.

               LUCIANO
               (gritando) STOP!

Os quatro, que estavam estáticos, se agitam muito.

               LISA
               Não acredito! Você conseguiu bicho com "ene"?

               LUCIANO
               Bicho com "ene" é fácil. Difícil foi novela com
               "ene".

               CAROLINA
               Nina.

               CHICO
               Ene? Não era "Eme"?

               LISA
               Não, Chico, tá brincando que você fez tudo com
               "Eme"! Eu falei dez vezes, e-ne, e-ne, e-ne!
               Acorda, Chico! Acorda!

CENA 64 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE

Chico está na central técnica, com cara de sono, mexendo nos
controles da mesa. O relógio na parede marca 3:47. Lisa, a um
canto, observa tudo. Chico aperta os olhos e olha para o monitor.

CENA 65 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE

Carolina, interpretando "Alice no país das maravilhas", agita os
braços na frente de um fundo azul.

               CAROLINA
               Dinah vai sentir muito a minha falta esta noite,
               eu acho...

No monitor, graças ao "chroma-key", Carolina-Alice parece estar
caindo em um poço sem fundo.

               CAROLINA
               Dinah, eu queria que você estivesse comigo aqui.
               Não tem nenhum rato no ar, infelizmente, mas bem
               que você podia pegar um morcego...

De repente, o fundo do "chroma-key" termina, e Alice fica
sacudindo os braços no ar sobre as imagens da reportagem do cano.

CENA 66 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE

Lisa, bastante divertida, sacode o braço de Chico, que está
dormindo sentado, em frente ao monitor. Chico cabeceia e olha
para o monitor, assustado.

CENA 67 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE

Carolina, sem saber o que se passa, continua agitando os braços e
dando o texto de Alice.

               CAROLINA
               ...é igualzinho a um rato, sabe? Gatos comem
               morcegos? Gatos comem morcegos?

               CHICO (OFF)
               (no microfone) Parou. Terminou a base do chroma.
               São quase quatro da manhã, eu reedito depois.
               Ficou ótimo.

Luciano entra em cena, seguido por Andrew. Luciano tem um baseado
na mão e faz sinais para Chico, apontando para o lado. Carolina e
Andrew morrem de rir.

               CHICO
               Que é isso?

Chico vê que no monitor onde está escrito "PROGRAMAÇÃO" surge a
imagem de Luciano. Percebe que a TV está no ar.

               CHICO
               (assustado, grita no comunicador) Porra, Luciano,
               você é louco! Desliga está merda, Luciano!

               LISA
               Que foi?

               CHICO
               (levantando) Ele ligou o transmissor. A tevê tá no
               ar! (sai)

Lisa fica rindo. Luciano pega o livro "Alice no país das
maravilhas" na mão, dá uma tragada e segura a fumaça nos pulmões.

               LUCIANO
               No ar, zê-ipslon-cá-cete, tevê Lisão, canal Cem.
               (Abre o livro, procura um trecho.) "Era briluz. As
               lesmolisas touvas roldavam e relviam nos
               gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas e os
               momirratos davam grilvos". E agora com vocês,
               nosso comentarista comunista e pobre, Andrew Silva
               Terceiro.

Luciano passa o baseado para Andrew. Ele dá uma tragada e vem
para frente da câmara.

               ANDREW
               Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades
               democráticas e por uma melhor distribuição de
               maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la
               marijuana jamás!

Chico entra no estúdio e desliga a luz. Luciano entra em cena e
continua a transmissão clandestina.

               LUCIANO
               Camaradas! Mercenários a soldo do capitalismo
               ianque estão invadindo nossos estúdios. Querem
               calar a nossa voz, camaradas! A Tele Rebelde,
               canal nove, uma emissora da Fundação Raul
               Seixas...

Luciano fica falando mas não se ouve o que ele diz. Chico cortou
o som dos microfones. Chico entra em cena, ainda irritado,
gesticulando muito. Luciano estende o baseado para Chico. Ele
pára de discutir, pega o cigarro e fuma.

CENA 68 - SALA DE ESPERA DA CRECHE - INTERIOR/DIA

Chico está sentado num banquinho, numa sala de espera. A
decoração infantil é supercolorida. As mesinhas e banquinhos dão
a impressão de que Chico cresceu ou está tendo uma alucinação.

               CHICO (OFF)
               "Muito estranhíssimo, muito estranhíssimo, gritou
               Alice. Eu estou crescendo como um telescópio.
               Adeus pés".

Chico levanta-se.

               CHICO (OFF)
               Quartas-feiras Carolina tinha ensaio até mais
               tarde e eu buscava o José na escolinha.

A PROFESSORA surge com José, que agora tem uns quatro anos. Chico
pega José pela mão e sai.

               CHICO (OFF)
               Este era um dos meus poucos rituais, eu não ia à
               missa desde o primário. De vez em quando eu também
               ia ao teatro, ver a Carolina.  

CENA 69 - FRENTE DA CASA DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA

Chico acompanha José até a porta de casa. Carolina abre a porta,
abraça José.

CENA 70 - CENÁRIO DE TEATRO - INTERIOR/NOITE

Cenário da peça "Seis personagens à procura de um autor".
Carolina, com um boneco no colo, faz o papel da MÃE. Abraão,
aquele que era professor de filosofia, faz o DIRETOR.

               CAROLINA
               (desesperada) Meu filho! Meu filho! (sai gritando)
               Socorro! Socorro!

               DIRETOR
               Feriu-se? Feriu-se de verdade?

               PRIMEIRA ATRIZ
               (entrando em cena pela direita, penalizada)
               Morreu! Pobre menino! Morreu! Oh! Que coisa, meu
               deus...

               PRIMEIRO ATOR
               (entrando pela esquerda, rindo) Morto o quê!
               Ficção, ficção, não acredite!...

               OUTROS ATORES
               (gritando) Ficção? Realidade! Realidade! Está
               morto! Não! Ficção! Mas que ficção? Realidade!
               Ficção!

               ABRAÃO
               (interrompendo, aos gritos) Ficção, realidade! Vão
               todos para o diabo que os carregue! Luz! Luz! Luz!

O teatro inteiro se ilumina. Chico, Lisa e Andrew estão na
platéia.

               ABRAÃO
               Ah! Jamais me tinha acontecido coisa semelhante!
               Fizeram-me perder o dia. Podem ir, podem ir. Que
               mais querem fazer agora? Muito tarde para
               recomeçar o ensaio. Até logo à noite!...

Os atores saem todos, cumprimentando o diretor. Ele fica só.

               ABRAÃO
               Ó eletricista! Apague tudo!

O teatro cai na mais densa escuridão.

               ABRAÃO
               O que é isso? Deixem-me acesa ao menos uma
               lâmpada, para eu ver onde ponho os pés!

De repente, por trás do telão branco, como por erro de ligação,
acende-se um refletor que projeta as sombras dos Personagens. O
diretor se assusta e foge do palco. A luz volta ao normal. Cai o
pano. O público aplaude muito. Os atores surgem no palco.
Carolina está muito feliz, cansada e bonita.

CENA 71 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE

No camarim lotado, clima de alegria, confusão, todos falando ao
mesmo tempo. Chico cumprimenta Abraão e lhe apresenta Andrew. Os
atores todos gritam muito. Chico abraça Carolina.

CENA 72 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE

Chico, Andrew, Carolina e Abraão comem e conversam. Abraão e
Andrew embarcaram num papo seríssimo.

               ABRAÃO
               Todo teatro é teatro político.

               ANDREW
               Eu falo de uma coisa mais popular, mais
               compreensível.

               ABRAÃO
               A idéia de uma dramaturgia popular e outra erudita
               é ultrapassada e preconceituosa. Shakespeare
               sempre foi popular. Pirandello pode ser muito
               popular. Só depende da mídia.

               ANDREW
               Eu acho, que por mais que se aperfeiçoem as
               mídias, satélite, computador, a revolução vai ser
               anunciada num panfleto, numa pichação de parede.
               Você acha que Pirandello pode ser eficiente para
               combater o bombardeio de alienação que a televisão
               despeja sobre as pessoas todos os dias?

               ABRAÃO
               Não menos eficiente que Brecht ou Plínio Marcos.
               Meu amigo, eu fiquei metade da minha vida
               esperando uma revolução. A tal revolução ia chegar
               um dia, para julgar os vivos e os mortos. Eu não
               sou adventista. Eu acho que é possível fazer
               coisas que melhorem a vida das pessoas. Teatro é
               só uma delas. Eu faço o que posso e pra mim isso é
               que é política: fazer o que você pode. Fazer. É a
               melhor maneira de dizer. Bertold Brecht.

CENA 73 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE

Um vidro cheio de ovos de conserva em cima de um balcão, num bar
de vila. Andrew e um CASAL conversam numa mesa. Eles falam baixo,
para não dar bandeira.

               HOMEM
               O Lima ficou cuidando os carros. Passou um
               camburão e nós largamos as pás, ficamos encostados
               na cerca. Eles passaram reto, nem aí.

CENA 74 - RUA DA VILA - EXTERIOR/NOITE

TRÊS HOMENS cavam um buraco ao lado da rua. Um QUARTO HOMEM fica
na cerca da casa, cuidando a rua.

               ANDREW (OFF)
               Que horas eram?

               HOMEM (OFF)
               Onze, onze e dez. Mas o lugar é claro, tinha que
               ser pra encontrar o cano. É perto do poste. Quando
               a gente encontrou o cano é que a coisa engrossou.
               Depois da água jorrar tinha que ser rápido, não
               dava mais para parar. Uma lasca do cano pegou na
               perna do Mancha, um corte feio.

Os três lutam contra o barro e a força da água, tentando encaixar
um cano no cano quebrado.

               HOMEM (OFF)
               Tinha água pra tudo que é lado. O nosso cano tinha
               uma bitola maior e o cotovelo ficou curto. No meio
               daquele barral, pra acertar o cotovelo foi um
               parto. Depois foi frouxo. Tapamos a folga com uma
               corda e fomos ligando os canos, eu e o Lima. O
               Pedrão e o Mancha taparam o buraco. Depois foi
               tapar a vala, encaixar outro cotovelo e distribuir
               a água, prum lado e pro outro. No começo a água
               saiu barrenta, depois limpou.

               ANDREW (OFF)
               E agora? Não apareceu ninguém pra reclamar?

CENA 75 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE

No bar, Andrew continua entrevistando o casal.

               HOMEM
               Muito cedo. Mas os carinhas já devem ter percebido
               que a força diminuiu lá pra cima. Leva uns dias.

               MULHER
               A gente tá organizado em turnos, criança também.
               Quando eles vierem a gente chama a imprensa, faz
               barulho. Não sei se vêm alguém. Vocês vêm?

CENA 76 - RUA DA VILA - EXTERIOR/DIA

Algumas PESSOAS carregam faixas "QUEREMOS ÁGUA". FUNCIONÁRIOS da
companhia de água cavam no mesmo lugar, sob a proteção da
POLÍCIA. Andrew, Chico e um CINEGRAFISTA estão lá. As pessoas
gritam palavras de ordem enquanto Andrew tenta entrevistar o
CHEFE DOS FUNCIONÁRIOS.

               CHEFE
               Eu faço o que me mandaram. Não entendo nada de
               política.

               ANDREW
               Quem foi que mandou?

               CHEFE
               O meu chefe. Quer ver a ordem?

CENA 77 - CASA DO CHEFE DO CHEFE - INTERIOR/DIA

O sujeito, provavelmente DIRETOR DA COMPANHIA de água, dá uma
entrevista para Andrew na frente de casa. Enquanto ele fala,
Chico percebe que uma MENINA molha a grama do jardim da casa do
cara.

               DIRETOR
               A distribuição de água obedece a um planejamento
               técnico rigoroso. Nós não podemos permitir que os
               moradores interfiram na rede programada conforme
               sua própria vontade.

Chico chega na orelha do cinegrafista.

               CHICO
               Faz o foco na menina do jardim.

IMAGEM DE VíDEO. O Diretor fica completamente fora de foco. O
foco é na menina, molhando a grama, feliz, com a mangueira.

               DIRETOR
               A água é um direito de todos e deve ser
               distribuída democraticamente.

Duas crianças, de pé no chão, numa rua coberta de pó.

               DIRETOR (OFF)
               Democraticamente...

CENA 78 - SALA DO VELHO - INTERIOR/DIA

Chico e Andrew estão sentados na frente da mesa do Velho, que
mostra um ofício.

               VELHO
               Essa é a melhor parte. (lendo) "e no momento em
               que este órgão público se alia a esta emissora
               numa grande campanha publicitária, é
               incompreensível o tratamento desonesto a que foi
               submetido nosso diretor técnico na referida
               reportagem, etcetera, etcetera". Eles
               provavelmente vão cancelar a campanha. Vinte mil
               dólares. E desligaram o cano, de qualquer jeito.

               CHICO
               E aí?

               VELHO
               Pediram a cabeça dos dois. O coronel já me ligou
               três vezes. Chamou a edição de "molecagem".

               CHICO
               Velho, dá um resumo.

               VELHO
               Tudo bem, eu segurei essa. Só que matérias desse
               tipo eu quero ver antes de ir ao ar.

               CHICO
               De que tipo?

               VELHO
               Interessantes.

               CHICO
               Você ia cortar a matéria?

               VELHO
               Não sei, acho que não.

Chico e Andrew levantam pra sair da sala.

               CHICO
               Regra número um: toda reportagem é contra alguém.
               O resto é publicidade.

               VELHO
               Regra dois: a publicidade paga o nosso salário.

CENA 79 - SAGUÃO E ELEVADOR DE EDIFÍCIO - INTERIOR/DIA

Um edifício moderno e luxuoso no centro da cidade. Chico entra no
elevador.

CENA �� - SEDE DA BRASETIC - INTERIOR/DIA

Chico chega ao último andar. Uma placa na parede: "BRASETIC
CONSTRUÇÕES". Chico entra numa pequena ante-sala. LAURA, a
recepcionista, é elegante e muito bonita. Tem uns trinta anos,
mas aparenta menos.

               LAURA
               Boa tarde, doutor Francisco.

               CHICO
               Oi, Laura. O Emílio já chegou?

               LAURA
               Ele está na sala do doutor Ernâni.

Ela usa o interfone. Logo depois, introduz Chico na sala, onde
estão ERNÂNI (pai de Chico) e Emílio. Laura sai, fechando a porta
atrás de si.

               CHICO
               A Laura é MUITO gostosa. Ôi, pai. Ôi, Emílio.

               EMÍLIO
               (constrangido) Fala baixo, ela pode ouvir.

               CHICO
               E você pensa que eu já não disse isso pra ela?

               ERNÂNI
               (sorrindo, meio sacana) Ela é muito competente.
               Vocês estão se dando bem, não é, Emílio?

               EMÍLIO
               (sem jeito) Muito bem. Quer dizer, ela é muito
               competente. (envergonhado) Bom, vocês me dão
               licença?
 
Emílio sai da sala. Chico aproxima-se da mesa do pai, que é
enorme. Na parede da sala, grandes fotos que mostram obras de
grande porte: estradas, hidroelétricas, edifícios públicos, etc.

               ERNÂNI
               E aí, filho, veio pra assinar o teu contrato?

               CHICO
               Pai, eu já tenho emprego, esqueceu? Oito horas por
               dia.

               ERNÂNI
               Quanto você ganha?

               CHICO
               Eu não discuto o meu salário.

               ERNÂNI
               Aquilo não é salário, você não tem emprego. Aqui,
               além de ganhar decentemente, você vai contribuir
               para que a empresa cresça. Quatro por cento das
               ações estão no teu nome, você esqueceu?

               CHICO
               (levantando-se) Eu não quero ação nenhuma. Você
               ainda espera que eu, um dia, chegue aqui nessa
               mesa e diga "Pai, eu assumo tudo. Vai pra casa
               descansar que eu cuido do império da família".

               ERNÂNI
               Eu não espero nada. Tô te oferecendo um trabalho.
               Se não quiser tudo bem.

               CHICO
               (de pé, junto às primeiras fotos da parede) Que
               obra é essa?

               ERNÂNI
               Uma estação de tratamento de água em Brasília.

               CHICO
               Quem era o presidente na época?

               ERNÂNI
               Sessenta e cinco? O Castelo Branco.

               CHICO
               (apontando outra obra) E essa? (lendo) Avenida
               Tiradentes, em Goiânia. Obra federal. Quem era o
               presidente?

               ERNÂNI
               Acho que o Costa e Silva. Por que este interesse?
 
               CHICO
               (apontando outra obra) E essa?

               ERNÂNI
               Isso é uma rede de esgotos em Belém.

               CHICO
               Obra federal. Quem era o presidente? O Médici.
               (apontando outras fotos) Isso aí é um hospital de
               Campo Grande. Geisel. Essa aí também tem a data:
               Figueiredo. Esta é mais nova, rede de esgotos, em
               São Luiz. Sarney.

               ERNÂNI
               E aí?

               CHICO
               Pai, só me responde duas coisas: primeiro, como
               você conseguiu se dar bem com todos os governos
               que o Brasil teve desde o Jango; segundo, por que
               você botou a Laura pra trabalhar com o Emílio.

               ERNÂNI
               (ri) Ela é eficiente. E eu comecei a trabalhar pro
               governo com o Juscelino.

               CHICO
               E talvez o Emílio acabe comendo ela.

               ERNÂNI
               Talvez. Seria bom pra ele. Ela é discreta.

               CHICO
               E seria bom pra ele, que é tão tímido. Pai, você é
               um grande calhorda. (indo em direção à porta) Mas
               eu te amo.

               ERNÂNI
               Vê se liga pra tua mãe de vem em quando.

               CHICO
               Eu ligo.

CENA 81 - REPORTAGEM - INTERIOR/NOITE

Uma reportagem, em vídeo, que Chico e Andrew fizeram sobre
Abraão. Cenas de Abraão se maquilando, no palco, dando aulas.

               ABRAÃO (OFF)
               Eu nem era comunista. Eu só não gostava do que os
               militares faziam: torturar gente, prender músicos,
               proibir filmes. E eu fazia teatro, dava aula de
               filosofia, estas coisas. (...) Os caras que me
               torturavam me chamavam de "judeu!", "veado!",
               "atorzinho!". Eles me torturavam por ser tão
               diferente deles.

Abraão, sentado no cenário da peça, termina de tirar a maquiagem.

               ABRAÃO
               Tinha um lado irônico: era tudo verdade, eu era
               mesmo um atorzinho veado e judeu. Mas não era
               engraçado. (...) Eu continuo querendo mudar o
               mundo, eu continuo achando que a mudança se faz
               por ação política, organizada, e também por ação
               política individual, eu continuo sendo...
               esquerdo. Só que eu quero me reservar o direito,
               neste momento, de não seguir incondicionalmente a
               opinião da maioria. E aí fica difícil fazer
               política partidária.(...) Tem uma frase no
               Orlando... "eu estou crescendo. Estou perdendo
               algumas ilusões. Talvez para adquirir outras".
               Tomara que sim.  

CENA 82 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE

Chico desliga o VT. O Velho fica olhando para o monitor apagado.
Chico e Andrew ficam esperando uma resposta do Velho.

               VELHO
               (muito sério) Interessante. Muito interessante. Só
               que não vai ao ar.

Chico ri, como quem não acredita. Andrew não esboça uma reação.

               CHICO
               Por quê, Velho?

               VELHO
               (levantando) Chico, por favor, não vamos começar
               uma conversa adolescente a esta hora. Não vai
               porque não vai, você é um bom jornalista, sabe por
               que não vai.

               CHICO
               Não, Velho, eu não sou um bom jornalista. Aliás,
               eu sou um péssimo jornalista. Não vai porque ele é
               veado, ator ou judeu?

               VELHO
               Ele fala que os militares no governo torturavam
               gente... Não é momento de radicalizar com os
               militares, você sabe disso.

Andrew ri. Chico guarda a fita, entrega na mão do Velho.

               CHICO
               Tudo bem, Velho. Mas eu tô fora. Eu gasto o meu
               salário em gasolina pra chegar aqui. Já aprendi o
               que tinha pra aprender nessa tevê. Eu vou sair e
               botar a boca.

               VELHO
               Onde? No bar? Ou no jornal do sindicato? Chico,
               vai dormir.

               ANDREW
               Como é que você se conforma com um papel desses,
               Velho?

               VELHO
               Da mesma maneira que vocês: eu sou pago pra isso.

Andrew levanta, começa a pegar suas coisas, papéis, livros.  

               ANDREW
               Eu não. Não mais.

               VELHO
               Não seja ridículo, Andrew. Vocês têm que, pelo
               menos, acabar de editar o jornal. Isso não é
               profissional.

               ANDREW
               Então eu não sou profissional. Sabe qual é o seu
               problema, Velho? É que você cansou. Cansou, de
               tanto levar porrada, e resolveu colaborar com o
               inimigo. Tudo bem, dá pra compreender. Mas eu
               ainda nem comecei e não vou me submeter aos seu
               critérios nazistas. Eu tô fora.

Andrew sai. Chico senta, fica olhando para o Velho.

               VELHO
               E você Chico? Vai pegar ou vai continuar? O prêmio
               está acumulado em dez milhões. O carro vale
               quarenta milhões...

               CHICO
               Deixa de ser cínico, Velho.

               VELHO
               Deus me livre! Ser cínico é que me faz suportar
               idiotas como vocês dois. O Andrew nem gosta deste
               Abraão. Disse que ele era um desbundado. E você
               também, no fundo, tá cagando pra esse Abraão, você
               quer é ganhar um premiozinho qualquer e comover
               meia dúzia de donas de casa que acorda cedo pra
               fazer café pro marido e depois não consegue
               dormir. "Ele foi torturado? Pobrezinho..."
               Ninguém vê a merda deste jornal às sete e meia da
               manhã nessa tevê de merda, Chico, o Ibope de vocês
               é traço! Não se faz merda de revolução nenhuma
               dando traço no Ibope.

O Velho vai saindo. Chico senta na cadeira do editor. Apóia a
cabeça com a mão.

               VELHO
               Termina de editar o jornal e vai pra casa. Amanhã
               a gente conversa sobre o "Vida Comum".

               CHICO
               "Vida Real".

               VELHO
               Ou isso, sei lá que programa é esse. Dá pra fazer
               sem o Andrew?

               CHICO
               Não sei.

               VELHO
               Ele não te falou que recebeu uma proposta pra
               trabalhar numa rádio, falou? Três vezes o salário
               daqui.

Chico fica surpreso, faz que não, com um gesto.

               VELHO
               Ele quer sair daqui dando uma de ofendido. E você
               quer perder o emprego, quer que eu arrisque o meu
               emprego pelas bichices de um ator.

               CHICO
               Você esqueceu de dizer que ele é judeu.

               VELHO
               Podia ser pior. Ele podia ser negro.

CENA 83 - EDIFÍCIO DE CHICO - EXTERIOR/NOITE

Chico chega em casa, muito cansado. Lisa está sentada na escada
do edifício, evidentemente deprimida. Ela levanta e abraça Chico.

               CHICO
               Quê que houve?

               LISA
               Minha mãe. Levaram ela pra clínica.

               CHICO
               Tua mãe? Que absurdo! Vamos lá.

E faz meia-volta, carregando Lisa, disposto a partir para a
clínica.

               LISA
               (fazendo Chico parar) Não... é melhor não. Deixa.
               Amanhã a gente vai lá.

               CHICO
               Vamos tirar tua mãe de lá, Lisa, se ela tá mal, só
               vai ficar pior. Eles vão enfiar um monte de
               calmantes na velha, e quando ela acordar vão dar
               mais um monte de calmantes, e todo o dia a mesma
               coisa.
               
               LISA
               (irritada) O que você entende da vida da minha
               mãe? Nada. E da minha vida? Nada. Eu não vim aqui
               pedir opinião, eu vim aqui... (Fica indecisa e
               depois decide ir embora.) ...eu nem sei por que eu
               vim aqui.

Lisa desce as escadas, vai sair do prédio, desiste. Senta na
escada.

               LISA
               Eu não tenho pra onde ir. (pausa) E fui eu que
               chamei os caras.

               CHICO
               Você mandou internar sua mãe?

               LISA
               Mandei.

CENA 84 - FESTA DE ANIVERSÁRIO - EXTERIOR/DIA

Edição de fotos. Dilma, a mãe de Lisa, bem mais jovem, com Lisa
no colo, com AMIGOS, brincando.

               LISA (OFF)
               Tudo o que a minha mãe me deu, depois ela tirou.
               Toda a minha infância, eu achava que ela era a
               única mãe legal do mundo. Nunca, nunca, eu quis
               ter um pai de verdade. Eu gostava de todos os pais
               que passaram na minha casa. Porque eles estavam
               com a minha mãe, e a gente se divertia junto.
               Quando eu cresci, achei que ela também seria a
               melhor amiga que eu poderia ter. E ela também
               achou isso. E deixou de ser mãe de repente. E
               começou a me tirar tudo. Tirava minhas roupas.
               Roubava minha maquilagem. Tomava todas as drogas
               que eu levava pra casa. Tentou me tirar um
               namorado.

CENA �� - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Lisa está deitada. Chico está sentado na cama, ao seu lado.

               LISA
               No começo, eu achava tudo legal. Ninguém tinha uma
               mãe como aquela. Uma mãe que se preocupava quando
               NÃO tinha maconha na minha gaveta. Mas depois
               ficou chato. Muito chato. Às vezes parecia que eu
               era a mãe dela. E ser mãe é chato. (pausa) É muito
               fácil dizer que não existe loucura, que não se
               deve internar alguém só porque é diferente dos
               outros. Outra coisa é ter essa diferença dentro de
               casa.   

CENA 86 - CASA NÃO IDENTIFICADA - INTERIOR/NOITE

Uma GAROTA, segurando uma boneca, está sentada no chão, no canto
da sala, quase embaixo da mesa. Ela tem um olhar assustado e se
agarra à boneca, tudo muito melodramático. No centro da sala, a
MÃE abraça um HOMEM de terno e gravata, barba mal feita. Eles
riem muito. A mãe segura uma garrafa de gim.

               CIÇA (OFF)
               No começo eu gostava dos homens que ficavam com a
               minha mãe. Porque eles estavam com a minha mãe, e
               a gente se divertia.

CENA 87 - CENÁRIO "VIDA REAL" - INTERIOR/NOITE

Uma mulher, CIÇA, óculos escuros e lenço no cabelo, fala e chora,
secando as lágrimas com um lenço.

               CIÇA
               Eu achei que ela também seria a melhor amiga que
               eu poderia ter. (chora) E então ela deixou de ser
               mãe e passou a ser minha rival. E começou a me
               roubar tudo. Roubava minhas roupas. Roubava minha
               maquilagem. Tomava todas as drogas que eu levava
               pra casa. Tentou me tirar um namorado. (chora) Foi
               horrível.

A Mulher está sentada numa cadeira giratória e há um pequeno
PÚBLICO, umas trinta pessoas, ouvindo a entrevista. Algumas
pessoas choram, emocionadas. A luz torna-se dramática. Ouve-se a
voz de um APRESENTADOR, fora de cena.

               APRESENTADOR
               Nós não estamos aqui para julgar, nós não estamos
               aqui para chocar. Nós estamos aqui para contar a
               história de pessoas como você, para mostrar, sem
               disfarces, os conflitos e os dramas da "VIDA
               REAL"! (sobe música)

Entra vinheta eletrônica: VIDA REAL. Direção e Produção: CHICO
FREIRE.

Chico entra no estúdio, roteiro na mão. A Mulher entrevistada
tira os óculos, seca os olhos.

               CHICO
               Muito bom, Ciça, muito verdadeiro. Aquela história
               da rival foi caco, mas tudo bem.

Ciça pega o roteiro, no chão.

               CIÇA
               Não falava em rival? Desculpe, eu achei que podia.

               CHICO
               Tudo bem, ficou legal. Quantos quadros a gente já
               gravou?

Carolina está no estúdio, confere uma planilha.

               CAROLINA
               Seis. Este foi o sexto.

               CHICO
               Tá bom, amanhã a gente continua. Tem mais alguma
               coisa hoje?

               CAROLINA
               Luciano tá te esperando.

               CHICO
               (lembrando) O clipe, eu tinha me esquecido. Você
               vai?

               CAROLINA
               Você disse que não precisava, eu não chamei babá.
               Eu não posso levar o José, posso?

               CHICO
               Melhor não.

CENA 88 - ESTÚDIO DE ENSAIOS - INTERIOR/DIA

Um estúdio de ensaios caseiro. Lisa empunha uma guitarra à frente
de um microfone. Mais dois caras: um BAIXISTA e um BATERISTA.
Eles têm cabelos curtos e se vestem de preto. Chico e Luciano
gravam um clipe da banda. Chico faz câmara e Luciano segura um
pau-de-luz. Lisa puxa a introdução da música, que é bem simples,
mas tem uma melodia interessante. O baixista entra. Logo depois,
o baterista. Ficam tocando juntos por uns quinze segundos. Lisa
não está satisfeita. Olha para seus companheiros de banda, que
não erguem os olhos para ela. Lisa pára de tocar, evidentemente
contrariada. Mas os dois continuam. Ela espera um pouco, cada vez
mais puta-da-cara. E então dá uma porrada com a palheta nas
cordas. Eles não reagem. Lisa dá mais umas três ou quatro
porradas. Eles continuam tocando. Ela tira a guitarra do ombro e
a joga no chão. Vai até o amplificador do baixo e tira o plug.
Barulho típico. O baterista pára de tocar. O baixista tá puto.
Chico continua gravando tudo.

               BAIXISTA
               Me diz uma coisa, cara: você quer queimar o ampli?
               

               LISA
               Eu já disse que essa música não é assim.

               BATERISTA
               Puta embalo, Lisa. Tava tri punk.

               LISA
               (para Chico) Esse sujeito é a prova de que o uso
               excessivo de drogas destrói os neurônios. (para o
               baterista) Essa música NÃO É PUNK. Quantas vezes
               eu tenho que dizer? Essa banda NÃO É PUNK.

               BATERISTA
               Eu não vou fazer som astral.

               LISA
               Porra, que merda vocês têm na cabeça? Eu não quero
               fazer música astral, nem música punk, nem merda
               nenhuma. Eu não vou seguir merda nenhuma de
               tendência, não vou copiar banda inglesa, nem
               americana, nem aquela merda de banda da Finlândia.
               Eu quero que a Finlândia se fôda!

Lisa levanta a guitarra sobre os ombros e a atira com toda a
força em cima da bateria, quase acertando o baterista. Fica todo
mundo parado, espantado com o ataque de Lisa. Ela se acalma.
Chico continua gravando.

               LISA
               Desculpa. Se estragou alguma coisa, eu pago.

               LUCIANO
               Vamos embora, Lisa.

               BATERISTA
               (verificando a bateria) Você tá maluca? Pirou?

               LISA
               Não. Foi só uma cópia. E mal feita, ainda por
               cima. Podem ficar com guitarra por enquanto.
               Tchau. Valeu. (E sai.)

O baterista continua verificando o instrumento. Luciano vai até a
janela e abre uma fresta, pra ver Lisa saindo de casa. Chico, que
continuava gravando tudo, desliga a câmara.

               CHICO
               Acho que perdi o foco quando ela jogou a guitarra.
               O resto ficou legal.

               LUCIANO
               (baixinho) Acho que eu tô apaixonado.

CENA 89 - REDAÇÃO - INTERIOR/DIA

Luciano trabalhando na redação da TV. Ele consulta um mapa do
céu, verificando a posição das estrelas. Na parede, por trás de
sua mesa, há uma serigrafia colorida, meio hippie, onde se lê: "A
coisa mais medíocre que um ser humano pode fazer é pendurar
frases exemplares na parede do escritório. Lucky Luciano, *
1959 - + 1999 ".

               CHICO (OFF)
               Luciano, na televisão, fazia economia e horóscopo.
               Ele escrevia os textos que a Madame Mirna lia no
               Jornal da Mulher, meu programa de televisão
               preferido.

CENA 90 - CENÁRIO MADAME MIRNA - INTERIOR/DIA

Cenário de um programa de horóscopo na TV. MADAME MIRNA é uma
ruiva gordinha com sotaque castelhano. Ela fala olhando levemente
sobre a câmara.

               MADAME MIRNA
               Aos nativos de Câncer a recomendação é cautela e
               caldo de galinha. O posicionamento de Mercúrio em
               Virgem e a frente fria argentina favorecem a gripe
               e os distúrbios pulmonares. Cuidado com pessoa
               invejosa. Cor bege, número vinte e três.

CENA 91 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/NOITE

Luciano escreve numa velha máquina Remington. Segura o telefone
com o ombro. Luciano escuta alguém que fala ao telefone e, em
intervalos regulares, diz "hum-hum".

               CHICO (OFF)
               Economia parecia ser bem mais fácil.

               LUCIANO
               Sessenta? (...) Setenta e dois. (...) Hum-hum.
               (...) Sei. (...) Rogério, eu escuto esta conversa
               desde março. (...) Certeza? (...) Isso vai dar uns
               quarenta e cinco por cento numa semana... (...) E
               dá pra acreditar? (...) Claro, Rogério, nem
               precisa falar. Sigilo absoluto.

CENA 92 - BAR DA TV - INTERIOR/NOITE

Luciano toma uma cerveja e fala com o Velho, Chico e quem mais
quiser ouvir.

               LUCIANO
               Quarenta e cinco por cento numa semana, talvez
               cinqüenta. Depois não digam que eu não avisei. Eu
               estou botando nessas ações o dinheiro de quatro
               investidores. Todo o dinheiro que eles têm.

               CHICO
               Eles toparam?

               LUCIANO
               Se eles soubessem, topariam, tenho certeza.

Chico e o Velho ficam olhando para Luciano, sem acreditar.

               LUCIANO
               Eu vou vender o meu carro, o terreno na Guarda e
               os dólares que eu guardei. Vou pedir emprestado
               todo o dinheiro que eu conseguir, pago vinte por
               cento de juros em quinze dias.

               VELHO
               E se der errado?

               LUCIANO
               Ai, meu santo... Será que Cristóvão Colombo tinha
               um sujeito cutucando ele e dizendo "e se der
               errado?".

               VELHO
               Vários, certamente.

               LUCIANO
               Não vai dar errado, Velho. Júpiter em Sagitário,
               Mercúrio em Libra, não tem como dar errado.

CENA 93 - CENTRO COMUNITÁRIO -  EXTERIOR/NOITE

Uma festa de casamento. O lugar é um centro comunitário da
periferia de Porto Alegre. Tem uma churrasco sendo feito numa
churrasqueira enorme, chopp servido em copos de papel num balcão
e um MONTE DE GENTE mais ou menos pobre em roupas de festa. Os
noivos, Andrew e SÍLVIA, recebem os cumprimentos. Sílvia é uma
mulher morena, bonita e evidentemente grávida. Chico e Carolina
esperam na fila dos cumprimentos. Andrew avista Chico e sorri.
Chico e Carolina se aproximam. Se abraçam, todos muito
sorridentes.

               CAROLINA
               Parabéns! (para Sílvia) Você está linda!

               SÍLVIA
               Obrigado. O Andrew fala em vocês toda hora. Que
               bom que vocês vieram.

               CHICO
               (cumprimentando Andrew) Parabéns. Pelo casamento e
               pelo sucesso.

               ANDREW
               Obrigado. Depois a gente fala com mais calma. E o
               Luciano?

               CHICO
               Disse que vinha. Nunca se sabe.

               ANDREW
               Vocês já comeram?

Chico e Carolina tentam comer churrasco e salada de batata num
prato de papel apoiado sobre os joelhos. Carolina resolve o
problema pegando um pedaço de costela com a mão. Andrew tenta
fazer um discurso. A festa tem um conjunto que toca música
caribenha, salsa, essas coisas. A música é muito alta e todos
gritam muito. Chico avista Luciano e Lisa. Ela está linda, feliz
e levemente drogada, na boa. Luciano está estranhamente bem
vestido. Se cumprimentam. Luciano está eufórico e conta alguma
coisa para Chico e Carolina. Eles ficam parados, de boca aberta.
Luciano gesticula muito. Chico larga o prato de churrasco e faz
sinal para que Luciano o acompanhe até o lado de fora do salão.
Lisa senta ao lado de Carolina.

CENA 94 - CANCHA DE FUTEBOL DE SALÃO - EXTERIOR/NOITE

Chico e Luciano estão numa cancha de futebol de salão e basquete
do centro comunitário.

               LUCIANO
               Tenho que descontar os impostos, a comissão de um
               agente financeiro, tenho que devolver a grana que
               me emprestaram... Eu acho que sobra uns... quase
               cem mil.

               CHICO
               Cem mil?

Luciano concorda.

               CHICO
               Cem mil dólares?

Luciano concorda.

               CHICO
               Você ganhou - você, Luciano - cem mil dólares na
               bolsa, em uma semana?

               LUCIANO
               Doze dias.

               CHICO
               Você ficou rico, você agora é um homem rico, um
               milionário!

Luciano concorda.

               CHICO
               O que você vai fazer com cem mil dólares?

               LUCIANO
               O que a gente pode fazer com cem mil dólares? Vou
               gastar.

CENA 95 - CENTRO COMUNITÁRIO - INTERIOR/NOITE

Inicia seqüência sem diálogos.

Chico, Carolina, Lisa, Luciano, Andrew e Sílvia dançam no meio do
salão. Todos parecem muito felizes e já estão suficientemente
alcoolizados para perder a noção do ridículo. A banda ataca uma
salsa explosiva.

CENA 96 - LUCKY BREAD - EXTERIOR/DIA

Chico e Luciano observam os operários que terminam a fachada da
"LUCKY BREAD, Delícias Naturais". Luciano dá algumas instruções
aos operários. IBARRI, um sujeito de bigode, relógio Rolex,
corrente de ouro no pescoço, camisa e gravata, se aproxima de
Luciano. Luciano apresenta o sujeito para Chico.

CENA 97 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA

Ciça e outros atores contam tragédias e choram. O público chora e
aplaude. É a gravação do "Vida Real".

CENA 98 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE

Luciano, Chico, Carolina e Lisa assistem "Vida Real". Todos,
menos Carolina, acham muita graça no clima exageradamente trágico
do programa.

CENA 99 - PARQUE - EXTERIOR/DIA

Num parque florido, uma EQUIPE DE PRODUÇÃO prepara a gravação de
um comercial. É o cenário de um piquenique: toalha estendida na
grama, entre as flores, um monte de pães, de diferentes tipos,
dentro de uma cesta de vime. O MAQUILADOR, a CABELEIREIRA e a
MANICURE preparam uma modelo, RENATA, para entrar em cena. Chico
e Luciano discutem baixinho, longe da modelo.

               CHICO
               Não dá, cara. Olha, nós já ensaiamos duzentas
               vezes. Essa guria não vai conseguir dar o texto.

               LUCIANO
               Claro que vai, Chico, olha lá que gracinha.

               CHICO
               Eu odeio esse negócio, eu odeio publicidade.

               LUCIANO
               Claro. Publicitário tem que morrer, você já me
               disse isso trezentas vezes. Acontece que a gente
               precisa de dinheiro para o projeto, acontece que
               você aceitou fazer este comercial, acontece que eu
               quero vender bastante pão e acontece que a gente
               só tem mais uma hora de equipamento.

               CHICO
               Eu não posso fazer um comercial que vai ser pior
               que todos os comerciais que eu odeio.

               LUCIANO
               Chico, o sol tá caindo, Chico... (Aponta a
               modelo.) Olha lá a Renata. Ela é linda. Ela vai
               comer o meu pão e dizer que é gostoso, macio e
               fofinho. Todo mundo vai acreditar nela, porque ela
               é linda. Publicidade é só isso.

Chico fica olhando para Luciano. Depois dá uma olhada para
Renata. Ela dá um sorriso simpático para Chico. Chico retribui.

CENA 100 - APTO.DE LUCIANO - INTERIOR/NOITE

A tela de uma TV colorida. Renata começa a comer o pãozinho,
linda e simpática. Musiquinha no fundo. Ela fica comendo o pão,
com mordidas pequenas.

               LOCUTOR 1
               Cláudia foi contratada para dizer que os pãezinhos
               da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. A
               Cláudia foi escolhida por que ela também é
               gostosa, macia e fofinha. Ela está ganhando um
               ótimo cachê só para dizer isso, que os pãezinhos
               da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. É
               um serviço fácil. Cláudia... Basta parar de comer
               e dizer que os pãezinhos da Lucky Bread são muito
               gostosos, macios e fofinhos. Ela sabe o texto de
               cór, já ensaiou várias vezes. Ela é uma
               profissional. Cláudia, por favor... Cláudia,
               Cláudia!

Ela ainda está comendo. Entra a assinatura da Lucky Bread, com a
locução final.

               LOCUTOR 2
               Pãezinhos Lucky Bread. Experimente, e depois nos
               diga se eles não são gostosos, macios e fofinhos.

Chico, Carolina, Luciano e Renata estão na sala do apto. de
Luciano, onde se reuniram para tomar cerveja e ver a primeira
veiculação do comercial. Carolina e Luciano aplaudem,
entusiasmados.

               CAROLINA
               Ficou ótimo!

               CHICO
               É... podia ser pior.

               RENATA
               (sem entender) E o meu texto?
 
               LUCIANO
               (beijando Renata) Era um subtexto.

Renata continua sem entender.

               LUCIANO
               Subtexto... um texto que fica por baixo do outro,
               não aparece, é super comum nos comerciais, eles
               usam muito nos Estado Unidos. (Dá outro beijo)
               Parabéns, Cláudia, você tá linda.

Renata fica mais contente.

               RENATA
               Obrigado.

               LUCIANO
               E eu vou vender montanhas de pão. Parabéns, Chico,
               
               CHICO
               Publicitário tem que morrer.

               LUCIANO
               (erguendo o copo de cerveja) Longa vida ao Chico,
               um publicitário que um dia vai morrer.

               CAROLINA
               Ao "Tijolo"!

               CHICO
               Muitos tijolos!

Todos brindam, alegres. Luciano dá um longo beijo em Renata.

CENA 101 - BAR - INTERIOR/NOITE

O Velho está numa mesa de bar, sozinho. Na sua frente, um copo
com um resto de chopp, várias "bolachas" e um copinho de cachaça.
Ele faz sinal para o GARÇOM, que passa sem lhe dar atenção. Chico
entra no bar, procura e encontra o Velho. Vai até a mesa.

               CHICO
               Sozinho?

Velho vira-se com a dificuldade natural dos bêbados, olha para
cima, reconhece Chico.

               VELHO
               (discursando) Sozinho, não! Com os trabalhadores
               na luta pelo socialismo!

Chico puxa uma cadeira e senta.

               CHICO
               Eu preciso falar com você.

               VELHO
               Quando alguém que JÁ está falando com você diz que
               precisa falar com você, pode ter certeza que tem
               sacanagem no meio. Tem, teve ou vai ter.

               CHICO
               Eu vou sair da tevê.

               VELHO
               Não te falei? Eu não disse? No caso, VAI TER
               sacanagem.

               CHICO
               O Luciano vai abrir uma produtora, me convidou pra
               trabalhar com ele.

               VELHO
               Você vai virar publicitário. Publicitário é um
               sujeito num balcão com uma caneta de ouro atrás da
               orelha. "Queira mais, patrão". (chamando) Garçom!
               Ôoo... Chumbo! Pelo amor de deus, Chumbo, faz duas
               horas que eu pedi um conhaque e um chopp! Quer o
               pedido por escrito?

               CHICO
               Velho, eu quero é fazer os meus projetos. A minha
               condição pra trabalhar na produtora é não fazer SÓ
               comerciais. Eu tenho um projeto com a Carolina, "O
               Tijolo", um especial pra televisão, o roteiro é do
               Luciano, eu já te mostrei.  

               VELHO
               Se você que virar publicitário, tudo bem, eu
               entendo. Publicitário vive cercado de modelos
               maravilhosas, trabalha pouco, se diverte muito...
               Em compensação ganha uma fortuna. Tudo bem, Chico.
               Vai fundo.

O garçom chega e larga dois copos de chopp na mesa. Chico faz
menção de devolver o dele, o Velho não deixa.

               VELHO
               E o conhaque? Ôoo... Chumbo! E o conhaque?

Chumbo já foi.

               VELHO
               Deixa aí! Vamos fazer um brinde... um brinde... ao
               Chumbo! Um brinde ao Chumbo, que não vai virar
               publicitário e, um dia, vai me trazer o conhaque.

               CHICO
               Ao Chumbo!

CENA 102 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico dorme. O porteiro eletrônico bate várias vezes seguidas.
Chico acorda e vai atender. É a voz de Luciano

               LUCIANO (OFF)
               Chico, desce.

               CHICO
               Quê que houve?

               LUCIANO (OFF)
               Desce. Eu te explico no caminho.

CENA 103 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/NOITE

Luciano dirige em grande velocidade por uma avenida.

               LUCIANO
               Colocaram uma camisa de força nela e arrastaram
               pra dentro da ambulância. Ela tava gritando o meu
               nome. O vizinho pegou a guitarra, que era toda
               rabiscada, achou meu número e telefonou.

               CHICO
               Quem foi que chamou a clínica?

               LUCIANO
               Não sei. Quem atendeu o telefone foi a Cláudia, eu
               estava no banho. Deve ter sido a mãe.

               CHICO
               Que Cláudia?

               LUCIANO
               A Renata.

               CHICO
               Você avisou a Carolina?

CENA 104 - FRENTE DA CLÍNICA / PORTARIA - INTERIOR/NOITE

Carolina já está na portaria, discutindo com um SEGURANÇA. Chico
e Luciano entram.

               CAROLINA
               Esse imbecil tá dizendo que a gente não pode
               entrar.

               SEGURANÇA
               Vocês são familiares?

               LUCIANO
               Eu sou, sou irmão dela. A minha mãe taí?

               SEGURANÇA
               (desconfiado) O senhor tem uma carteira de
               identidade?

               LUCIANO
               Claro que eu tenho carteira de identidade, mas não
               aqui comigo, agora. Eu saí correndo de casa. Mas o
               senhor, por favor, chame a minha mãe, ela deve
               estar aí com a Lisa, não está?

O segurança, irritado, verifica uma ficha.

               SEGURANÇA
               (pelo telefone interno) Por favor, senhora Dilma
               Reis, queira comparecer à recepção.

Chico leva Luciano para um canto.

               CHICO
               Qual é a idéia, Luciano? Eu não estou entendendo.

               LUCIANO
               No mínimo eu vou dar umas porradas nela.

               CHICO
               Isso não resolve nada.

Uma porta abre. Surge a mãe de Lisa.

               CHICO
               (para o segurança) Vocês estão cometendo um erro.
               Esta senhora já esteve internada aqui, dois anos
               atrás. Você não lembra dela?

Dilma bota os óculos escuros, o que só contribui para a armação
de Chico.

               CHICO
               Pode conferir aí nos arquivos... Dilma Reis.
               Ela... tem problemas. O senhor há de concordar
               comigo que ela não tem condições de atestar sobre
               a saúde mental da filha...

               DILMA
               Chico, pára com isso.

               SEGURANÇA
               (confuso) Eu não posso ver os arquivos daqui.

               CHICO
               Então chama um médico.

               DILMA
               (baixo, para Chico) Chico, não faz isso comigo,
               Chico...

               CHICO
               (baixo, para Dilma) Manda soltar a Lisa.

               DILMA
               Ela tá muito perturbada, Chico. Ela tá violenta.
               Eu não tenho mais condições de...

               CAROLINA
               Ela não vai voltar pra sua casa. A gente toma
               conta, pode deixar.

               DILMA
               Ela não me respeita mais.

               LUCIANO
               (para o segurança) Você não está vendo que ela é
               que é maluca? Vê a ficha dela!

               CHICO
               Calma, Luciano.

O segurança pega o telefone outra vez. Logo depois, surge um
ENFERMEIRO, muito forte.

               ENFERMEIRO
               Qual é o problema?

               CAROLINA
               O problema é que essa senhora é toxicômana e
               mandou internar a própria filha.

               ENFERMEIRO
               (olhando bem para a mãe de Lisa) Eu conheço a
               senhora...

               CHICO
               Claro, ela esteve internada aqui, há dois anos.

               ENFERMEIRO
               (para Dilma) Como é o nome da senhora?

               DILMA
               Olha doutor, minha filha está doente...

               ENFERMEIRO
               Como é o seu nome?

               DILMA
               Dilma. Dilma Reis.

               ENFERMEIRO
               Com licença.

E sai. A mãe de Lisa fica desconcertada.

               CHICO
               Dona Dilma, vamos fazer um acordo.

               LUCIANO
               A gente sabe que a Lisa não tá legal, mas aqui ela
               não pode ficar.
 
               DILMA
               Mas eu não posso...

               CAROLINA
               A gente fica com ela, Dona Dilma. A senhora sabe
               que nós gostamos dela.

               DILMA
               Ela não tem dinheiro.

               LUCIANO
               Eu me responsabilizo.

               DILMA
               Eu sou mãe dela, e ninguém gosta dela mais do que
               eu. E se eu trouxe ela pra cá, era pro bem dela.

Dilma caminha nervosamente pelo saguão. Pára, pega um cigarro. Vê
que há uma grande placa de NÃO FUME na parede. Guarda o cigarro.

               DILMA
               Vocês tem que me prometer que ela não vai ficar
               sozinha, nem um minuto, nem um segundo. (pausa) Se
               acontecer alguma coisa com ela, eu juro que mato
               vocês.

CENA 105 - CALÇADA DA CLÍNICA - EXTERIOR/NOITE

Lisa sai da clínica, amparada por Luciano. Ela está dormindo em
pé e mal consegue caminhar.

               CHICO (OFF)
               Nós tiramos a Lisa da clínica meia hora depois,
               mas ela já estava dopada. Dormiu quase vinte horas
               seguidas.

CENA 106 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA

Chico e Carolina esperam o desembarque de um vôo. Carolina sorri
e aponta para Luciano e Lisa. Eles parecem muito felizes e
cansados, cheios de presentes e malas.

               CHICO (OFF)
               Quando acordou, na casa do Luciano, disse que
               estava a fim de viajar. Ele comprou duas passagens
               para Nova Iorque. Ele sempre quis cuidar da Lisa,
               ser responsável por ela. Foram pra passar um mês,
               voltaram oito dias depois, de casamento marcado. O
               Luciano dizia sempre que era um homem do seu tempo
               e tinha pressa. O que ele não dizia é que a frase
               era do Médici.  

CENA 107 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/DIA

Luciano e Chico, de terno e gravata, entram num grande e luxuoso
escritório. O escritório é decorado com grandes fotos de vacas,
garrafas de leite e queijos. DAVI levanta de sua mesa e
cumprimenta Luciano.

               DAVI
               Lucky Luciano!

               LUCIANO
               Fala, Davi!

Luciano apresenta Chico.

               LUCIANO
               Davi, este é o famoso Chico Freire, o mago das
               telinhas.

               DAVI
               O Luciano não pára de falar do seu trabalho.

               CHICO
               O Luciano normalmente não pára de falar. Ele
               exagera um pouco.

               DAVI
               No seu caso, eu não acho. Eu já vi o seu trabalho
               e é realmente muito bom.

               CHICO
               Obrigado.

Davi apresenta dois assessores, GUSTAVO e LÚCIO, e uma
secretária, dona LOURDES.

               DAVI
               GUSTAVO, do departamento de marketing, Doutor
               Lúcio, do jurídico, Dona Lourdes... Vamos sentar.

Chico cumprimenta a todos e vai sentando numa grande sala de
reuniões.

               DAVI
               Nós fomos colegas de Anchieta, não da mesma turma,
               eu era um pouco mais velho. Não sou mais.

Os assessores riem muito. Chico faz cara de quem tenta se lembrar
de Davi no colégio.

               DAVI
               No colégio me chamavam de Roal, meu nome é Davi
               Roal, mas eu não queria que pensassem que eu era
               judeu. Agora eu quero.

Os assessores riem muito.

               DAVI
               O Gustavo vai expor rapidamente qual é a nossa
               estratégia de marketing, nosso target, e qual é o
               recall esperado com essa campanha.

Gustavo, o assessor de marketing, começa a falar e mostrar
gráficos e alguns panfletos com fotos de mulheres de maiô comendo
iogurte. Chico finge que presta muita atenção. Um GARÇOM serve
cafezinho e iogurte para todos. Luciano faz alguns comentários
durante a exposição de Gustavo.

               CHICO (OFF)
               Quando eu fiz faculdade, achava que jornalistas
               falavam a verdade por opção ideológica, e
               publicitários mentiam profissionalmente. Os meus
               colegas, tanto os estudantes de publicidade quanto
               de jornalismo, também achavam isso. Os próprios
               professores achavam isso. E hoje eu me pergunto:
               como um engano tão grande enganou tanta gente
               durante tanto tempo? Como eu acreditei que era
               possível dividir tão facilmente as pessoas em dois
               times, o meu time e o time deles? E como eu fui
               capaz de trocar de time enquanto ainda acreditava
               nisso?

CENA 108 - OBRAS DA PADARIA - INTERIOR/DIA

Durante todo o diálogo, Chico e Luciano caminham pela obra da
padaria.

               CHICO
               Roal ou Davi, ele continua sendo um imbecil. Ele
               sempre foi e sempre vai ser um imbecil. Lembra
               quando ele ganhou aquele mini-bug no concurso?

               LUCIANO
               (balançando a cabeça) Chico, deixa eu te explicar
               uma coisa. Uma produtora de comerciais faz
               comerciais. Sacou? (articula bem a palavra) Co-
               mer-ci-ais. A palavra vem de comércio, que
               significa troca de mercadorias, de serviços, de
               idéias, de qualquer porra, por dinheiro. Você não
               pode se recusar a fazer esse ou aquele comercial.
               O raciocínio é o oposto: você quer fazer
               (articulando) qual-quer comercial, se pagarem o
               que você pede. E o Davi tem muita grana, pode até
               sustentar a produtora.

               CHICO
               Luciano, eu não disse que eu não vou fazer o
               comercial. Eu disse que a gente poderia ter uma
               produtora diferente das outras, uma produtora mais
               seletiva, que a princípio não aceitasse fazer
               qualquer merda. Eu acho que isso, a longo prazo...

               LUCIANO
               Uma merda bem feita e bem paga é absolutamente
               digna, Chico. Nós estamos há três horas nessa
               discussão. Eu te propus um negócio, uma coisa
               séria, montar uma produtora pra poder viabilizar
               os teus projetos, os nossos projetos. Você não
               quer fazer "O Tijolo" com a Carolina, vocês não
               falam disso há anos, se queixando que não tem
               espaço, que ninguém apóia a cultura?

No meio do discurso, Luciano grita com TONHO, o operário que está
rebocando a parede da obra.

               LUCIANO
               (gritando) Tonho, essa parede não era pra tá
               pronta desde ontem?

Tonho pára, olha para Luciano, mas não chega a responder porque
Luciano se afasta, puxando Chico e retomando o assunto.

               LUCIANO
               A produtora é uma chance de você ganhar dinheiro
               com o teu talento e ainda por cima viabilizar os
               teus projetos. Quando tudo isso está a um passo de
               se tornar possível, você vem com esse papo de
               coerência política! Tudo bem, Chico, você não é
               obrigado a ser meu sócio.

               CHICO
               Luciano, você sabe que, se fosse só pela grana, eu
               tava trabalhando com o meu velho na construtora.
               Podia ser vice de qualquer coisa.

               LUCIANO
               Então vai, cara. Vai ser vice de qualquer coisa.

Luciano estende um projeto arquitetônico sobre uma mesa, no meio
da obra. Fica examinando o projeto, como se considerasse a
conversa encerrada.

               CHICO
               Você sabe que eu não gosto de publicidade.

Sem olhar para Chico.

               LUCIANO
               Sei. Eu também não gosto. Prefiro ficar em casa
               fumando um e vendo a sessão da tarde na tevê.
 
               CHICO
               Eu tô falando sério. Se a gente vai ser sócio, as
               coisas têm que ficar claras.

               LUCIANO
               (ainda olhando para baixo) Mais claras,
               impossível. Eu entro com a grana, monto a
               estrutura, tomo uísque com caras como o Davi e
               consigo trabalho. Você faz com que os trabalhos
               fiquem bons. É simples. Eu tenho setenta por cento
               da empresa, você tem trinta. E mais os cachês por
               cada trabalho que você dirigir.

               CHICO
               Luciano, falando sério, você sabe que o único
               comercial que eu fiz na vida foi aquele do "Lucky
               Bread". Você sabe que eu não gosto disso. Por que
               você acha que eu vou ser um bom sócio?

               LUCIANO
               (agora olhando diretamente para Chico) Porque
               poucas pessoas na cidade são capazes de fazer um
               bom comercial do "Lucky Bread". E nenhuma, entre
               essas pessoas, ainda têm coragem de falar em
               coerência política. (pausa) A gente pode se
               divertir e ganhar dinheiro ao mesmo tempo. Se
               divertir e ganhar dinheiro é o meu ramo de
               negócios. Você tem que descobrir qual é o seu.

               CHICO
               Eu pensava que era jornalismo.

               LUCIANO
               Isso não é ramo. É doença.

Chico vai responder, mas desiste. Fica olhando para Luciano, com
uma expressão de tédio e derrota.

CENA 109 - PISCINA DE COMERCIAL - EXTERIOR/DIA

Uma MODELO morena, vestindo um maiô, pula do trampolim para a
água. A entrada na água é perfeita, num ângulo de 90 graus. O
movimento é registrado em câmara super lenta. Só ouvimos o
barulho da câmara rodando.

               CHICO
               Corta! (Olha para o diretor de fotografia.) Valeu?

O diretor de fotografia faz sinal de positivo.

               CHICO
               Então deu pra nós. Parabéns pra todos. (gritando,
               para a modelo) Pode te vestir. Obrigado.

Chico senta num banquinho, suspirando, satisfeito porque a
tortura acabou. Mas GERALDINHO, um rapaz da agência, rapidamente
se agacha ao seu lado.

               GERALDINHO
               (sussurrando) Nós vamos fazer de novo esse último
               plano?

               CHICO
               (sem dar muita atenção) Não, esse último ficou
               ótimo. E tem mais duas opções.

               GERALDINHO
               A gente podia tentar com aquela outra modelo.

               CHICO
               A outra cai de barriga. Quase se afogou no ensaio.

               GERALDINHO
               É que... o doutor Gustavo acha a outra mais
               bonita.

               CHICO
               (tentando colocar um ponto final) Então ele paga
               um cursinho rápido de natação pra ela. Geraldinho,
               o comercial vai ficar ótimo. Não te preocupa.

Geraldinho levanta e caminha até onde está Gustavo, que sorri
para todos os lados. Geraldinho fala com ele, que não gosta do
que ouve. Geraldinho aproxima-se de Luciano e fala com ele.

Chico está conversando com o diretor de fotografia. Luciano
aproxima-se, abraça Chico e o leva para um canto.

               LUCIANO
               Vamos fazer de novo o último plano.

               CHICO
               Pra quê? Ficou ótimo!

               LUCIANO
               O cliente chegou atrasado. E viu que a gente não
               usou a modelo que ele prefere.

               CHICO
               Azar o dele.

               LUCIANO
               É ele que aprova o comercial, Chico. (irritado) O
               que você prefere? Fazer agora, que tá tudo pronto,
               ou voltar daqui a uma semana?

Chico vai responder, mas desiste. Olha para Luciano, com uma
expressão de tédio e derrota. Uma OUTRA MODELO, loura, prepara-se
para saltar do trampolim. Está nitidamente nervosa, mas disfarça
sorrindo amarelo. Ela salta. A entrada na água é desastrosa, de
barriga. Assistimos a tudo em câmara super-lenta.

CENA 110 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE

Chico tenta editar o comercial dos maiôs. Luciano está sentado ao
lado de Chico e fala sem olhar para o monitor. Chico, ao
contrário, não tira os olhos da tela. No monitor, a modelo loura,
num trampolim, prepara-se para mergulhar na piscina.

               LUCIANO
               Um candidato é um produto como qualquer outro,
               Chico. Um biscoito, um iogurte, um maiô.

               CHICO
               (irônico) Tá bom...

A modelo loura pula do trampolim e cai de barriga na água. O
EDITOR congela a cena, volta lentamente a imagem até o ponto em
que a modelo loura quase toca na água.

               LUCIANO
               Qual a diferença?

               CHICO
               A diferença é que o biscoito não quer ser prefeito
               da cidade, o iogurte não vai mandar transferir as
               favelas, o maiô não vai dizer onde o ônibus vai
               passar.

O monitor agora mostra a imagem submarina da modelo morena
mergulhando, em câmara-lenta. O editor congela a imagem no
momento em que se percebe claramente que o cabelo dela é preto.
Ele recua a imagem alguns quadros antes. Ele aciona a máquina,
que faz a edição. No monitor, a modelo loura pula no trampolim, a
modelo morena mergulha, a modelo loura sai da água.

               LUCIANO
               Você acha que o Davi é pior que os outros? Ele vai
               ser candidato de qualquer jeito, você não pode
               impedir isso.

               CHICO
               Mas não preciso ser cúmplice. (para o editor) O
               plano submarino ficou um pouco curto. Experimenta
               um pouco mais lento, acho que pode dar certo.

O editor começa a refazer a edição.

               LUCIANO
               Você e a Carolina vivem criando projetos que nunca
               vão sair do papel por absoluta falta de grana, "O
               Tijolo" é um exemplo. Você desistiu do "Tijolo"?
               (pausa) Não é crime ser candidato a prefeito. Vota
               nele quem quer.

               CHICO
               E compra iogurte quem quer, vê televisão quem
               quer... Você sabe que não é assim, Luciano. As
               pessoas querem acreditar em alguma coisa. A gente
               diz pra elas que comendo esta merda de iogurte,
               cheio de conservantes, acidulantes, flavorizantes
               e aromatizantes cancerígenos ela vai ser forte,
               bonita e sexualmente atraente. A gente diz e elas
               acreditam, por que elas tão super a fim de
               acreditar em qualquer merda que tire elas da vida
               de merda que elas levam, seja um iogurte, um
               cigarro, um chinelo de plástico ou um candidato a
               prefeito. Só que um candidato a prefeito pode ser
               mais cancerígeno, mais mortal que qualquer
               biscoito ou iogurte. Um candidato NÃO é um produto
               qualquer.

               LUCIANO
               Chico, a verba da campanha do Davi pra televisão é
               de dois milhões de dólares.

A edição do comercial fica pronta. A modelo loura pula do
trampolim, o plano submarino mostra a modelo morena, a modelo
loura sai da água, pega uma embalagem do iogurte DAVI e toma um
gole. Entra a assinatura em computação gráfica: "Qualidade DAVI".

CENA 111 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE

Vários ASSESSORES, aspecto cansado, discutem com Davi as
estratégias de campanha. Há vários lay-outs sobre a mesa,
cartazes, plásticos, buttons. Copos de café e cigarros atestam
que a reunião já dura algumas horas. As pessoas gritam e
gesticulam mas Chico não escuta mais.

               CHICO (OFF)
               Eu tenho que ter uma idéia, uma idéia só. Todo
               mundo já disse as obviedades de sempre, já marcou
               posição, já puxou o saco, já pediu café, já
               telefonou pra família, já disse piadas, já
               comentou o jornal de hoje. Agora é hora de alguém
               ter realmente alguma idéia. Assim que alguém tiver
               alguma idéia todos vão se agarrar a ela como
               náufragos numa bóia.

Chico escreve o nome DAVI, uma, duas, muitas vezes, num pedaço de
papel.

               CHICO (OFF)
               Com uma idéia a gente gasta o resto do repertório
               da reunião. Alguns vão odiar, outros vão adorar, a
               maioria vai tentar adivinhar o que o Davi vai
               achar pra concordar por antecipação. Outros, mais
               práticos, vão esperar pra ver o que ele acha pra
               depois achar alguma coisa. De qualquer maneira, no
               máximo em quinze minutos, todos vão concordar que
               é melhor pensar com calma e voltar a conversar
               amanhã e eu vou poder ir para casa, sentar no
               banheiro, ler o Planeta Diário que eu comprei,
               tomar banho, fumar um e dormir vendo um filme do
               Billy Wilder. Pra tudo isso acontecer, basta eu
               ter uma idéia, uma idéia de verdade.

Chico rasga a folha de papel, isolando o nome DAVI num papelzinho
bem pequeno. Chico rasga o nome DAVI ao meio, inverte as sílabas
e lê: VIDA. Volta a inverter: DAVI. Chico fica olhando para
aquele pedacinho de papel. Levanta os olhos, encara Davi.

               CHICO
               Eu tive uma idéia.

CENA 112 - ESTÚDIO DE SOM - INTERIOR/DIA

Num estúdio de som, quatro cantores e alguns músicos gravam o
jingle da campanha de Davi. A palavra "Vida" cantada várias vezes
se transforma em "Davi". Chico acompanha a gravação.

CENA 113 - GRÁFICA - INTERIOR/DIA

Uma máquina imprime um cartaz com a marca "DAVIDAVIDAVI". Um
FUNCIONÁRIO corta uma folha com várias tiras, em que a marca
"DAVIDAVIDAVI" aparece em um padrão ligeiramente diferente.
QUATRO CEGOS colocam presilhas na parte anterior de alguns
buttons, todos com a marca "DAVIDAVIDAVI". MULHERES colam
adesivos com a marca "DAVIDAVIDAVI" em caixas de fósforos.

CENA 114 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA

PINTORES, OPERÁRIOS e CENOTÉCNICOS aprontam o estúdio de
gravação. Uma parede está coberta com a palavra "VIDA". Noutra
parede terminam de ser colocadas, em frente a um grande céu
aerografado, grandes letras que formam a palavra "DAVI".

CENA 115 - SALA DE PÓS-PRODUÇÃO - INTERIOR/DIA

Num monitor, Chico vê os primeiros movimentos de uma animação em
computação gráfica. A ilha de edição está sendo montada e ainda
há um monte de equipamentos encaixotados.

CENA 116 - ESTÚDIO -  INTERIOR/DIA

Chico dirige um comercial. Ele fala com um CASAL DE ATORES. Ela
está de costas para a câmara, em pé sobre uma caixa. Duas
ASSISTENTES prendem o cabelo dela por trás, com um grampo. O
vestido dela está cheio de fitas adesivas nas costas. Ela veste
uma calça jeans sob o vestido. O ator lê o roteiro e exercita os
músculos da face. O FOTÓGRAFO e o CABELEIREIRO se esforçam para
puxar alguns fios de cabelo que cubram a reluzente careca do
ator. Não têm muito sucesso. O ator está visivelmente irritado
com a atriz. Aparentemente eles se odeiam. O fotógrafo cola um
pedaço de papel atrás da orelha do ator. Um ASSISTENTE DE
PRODUÇÃO, um gordo sem camisa, fica agachado atrás da atriz,
segurando o vestido, que está rasgado nas costas. Tudo parece
estar finalmente pronto e é horrível, visto pelas costas.

Pela frente, os dois estão lindos e felizes. A cena é um
encontro. Ele segura um copo de vinho.

               ATOR
               (muito feliz) Oi! Você aqui?

               ATRIZ
               (muito feliz) Oi! Claro! (olhando em volta) Eu
               adoro este lugar... O que você está tomando?

               ATOR
               Vinho Marquês de Santana.

               ATRIZ
               Você está sozinho?

CENA 117 - VÍDEO-CLUBE - INTERIOR/NOITE

Chico está agachado, tentando ler o título dos filmes na lombada
das caixinhas de vídeo. Como algumas caixinhas estão viradas de
um lado e outras de outro, Chico fica virando a cabeça, numa
coreografia meio ridícula. Carolina se aproxima e reconhece
Chico.

               CAROLINA
               Chico...

Chico olha pra cima. Levanta-se.

               CHICO
               Carolina.

Beijam-se, carinhosos e realmente felizes por terem se
encontrado.

               CAROLINA
               Tá mais magro.

               CHICO
               Impossível.

Eles riem.

               CHICO
               E o José?

               CAROLINA
               Tudo bem. Está no Rio, com a vó.

               CHICO
               Já consegue se desgrudar? Que progresso...

               CAROLINA
               Tudo bem? A gente não se vê mais desde que, aquele
               dia, na clínica.

               CHICO
               Pois é. Tudo bem com você?

               CAROLINA
               Tudo bem. (pausa) E a Lisa? Tudo bem?

               CHICO
               Acho que sim. O Luciano, pelo menos, diz que sim.

               CAROLINA
               Estou preparando uma peça nova.

               CHICO
               Infantil?

               CAROLINA
               Infantil. Bem legal, direção do Abraão.

               CHICO
               Tudo bem com ele?

               CAROLINA
               Tudo. Ele adorou o roteiro do "Tijolo", disse que
               a gente tem que fazer o vídeo de qualquer jeito.

               CHICO
               Pois é... Problema é arranjar grana... E tempo.

Eles ficam um pouco sem assunto, parados na frente da prateleira
de vídeos onde se lê: "SUSPENSE"

               CAROLINA
               Eu fico sabendo de você pelo jornal. Você vai
               fazer a campanha do Davi.

Chico caminha, meio desconfortável, meio tentando evitar olhar
diretamente para Carolina. Ela percebe o constrangimento.

               CHICO
               Vou.

               CAROLINA
               Ele é legal?

               CAROLINA
               Político. Estou fazendo pela grana. Pelo menos é
               melhor que esse Gabriel.

               CAROLINA
               Claro.

Eles ficam outra vez sem assunto, agora parados na frente das
fitas "COMÉDIA".

               CAROLINA
               (olhando a fita que Chico tem na mão) Que filme
               você pegou?

               CHICO
               (mostrando) "Passagem sem Volta". Você conhece?

               CAROLINA
               Não.

               CHICO
               Nem eu. Mas eu gostei da sinopse. (lendo) "Luca,  
               - Michael Sean, "Assassinato no Metrô" - é um
               jovem boxeador contratado para ser guarda-costas
               do empresário Carlo Fabrizzi - John Davis, "Uma
               noite muito louca". Através das reportagens de
               Pearl Cristhie - Martina Mills, "A Montanha
               Assassina Dois", Luca descobre que Fabrizzi
               controla o contrabando de armas para o Oriente
               Médio. Uma intriga internacional repleta de ação,
               erotismo e aventura, produzida pela mesma equipe
               de "Esquadrão Suicida".

               CAROLINA
               Interessante.

               CHICO
               E você?

               CAROLINA
               Eu estou devolvendo um, "Brincadeira Arriscada".

               CHICO
               Acho que eu vi o trailer. Não é um com a Cindy
               Parker?

Eles agora estão na frente do "DRAMA".

               CAROLINA
               Isso. Ela é uma médica e todos os caras com quem
               ela sai morrem de uma peste horrorosa, cheios de
               bolhas e feridas. Você já viu?

               CHICO
               Não tenho certeza...

               CAROLINA
               No fim o detetive descobre que é o ex-marido dela
               que contamina as pessoas. Ela acaba sozinha,
               porque o detetive, não sei o nome do ator, era
               casado com a Cecilia McKane, uma ruiva crespa, com
               umas sardas.

               CHICO
               Sei quem é. Aquela do "Nosso Último Verão".

               CAROLINA
               Ela mesma. Claro que o detetive fica com ela.
               Ninguém deixa a Cecilia McKane.

               CHICO
               Claro que não, deve estar no contrato dela.

Eles riem. Agora eles estão no "ROMANCE".

               CHICO
               Você não vai pegar nada?

               CAROLINA
               Acho que não. Vou só devolver. Como está caro o
               aluguel, é incrível!

               CHICO
               É. (pausa) A gente podia comer alguma coisa, eu
               estou morrendo de fome. (pausa) Ou podia também ir
               a um cinema.

Ela fica alguns segundos pensando, olha para os filmes na
estante, olha para Chico.

               CAROLINA
               É. Podia.

CENA 118 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico e Carolina estão na cama, nus. Carolina está abraçada em
Chico, ele assiste que assiste televisão. Na TV, um
VENDEDOR/GAROTO PROPAGANDA fala olhando diretamente para a
câmara. Ao seu lado, uma caixa de "New Life".

               VENDEDOR
               ...sabe como eu me sentia? Eu acordava de manhã e
               não via motivo pra sair da cama. Eu não gostava do
               meu emprego, mas precisava do salário para viver.
               Eu me irritava com o trânsito, com os meus colegas
               e com o meu chefe. E quando eu voltava do trabalho
               eu me irritava com a minha mulher, com meus
               filhos, com o jornal e com a novela. Tudo isso
               mudou quando eu conheci "New Life". Com "New
               Life"...

Chico aciona o controle remoto e troca de canal, sem ficar
sabendo o que é ou para que serve "New Life". Um APRESENTADOR
vestido com um escafandro entrevista uma SOCIALITE em traje de
gala. Ela está de braço dado com um SUJEITO DE SMOKING que,
durante a entrevista, fica abanando para algumas pessoas fora de
quadro. Eles estão numa festa à beira de uma piscina e gritam
muito. A música ambiente é insuportavelmente alta e ruim.

               APRESENTADOR
               ...você poderia explicar em poucas palavras, pro
               público de casa, o que é neurolingüística?

               SOCIALITE
               (gritando) O quê?

               APRESENTADOR
               (gritando) Eu estou pedindo para você explicar
               para o público o que é o seu trabalho, o que é
               neurolingüística!

               SOCIALITE
               Ah..! É que por trás de tudo que você faz, cada
               gesto, cada ação, existe uma programação, um
               procedimento programado, como se fosse um programa
               de computador...

               APRESENTADOR
               Até pra namorar?

Eles acham graça.

               APRESENTADOR
               Por falar nisso, você não me apresentou o seu
               namorado.

Eles acham graça.

               SOCIALITE
               Ele não é meu namorado.

               APRESENTADOR
               E televisão? É verdade que você vai fazer uma
               novela?

Chico muda de canal. Dá de cara com o comercial que ele fez,
aquele da piscina. Muda de canal outra vez. Pára num telejornal
que mostra uma matéria policial numa favela. A REPÓRTER mostra os
furos de bala na parede de um barraco.

               REPÓRTER
               ...o segundo tiro entrou aqui, vocês podem ver o
               buraco da bala, que perfurou a parede e veio
               atingir Waldecir quando ele estava tomando café
               aqui nesta mesa...

Chico tira o som da TV. Aparece uma MULHER chorando, desesperada.
A repórter agora entrevista a mulher, que não pára de chorar,
sempre escondendo o rosto com a mão.

               CAROLINA
               Acho que a gente sempre soube que um dia isto ia
               acontecer. Eu, pelo menos, sempre soube. A minha
               analista disse que a gente confunde desejo com
               destino. Quando a gente quer muito que uma coisa
               aconteça a gente acaba fazendo de tudo para que
               esta coisa aconteça, mesmo sem se dar conta. Aí
               quando acontece a gente acha que foi o destino.
               Mas eu acho legal que tenha acontecido agora e não
               quando a gente se conheceu. (pausa) Você não tinha
               certeza que isso um dia ia acontecer?

               CHICO
               O quê?

               CAROLINA
               A gente.

               CHICO
               Ah...

               CAROLINA
               Você achava que podia acontecer?

               CHICO
               Achava sim.

               CAROLINA
               Eu tinha certeza.

Davi aparece na TV, dando uma entrevista. Chico aumenta o som.

               DAVI
               ...e a questão da segurança, que aflige a todos,
               aos jovens e aos pais, eu acredito que deva ser
               enfrentada pelo governo com coragem e com
               determinação. Os governos municipais são omissos,
               transferindo a responsabilidade para o governo
               estadual e federal. Enquanto isso a população se
               tranca em suas casas, entrincheirada nesta guerra
               sem fronteiras em que estão mergulhadas as grandes
               cidades brasileiras.

Volta para o APRESENTADOR.

               APRESENTADOR
               E o último candidato na corrida para a prefeitura
               foi definido hoje...

               CAROLINA
               Fala bem o Davi. Mas essa conversa de segurança é
               sempre igual, só serve para aumentar a paranóia.
               Estes políticos ...

Chico aumenta o volume.

               CHICO
               Só um pouquinho.

               APRESENTADOR
               ... na tumultuada convenção da Frente Democrática.

               REPÓRTER
               As candidaturas do economista Joaquim Canhette e
               do deputado Luiz Renato ameaçavam rachar a Frente.
               A solução acabou sendo a terceira via,
               representada pelo azarão da noite e agora
               candidato a prefeito, o jornalista e líder
               comunitário Andrew Ribeiro.

Andrew dá entrevista, vários microfones na frente.

               REPÓRTER
               O senhor era o azarão e sai da convenção
               candidato. Isso pode se repetir na eleição?

               ANDREW
               Acho que pode, mas não por minha causa. Eu acho
               que a Frente Democrática tem todas as condições de
               conquistar a prefeitura porque é da Frente
               Democrática o melhor programa de governo. Além
               disso a Frente defende os interesses dos
               trabalhadores, dos assalariados, dos estudantes,
               daqueles que moram nas vilas populares e exigem
               melhores condições de vida, enfim...

CENA 119 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA

Chico, Davi e alguns ASSESSORES assistem ao jornal.

               ANDREW
               ... da imensa maioria da população da cidade.
               Nossos oponentes defendem os interesses das
               elites, que estão em menor número. Lembre-se que
               na hora da eleição a gente vale o mesmo que eles.

Chico desliga o VT.

               DAVI
               O fato de ele ter sido seu amigo faz diferença?

               CHICO
               Eu assinei um contrato, não assinei?

Davi fica alguns segundos observando Chico.

               DAVI
               "A gente" e "eles". Essa deve ser a linha da
               campanha dele, querer me apresentar como candidato
               dos ricos.

               ASSESSOR
               Vamos usar na tevê aquela pesquisa que mostra
               nossos eleitores de classe C e D. Pobre não gosta
               dessa conversa de luta de classes.

               CHICO
               Assumir pesquisa pode ser perigoso. Se a gente
               começa a cair ou se ele começa a subir a gente não
               pode mais falar mal da pesquisa.

               DAVI
               Você acha que isso pode acontecer?

               CHICO
               Tudo pode acontecer. (levantando) Vamos trabalhar?
               A equipe já deve estar nos esperando há horas.

               DAVI
               Você vem?

               CHICO
               Eu encontro vocês lá. Vou dar uma passada na casa
               de um amigo.

CENA 120 - CASA DE ANDREW - EXTERIOR/DIA

Chico bate palmas em frente a casa de Andrew. Sílvia aparece na
porta. Uma CRIANÇA de dois anos está agarrada à perna dela. Um
cachorrinho late muito.

               SÍLVIA
               Sim?

               CHICO
               Sílvia? Lembra de mim? Eu sou o Chico, amigo do
               Andrew.

               SÍLVIA
               (não muito animada) Ah...

               CHICO
               O Andrew... ele está?

               SÍLVIA
               O Andrew não mora mais aqui. Faz mais de um ano.

               CHICO
               Ah... E você não sabe o novo endereço ou ...

               SÍLVIA
               Eu não sei do Andrew. Só pelo jornal. Mas eu não
               vou dar nenhuma entrevista, muito menos para
               ajudar aquele Davi, se é isso que você quer.

               CHICO
               Não, claro que não. (pausa) Eu só queria conversar
               com o Andrew, fora do comitê... (pausa) O filho de
               vocês tá enorme...

               SÍLVIA
               Filha. Clarissa. Agora ela está melhor.

               CHICO
               Ela esteve doente?

               SÍLVIA
               Teve meningite, quase morreu. O Andrew não te
               falou?

               CHICO
               Na verdade eu não vejo o Andrew há algum tempo...

               SÍLVIA
               Mas ela ficou boa, graças a deus. Depois teve
               caxumba, mas caxumba tudo bem.

               CHICO
               Claro. O José, filho da Carolina, também teve
               caxumba. Tudo bem.

Ficam sem assunto.

               SÍLVIA
               (para o cachorro) Quieto, Biluca! (para Chico)
               Você quer entrar um pouco?

               CHICO
               Não, não... Eu tenho que trabalhar. Bom, se você
               falar com o Andrew...

               SÍLVIA
               Eu não vou encontrar o Andrew. (pausa) Se você
               encontrar o Andrew, diga que a Clarissa teve
               caxumba.

               CHICO
               Eu digo.

CENA 121 - VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA

Chico acompanha Davi e uma comitiva numa visita a uma vila. Um
caminhão de som toca o jingle sem parar. Os cabos eleitorais
distribuem camisetas e panfletos. Chico orienta o CINEGRAFISTA
nas gravações. Chico entra numa casa miserável atrás de Davi. É
uma única peça com várias camas, fogão e uma TV. Algumas CRIANÇAS
bem pequenas assistem TV. Davi fala com a MÃE delas. Ela tem um
BEBÊ no colo e está grávida. Na televisão, Chico vê o comercial
do iogurte.

CENA 122 - CARRO NA FREE-WAY - EXTERIOR/DIA

Chico dirige. Carolina ao seu lado. No banco de trás, Lisa e
Luciano beijam-se, apaixonados. Rock'n'roll no rádio.

CENA 123 - ESTRADA SECUNDÁRIA - EXTERIOR/DIA

O carro entra numa estrada secundária. Uma placa indica "RAINHA
DO MAR - 2 km"

CENA 124 - CASA DE PRAIA/VARANDA - EXTERIOR/DIA

Chico, Lisa e Luciano estão sentados na varanda da casa, no final
da tarde, fumando, tomando chimarrão e bebendo cachaça, tudo ao
mesmo tempo. Estão morrendo de frio. Carolina chega da rua.

               LISA
               Telefonou?

               CAROLINA
               Telefonei. Está tudo bem, ele está sem febre.

               LUCIANO
               O José estava com febre?

               CAROLINA
               Não. Mas ele estava um pouco gripado, eu achei que
               ele podia ter febre hoje.

               CHICO
               Você foi lá telefonar porque achou que ele podia
               ter febre... Meu deus...

               CAROLINA
               (esfregando as mãos) Quem teve a idéia de vir para
               a praia no Inverno?

               LUCIANO
               (enrolando-se mais no cobertor) O Chico. Ele disse
               que é a melhor época.

               CHICO
               Eu gosto. Olha só, não tem ninguém pra encher o
               saco. A gente pode fazer qualquer coisa.

               LISA
               Qualquer coisa?

CENA 125 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Os três enfileirados, de pé, na areia, morrendo de frio. Olham
para a frente. Lisa sai correndo do mar e chega perto deles. Ela
está vestindo uma roupa de borracha completa, tipo essas dos
surfistas no inverno).

               CAROLINA
               Tem certeza que essa roupa funciona, Lisa?

               LISA
               Claro que funciona. Vocês acham que eu ia ser
               louca de entrar na água se não funcionasse?

               CHICO
               Eu acho.

               LUCIANO
               Eu também acho.

Lisa dá um beijo em cada um.

               LISA
               O último a chegar em casa é um pingüim!

E sai correndo. Os outros se olham por um instante. Depois,
também saem atrás.

CENA 126 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Chico está no fogão fazendo uma massa. Lisa está tomando um
banho. Luciano e Carolina conversam na sacada.

               LISA
               (berrando do banheiro) O quê que vai ter no
               jantar? Eu tô morrendo de fome.

               CHICO
               Minha especialidade: massa com sardinha.

               LUCIANO
               (berrando da sala) Não. Tudo menos massa com
               sardinha!

               CHICO
               (enquanto descarrega as compras de um saco de
               supermercado) Cadê as latas de sardinhas?

Ele olha pra dentro do saco. Nada.

               CHICO
               Eu não comprei sardinha!

               LUCIANO
               Graças a Deus. Eu vou comprar alguma coisa decente
               pra gente comer. Aquele supermercado de Capão fica
               aberto até as oito.

               CHICO
               (chegando na sala) Eu só preciso duas latas de
               sardinha.

               LUCIANO
               Tudo bem. Aí eu já aproveito e compro um monte de
               comida congelada.

               CAROLINA
               Não foi você que disse que cada dia um de nós ia
               pra cozinha?

               LUCIANO
               (afirmativo) Eu vou fazer a minha comida.

               CAROLINA
               Congelada não vale.

               LUCIANO
               Tá. Vem comigo. No caminho a gente acerta esse
               negócio.

Luciano carrega Carolina pelo braço em direção à porta. Eles
saem. Chico vai até a porta do banheiro.

               CHICO
               Lisa, a água não tá fria?

O velho chuveiro elétrico, cheio de fios mal encapados, faz muito
barulho.

               LISA
               (gritando) Sabe que não? Eu tava mesmo pensando
               nisso. (Começa a sair uma fumacinha do chuveiro).
               Até que esse chuveiro é bem legal.

O chuveiro entra em curto total. Faz um barulho estranho e pega
fogo. Lisa olha, apavorada, e dá um grito.

               CHICO
               Quê que houve, Lisa?

As cortinas do box pegam fogo também.

               LISA
               (saindo do box, correndo) Fogo! Tá pegando fogo
               aqui!

Ela está apavorada, não consegue fazer nada.

               CHICO
               Abre a porta, Lisa!

Ele entra. O banheiro está todo enfumaçado. Juntaram-se o vapor
da água do banho com a fumaça do pequeno incêndio. Há fogo no
box.

               CHICO
               Sai daqui, Lisa!

               LISA
               Eu vou pegar o extintor no carro.

Lisa sai correndo, quase pelada mesmo, tentando se enrolar numa
toalha muito pequena. Chico fica assistindo o fogo sem fazer
nada.

               CHICO
               O carro não tá aqui. Eles foram comprar comida
               congelada.

               LISA
               Então vamos pegar água. Onde tem balde?

               CHICO
               Na cozinha. Mas espera, não se usa água em fogo de
               eletricidade.

               LISA
               (já com o balde na mão) Quem foi que disse?

               CHICO
               Não se usa.

O fogo se extingue rapidamente. Afinal, o chuveiro já queimou o
que tinha que queimar, e a cortina também. It's over.

               LISA
               Quem foi que disse?

               CHICO
               Não se usa. Dá choque! O incêndio já acabou.

Lisa olha, percebe que o perigo passou e sorri. Mas então percebe
que está toda molhada e sente frio, muito frio. Começa a tremer.

               LISA
               Chico... eu tô com frio!.

Chico pega outra toalha, maior, e alcança pra ela. Ela se enrola,
mas está com tanto frio que não consegue se secar.

               CHICO
               Que cheiro horrível! Eu vou pegar mais toalhas.

               LISA
               (rígida) Eu vou congelar.

               CHICO
               Pára de brincar, Lisa. Te seca logo.

               LISA
               Eu tô congelando.

Chico, todo sem jeito, começa a passar a toalha em Lisa.

               LISA
               Eu tô congelando! Mais forte!

Chico passa mais forte.

               LISA
               Tem que fazer como os esquimós. Assim.

Lisa se agarra em Chico, que continua passando a toalha.

               CHICO
               Cadê as tuas roupas?

               LISA
               Eu tô congelando, Chico, não pára!

Chico se concentra na secagem. Passa com força. Lisa vai se
virando pra facilitar. Chico vê os seios de Lisa.

               LISA
               Dessa vez, não te devo nada.

               CHICO
               Quem foi que disse?

               LISA
               O quê?

               CHICO
               Que os esquimós fazem assim?

               LISA
               De onde você acha que veio o tal do beijo esquimó?
               Disso aqui. Um sai do banho e o outro fica se
               esfregando nele. Esfrega tudo. Até o nariz.
               (pausa) O jantar não ia ser massa com sardinha?

               CHICO
               Ia.

CENA 127 - CARRO - EXTERIOR/DIA

Carolina e Luciano no carro.

               LUCIANO
               A Lisa me assusta.

               CAROLINA
               Por quê?

               LUCIANO
               Às vezes parece que faz as coisas sem pensar. E
               depois parece que pensa demais.

               CAROLINA
               Eu gosto disso. Melhor que ficar deprimida, ou se
               entupir de cocaína.

               LUCIANO
               É, isso é. (pausa) Sabe como é que a gente
               começou?

Carolina fica atenta.

               LUCIANO
               Ela simplesmente me agarrou e pronto.

               CAROLINA
               Como assim?

               LUCIANO
               Numa festa. Ela me levou prum quarto, tirou a
               minha roupa e... pronto!

               CAROLINA
               Tem certas coisas que só a Lisa é capaz de fazer.

               LUCIANO
               (sorrindo) Isso é.

Carolina não acha graça.

CENA 128 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Jantar do Chico. Uma grande panela de massa com sardinha chega no
centro da mesa. Os quatro avançam, animados, e começam a comer.

               CAROLINA
               (depois de provar) Tá ótima, Chico.

               LISA
               É. Super boa.

               LUCIANO
               (sentindo-se obrigado a concordar) Tá melhor que
               eu pensava.

               CHICO
               A fome sempre deixa a comida melhor. Aristóteles.

               LISA
               É. Sabe, eu fiz um cursinho em Nova Iorque com um
               filósofo paquistanês, um cara super quente, e o
               cara falava isso, que é a necessidade que gera o
               prazer.

               LUCIANO
               Que bobajada.

               LISA
               Bobagem nada. O sexo também é assim. Quanto mais
               você deseja, mais você quer, melhor fica quando
               você consegue.

               CHICO
               O Freud dizia ao contrário: quanto mais você
               deseja, e não consegue, mais merda dá depois.

               CAROLINA
               Eu sempre detestei o Freud. Como é o nome desse
               paquistanês, Lisa?

               LISA
               Maharishi Chuttranata.

               CAROLINA
               Como é?

               LISA
               Maharishi Chuttranata.

Luciano olha para Chico. Chico olha para Carolina. Carolina olha
para Luciano. Luciano começa a rir, mesmo de boca cheia. O riso
contagia os outros, que não conseguem engolir a massa que está na
boca. Chico se engasga e começa a tossir. Luciano bate nas costas
dele. Carolina chora de tanto rir. Lisa, a princípio, fica
indignada, mas depois também é contagiada e ri tanto quanto os
outros.
 

CENA 129 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Esta seqüência acontece simultaneamente num dos quartos, onde
estão Lisa e Luciano, e na sala, onde estão Chico e Carolina,
tomando vinho.

QUARTO
Luciano e Lisa estão trepando. O problema é que a cama, como toda
cama de casa de praia, é antiga, de molas, está meio quebrada e
range desesperadamente. Lisa, ainda por cima, não é nem um pouco
discreta.

               LISA
               Ahhh! (Ou algo parecido)

               LUCIANO
               (sussurrando) Shshsh...

               LISA
               O quê?

               LUCIANO
               O Chico e a Carolina. Não faz tanto barulho.

SALA

Carolina e Chico estão em cadeiras próximas, com copos de vinho
na mão. Ouvem nitidamente, tanto os rangidos da cama, como os
gemidos de Lisa.

               CAROLINA
               Você não acha estranho isso tudo?

               CHICO
               Tudo o quê?

               CAROLINA
               Os dois juntos, no quarto, trepando, e nós ouvindo
               e tomando vinho.

               CHICO
               Acho.

QUARTO

Lisa grita bem alto.

               LISA
               Ahhh!

               LUCIANO
               (animado) Deu?

               LISA
               (pára um pouco e olha firme nos olhos de Luciano)
               Tá com pressa?

               LUCIANO
               Não.

               LISA
               (beijando Luciano com suavidade) Então, por favor,
               respira direito. Você sabe como respirar direito é
               importante.

Luciano respira fundo duas vezes, recompõe as energias. Lisa geme
mais alto ainda.

SALA

Os gemidos de Lisa dominam a sala. Chico e Carolina se olham.
Chico ainda está meio indeciso sobre o que fazer, mas levanta e
vai até a mesa onde está o vinho. Pega a garrafa e aproxima-se de
Carolina. Serve o vinho. Carolina olha para ele. Chico está
tomando uma decisão. Talvez sua próxima ação seja beijar
Carolina. Mas a porta do quarto abre. Lisa entra na sala,
terminando de vestir uma camiseta cumprida. Está evidentemente
irritada. Pega um copo, enche de vinho e senta. Chico e Carolina
não sabem o que fazer. Ficam alguns segundos em silêncio.

               LISA
               Por que tem que ser tão difícil?

Chico e Carolina se olham.

               LISA
               Por que a gente não tem um botãozinho pra regular
               tudo?

               CAROLINA
               (delicadamente) Regular o quê, Lisa?

               LISA
               Tudo. Eu. E principalmente o Luciano.

               LUCIANO (OFF)
               (do quarto) Vai te regular primeiro!

               CAROLINA
               O que aconteceu?

               LISA
               Nada. Bobagem. (terminando o copo com um grande
               gole) Vinho é uma das poucas coisas decentes que
               esse estado ainda produz.

               CHICO
               Vinhos e centro-médios.

QUARTO

Carolina entra e senta-se ao lado de Luciano.

               CAROLINA
               Não sei se esse fim-de-semana foi uma boa idéia. É
               difícil fazer de conta que tudo continua igual.

Luciano fica alguns segundos pensando.

               LUCIANO
               No fundo, tá tudo igual. A Lisa não mudou nada. A
               gente casou, eu pensei que isso fizesse diferença,
               mas não faz.

Carolina fica olhando Luciano.

SALA

Lisa e Chico conversando.

               LISA
               Eu já te contei como o Luciano me convenceu a
               casar com ele?

               CHICO
               Não.

               LISA
               Ele me disse que se eu me casasse com ele nunca
               mais seria internada. E eu achei ótimo ter alguém
               se preocupando com isso. Mesmo que seja mentira.

Lisa começa a chorar, bem de mansinho. Chico levanta e
aproxima-se. Fica de joelhos na frente dela. Lisa olha para ele.
Chico a abraça. Ficam assim abraçados um longo tempo.

CENA 130 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA

Uma embalagem de alumínio aterrisa no centro da mesa. Outra vem
logo depois. Ambas contêm comidas aparentemente saborosas.

               LUCIANO
               Vualá! Camarões à catupiri e filés de haddock ao
               molho de champanhe.

               CHICO
               Isso é totalmente irregular.

               LUCIANO
               (rindo) Então não come.

               CAROLINA
               (servindo-se) As regras não ficaram bem claras.
               Por mim, tudo bem.

               LISA
               (também servindo-se) O Luciano não gosta de perder
               tempo. Abriu, enfiou no forno, tirou, tá pronto.

Carolina e Chico não percebem o duplo sentido da frase, mas
Luciano fecha a cara.

               CAROLINA
               (comendo) Deixa de frescura, Chico. Tá ótimo.
               (para Luciano) As vezes você tem algumas idéias
               razoáveis, Luciano.

Ele não acha graça. Carolina e Chico percebem que ele não achou
graça.

               CAROLINA
               Quê que foi, Luciano?

               LUCIANO
               Nada. Eu não estou com muita fome, só isso.

Luciano sai da mesa. Clima pesado. Chico e Carolina não entendem
bem o que tá acontecendo. Lisa come, quieta.

CENA 131 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Agora, no jantar de Lisa, dominam os pratos integrais, mas
bastante sofisticados. Lisa está na cozinha, fazendo bolinhos de
verdura. Os outros três estão na mesa, já comendo.

               CAROLINA
               (gritando para Lisa) Vem comer, Lisa.

               LISA
               (da cozinha) Tô só terminando o Alu Patra. Já vou.

               CAROLINA
               (em voz baixa, para Luciano, em tom imperativo) Se
               vocês continuarem com esse joguinho idiota de não
               se falarem, eu juro que pego o carro agora e volto
               pra Porto Alegre.

               LUCIANO
               Não é joguinho. Eu não tenho nada pra dizer.

               CHICO
               Dá um tempo, Luciano.

Lisa chega com os bolinhos. Coloca a travessa sobre a mesa e
senta. Luciano nem olha pra ela.

               LISA
               Agora só falta você, Carolina.

               CAROLINA
               (levantando) Infelizmente vocês dois já
               esculhambaram o meu fim-de-semana. Não vou passar
               mais um dia inteiro vendo essa briga infantil.

               LISA
               O que você quer? Ele não quer falar, tudo bem.
               Ninguém sente falta.

Chico levanta.

               CHICO
               Eu também vou.

               LUCIANO
               O que vocês querem? Que a gente fique posando de
               casal feliz? (Levanta, vai até Lisa e a abraça)
               Olha, pessoal, como a gente se ama. Vocês querem
               que a gente se beije? Tudo bem.

Luciano beija Lisa, que está impassível.

               CHICO
               Eu só quero que vocês parem de bancar adolescentes
               em crise.

               LISA
               Tudo bem. (E para Luciano:) Nunca mais, mas nunca
               mais mesmo, me chama de louca.

               LUCIANO
               Eu não te chamei de louca.

               LISA
               Tudo bem. Eu vou fazer de conta que não falou.
               Agora sentem. Se vocês não comerem tudo, tenho um
               surto psicótico em cima dos rolinhos de repolho.

Chico e Carolina sentam outra vez. Discretamente, mas muito
discretamente mesmo, Carolina segura por um instante a mão de
Luciano.

CENA 132 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Os quatro estão jogando canastra de parceria. Homens contra
mulheres. Um baseado corre de mão em mão. Lisa bate. Chico está
com trezentas cartas na mão. Fica alucinado.

               CHICO
               Eu só precisava de um sete de ouros!

               LUCIANO
               E eu tinha ele na mão, ô animal. Por quê não foi
               baixando aos poucos?

               CHICO
               Eu tava esperando a Carolina me dar.

               LISA
               Esse é teu problema, Chico. Tá sempre escondendo o
               jogo.

               CHICO
               Não tem onde comprar chocolate nessa praia!

               LUCIANO
               Par ou ímpar?

               CHICO
               Par.

Eles mostram os dedos. Luciano ganhou.

               LUCIANO
               (aliviado) Vai, meu irmão.

               CHICO
               Mas era só brincadeira.

               CAROLINA
               Brincadeira nada. Larica é coisa muito séria.

               LISA
               Pára de chorar, Chico. Eu vou contigo. (E
               levanta.)

CENA 133 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE

Chico e Lisa andam por uma rua deserta.

               CHICO
               Que frio.

               LISA
               (abraçando Chico) Eu te esquento.

Segura Chico pelo braço e olha firme pra ele. Começa um beijo
apaixonado.

CENA 134 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Um beijo longo, quente e apaixonado entre Carolina e Luciano.

CENA 135 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA

Uma grande travessa de arroz com galinha aterrisa sobre a mesa. O
clima é bem alegre. Carolina está servindo. Todos comem com
satisfação.

CENA 136 - CARRO - EXTERIOR/NOITE

A volta para Porto Alegre, no carro, à noite. Os quatro estão em
silêncio.

               LUCIANO
               Vocês gostam de fofoca?

Segundos de silêncio.

               CAROLINA
               Gostamos.

Segundos de silêncio.

               LUCIANO
               E de ba-baleia?

Continua o silêncio. Lisa começa a sorrir. Carolina solta um
risinho abafado. Chico começa a rir. Luciano ri alto. Todos riem.
O carro se perde na escuridão.

CENA 137 - CASA DE CHICO - INTERIOR/DIA

Chico está ao telefone e rabisca sua agenda. Tem vários números
de telefone riscados.

               CHICO
               Eu precisava muito falar com o Andrew, eu liguei
               da praia, ontem. (...) Você me disse isso ontem.
               (...) Mas tem certeza que ele recebeu o recado?
               (...) E você disse que era eu? (...) Eu já liguei
               pra lá, várias vezes, disseram que ele não tinha
               chegado, depois disseram que ele já tinha saído.
               (...) Tudo bem. (...) Eu lhe dei também o meu
               telefone de casa? (...) Certo. Tudo bem. Desculpe
               a insistência, mas é importante. (...) Tudo bem,
               obrigado.

CENA 138 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Onze da noite no apartamento de Chico. Ele está assistindo ao
programa político no vídeo-cassete. É um comício do Andrew. Toca
a campainha. Chico dá pause, congelando a imagem de Andrew. Sai
do quarto e vai atender a porta. É Lisa.

               LISA
               Você tá sozinho? Você não tá sozinho...

               CHICO
               Estou sim, estava vendo um pouco de televisão.

               LISA
               Eu vim me despedir.

               CHICO
               Tá indo viajar? Pra onde?

               LISA
               Pro Acre.

               CHICO
               Acre?

               LISA
               É. Um lugar chamado Céu do Mapiá.

               CHICO
               (decepcionado) Daime, Lisa...

               LISA
               Você já conhece?

CENA 139 - ACRE - EXTERIOR/DIA

A partir daqui, os diálogos ficam OFF e aparecem imagens
correspondentes às falas, ilustrando a futura odisséia de Lisa,
sob dois pontos-de-vista completamente diferentes.

Lisa dentro de uma canoa, com muitas árvores ao fundo

               LISA (OFF)
               É o último lugar mágico de mundo. Pra chegar lá,
               tem que andar dois dias de canoa no meio da
               floresta.

Lisa, já toda de branco, pôr-do-sol ao fundo, dança e canta um
hino religioso.

               CHICO (OFF)
               É uma religião, Lisa. Mais católica que a
               católica. As mulheres nem podem dançar perto dos
               homens.

Lisa fuma um grande baseado com outros FIÉIS.

               LISA (OFF)
               Sabem como é que eles chamam baseado? Santa Maria.

Lisa toma um grande gole do daime e olha em frente.

               CHICO (OFF)
               Isso é nostalgia, saudade da infância. Lisa, os
               caras bebem um troço mais forte que ácido. E você
               sabe o que acontece quando você toma ácido.

Lisa olha para as árvores, que mudam de cor e forma.

               LISA (OFF)
               O ácido é pura química. O daime é a própria
               floresta. Raiz, folha, terra. Deve ser
               maravilhoso.

Lisa vomita.

               CHICO (OFF)
               Lisa, deve ser horrível.

Lisa, em paz, deitada numa rede, depois de vomitar, olha para a
floresta.

CENA 140 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico e Lisa estão sentados na sala.

               LISA
               Deve ser maravilhoso.

Ficam em silêncio por alguns segundos. Chico desistiu de
argumentar com Lisa. De repente, o som da televisão invade a
sala, alto.

               LISA
               Tem alguém aí.

               CHICO
               Não, é o vídeo.

Chico se levanta, vai até o quarto e desliga a tevê.

               CHICO
               (voltando do quarto) Não adianta, quando você bota
               um negócio na cabeça, ninguém tira.

               LISA
               Me faz um favor? Conta pro Luciano?

               CHICO
               Que você vai pro Acre?

               LISA
               Eu não tive coragem, não queria discutir. Disse
               que tava indo prum congresso de numerologia em
               Manaus.

               CHICO
               Quando você vai?

               LISA
               Amanhã de manhã. Não gosto de despedida. Tchau,
               Chico.

Lisa beija Chico, na boca, mas rapidamente. Vai em direção à
porta.

               CHICO
               Espera um pouco!

Lisa abre a porta, abana e some.

CENA 141 - ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - INTERIOR/NOITE

Davi está sentado numa grande mesa ao lado de vários EMPRESÁRIOS.
Uma faixa indica o "Fórum Contra a Corrupção". Davi faz um
discurso inflamado. Chico e sua EQUIPE gravam tudo.

               DAVI
               ...a presença excessiva do estado na economia é a
               principal causa da corrupção. Pois se o estado,
               com sua grande máquina emperrada, obstrui a
               passagem da iniciativa privada, é natural e, não
               sejamos hipócritas, é mesmo previsível que o
               empresário use de todos os meios ao seu alcance
               para limpar o caminho. Nenhum empresário vai ficar
               passivamente observando a falência de sua empresa
               enquanto o estado coloca impecilhos para o
               desenvolvimento: impostos abusivos, exigências
               legais antiquadas e um sem número de taxas sociais
               que têm como único objetivo sustentar os currais
               eleitorais de políticos profissionais.

Aplausos. Chico avista seu pai, o doutor Ernâni, no meio da
platéia. Eles trocam um cumprimento discreto.  

               DAVI
               Isso sem falar no protecionismo cartorial
               praticado por algumas sindicalistas que, ao invés
               de se preocupar com a segurança e as melhores
               condições de trabalho de sua categoria, preferem
               acirrar o confronto com os empresários, incentivar
               as greves e dar entrevistas na televisão.

Aplausos. No fundo da sala, Luciano e Ibarri discutem e
gesticulam muito. Luciano parece estar bastante irritado. Chico
percebe.

               DAVI
               Depois, com a falência das empresas, com a quebra
               de fábricas que não suportam as folhas de
               pagamento e os encargos sociais, vêm o desemprego
               e o trabalhador fica desassistido. E aí aqueles
               mesmos sindicalistas culpam os empresários pelo
               desemprego. É pura demagogia! (aplausos
               entusiasmados)

CENA 142 - PRÉDIO DA ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - EXTERIOR/NOITE

Do lado de fora do prédio, Davi cumprimenta os empresários,
despede-se, ri muito. Todos parecem exageradamente ricos, gordos
e felizes. Davi embarca em seu carro de luxo sob aplausos e
flashes. A cena é parte do programa de TV de Andrew.

               LOCUÇÃO
               O candidato dos grandes empresários diz que a
               culpa da corrupção é do estado. Mas não diz que
               são os grandes empresários que pagam o suborno. O
               candidato dos patrões diz que o desemprego é culpa
               dos trabalhadores. Mas não diz que as grandes
               empresas nunca abrem mão do seu lucro.

O motorista bate a porta e dá a volta no carro. Dois MENINOS DE
RUA se aproximam do carro. A SEGURANÇA barra a passagem das
crianças. Davi sai abanando e sorrindo para as câmaras. A imagem
congela com um flash estourando no rosto sorridente de Davi em
seu carro e o braço de um segurança impedindo a passagem das
crianças.

               LOCUTOR
               O candidato dos ricos diz que o seu governo vai
               ser bom para os pobres. Você acredita?

REPÓRTER caminhando na rua.

               REPÓRTER
               (uma edição repete a pergunta várias vezes
               sugerindo o nome de Davi)
               Como é que vai a vida / a vida / davidavi ?

               VÁRIAS PESSOAS
               Terrível! / Ruim pros pobres. / Mal. / Pra quem
               trabalha vai mal. / Tá difícil, né?

Vinheta eletrônica encerra o programa de Andrew. Outra vinheta
(ridícula) começa o programa de GABRIEL, o candidato da situação,
um velhinho simpático de gravata borboleta e colete.

               GABRIEL
               Meus queridos amigos. Nós não vamos entrar nesse
               jogo de agressões. Como muito bem disse
               Chesterton, "quando dois homens se ofendem em
               público é justo crer que os dois têm razão".
               Vamos, ao contrário, usar este espaço para meditar
               sobre o sentido da democracia. A democracia, meus
               amigos...

A televisão é desligada.

CENA 143 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE

Carolina estava assistindo ao programa. Chico entra, carregando
umas fitas. Carolina desliga a TV.

               CHICO
               E aí? Viu o programa dele?

               CAROLINA
               Acabei de ver. É bom.

               CHICO
               Bom em que sentido?

               CAROLINA
               Bom, bem feito. Bom pro Andrew. (pausa) Conseguiu
               falar com ele?

               CHICO
               Não. Já deixei quinhentos recados, ele não
               respondeu.

Chico entrega um papel para Carolina.

               CHICO
               Dá uma olhada nisso aqui.

               CAROLINA
               Pesquisa? E aí?

Carolina olha o papel com atenção.

               CHICO
               O Davi subiu, dois pontos. O Andrew subiu oito
               pontos. Oito pontos em quinze dias. Sabe o que
               isso significa? A diferença agora é de dez pontos.
               Aquele imbecil do Gabriel caiu mais três, o resto
               continuou na mesma, com um ou dois pontos.

               CAROLINA
               Hoje o Gabriel queria "meditar sobre o sentido da
               democracia".

               CHICO
               O sentido da democracia é de fora pra dentro.
               (pausa) Se continuar assim a decisão vai ser entre
               o Andrew e o Davi.

               CAROLINA
               O que significa...

               CHICO
               Provavelmente, uma úlcera.

CENA 144 - ESTAÇÃO RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA

Lisa desce de um ônibus. Carrega apenas uma mochila e uma sacola
cheia de garrafas.

CENA 145 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Lisa está vestida com uma bata azul cheia de desenhos coloridos.
À sua frente, muito constrangidos, estão Chico, Carolina e
Luciano.

               LISA
               Vocês se recusam a cantar os hinos, tudo bem. Eu
               entendo. Mas na hora de tomar vocês devem fazer o
               que eu mandar, certo?

               LUCIANO
               Depende...

               LISA
               Então fica sem.

               CHICO
               A gente tem um pouco de medo.

               LISA
               Medo de quê? Eu tô aqui, pra cuidar de vocês. Não
               tem nenhuma energia negativa nessa sala.

               CAROLINA
               Lisa, eu não quero passar mal, vomitar, essas
               coisas.

               LISA
               Nem todos vomitam. (Aproxima-se de Carolina com um
               copo cheio) Carolina, você acha que eu ia te dar
               uma coisa ruim?

               CAROLINA
               Não.

               LISA
               Então toma.

Lisa estende o copo para Carolina, que o pega, ainda receosa.

               CAROLINA
               Tudo?

               LISA
               Tudo. Se quiser, fecha o nariz com a mão.

Carolina tapa o nariz, olha rápido para Chico e Luciano e toma
tudo num gole só. Senta numa cadeira e respira fundo. Lisa
ajoelha na frente dela, sorri e segura suas mãos com força.
Depois enche um copo para si e também toma tudo. Senta ao lado de
Carolina. Luciano e Chico, ainda de pé, sentem-se covardes.

               CHICO
               Tudo bem. Eu tomo, mas não o copo todo.

               LUCIANO
               A gente mesmo se serve, tá?

               LISA
               Se tomar muito pouco, é desperdício.

Chico e Luciano servem-se, menos de um terço de copo cada um, e
bebem. Sentam-se num outro sofá. Chico bota a mão na boca e sai
correndo da sala. Barulho de vômito vindo do banheiro. Os olhos
de Carolina ficam muito injetados.

               CAROLINA
               Que árvore linda! Toda vermelha...

Lisa sorri e fala baixinho no ouvido dela. Luciano sai da sala,
rumo à cozinha. Abre a geladeira e pega uma garrafa de Coca-Cola
litro. Enche um copo e bebe sofregamente. Chico também vai para a
cozinha.

               LUCIANO
               Tô tentando diluir essa merda.

               CHICO
               Eu preciso de um troço doce.

Do fundo da geladeira, Chico pega uma torta de chocolate e começa
a comer compulsivamente.

Chico e Luciano servem-se de torta.

Luciano abre uma garrafa de dois litros de refrigerante e serve
dois copos.

Luciano e Chico, ao lado da geladeira aberta, dividem o último
pedaço da torta.

Carolina e Lisa chegam na cozinha, completamente viajantes.
Carolina parece não entender o que está acontecendo. Mas Lisa, de
dentro de sua viagem, consegue articular:

               LISA
               No Mapiá, só o padrinho Sebastião tem geladeira.

Luciano e Chico olham para elas, culpados, sem qualquer defesa.
Lisa começa a cantar, em tom de hino religioso.

               LISA
               Com minha mãe estarei / na santa glória um dia /
               ao lado de Maria, no céu triunfarei.

Carolina começa a cantar junto.

               LISA E CAROLINA
               No céu, no céu, no céu triunfarei...    

CENA 146 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA

O céu aerografado, no estúdio. Davi está sentado em frente ao
cenário, olhando diretamente para a câmara. Chico fala fora de
cena.

               CHICO (OFF)
               Você já usou drogas?

               DAVI
               (rindo) Não. Mas eu conheço...

               CHICO (OFF)
               Por favor, Davi, não ria quando responder
               perguntas. Você fica parecendo pedante.

Davi fica sério, um pouco seguindo instruções, um pouco porque
não gostou da objetividade agressiva de Chico.

               CHICO (OFF)
               Você já usou drogas?

               DAVI
               Não. Mas eu conheço gente que usa, são meus
               amigos.

               CHICO (OFF)
               Você é amigo de drogados?

               DAVI
               Não é isso, é que eu acho que..

               CHICO (OFF)
               Diga que você não usa, nunca usou, ponto. Se o
               repórter perguntar se você conhece alguém que usa
               ou usou você diz que sim, ponto. Se ele perguntar
               mais, diga que você não é juiz de ninguém, que os
               viciados devem ser tratados, que os traficantes
               devem ser presos, que tem muitos poderosos
               acobertando o narcotráfico, enfim, obviedades.

Davi acha graça.

               CHICO (OFF)
               Não tente ser engraçado nem informal. Você não é
               engraçado. Seja sério e pareça honesto. E não diga
               "eu acho". Achar, qualquer um acha, parece chute,
               palpite. Você quer ser o prefeito. Diga "eu penso"
               ou "eu acredito". Se você se comportar e subir dez
               pontos nas pesquisas eu deixo você usar "eu
               creio".

               DAVI
               (achando graça) Tudo bem.

               CHICO (OFF)
               Você já usou drogas?

               DAVI
               Não.

               CHICO (OFF)
               Nunca?

               DAVI
               Nunca.

               CHICO (OFF)
               Acredita em Deus?

               DAVI
               Eu sou católico.

               CHICO (OFF)
               Diga que acredita. Diga que é católico mas acha
               que religião é uma opção pessoal, íntima. Diga
               exatamente aquilo que todos já disseram, que é
               exatamente aquilo que todos querem ouvir. Não
               tente ser original. Isso assusta as pessoas.

               DAVI
               Certo.

               CHICO (OFF)
               Qual sua opinião sobre o aborto?

               DAVI
               Eu acho que... Eu acredito que... o aborto é crime
               e portanto... (pausa) O que eu devo dizer?

Chico entra em cena.

               CHICO
               (para o cinegrafista, fora de cena) Chega, pode
               parar. (para Davi) Não sei. Qual a sua opinião
               sobre o aborto?

A luz do estúdio é desligada. Chico e Davi ficam silhuetados
contra o céu do estúdio.

               DAVI
               Não sei, nunca pensei nisso. O que a prefeitura
               tem a ver com isso? Por que interessa a minha
               opinião sobre deus, drogas ou aborto?

Chico sorri, um pouco decepcionado, um pouco cansado, um pouco
absorto. Fala quase que para si mesmo.

               CHICO
               Não sei, Davi. Não tenho a menor idéia.

CENA 147 - ENTRADA DE VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA

Dois carros cheios de adesivos da campanha de Davi saem de uma
estrada de asfalto e entram numa rua secundária, sem asfalto,
típica entrada de vila popular. No carro da frente, estão o
MOTORISTA, Davi (no banco da frente, sempre acenando), Chico e um
SEGURANÇA. Chico está com cara de ressaca e saco-cheio. No carro
de trás está a EQUIPE de TV que faz a campanha de Davi
(motorista, câmara, operador de VT e diretor). O carro balança
muito.

               CHICO
               Davi, lembra que essa vila é território do Andrew.
               Se você for vaiado, não se irrite. Também não fica
               rindo, como você fez ontem.

               DAVI
               Eu sei lidar com esse tipo de gente.

               CHICO
               Esse tipo de gente vai decidir a eleição.

               DAVI
               (sempre rindo e acenando para os moradores, que em
               sua maioria acenam de volta) Eles não sabem nem o
               que é uma eleição. Eles só sabem que têm que fazer
               um xis. Um xis depois de Davi. É só isso. O resto,
               deixa comigo.

Chico está deprimido, fica em silêncio. Davi vira-se pela
primeira vez para Chico, preocupado com o silêncio dele.

               DAVI
               Ô, Chico, não posso mais nem brincar? Você me traz
               num buraco desses, onde eu vou ouvir vaia, tomar
               cafezinho frio e vão jogar coisas em mim. Eu
               venho, de bom-humor e disposto a fazer tudo que
               você mandar. Qual é o problema?

               CHICO
               Não tem problema, Davi. (pausa) Por favor, não
               fala mais naquele negócio das trezentas mil casas
               populares.

               DAVI
               Por que não? É uma estimativa muito simples. Se
               cada habitante da cidade tiver acesso a um
               financiamento...

               CHICO
               (cortando) Cada habitante da cidade? Pelo amor de
               Deus, Davi...

               DAVI
               Tudo bem. É melhor eu não gastar saliva com
               eleitor garantido.

Chico enterra-se ainda mais no banco de trás. Olha pela janela.
Os MORADORES acenam para o carro. Um MENINO, com uma bandeira de
Andrew, faz um gesto obsceno, bem agressivamente. Mas logo a
seguir aparece uma NEGRONA desdentada, com uma faixinha do Davi
na cabeça, e acena positivamente. Chico olha para trás. Ainda
consegue ver que a negrona chega perto do menino, tira a bandeira
dele e dá um empurrão. O menino cospe nela. Ela tira o chinelo e
parte pra cima do menino. O carro faz uma curva fechada e Chico
não consegue acompanhar o final da cena.

CENA 148 - COMITÊ DA VILA - EXTERIOR/DIA

Davi discursa na frente do "Comitê da Vila Caixa D'Água pela
vitória de Davi", que é um casebre caindo aos pedaços. Está em
cima de uma caixa de cerveja. Umas CEM PESSOAS à sua frente. A
maioria das bandeiras é de Andrew. A equipe de TV registra, sob o
comando do diretor. Chico está perto de Davi, mas fica em
silêncio o tempo todo.

               DAVI
               (empolgado, no final do discurso) E quando eu falo
               em trezentas mil casas populares, podem dizer que
               eu sonho, podem dizer que é demagogia, que é
               discurso eleitoreiro. Mas eu não sonho com casas
               prontas que caem do céu, presentes de Deus ou do
               governo. Eu sonho com as ferramentas, com o
               material de construção, com os terrenos, com o
               dinheiro a juros baixos, com a capacidade de cada
               um erguer, a partir de seus sonhos, uma morada
               mais digna, mais saudável e mais humana. Muito
               obrigado.

Uma grande vaia responde ao final do discurso. Há alguns aplausos
e "muito bens", mas a reação da maioria é nitidamente negativa.
Não chega a haver agressividade, e sim descontentamento. Davi
reage bem: ergue as mãos, aponta os que o aplaudem e agradece.

CENA 149 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE

Na ilha de edição, estão sentados Chico, Carolina e um operador
de VT. Um monte de fitas etiquetadas pelo chão e em cima da mesa.
No monitor, acompanhamos os últimos segundos do discurso de Davi.
Logo que as vaias começam, Chico interrompe:

               CHICO
               Dá pause aí. Carolina, me dá a fita da vila
               Recreio.

Carolina alcança uma fita. Chico dá uma olhada rápida na ficha da
fita.

               CHICO
               Dez minutos e trinta segundos.

O operador coloca a fita, dá reset na máquina e depois fast-
forward. Chega no ponto pedido por Chico: é uma pequena multidão
começando a aplaudir um discurso de Davi. Muitas bandeiras. Clima
festivo.

               CHICO
               Ainda não usamos isso aí. Edita no final do
               discurso.
 
Assistimos, a seguir, ao procedimento de edição que transforma a
reação ao discurso de Davi. Era negativa. Agora é muito positiva.
Carolina está evidentemente contrariada. Quando a sacanagem está
pronta, Chico levanta.

               CHICO
               Por favor, Carolina, coloca pra mim a vinheta
               final e cronometra.

Carolina faz um sinal de positivo com a mão. Depois pega uma fita
com a etiqueta "vinhetas" e coloca no VT1. O operador posiciona o
VT2 no final dos aplausos e dá edit. Começa a vinheta final que
tem várias imagens de Davi e, ao fundo o jingle da campanha.
Carolina assiste a vinheta até o final, com uma cara de enterro.
Luciano entra na ilha de edição, visivelmente nervoso.

               LUCIANO
               Cadê o Chico?

               CAROLINA
               Saiu há pouco. Quê que houve?

               LUCIANO
               Não entendi direito. A mãe da Lisa me ligou. Elas
               estão na delegacia.

CENA 150 - DELEGACIA DE TÓXICOS - INTERIOR/NOITE

Sala do delegado, que está nervoso. Em cima da mesa, quatro
garrafas de Daime. A mãe de Lisa, Carolina e Luciano discutem com
o DELEGADO, já faz algum tempo.

               LUCIANO
               Nós queremos ver a Lisa, agora!

               DELEGADO
               Agora não é possível. Ela está sendo interrogada.

               MÃE DE LISA
               (quase histérica) Mentira!

               CAROLINA
               Calma. Desse jeito a gente não chega em lugar
               nenhum. (Tentando manter-se calma:) Delegado, o
               senhor não tem o direito de escondê-la.

               DELEGADO
               Eu não estou escondendo nada. Daqui a pouco vocês
               podem entrar.

               MÃE DE LISA
               Eu quero ver a minha filha! Vocês bateram nela!

               DELEGADO
               Ela resistiu à prisão.

               MÃE DE LISA
               Seu desgraçado!

               DELEGADO
               A senhora se acalme, ou eu prendo a senhora por
               desacato!

               LUCIANO
               Calma, dona Dilma.

               DELEGADO
               (apontando para a mãe de Lisa) Vocês conhecem bem
               essa senhora? (olha para Luciano e Carolina, que
               não sabem o que dizer) Aposto que não. É bom que
               vocês saibam de uma coisa: a nossa diligência era
               pra pegar cocaína, que essa senhora consome em
               larga escala. Dois traficantes já nos deram o nome
               dela. Mas não achamos cocaína. Em compensação,
               achamos isso (e aponta as garrafas). E a filha
               dessa senhora está presa por porte e tráfico de...
               não sei o nome desse negócio na garrafa, mas sei
               que é uma substância estupefaciente.

               CAROLINA
               (cortando) Olha, eu não quero discutir isso agora,
               nós vamos chamar um advogado pra acompanhar tudo.
               Eu só quero ver a minha amiga. Agora!

               DELEGADO
               Impossível.

Chico chega com a equipe de gravação do programa, se fazendo de
repórter. O operador de pau-de-luz liga a refletor.

               DELEGADO
               O que é isso?

               CHICO
               (com o microfone, falando para a câmara) É um caso
               típico de abuso de autoridade. O delegado mantém
               um preso incomunicável.

               DELEGADO
               Não é verdade!  

               MÃE DE LISA
               É verdade. Eu quero ver a minha filha!

               CHICO
               (para a mãe de Lisa) O que aconteceu?

               MÃE DE LISA
               Eles entraram na minha casa à força. E bateram na
               minha filha!

               CHICO
               (para o delegado) Senhor delegado, os agentes
               tinham mandado de busca?

               DELEGADO
               (muito nervoso, não sabe o que dizer) E o senhor
               tem autorização para invadir minha sala? Qual é a
               emissora de vocês?

               CHICO
               Desliga um pouco a luz aí, Alemão. Dá pause,
               Salvador.

Salvador abaixa a câmara.

               DELEGADO
               (Percebe que é melhor mudar de tática) Eu gostaria
               de dar uma palavrinha em particular com o senhor
               antes de gravar qualquer entrevista.

Chico entrega o microfone para o cinegrafista e faz sinal para
que eles saiam da sala.

               DELEGADO
               Olha, eu vou seu franco. A nossa intenção era
               pegar a mãe, ela cheira faz tempo, arruma confusão
               com os vizinhos. Demos azar, nada de cocaína. Mas
               tinha isso aqui (mostra a garrafa), e a menina
               assumiu que era dela. E resistiu à prisão.
 
               CHICO
               Eu gostaria de ver o mandado de busca.

               DELEGADO
               Hoje não vai ser possível, o mandado está com o
               escrivão.

               CHICO
               (aproximando-se) Olha, doutor, se eu fizer as
               imagens da menina o senhor vai ficar numa situação
               difícil. Se o senhor me impedir, digo que a prisão
               é ilegal: houve invasão da casa e violência. O
               senhor não acha que nós podemos resolver isso de
               outra maneira? Afinal, o senhor só que tem essas
               garrafas. (pausa) O senhor já mandou analisar o
               conteúdo?

O delegado pega a garrafa, examina, balança a cabeça.

               CHICO
               E se não for droga nenhuma?

CENA 151 - SALA DA DELEGACIA - INTERIOR/NOITE

Chico e o delegado entram numa sala pequena. Lisa está sentada
numa cadeira, algemada, em frente a uma mesa. Um policial está de
pé perto dela. O rosto de Lisa está todo arrebentado,
principalmente um dos olhos. Ela olha para a frente,
inexpressiva. Não reage à entrada de Chico.

               DELEGADO
               Ela caiu e machucou olho.

Chico está tão chocado que não consegue falar.

               DELEGADO
               Tião, solta a moça.
 
Tião solta as algemas. Lisa continua sentada.

               CHICO
               O senhor promete que o assunto está encerrado.

O delegado assente, com um gesto. Chico ajuda Lisa a se levantar.
Ela olha pra ele, reconhece-o, mas continua calada. Caminha
devagar ao lado de Chico, rumo à porta.

CENA 152 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE

Lisa está sentada numa poltrona, com o mesmo olhar perdido de
sempre. Aparentemente perdeu o contato com a realidade. Carolina
e Chico conversam com Dilma.

               CHICO
               E ela não reage?

               DILMA
               (muito triste) Não. Fica aí, quieta, olhando pra
               frente... Eu tenho que dar comida, levar no
               banheiro...

Dilma começa a chorar. Chico olha o relógio, parece ansioso.

               CHICO
               Talvez ela precise tratamento.

               DILMA
               Que tratamento?

               CHICO
               Psiquiátrico.

Carolina e Dilma se olham, surpreendidos pela posição de Chico.

               DILMA
               Eu tentei uma vez, mas vocês não deixaram.

               CHICO
               É diferente. A senhora tava querendo proteger o
               mundo da Lisa. E agora ela é que precisa proteção.

Chico olha outra vez o relógio. Levanta.

               CHICO
               Nós temos que ir, Carolina. Dona Dilma, se a
               senhora precisar de alguma coisa, inclusive algum
               tipo de ajuda financeira, por favor, nos procure.

Chico aproxima-se de Lisa.

               CHICO
               Outra hora a gente volta.

CENA 153 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE

Sob uma chuva leve, Andrew discursa em um palanque. É um comício
da Frente Democrática. CANDIDATOS A VEREADOR e alguns
OPORTUNISTAS se aglomeram atrás de Andrew, tentando pegar lugar
nas imagens de TV. A equipe de Chico grava o comício.

               ANDREW
               ... A presença da equipe de tevê do meu principal
               oponente...

Andrew aponta para a equipe de Chico. Explode uma vaia. Algumas
pessoas jogam bolas de papel e copos na equipe. Chico diz pro
cinegrafista gravar tudo.

               ANDREW
               Calma! O que eles querem é exatamente nos
               provocar, criar confusão. A elite se protege
               usando a classe média. Eles querem mostrar ao
               eleitor de classe média, à dona de casa, ao
               pequeno empresário, que nós, da plebe, somos
               desordeiros, que nós iremos trazer o caos social.
               Fazem isso para esconder que o caos social, a
               miséria, a violência, o desemprego, já estão aí,
               companheiros. (aplausos) Fazem isso para esconder
               que é esta elite que está aí, comandando este
               país, este estado e esta cidade desde que eles
               existem, é esta elite a responsável pela miséria,
               pela violência, pelo desemprego e pela fome!
               (aplausos) Esta elite, que vampiriza o povo
               brasileiro...

Um homem, JÚLIO, bem perto do palanque, no meio do público,
começa a gritar.

               JÚLIO
               Sai, ô comunista! Ateu!

               ANDREW
               ... (meio desconcentrado) é esta elite,
               predatória.

               JÚLIO
               Baderneiro!

Um grupo de SEGURANÇAS, com a camiseta de Andrew, aproxima-se de
Júlio, que grita. Começa uma pancadaria. Os seguranças,
especialmente um, GILSON, são muito violentos e massacram o
sujeito. Chico grava todas as imagens.  

               ANDREW
               Calma, companheiros! Calma!

CENA 154 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE

Chico chega, cheio de fitas. Carolina está na ilha.

               CHICO
               (muito excitado) Receberam o meu recado?

               CAROLINA
               Chico...

               CHICO
               Preciso de pelo menos dois minutos. Quebrou o
               maior pau no comício deles, tenho imagens
               incríveis!

               CAROLINA
               Chico.

Chico pára e percebe que Carolina não está com a cara boa.

               CHICO
               Que foi, Carolina? Morreu alguém?

Carolina fica parada olhando para Chico.

CENA 155 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/NOITE

Velório. Algumas PESSOAS ocupam uma capela do cemitério. Os
rostos são tristes e encaram Chico, que passa por eles em direção
à capela, com aquele respeito excessivo dos velórios. Chico
entra, aproxima-se do caixão e observa, através do vidro, o rosto
do Velho.

Ele tem um curativo na testa e está bastante maquilado. Dona
Miriam Junqueira, aquela antiga jornalista das linguodentais
fricativas, aproxima-se de Chico.

               DONA MIRIAM
               Deve ter sido o próprio motorista ou alguém que
               passava, gente pra fazer uma maldade é que não
               falta. Ele saiu do restaurante naquele estado,
               você sabe... Não tinha nenhum dinheiro, tava com a
               roupa toda suja. Os amigos viram ele pegar o táxi.

Chico se distrai e começa a olhar em volta, mas dona Miriam
continua falando, compulsivamente.

               DONA MIRIAM (OFF)
               Foi encontrado numa vila lá no fim do mundo, perto
               de Cachoeirinha. Todo machucado, passou a noite no
               sereno, coitado, um moço de tanto talento. Não
               resistiu, a noite foi muito fria, ele já tinha o
               físico muito enfraquecido. Sabe como é. A bebida.
               Coitado, descansou.

Andrew entra na sala. Sua chegada causa alguma agitação. Andrew
cumprimenta os PAIS DO VELHO. Chico sai da sala, tentando evitar
um encontro.

CENA 156 - CORREDORES DO CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE

Chico sai do banheiro dos homens. Caminha pelo corredor do
cemitério, meio perdido. As paredes estão cobertas por túmulos,
com as fotos dos mortos e algumas flores de plástico. A luz
trêmula de uma fluorescente com mau contato deixa o cenário ainda
mais fúnebre. Chico dobra uma esquina e se vê a poucos passos de
Andrew, que se aproxima. Todo o diálogo se dá sob a vigilância
atenta dos mortos nos retratos.

               ANDREW
               (secamente) Chico.

               CHICO
               Tudo bem?

               ANDREW
               Tudo bem. E você?

               CHICO
               Tudo bem.

Andrew passa por Chico, vai se afastando, pára.

               ANDREW
               Eu queria te avisar de uma coisa, como é que se
               diz... em nome dos velhos tempos. Você sabe que só
               eu e o Davi temos alguma chance. E eu nem comecei
               a usar o que eu tenho contra ele. Você já fez um
               grande trabalho trazendo ele até aqui. Caia fora
               antes do debate, se puder.

               CHICO
               (rindo) Andrew, você me conhece o suficiente pra
               saber que eu só jogo pra ganhar.

               ANDREW
               Principalmente se o jogo for a dinheiro.

               CHICO
               Engano seu, o dinheiro é só uma desculpa. Eu não
               gosto é de perder. Me ensinaram que os mocinhos
               sempre ganham.

               ANDREW
               E você acreditou? (ri) Na vida real os mocinhos
               perdem quase todas. Quase. Esta eleição os
               mocinhos vão ganhar. E os anchietanos vão perder.

Vai saindo. Chico sai atrás dele, irritado.

               CHICO
               Você não entende nada de vida real, Andrew. Você
               entende de estratégias, de aparências e de boas
               intenções. Mas você nunca entendeu nada da vida
               real. A vida real tem pessoas e você não gosta
               muito das pessoas, Andrew, elas às vezes não se
               encaixam nas sua lógica perfeita. Aí você pega as
               pessoas, classifica e se livra delas. O Velho era
               um "vendido", lembra? O Abraão "um desbundado", a
               Lisa e o Luciano eram uns "porra-loucas". E eu sou
               "anchietano"  E você, Andrew? O que você é?

Andrew não pára de caminhar e fala sem olhar para Chico.

               ANDREW
               Mantenha a discussão no plano político,
               companheiro. Você está sem argumentos.

               CHICO
               Plano político é muito bom. Eu procurei você,
               muitas vezes, telefonei, deixei recado. Mas os
               anchietanos não faziam mais parte da sua
               estratégia. (pausa) Eu encontrei a Sílvia, lembra
               dela?

Andrew pára e encara Chico.

               ANDREW
               O que é, Chico? O que você quer? Aliviar sua culpa
               cristã em cima de mim?

               CHICO
               Ela costumava ser a mãe da sua filha. Da sua filha
               você lembra? Clarissa, é o nome dela. A Sílvia me
               disse que você não vê a sua filha há cinco meses.
               Ela pediu pra avisar que a Clarissa teve caxumba.
               ANDREW
               Você escolheu o seu lado, Chico, e está sendo
               muito bem pago pra isso. Vá em frente.

               CHICO
               Você só consegue raciocinar dividindo o mundo em
               dois, Andrew, e isso não tem nada a ver com a vida
               real.

               ANDREW
               Quem dividiu o mundo em dois não fui eu. Quando eu
               nasci ele já era assim. E eu nasci no lado errado,
               no lado sujo, sem água, sem esgoto, sem ar
               condicionado. Sem futuro. Mas o futuro a gente
               inventa, Chico, e eu vou inventar o meu. Fique com
               o Davi. De qualquer jeito, os anchietanos acabam
               jogando sempre no mesmo time.

Andrew se afasta. Chico fica parado, olhando.

CENA 157 - ENTERRO - EXTERIOR/DIA

O cortejo segue o enterro do Velho. Chico, Andrew e um grupo de
PESSOAS segue o caixão pelas galerias do cemitério.

               CHICO (OFF)
               O Velho foi um jornalista da pesada. Anistia
               Internacional, Jornal Movimento, Pasquim,
               Coojornal, você conhece o tipo. Há uns cinco anos
               encheu o saco de tudo, foi pros Estados Unidos,
               lavar prato, varrer chão. Conheceu uma mexicana,
               acabou trabalhando num posto do correio em "El
               Paso", no Texas. Os mexicanos com visto temporário
               nos Estados Unidos só podiam deixar o país e
               voltar se tivessem um aviso de problemas de saúde
               com a família. O aviso tinha que vir do México,
               por telegrama, e falar da saúde de algum parente
               direto. Óbvio que todos forjavam o tal telegrama
               pra poder visitar a família. Pra economizar, os
               cucarachas mandavam pro posto do correio de El
               Paso sempre o mesmo texto, tarifa econômica até
               dez letras: MAMA'S GRAVE. A função do Velho era
               arquivar e catalogar as centenas de telegramas com
               aquele texto: MAMA'S GRAVE. A mãe está grave. Os
               americanos achavam aquilo muito estranho, porque
               eles liam "MAMA'S GREIV": o túmulo de mamãe. O
               Velho guardou uma pilha de telegramas e alguns
               dólares, voltou ao Brasil e abriu um bar com esse
               nome, "MAMA'S GRAVE". Ele forrou uma parede do bar
               com os telegramas. O bar estava falido, acho de
               tanto ele beber o estoque. Ontem ele bebeu mais
               que o normal, entrou num táxi sem dinheiro e foi
               achado num valão em Cachoerinha, nu e com duas
               costelas quebradas. Morreu ao dar entrada no
               hospital de pronto-socorro. Isso é parte daquilo
               que o Andrew chama de "a vida real".

CENA 158 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA

Andrew dá entrevistas para vários repórteres, na saída do enterro
do velho.

               ANDREW
               Eu não vim aqui para falar de política, eu vim
               prestar uma última homenagem ao Velho. Eu aprendi
               muito de jornalismo com ele, foi um professor para
               todos nós. Sempre combateu pela liberdade de
               imprensa, pelos mais humildes, vai deixar uma
               lacuna difícil de ser preenchida.

               REPÓRTER
               Alguma estratégia especial para o último debate?

               ANDREW
               Não. Nós chegamos até aqui simplesmente dizendo a
               verdade, dizendo aquilo que todos os
               trabalhadores, estudantes e donas-de-casa já
               sabem: que esta cidade precisa de gente honesta e
               que trabalhe pelo interesse da maioria.

CENA 159 - ESTACIONAMENTO DO CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA

Chico e Luciano estão saindo do cemitério.

               LUCIANO
               A situação ficou insustentável. O Ibarri sumiu.

               CHICO
               O Ibarri é aquele teu sócio uruguaio?

               LUCIANO
               Eu descobri, entre outras coisas, que ele era
               Colombiano.

Luciano conduz Chico para o seu carro.

CENA 160 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/DIA

Chico e Luciano no carro em movimento, Luciano dirigindo.

               LUCIANO
               Eu tenho que assumir todas as dívidas da padaria.
               Tenho que vender a minha parte na produtora.

               CHICO
               Agora? No meio da campanha?

               LUCIANO
               Agora. Se eu esperar mais um pouco, todos os
               cartórios me protestam e eu tenho que pedir
               falência. E aí a coisa se complica, porque pode
               atingir a produtora.

               CHICO
               E quem vai querer comprar?

               LUCIANO
               O Davi. Pela quinta parte do que vale.

               CHICO
               Tá louco, Luciano? Eu não vou ser sócio do Davi.

               LUCIANO
               Eu não tenho alternativa. Chico, a verdade é que o
               Davi é um canalha. Talvez ele tenha planejado tudo
               com o Ibarri.

               CHICO
               E você quer que eu fique sócio de um canalha?

               LUCIANO
               Se você quiser, podemos tentar uma última jogada.
               Você larga tudo, diz que vai abandonar a campanha.
               Ele fica apavorado e admite pagar a parte do
               Ibarri.

               CHICO
               O que tem a ver a campanha com a padaria? Ele
               contrata outro cara pro meu lugar, não nos paga o
               que deve e ainda pode alegar que nós quebramos o
               contrato.

               LUCIANO
               É, é um risco. Se eu tivesse tempo, esperava o
               final da campanha. Se a gente ganhar, acho que ele
               paga. Mas se a gente perder...

               CHICO
               Luciano, eu não posso assumir o teu prejuízo da
               padaria só porque você acha que...

               LUCIANO
               Eu não acho nada. Eu tenho certeza. Chico, o Davi
               é um canalha.

               CHICO
               Há pouco você disse que achava. Agora tem certeza.

               LUCIANO
               Chico, eu estou sendo o mais claro possível: eu
               tenho que vender a minha parte na produtora, senão
               tô morto. Morto e enterrado.

               CHICO
               (vendo algo no retrovisor) Pro Davi você não vai
               vender.

               LUCIANO
               Então acha um outro comprador.

               CHICO
               Eu. Eu vou comprar. (apontando) Tem um táxi aí
               atrás.

Luciano vê o táxi e começa a fazer sinal.

               LUCIANO
               Você não tem dinheiro.

               CHICO
               Eu arrumo.

               LUCIANO
               (parando o carro) Amanhã é o meu último prazo.

               CHICO
               Então amanhã você me cobra. Agora eu vou preparar
               o debate.

Chico sai do carro. Luciano vê o amigo entrar no táxi.

CENA 161 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE

Andrew, Davi, Gabriel e dois outros CANDIDATOS preparam-se para o
debate final na TV. Cada um está de pé em um púlpito. O cenário
tem um logotipo "Eleições 89". Chico está próximo de Davi e lhe
dá algumas instruções. O ASSISTENTE DE ESTÚDIO faz sinal de que o
programa vai recomeçar. Chico e os ASSESSORES saem.

               APRESENTADORA
               Conforme as regras estabelecidas para este debate,
               neste bloco os candidatos fazem perguntas um para
               o outro. A primeira pergunta, por ordem de
               sorteio. É do candidato da Frente Democrática,
               doutor Andrew.

               ANDREW
               A minha pergunta vai para o candidato da Aliança
               Liberal. Eu gostaria de perguntar ao doutor Davi
               qual a opinião dele sobre o uso de drogas, se ele
               usa ou já usou drogas.

               DAVI
               Não uso e nunca usei drogas de nenhum tipo.
               (pausa)

               APRESENTADORA
               O senhor ainda está no seu tempo, doutor Davi.

               DAVI
               Eu já respondi à pergunta.

Andrew fala fora de quadro.

               ANDREW
               O que acha sobre o uso?

               DAVI
               Ah, sim. Eu não sou juiz de ninguém. Acho que os
               viciados devem ser tratados e que o tráfico deve
               ser combatido. O tráfico resiste porque é
               acobertado pelos políticos tradicionais, cúmplices
               dos traficantes. É preciso aparelhar a polícia,
               pagar salários dignos aos policiais. Os
               traficantes hoje estão melhor aparelhados que a
               polícia. Se o estado se preocupasse mais com a
               segurança, a saúde, a educação, e menos em manter
               empresas deficitárias, poderia combater mais
               diretamente o narcotráfico.

               ANDREW
               E como o senhor explica a apreensão pela polícia
               federal, em sua propriedade (mostrando um
               documento), a fazenda Santa Fé, na fronteira com a
               Argentina, de oitenta quilos de cocaína no avião
               prefixo PT-084, de propriedade de Lúcio Alvarez
               Ibarri, sócio na empresa "Lucky Bread Panificadora
               Limitada" de um dos patrocinadores de sua
               campanha, o empresário Luciano de Almeida. Eu
               tenho aqui todos os documentos que comprovam a
               apreensão. Os jornais, talvez atendendo a pedidos
               de um grande anunciante como o senhor, não
               noticiaram. Isso foi em maio do ano passado. O
               senhor poderia esclarecer o fato aos seus
               eleitores.

               DAVI
               (um pouco tenso) É muito simples. Um avião de um
               sujeito que eu nunca vi e não conheço, com o qual
               eu não tenho ou tive qualquer relação, pessoal ou
               comercial, este avião, transportando drogas,
               invadiu o espaço aéreo brasileiro e pousou na
               pista de pouso de uma das... de um sítio que eu
               tenho. A polícia federal apreendeu a droga, o
               avião e os traficantes estão presos. Eu não tenho
               nada a ver com isso, não fui acusado nem indiciado
               de nada. O senhor está me acusando de alguma
               coisa? (pausa) Porque se o senhor está me acusando
               eu vou lhe exigir que prove suas acusações, ou
               então eu vou lhe acusar de calúnia, injúria e
               difamação!

Toca uma campainha, indicando que o tempo acabou.

               ANDREW
               Eu não lhe acusei de nada...

               APRESENTADORA
               É a sua vez de perguntar, doutor Davi. Pela ordem,
               a pergunta do candidato da Aliança Liberal.

               DAVI
               Pois eu vou retribuir a gentileza e perguntar ao
               doutor Andrew.

Os outros candidatos acham graça.

               DAVI
               Eu gostaria que o senhor explicasse, doutor
               Andrew, a atuação do pessoal da sua segurança no
               comício deste sábado. As imagens daquela
               selvageria os telejornais mostraram, eu nem
               preciso relembrar. Eu estive no hospital visitando
               o seu Júlio, aquele senhor, pai de família, que
               esteve no seu comício e cometeu o crime de
               expressar a sua opinião. Ele perdeu dois dentes e
               talvez fique cego de um olho. É isso que o senhor
               chama de convivência democrática?

               ANDREW
               Não, é isso que eu chamo de armação. E quem tem
               que explicar é o senhor. Primeiro o senhor tem que
               explicar o que a sua equipe de televisão estava
               fazendo no meu comício. Porque as imagens que os
               telejornais mostraram, como o senhor diz, foram
               fornecidas pela sua equipe de TV, estrategicamente
               colocada para documentar a briga. Em segundo
               lugar... (pega um envelope) o senhor tem que
               explicar...

Andrew mostra duas fotos. Numa, tirada do vídeo do comício,
aparece o Segurança com a camisa do Andrew chutando o seu Júlio.
Na outra, o mesmo Segurança, num comício, ao lado de Davi. Chico
também aparece nesta foto.

               ANDREW
               ...o que este homem, Gilson Alves, o mesmo que
               agrediu selvagemente a seu Júlio, o que este homem
               fazia na sua passeata, poucos dias antes. Isso se
               chama armação!

CENA 162 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE

Carolina chega. Chico está vendo o debate, agora reproduzido num
telejornal.

               DAVI
               (gritando) Isso é um absurdo! Meu oponente quer
               justificar a selvageria da sua segurança,
               transferindo a culpa para mim. É muita cara de
               pau! Eu nunca vi este sujeito na minha vida...

Apresentador do jornal.

               APRESENTADOR
               E aí, Zé Antônio. O debate pode alterar o
               resultado da eleição?

               ZÉ ANTÔNIO
               Veja bem, faltando poucos dias para a eleição a
               situação realmente esquentou com as denúncias de
               Andrew. Davi foi pego de surpresa durante o
               debate. E o tal segurança, João Alves, parece que
               saiu do Brasil. Amanhã é o último dia da campanha
               na televisão e a vantagem de Davi é pequena...

Chico desliga a TV.

               CAROLINA
               Foi bem ruinzinho.

Chico ri.

               CAROLINA
               Você sabia da armação do comício?

               CHICO
               (estranhando a pergunta) Óbvio que não, Carolina.

               CAROLINA
               E o que você estava fazendo lá?

               CHICO
               A assessoria pediu que eu gravasse o discurso
               inteiro, pra mostrar o lado mais furioso do
               Andrew. (pausa) Fazia sentido.

               CAROLINA
               E aí eles armaram a briga. São uns cretinos!

               CHICO
               Pode ser mentira.

Carolina estranha.

               CHICO
               Pode ser a armação da armação. Você não viu como
               era boa a foto do Davi com o segurança? O cara
               pode ter ido, a mando do Andrew, antes no comício
               do Davi, pra ser fotografado. Depois ele vai no
               comício do Andrew, com a camisa do Andrew, e cobre
               de porrada um eleitor do Davi. Aí a gente filma e
               denuncia. E eles mostram a foto, dizem que o cara
               é da turma do Davi e nos desmoralizam. Xeque. Mas
               ainda não foi o mate.

Carolina fica alguns segundos paralisada, assombrada com o
raciocínio tortuoso de Chico.

               CAROLINA
               Você não tá falando sério... O cara sumiu do
               Brasil, largou tudo, deve ter ganho uma fortuna.

               CHICO
               De quem?

               CAROLINA
               Do Davi, é óbvio, Chico!

Carolina larga algumas fitas, preenche uma planilha.

               CAROLINA
               Saiu a pesquisa?

Chico faz que sim.

               CAROLINA
               E aí?

               CHICO
               O Andrew ficou na mesma. O Davi caiu um pouco.

               CAROLINA
               Um ponto?

               CHICO
               Um POUCO. Quatro pontos.

               CAROLINA
               Quatro! A diferença ficou...

               CHICO
               Três pontos.

               CAROLINA
               Isso antes do debate.

               CHICO
               Antes do debate.

               CAROLINA
               Então o Davi já era, acabou.

               CHICO
               Ainda não. Falta um programa, amanhã.

Carolina ri. Levanta.

               CAROLINA
               Você não pode mudar o caráter do Davi com dez
               minutos de vídeo-tape.

               CHICO
               Mas talvez eu possa mostrar o do Andrew.

               CAROLINA
               Você já fez bastante, Chico. Vamos embora.

               CHICO
               Quer ver o que eu já editei?

Não espera resposta. Aciona a máquina que começa a rodar o VT.
São imagens do comício. Gilson Alves surra o sujeito, caído no
chão, pessoas gritam e atiram coisas na câmara. As imagens são
intercaladas com um amanhecer na cidade, destacando o prédio da
prefeitura. O gabinete do prefeito, a decoração clássica do
prédio e a tranqüilidade da manhã formam um grande contraste com
a fúria da turba no comício.

               LOCUÇÃO (OFF)
               A cidade vai escolher seu prefeito, o homem que
               vai ocupar esta casa nos próximos quatro anos.
               Este homem precisa ter preparo, tranqüilidade,
               moderação. Este homem precisa ser DAVI. Ou você
               entregaria a cidade a este homem?

Da surra de Júlio, fusão para o rosto enfurecido de Andrew no
discurso. Fim da edição.

               CAROLINA
               Mantenha a plebe longe dos cristais de Versalhes.
               Muito bom. (pausa) Mas não é o suficiente, você
               sabe disso. Você fez o possível, Chico, vamos
               embora. São quase duas da manhã.

               CHICO
               Eu vou ficar mais um pouco.

Carolina levanta, vai saindo.

               CAROLINA
               Eu vou visitar a Lisa amanhã. Você não quer ir
               junto?

               CHICO
               Acho que não vou poder.

               CAROLINA
               Algum recado pra ela?

               CHICO
               Mama's grave.

Carolina não acha graça. Sai. Chico fica sozinho na ilha. Começa
a rever o final da edição, o rosto enfurecido de Andrew, o homem
caído no chão, sendo chutado.

               LOCUTOR
               ...ou você entregaria a cidade a este homem?

Chico congela a imagem no rosto de Andrew. Pega uma fita na
gaveta. Põe na máquina. Posiciona a fita. Aperta o botão
"PREVIEW". Entra a imagem final da edição.

               LOCUTOR
               ...ou você entregaria a cidade a este homem?

Surge, numa continuação da edição, a imagem de Andrew no debate.

               ANDREW
               Eu gostaria de perguntar ao meu oponente qual a
               opinião dele sobre o uso de drogas, se ele usa ou
               já usou drogas.

Andrew, alguns anos mais moço, no estúdio da TV, com um baseado
na mão.

               ANDREW
               Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades
               democráticas e por uma melhor distribuição de
               maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la
               marijuana jamás!

A edição intercala as duas imagens de Andrew.

               ANDREW
               ...sobre o uso de drogas / por uma melhor
               distribuição de maconha! / uso de drogas / maconha
               / se ele usa ou já usou / maconha / sobre o uso de
               drogas / Hay que endurecerse, pero sin faltar la
               marijuana jamás!

Congela na expressão de chapado de Andrew.

               LOCUTOR
               Você entregaria a cidade a este homem?

Chico fica alguns segundos avaliando o efeito devastador da
edição. As máquinas voltam aos pontos originais, as imagens da
pancadaria e a pergunta de Andrew no debate. O botão "EDIT" fica
piscando em vermelho. Ao seu lado, apagado, o botão "CANCEL".
Chico fica olhando o botão piscar. Chico aperta o botão "EDIT".

CENA 163 - IGREJA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA  

Um bando de MENINOS E MENINOS estão na fila do confessionário.
Eles esperam encostados na parede, em silêncio. Quando um
desocupa o confessionário o outro vai.

               CHICO (OFF)
               No colégio, toda primeira sexta-feira do mês a
               gente tinha que se confessar. A gente ficava em
               fila e entrava num lugar apertado e falava com
               alguém que a gente não via, como num banco 24
               horas. Nós inventávamos todos os pecados. O
               roteiro dos meus pecados inventados era
               subliteratura infantil: bati na minha irmã, roubei
               uma fruta do quintal do vizinho e - para dar
               alguma credibilidade - disse palavrão. Três
               Avemaria, três Santoanjo, três Painosso, seguinte!
               Inventei um jeito de rezar mais rápido, só com os
               melhores momentos de cada reza. Ave convosco,
               bendito seus frutos, venha a nós o vosso reino,
               meu zeloso seatime confiou agora e na hora de
               nossa morte amém. Pagava minha dívida antes mesmo
               de sair da igreja e podia começar a pecar de novo,
               do zero. São os milagres da fé. Eu ainda não sabia
               que inventar pecados é o mesmo que cometê-los.
               Quase o mesmo.

CENA 164 - COMITÊ DE ANDREW - INTERIOR/NOITE

Andrew dá entrevista para vários REPÓRTERES. Ele parece estar
muito tranqüilo.

               ANDREW
               Foi uma grande vitória, uma vitória dos
               trabalhadores, da sociedade organizada. Nunca na
               história desta cidade um candidato que
               representava as classes populares teve uma votação
               tão expressiva. Elegemos um grande número de
               vereadores, quase que dobrando a nossa bancada. E
               só não ganhamos a eleição majoritária porque no
               último instante nossos adversários apelaram para
               calúnias e difamações. A Frente Democrática
               inclusive pretende recorrer até ao Supremo
               Tribunal Eleitoral...

CENA 165 - ESTÚDIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE

Festa. Davi é carregado nos ombros da galera. Todos cantam o
jingle da campanha. As grandes letras D A V I foram arrancadas do
céu do estúdio e são erguidas pela TURBA como troféus de uma
batalha. Davi é colocado sobre um palanque improvisado. Pede
silêncio. Todos ficam quietos.  Davi faz uma longa e emocionada
pausa.

               DAVI
               Meus amigos e minhas amigas. Eu creio...

Chico, num canto do estúdio, fecha os olhos, suspira. Davi
continua o seu discurso, mas Chico não escuta mais. A multidão
aplaude.

               CHICO (OFF)
               O ano era mil novecentos e oitenta e nove, Brasil,
               e quase todas as pessoas tinham trinta anos. Ou
               mais. Quase todas as pessoas estavam infelizes,
               angustiadas, desiludidas.

CENA 166 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA

Lisa, sentada ao lado de Chico.

               CHICO (OFF)
               Ou mais. É muito perigoso inventar um futuro. Tem
               sempre alguém que acredita. Aí você tem que
               inventar outro, e outro, e outro, cada vez mais
               rápido.

CENA 167 - COLÉGIO DE JOSÉ - EXTERIOR/DIA

Chico espera José na saída do colégio. José, um garoto de doze
anos, sai da escola conversando com amigos. José vê Chico e
oferece carona aos amigos. Todos aceitam e entram no carro.

CENA 168 - FRENTE DO EDIFÍCIO DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA

José desce do carro de Chico. Caminha em direção à porta de
casa. Carolina aparece para receber José. Chico abana mas ela não
retribui. Dá as costas e entra no prédio. José abana para Chico.

               CHICO (OFF)
               Sobre o passado, não tenha dúvida que as vidas do
               herói, do canalha e do mártir são a mesma, com
               três montagens diferentes. Ou três públicos
               diferentes.  

CENA 169 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico chega em casa, que está a maior bagunça, com uma pilha de
correspondência e jornais na frente da porta. Chico liga a TV. No
telejornal, festa dos partidários de Davi pelas ruas da cidade.

               CHICO (OFF)
               O primeiro livro que eu lembro é "O Conde de Monte
               Cristo". Ficar milionário e se vingar de todos é
               um futuro maravilhoso aos doze anos de idade.
               Quase todos os livros infantis de sucesso falam de
               ficar rico e se vingar. Quase todos os livros
               adultos de sucesso também.

Chico abre a geladeira. Tem água, um ovo e uma lata de negativo.
Fecha a geladeira. Senta na frente da televisão. Já é noite. Fica
mudando de canal com o controle remoto: programas de auditório,
baixarias variadas, violência e sexo gratuito.

               CHICO (OFF)
               Outro futuro bastante popular é o "todos vão se
               dar bem". Políticos, religiosos e os gentis
               patrocinadores gostam muito deste futuro. É uma
               ficção óbvia, ainda mais improvável que o Conde de
               Monte Cristo. Mas não precisa de inimigos e,
               portanto, é bom para os negócios.

Chico vai até a janela. Já é muito tarde, a rua está deserta. Tem
umas crianças tentando dormir na calçada.

               CHICO (OFF)
               O futuro mais normal no Brasil é "quase todo mundo
               se dá mal, especialmente se tiver nascido pobre e
               meio escurinho. Se for mulher, nordestino ou
               deficiente, pior ainda". É claro que os gentis
               patrocinadores detestam este futuro: é real,
               injusto e não vai sair em vídeo.

Chico volta para a poltrona, senta na frente da tevê.

               CHICO (OFF)
               Você pode tentar inventar o seu futuro. Mas não se
               preocupe demais. Em todos eles a gente morre no
               fim.
 
A programação da TV chega ao fim. Aparece uma mulher para se
despedir.

               MULHER
               Estamos encerrando nossas transmissões esperando
               reencontrá-lo amanhã. Um bom descanso para todos e
               uma boa noite.

FIM

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(c) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1993-1997
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

29/07/1997

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