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ANCHIETANOS
roteiro de Jorge Furtado,
Carlos Gerbase
e Giba Assis Brasil
primeiro tratamento - 11/02/1993
(formato de longa-metragem - não realizado)
projeto: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - CORREDOR DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
Um corredor de colégio, largo, comprido e vazio. Azulejos na
parede, basculantes, piso preto de pedra. Ouvem-se ao longe, um
andar acima, passos que se aproximam. É um salto de madeira, e o
som dos passos ecoa pelo colégio vazio. O ritmo muda quando os
passos começam a descer a escada. O som cresce e se aproxima. Uma
mulher GORDINHA, provavelmente uma professora, aparece no
corredor, saindo da escada. Ela caminha alguns passos no corredor
e some. Os passos agora descem a escada e se afastam. Ouve-se
muito longe uma porta que abre e fecha. O corredor, largo,
comprido e vazio, agora está vazio até de sons. Nada acontece.
Toca a sirene.
Mil ADOLESCENTES explodem no corredor. Correm, riem, xingam,
abanam, beijam, mascam, pulam, gaguejam, falam, coçam, apertam,
sacodem, sentam, levantam, caminham, falam e, principalmente,
gritam. São loiros, morenos, ruivos, sardentos, cheios de
espinha, gordos, de aparelho, de boné, baixos, altos, de óculos,
meninos, meninas, magros e brancos.
Toca a sirene.
No corredor vazio, comprido, largo e silencioso, um copo de
plástico quebrado é sacudido pelo vento.
CENA 2 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
MAURÍCIO, um professor baixinho troncudo com cara de cavalo,
vestindo um terno xadrez, termina de fazer a chamada dos alunos.
CHICO (OFF)
Eu lembro de um professor de alguma coisa que, no
primeiro dia de aula, acho que era segundo
ginasial, se apresentou com uma frase incrível:
MAURÍCIO
Meu nome é muito mau. Meu nome é Maurício.
Os ALUNOS, todos meninos (entre eles CHICO, LUCIANO e EMÍLIO),
ficam paralisados, olhando o professor Maurício, que começa a
escrever uma série de coisas no quadro, muito animado. Ele tem
gestos teatrais e parece excessivamente simpático.
CHICO (OFF)
Todos nós, cinqüenta pré-adolescentes idiotas e
cheios de espinhas, ficamos momentaneamente
paralisados pela súbita e coletiva revelação de
que um professor, adulto, responsável pela nossa
educação nos próximos oito meses, era muito mais
idiota que nós.
CENA 3 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR
CHICO está caminhando por um estúdio de televisão, vazio, em
frente a um grande céu aerografado. Magro, não muito alto, trinta
anos, Chico tem a aparência de quem está cansado demais para
conseguir dormir. Caminha olhando para o chão. O estúdio tem
restos de uma festa, pratos plásticos, copos e garrafas,
espalhados sobre mesas improvisadas.
CHICO (OFF)
Eu esqueci o nome de muitos professores que tive,
mas o nome do Maurício continua ocupando algum
arquivo morto do meu cérebro. O que prova que ser
idiota às vezes dá resultado.
Chico esbarra numa mesa. Um copo plástico cai no chão.
CENA 4 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
Os alunos chegam para as aulas: descem de ônibus escolares,
kombis e carros e vão entrando na escola. Os PAIS, as MÃES e as
EMPREGADAS se despedem das crianças. Gritaria geral.
CHICO (OFF)
O ano era mil novecentos e sessenta e nove,
Brasil, e quase todas as pessoas que existiam
tinham dez anos. Todo mundo bem alimentado com
três refeições diárias, grapete, pastelina e
kibamba. É claro que, não muito longe dali, atrás
das sete montanhas, depois das sete florestas, na
casa dos sete anões, uma quadrilha de assaltantes
tomava conta do país. Hoje todo mundo sabe. Eu
fiquei sabendo quase dez anos depois. Até ali, nós
éramos o futuro do país do futuro.
CENA 5 - CLÍNICA - INTERIOR, DIA
LISA sentada num banco de praça. Lisa, trinta anos, é bonita e
triste. Chico está ao seu lado.
LISA
(cantando) Onde o arco-íris é ponte, onde vivem os
imortais...
CENA 6 - CASAS E TELEVISÃO (ARQUIVO)
LISA (OFF)
... do trovão é deus guarda-mor, o barra-limpa, o
grande Thor!
Bebês e crianças comendo na frente da televisão. Comem mingau,
bolacha, arroz com feijão, sucrilhos, pão, bolo, doce, bebem
leite, suco, coca-cola. Assistem de tudo: abertura de Thor,
Vigilante rodoviário, Shazam e Xerife, Hebe, Família Trapo, Três
patetas, Tom e Jerry, Silvio Santos, Jornal nacional, filmes de
terror, comerciais.
Edição de trilhas de TV.
CHICO (OFF)
Eu gostava do Thor porque ele era imortal. O pior
era o Homem de Ferro, que era cardíaco. Achava
ridículo um super-herói cardíaco. Hoje não acho
mais.
LISA (OFF)
Eu lembro o nome do Vigilante rodoviário: tenente
Carlos. Eu lembro dos Incas Venusianos, do
Reizinho, dos Patrulheiros Toddy, do Perdidos no
espaço e dos três irmãos Cartwright, do Bonanza:
Adam, Little Joe e...
A televisão desliga, fica só aquele pontinho luminoso no meio da
tela.
CENA 7 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA
Lisa, no banco de praça, não lembra o nome do terceiro irmão
Cartwright.
LISA
Você lembra o nome do outro?
CHICO
Não.
Chico olha o relógio.
LISA
Eu também não. Eu passei a maior parte da minha
infância mudando de uma casa para outra. Mas eu
não lembro de casa nenhuma. Eu só lembro do que eu
via na televisão.
Chico levanta. Eles estão num pequeno jardim interno, cercado de
muros altos. Uma ENFERMEIRA caminha ao fundo.
CHICO
Eu preciso ir.
LISA
Eu sabia o nome e o jeito de todas as pessoas da
televisão e é só disso que eu me lembro, agora.
Toda a memória que me sobrou foi criada por
roteiristas americanos. (ri) A Carolina esteve
aqui esses dias. (pausa) Eu não lembro mais o nome
do terceiro irmão Cartwright. Não que isso tenha
alguma importância.
CENA 8 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
Chico caminhando pelo estúdio. O fundo agora é uma multidão
pintada na parede. Chico encontra um balão sobre a mesa. Pega o
balão.
CHICO (OFF)
Nenhuma importância.
CENA 9 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
Chico, Emílio, Luciano e outros meninos observam a chegada de
Roal no colégio. ROAL é um menino louro, com um topete enorme.
Ele desce de um carrão com motorista.
CHICO (OFF)
Todos nós tínhamos dinheiro, o que não nos impedia
de odiar secretamente os que tinham mais dinheiro
que nós. E mais ainda o Roal, que, tendo mais
dinheiro que todos os outros, ainda ganhou um
mini-bug no concurso da Toddy. Logo o Roal foi
ganhar o mini-bug! Ali eu comecei a me tornar um
ateu marxista. E o penteado do cara então? Pelo
amor de deus! O cara era um completo imbecil!
Também, com esse nome: Roal. Pelo amor de deus!
De repente, Luciano interrompe a brincadeira e aponta para um
carro que chega ao estacionamento. Os guris correm para ver de
perto. O carro estaciona. Dele desce um GORDO ENORME, com as
naturais dificuldades de um gordo enorme ao sair de um carro.
CHICO (OFF)
Tinha um gordo que dava aulas de técnicas
comerciais. A gente fingia que aprendia a fazer
notas, descontos e faturas. O gordo era muito
gordo e o banco do carro dele era afundado no
chão. Era impressionante.
CENA 10 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
A PROFESSORA DE INGLÊS, uma senhora baixinha, 50 anos, bate uma
caneta na mesa para chamar a atenção dos alunos.
PROFESSORA
Atention, please... Listen: élefant!
No quadro negro está escrito: "Elephant". Os alunos, todos
meninos, respiram fundo, entediados. Luciano levanta a mão.
CHICO (OFF)
Quase sempre era o Luciano quem começava.
LUCIANO
Cavalo!
PROFESSORA
(rindo) No, no, no.
ALUNO 2
Vaca!
CHICO
Jumenta!
PROFESSORA
No, no, no.
CHICO (OFF)
O mais católico, quase sempre o Emílio, acabava
com a tortura.
EMÍLIO
Elefante.
A professora fazia um gesto de "That's it!".
CHICO (OFF)
E ela recomeçava.
PROFESSORA
(Escrevendo "Hippopotamus" no quadro)
Ráipopótamusss...
LUCIANO
Macaco!
ALUNO 2
Minhoca!
CHICO
Égua!
CENA 11 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE
Chico acende alguns refletores do estúdio. Os refletores iluminam
uma parede onde a palavra "DAVI" se repete dezenas de vezes, em
relevo, formando uma retícula.
CHICO (OFF)
Tinha um professor louco, de física, que parecia o
Hortelino do mundo bizarro, que além de tudo tinha
um assistente com um olho de vidro. O assistente
chamava a gente para o quadro-negro e a gente
nunca sabia para quem ele estava olhando.
CENA 12 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
O ASSISTENTE do professor de física, com um olho de vidro, chama
alguém ao quadro.
ASSISTENTE
Você! Você mesmo aí!
CHICO
Quem? Eu?
Chico levanta-se e caminha para o quadro. A sala de aula agora
tem MENINAS.
CHICO (OFF)
Isso foi em 72, quando eu tinha aula de física. E
aí já tinha meninas na escola. No início não, era
um colégio jesuíta, masculino. Aí os padres
compraram um outro colégio, só de meninas, e elas
entraram de bando na nossa aula. Quase rodei em
física. Quase que todos nós rodamos em física.
Chico sobe na base de um gerador Van Der Graaf, uma espécie de
banqueta de metal. O Assistente do professor explica alguma coisa
para a classe mas Chico não ouve, fascinado pela visão das
meninas, que olham todas para ele.
CHICO (OFF)
Todas elas eram lindas, maravilhosas, puras,
perfumadas, educadas, tímidas e, obviamente,
brancas. Esqueci de dizer isso: naquela época,
todos nós éramos brancos.
O assistente liga o gerador Van Der Graaf. Os cabelos de Chico se
arrepiam. As meninas morrem de rir.
CENA 13 - MUSEU DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
A turma de Chico entra, caminhando em fila, no salão de
exposições do museu da escola. Chico, 12 anos, troca olhares com
Carolina através das vitrines. Eles se cruzam várias vezes,
sempre separados por pacas, tatus e cotias empalhadas.
CHICO (OFF)
Eu me apaixonei por Carolina às duas e trinta e
oito da tarde de uma quinta-feira, nove de junho,
dia de Anchieta. Não me lembro o ano, acho que era
setenta e dois, mas foi numa aula de ciências, no
museu do colégio. Tinha uma aranha enorme, peluda,
e um monte de bicho empalhado no museu. Carolina
era linda como um Blastocerus Dichotomus, pura
como um Troquilídeo. Eu acho que agora bicho
empalhado deve ser politicamente incorreto, mas na
época ainda não tinham inventado a ecologia.
CENA 14 - CENÁRIO DE ALICE - INTERIOR/NOITE
Um cenário de teatro infantil. CAROLINA, 25 anos, bonita, um
jeito de menina acentuado pelo figurino da peça, dá o texto final
de "Alice no País das Maravilhas".
CAROLINA
Ao final imaginou a irmã já transformada em mulher
adulta, e como ela conservaria, através dos anos,
o coração simples e afetuoso da época de sua
infância. Ela estava cercada de outras crianças e
fazia os olhos delas brilharem quando lhes
constava histórias curiosas, talvez até mesmo o
sonho do País das Maravilhas, de há muito tempo
atrás.
Chico, com uma criança de 2 anos (JOSÉ) no colo, LUCIANO e
ANDREW, no meio de uma platéia de mães com seus filhos, batem
palmas. Os outros atores entram em cena. Carolina agradece.
CENA 15 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
No quadro-negro, alguém escreve o nome WITTGENSTEIN. É ABRAÃO, um
professor baixinho, precocemente careca e de fala mansa, que não
tem qualquer controle sobre o caos à sua volta, e não parece se
importar muito com isso. Ele fala fazendo muito gestos e sempre
olhando para cima, o que lhe confere uma certa dignidade e impede
que ele enxergue o óbvio: não há um só aluno prestando atenção ao
que ele diz. Uma menina se penteia com o auxílio de um espelho,
um menino desenha uma mulher nua no tampo de sua classe, um grupo
se diverte com um joguinho qualquer. Ao fundo, de pé, quatro
meninos conversam animadamente, sem ao menos se preocupar em
baixar a voz.
CHICO (OFF)
Eu lembro também do Abraão, o professor de
filosofia, isso já no científico. Eu nunca entendi
como foi que um judeu foi dar aula de filosofia
num colégio jesuíta. A gente aproveitava as aulas
dele para jogar fruta-flor, passar bilhetinhos ou
conversar sobre qualquer coisa. Só muitos anos
depois eu fui descobrir o que era filosofia.
De repente, uma coisa verde e gosmenta jogada não se sabe de onde
explode no quadro, cobrindo parte de um esquema de história da
filosofia e respingando no rosto e na camisa de Abraão. Ele
interrompe o seu discurso sobre Wittgenstein e, pela primeira
vez, encara a turma. Silêncio total.
CHICO (OFF)
Teve uma única vez em que o Abraão conseguiu ser
ouvido na aula. Ali a gente podia ter aprendido
alguma coisa de filosofia. Mas ele resolveu contar
uma história.
Abraão, calmamente, tira os óculos e limpa-os com um lenço.
Depois, recoloca os óculos e volta a encarar a turma, que
permanece em absoluto silêncio.
ABRAÃO
Cinco anos atrás, na melhor escola técnica de
Israel, os alunos pediram ao diretor para não ter
mais aulas de filosofia, história e ciências
sociais. Afinal, eles iam ser engenheiros,
técnicos, matemáticos, e achavam aquilo tudo uma
perda de tempo.
Pausa. Os alunos todos olham para Abraão, concordando com seus
colegas israelenses, mas sem se mexer.
ABRAÃO
O diretor disse que concordava em mudar o
currículo, desde que os alunos fizessem um
trabalho extra nas férias: eles tinham que
apresentar o projeto de um grande sistema de
encanamento ligando o norte ao sul de Israel, e
que fosse capaz de transportar por dia três mil
litros de sangue.
Nova pausa. Alguns alunos se olham, curiosos com a história.
ABRAÃO
Os alunos se dividiram em grupos: alguns estudaram
técnicas de conservação de sangue, outros
pesquisaram qual seria o melhor material para
fazer os canos, que minérios do país poderiam ser
usados, como aproveitar o relevo da região, como
bombear o sangue de um lugar pro outro. Quando
acabaram as férias, entregaram o projeto pro
diretor.
Pausa. Abraão finge que tem o projeto nas mãos e o examina,
virando as páginas com atenção.
ABRAÃO
O diretor examinou o projeto e disse: "Muito bem,
o projeto de vocês é ótimo. Mas eu acabo de
resolver que, a partir deste semestre, vocês vão
ter O DOBRO de aulas de filosofia, história e
ciências sociais."
Pausa. Abraão encara os alunos, procurando um único que tenha
entendido a atitude do diretor. Mas estão todos perplexos. Abraão
sorri e se prepara para explicar.
Neste momento, toca a campainha. Os alunos, imediatamente,
abandonam a perplexidade e saem correndo da sala. Abraão fica
parado, impotente. A sala se esvazia. Apenas CAROLINA permanece
sentada, olhando para Abraão, como que entendendo tudo. Chico
pára na porta e fica esperando Carolina. Abraão olha para ela por
alguns instantes e depois vira-se para juntar suas coisas e ir
embora. Carolina fica sozinha na sala.
CHICO (OFF)
Uma semana depois, Carolina encontrou o Abraão no
bar do colégio e perguntou por que o diretor da
escola de Israel resolveu fazer aquilo. Ele olhou,
deu um sorriso e disse que, se ela tinha
perguntado, era porque não precisava mais da
resposta. (pausa) Carolina podia ter se apaixonado
por ele. Mas ele era judeu.
CENA 16 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE
No estúdio, Chico está deitado no chão, sobre uma cama
improvisada de cobertores e folhas de isopor. Ao fundo, a
multidão aerografada. Carolina examina um monte de fitas, anota
dados das fitas numa prancheta.
CHICO
Carolina, você quer me ouvir?
CAROLINA
Não, Chico, não quero te ouvir. Eu já te ouvi
demais. Você tem sempre uma belíssima
justificativa pra tua covardia, você tem sempre
uma ótima desculpa pra fazer o que é mais fácil,
mais cômodo e mais conveniente.
CHICO
Carolina, isso é um trabalho, um emprego. Você
acha tão vergonhoso ser pago pra fazer um
trabalho?
CAROLINA
(rindo) Ah, Chico, até parece que você acredita
nisso. Você devia ter sido ator. Você seria um
ótimo ator. E sabe por que você não foi? Por que
você tem medo, medo de se expor.
CHICO
Carolina, por favor. Se você quer ir embora, se
você quer abandonar mais um trabalho pela metade,
tudo bem, o problema é seu. Mas eu vou ter pedir
favor: não me analisa.
CAROLINA
Tudo bem, então eu vou lhe responder
profissionalmente. Você me convidou para trabalhar
na produtora durante a campanha. Eu agradeci e
aceitei, eu precisava da grana. Eu já fui paga,
agora eu vou embora. Profissionalmente.
CHICO
E agora que a campanha terminou e a gente vai
poder tocar os nossos projetos, você vai embora.
Por quê?
CAROLINA
Problema meu.
CHICO
Então me responde como amiga.
CAROLINA
Como amiga? Tudo bem, eu vou lhe responder como
amiga. Eu vou me embora por que você é um canalha.
Você pensa que é uma ilha cercada de canalhas,
todos os canalhas pensam isso.
CHICO
(erguendo-se) Deixa ver se eu entendi... Nós
fizemos um trabalho, juntos, um trabalho que tinha
o mesmo objetivo. Mas eu sou um canalha por fazer
melhor aquilo que precisava ser feito.
Carolina termina de arrumar as fitas e anotar os dados.
CAROLINA
Você fez mais do que precisava ser feito. E você
gostou de fazer. Você só faz o que gosta.
CHICO
Quem disse que eu gosto?
Vai saindo.
CAROLINA
Você faz e parece gostar. Pra mim é o suficiente.
Tchau, Chico.
Chico fica sozinho no estúdio vazio.
CENA 17 - BIBLIOTECA - INTERIOR/DIA
Chico está sentado na biblioteca, lendo Asterix.
CHICO (OFF)
Eu me apaixonei por Lisa às dez e vinte cinco de
uma manhã de outono, não lembro o dia. Eu estava
lendo Asterix na biblioteca. A sobrevivência nos
recreios era mais difícil que na floresta de
Carnutes, onde os irredutíveis gauleses faziam
tremer os imperialistas romanos. Eu achava que a
biblioteca era um território livre, silencioso e
seguro. Eu ainda não sabia como os livros podiam
ser perigosos.
LISA senta na outra ponta da mesa. Chico levanta os olhos. Ela
sorri, ele também. Ele volta a olhar para o livro.
CHICO (OFF)
Ela está lendo um livro em francês. Acho que é em
francês. Vou perguntar. Vou perguntar porra
nenhuma, vou ficar na minha. Vou fingir que ela
nem está aqui.
Chico ergue os olhos outra vez. Lisa está lendo, aparentemente
compenetrada.
CHICO (OFF)
Tinha um monte de mesas vazias e ela sentou
exatamente na minha. É lance, só pode ser lance.
Lisa pega da bolsa, meio escondida, uma bolacha.
CHICO (OFF)
Ela está comendo bolacha. Por isso ela sentou
aqui, porque não pode comer na biblioteca e nesta
mesa a Dona Irene não pode ver. É isso, claro, não
podia ser lance, essa mina é muito estranha. Comer
bolacha na biblioteca. Pelo menos ela podia me
oferecer uma. Tô morrendo de fome. Tudo bem, vou
ficar na minha, vou ficar na minha.
Chico volta a prestar atenção no Asterix.
LISA
Tem horas?
CHICO
(nervoso) Não, obrigado.
LISA
O teu relógio não funciona?
CHICO
Ah, horas... Faltam cinco.
LISA
Cinco o quê?
CHICO
Cinco minutos pra acabar o recreio. São dez e
vinte e cinco.
LISA
Quer uma bolacha?
CHICO
Não, obrigado.
Chico volta a olhar para o livro.
CHICO (OFF)
Por que você disse não, sua anta? A guria
ofereceu, você tava a fim. Agora azar, vou ficar
na minha. Vou ficar na minha!
Chico volta a erguer os olhos. Pelo decote de Lisa, percebe uma
nesga de sutiã preto.
CHICO (OFF)
Ela tá de sutiã. Sutiã preto! Ai meu deus do céu,
ai meu deus do céu... Vou ficar na minha, vou
ficar na minha. Sutiã preto, ela nem tem muito
peito. A bundinha é ótima, mas peito ela quase não
tem. Ou será que tem?
Lisa olha para ele e fecha o último botão da blusa. Chico baixa
os olhos rapidamente, constrangido.
CHICO (OFF)
Ela se deu conta que eu tava olhando os peitos
dela. Azar, quem mandou usar sutiã preto. Vou
ficar na minha.
Lisa levanta, pega a bolsa e vem sentar ao lado de Chico.
LISA
Você já fez o trabalho de física?
CHICO
Do pêndulo? Não.
LISA
A gente podia fazer junto, lá em casa.
CHICO
Legal. Quando?
LISA
Hoje à tarde.
CHICO
Tudo bem.
Lisa pega um papel e anota um endereço. Entrega para Chico.
LISA
É bem aqui perto, conhece a rua?
Chico faz que sim.
LISA
Duas horas?
CHICO
Duas horas.
LISA
Legal.
Lisa levanta e vai saindo. Luciano chega.
LUCIANO
Oi, Lisa.
Luciano senta ao lado de Chico.
LUCIANO
Essa mina é louca mas é muito gostosa. O Emílio te
mostrou o cavador?
CHICO
(ainda em estado de choque) Acho que não.
LUCIANO
O Emílio comprou um cavador bárbaro. Ele disse que
hoje ninguém ganha dele, que ele vai se fechar na
defesa.
CHICO
(lembrando-se) O campeonato! Não vai poder ser
hoje.
LUCIANO
Como? Você disse que tava tudo certo!
CHICO
É que a minha mãe tem novena e elas vão usar a
garagem.
LUCIANO
Novena??? Porra, Chico, hoje de manhã eu ainda
falei contigo do campeonato, você esqueceu que...
Lisa volta.
LISA
Esqueci minhas bolachas. (para Luciano) Você já
fez o trabalho de física?
CHICO
Já.
LUCIANO
(estranhando) Por quê?
LISA
A gente podia fazer um grupo de três. Eu e o Chico
vamos trabalhar lá em casa, às duas.
LUCIANO
Hoje? (olhando para Chico) Hoje. Tudo bem. Eu vou
com o Chico.
LISA
Legal.
Lisa sai. Luciano e Chico ficam olhando Lisa se afastar, enquanto
Emílio chega, excitado.
EMÍLIO
(abrindo a sua pasta para mostrar algo) Chico,
aposto que você nunca viu um cavador de acrílico
com três camadas...
CHICO
(distraído) Não...
LUCIANO
(cortando) Não vai ter campeonato hoje, Emílio.
EMÍLIO
Por quê???
Chico olha para a porta da biblioteca, por onde Lisa vai saindo,
conversando com uma colega.
LUCIANO
Novena. Eu e o Chico temos novena.
Emílio fica olhando para eles, com o cavador na mão, achando que
os dois estão tirando sarro da cara dele, mas sem muita certeza.
CENA 18 - CASA DE LISA - INTERIOR/DIA
Chico, Luciano e Lisa estão sentados no chão da sala, entre
papéis e gráficos espalhados. Lisa está maravilhosamente sedutora
vestindo uma bermuda e um pulôver velho. Chico e Luciano estão
hipnotizados. Lisa gesticula e dá instruções sobre o melhor modo
de realizar uma experiência científica com um pêndulo. Chico deve
contar a oscilação, Luciano deve medir a amplitude enquanto ela,
de pés descalços sobre um pufe cor-de-laranja, segura o pêndulo.
Ela segura o pêndulo, que se move lentamente. Chico e Luciano
ficam parados, de pé, sem conseguir tirar os olhos dela.
CHICO (OFF)
Eu fui colega do Luciano desde o jardim da
infância. Ele era tão idiota quanto eu, o que
sempre é muito prático, a gente se entende fácil.
CENA 19 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA
Um grupo de trinta pessoas acompanha um enterro. Chico, Luciano e
Andrew caminham em silêncio, lado a lado, pelos corredores do
cemitério. Nas paredes destacam-se as fotos e os nomes esculpidos
dos mortos. Alguns túmulos têm flores de plástico.
CHICO (OFF)
Eu vi o Luciano pela última vez no enterro do
Velho, acho que já faz dois meses. Não o meu
velho, que continua vivo, aliás cada vez mais
vivo. Luis Carlos Silveira Velho, um cara que me
ensinou muita coisa. O Andrew, é claro, também
estava lá.
Chico olha para Andrew no momento exato em que estoura o flash de
um fotógrafo.
CENA 20 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA
DOIS TIMES DE FUTEBOL de adolescentes e um JUIZ esperam a
cobrança de um pênalti. O batedor é Chico. O goleiro é ANDREW.
Chico ajeita a bola. Andrew chuta a trave para limpar a chuteira.
Chico toma distância. Andrew coloca-se no centro do campo. Chico
olha para um canto da goleira. Andrew olha para a bola. Chico
olha para o outro canto da goleira. Andrew olha para os pés de
Chico. Chico e Andrew se olham. Chico corre para a bola.
CHICO (OFF)
Andrew, hoje todo mundo sabe, não era anchietano.
Eu achei que a gente tinha se visto pela primeira
vez em 74, na semifinal do Interescolar Pérola, um
campeonato de futebol patrocinado por um óleo de
soja, que reuniu os times do Colégio Anchieta e da
Escola Técnica de Viamão. Andrew jogava no gol. A
escola vencedora receberia o troféu no Revista
Pérola, um programa de televisão, sábado de manhã.
O time deles tinha melhor saldo e jogava pelo
empate. A gente teve um pênalti a nosso favor bem
no fim do jogo. Eu bati o pênalti.
Chico aproxima-se da bola. Andrew flexiona os joelhos. Chico
chuta a bola. Andrew salta. A bola dirige-se para o canto
esquerdo do gol. Andrew pulou para a direita. A bola continua seu
caminho para as redes. Andrew tenta inverter a direção do seu
salto. É muito tarde. Andrew estica a perna para a esquerda,
inutilmente. A bola aproxima-se das redes. Andrew cai junto ao
poste direito. A bola bate no poste esquerdo. O time de Andrew
comemora. Chico fica parado, mãos na cintura. Andrew levanta e é
abraçado. Luciano dá um tapinha de consolo nas costas de Chico. O
juiz apita o final da partida.
CHICO (OFF)
Nossa amizade futura só se tornou possível porque
o time deles foi massacrado na final pelo Colégio
Militar, grande campeão do Interescolar Pérola 74.
CENA 21 - BAR DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE
Um bar de faculdade, apinhado de gente e forrado de cartazes.
Luciano faz um discurso num megafone. Por trás dele, Chico segura
um gravador e, com outro estudante, uma faixa de pano onde está
escrito: "ISTO É UMA FAIXA DE PANO". O gravador toca "AMAPOLA".
LUCIANO
A Aliança Místico-Anarquista Pró Orgasmos e Livre
Arbítrio, AMAPOLA, pede um minuto de atenção aos
nossos distintos eleitores. Exigimos anistia
ampla, geral e irrestrita a todos os condenados
por crimes políticos. Exigimos que o professor de
editoração escove os dentes antes das aulas.
Exigimos que todos os congressos da UNE sejam
realizados em cidades com praia. Exigimos a
renúncia imediata do presidente dos Estados Unidos
da América. Exigimos eleições livres e diretas em
todos os níveis. Se nossas exigências não forem
atendidas em 48 horas nós ficaremos bastante
chateados. Muito obrigado!
A platéia ri, vaia e aplaude. Na platéia, Andrew acha graça, mas
não muito. Chico, Luciano e seu companheiro de chapa distribuem
panfletos, impressos em páginas arrancadas de uma lista
telefônica.
CHICO (OFF)
Eu só reencontrei Andrew na faculdade, em setenta
e nove. Eu era candidato a secretário numa das
chapas na eleição pro diretório acadêmico.
Chico oferece um panfleto a Andrew. Gentilmente, Andrew recusa.
CHICO (OFF)
Andrew era vice na chapa da situação.
CENA 22 - AUDITÓRIO DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE
O candidato da situação, um BAIXINHO com um cavanhaque, faz um
discurso inflamado. Andrew está ao seu lado.
BAIXINHO
O inimigo mais perigoso não está na direita,
companheiros. O inimigo mais perigoso está
camuflado de progressista e tenta ridicularizar a
luta dos estudantes.
Luciano está de pijama e segura um travesseiro. Parte da platéia
se diverte. O Baixinho está cada vez mais irado.
BAIXINHO
Mas esta luta vai continuar. Ao lado dos
operários, dos camponeses, das donas de casa, dos
funcionários públicos, os estudantes vão continuar
resistindo à ditadura militar, ao arrocho salarial
e ao ensino alienante. Operários foram presos em
São Paulo por lutar pelo direito de greve.
(olhando para Luciano) E isso não é engraçado,
companheiro. A luta dos camponeses por terra
para...
LUCIANO
Engraçado é chamar alguém de camponês. Camponês
usa gorro de lã e ceroula, e mora em Sherwood!
BAIXINHO
Eu não lhe concedi aparte, companheiro!
LUCIANO
O seu discurso é importado e a tradução é muito
ruim! Aqui nunca ninguém viu um camponês, no
Brasil não existe camponês. Chama um agricultor de
camponês e ele acerta o seu pé com a enxada.
BAIXINHO
O seu discurso serve à ditadura, companheiro. O
anarquismo é a direita vestida de palhaço.
LUCIANO
O que serve à direita é a incompetência da
esquerda.
Os dois gritam ao mesmo tempo. Luciano pega um grande
despertador. O despertador toca, aumentando o caos. A platéia
vaia, grita e aplaude.
CENA 23 - RESTAURANTE UNIVERSITÁRIO - INTERIOR/DIA
Chico está terminando de almoçar. Andrew procura um lugar e acaba
sentando ao lado de Chico.
CHICO
Parabéns.
Andrew vê Chico.
ANDREW
Tudo bem? Obrigado. Eu sou só o vice. Vice é quase
o mesmo que nada. (pausa) A campanha de vocês foi
ótima. É importante que alguém questione a forma
como se faz política estudantil.
Andrew começa a comer. Pelo jeito está com muita fome.
CHICO
Desde que não toque no conteúdo.
ANDREW
O conteúdo é sempre o mesmo: derrubar e começar a
construir de novo.
CHICO
Sempre igual? Será que a política não pode ser
feita de maneira mais... divertida?
ANDREW
A realidade nem sempre é divertida. Você não vai
comer o pão?
CHICO
Não, pode pegar.
Andrew pega o pão que Chico não comeu. Parte o pão e começa a
comer com o molho da carne.
CHICO
Você lembra da semifinal do Interescolar Pérola de
setenta e quatro?
ANDREW
Semifinal? Não. Eu lembro da final.
CHICO
Nosso time jogou contra o teu na semifinal. Foi
zero a zero, vocês se classificaram para a final
pelo saldo de gols.
ANDREW
Não lembro. Mas eu lembro que a gente perdeu a
final pros milicos. Foi tudo armado.
Chico acha graça.
ANDREW
Você não acredita? O juiz e um bandeirinha eram
militares da reserva.
CHICO
Você acha que a ditadura militar estava preocupada
com o resultado do Interescolar Pérola? Eu vi a
final. Vocês levaram um banho de bola, cinco a um.
ANDREW
Veja bem, a imagem que a direita tentava passar
dos militares era a de...
CHICO
Tudo bem, Andrew, não precisa me convencer de
nada. A campanha já terminou, vocês ganharam. O
Interescolar Pérola também já terminou e vocês
perderam. Ou você ainda quer revanche?(pausa)
Você ainda joga futebol?
ANDREW
Não. Eu nunca gostei muito de futebol. Por isso
jogava no gol. (pausa) Eu lembrei da semifinal.
Você estudava no Anchieta?
Chico confirma.
ANDREW
Lembra de Vila Oliva?
CHICO
Claro.
ANDREW
Eu morava lá. Meu pai era o zelador.
CHICO
Sei. Eu não lembro de você.
ANDREW
Claro que não. Mas eu lembro de vocês.
CHICO
Vocês quem, cara pálida?
ANDREW
Vocês. Os anchietanos. O que eu mais me lembro é
que vocês falavam muito alto, vocês gritavam quase
todo o tempo. Crianças ricas quando estão felizes
gritam muito. (acrescentando) Crianças pobres
também, só que é mais raro.
CHICO
Eu adorava ir na Vila Oliva. A gente ia uma vez
por semestre, cada turma. (pausa) Eu ficava
esperando o dia, na véspera eu mal conseguia
dormir pensando no campeonato de futebol, na
viagem de ônibus, nas gurias. Principalmente nas
gurias.
Chico levanta, pega a bandeja. Andrew vê que Chico vai devolver a
bandeja com uma laranja intacta.
ANDREW
Posso pegar a laranja?
CHICO
Pode. Nós não vamos comer a laranja.
CENA 24 - ENTRADA DE VILA OLIVA - EXTERIOR/DIA
Um ônibus escolar ultrapassa o portão da Vila Oliva. O ônibus
está cheio de crianças, que gritam muito. O PAI DE ANDREW, um
homem alto, moreno, fecha o portão. A seu lado, Andrew, com 11
anos, o ajuda. O ônibus pára e as crianças começam a descer,
tremendamente excitadas, gritando e correndo. Os meninos, com
uniformes de futebol, dirigem-se ao ginásio. Andrew fica em
silêncio, olhando os anchietanos que se afastam.
CENA 25 - GINÁSIO DE VILA OLIVA - INTERIOR/DIA
Final da manhã. No ginásio, DOIS TIMES disputam uma partida de
futebol de salão. Chico e Luciano jogam no mesmo time. O JUIZ é
um professor, em trajes civis. Na arquibancada, Emílio está
torcendo, ao lado de Carolina. Lisa chega e senta ao lado de
Emílio.
LISA
Você não vai jogar?
EMÍLIO
Não. Eu não jogo muito bem.
LISA
E daí?
EMÍLIO
Acho que eles gostam de ganhar.
LISA
Ganhar o quê? Aquelas medalhas horríveis?
Luciano faz um golaço. O time inteiro corre pro abraço. Carolina
e Emílio vibram. Lisa sai correndo, invade o campo e participa da
comemoração. Ela gruda em Chico e fala alguma coisa no ouvido
dele, sempre fazendo de conta que está festejando o gol. Chico
faz uma cara de surpresa.
CAROLINA
(para Emílio) Essa guria é louca, pirada.
EMÍLIO
É. Completamente.
Lisa volta correndo e senta outra vez ao lado de Emílio.
LISA
Quanto tá o jogo?
EMÍLIO
Três a zero.
LISA
Isso é muito ou pouco?
EMÍLIO
É bastante. O jogo tá ganho.
LISA
Legal. (E grita, escandalosamente:) Vamo lá,
Chico!
Chico está com a bola. Olha para Lisa. Ela está de pé, linda,
usando um casaco como se fosse uma bandeira. E ri. É uma bela
visão. Chico passa a bola para Luciano e corre para receber.
Luciano lança. O zagueiro adversário chega antes e corta. Chico,
que vinha correndo, choca-se com ele e cai no chão, cara de dor.
O juiz marca a falta.
ZAGUEIRO
(para o juiz) Não foi nada, seu juiz!
Chico está segurando a perna e gritando de dor. Os companheiros
de time vêm ver o que aconteceu com ele. O juiz-professor fica
preocupado.
JUIZ
Quê que houve, Chico?
CHICO
Ai, ai. Tá doendo muito.
LUCIANO
Não faz onda, Chico. Não foi nada. (E tenta
levantá-lo do chão)
CHICO
(enquanto grita de dor) Minha perna, minha perna!
Luciano volta a colocá-lo no chão. O juiz examina a perna. Mais
gritos de Chico.
JUIZ
Acho que não foi nada grave.
LUCIANO
Levanta aí, Chico, não faz onda.
CHICO
Não dá mesmo, Luck. Vamos botar o reserva.
LUCIANO
(surpreendido) Que reserva? Tá louco?
O juiz carrega Chico pra fora da quadra. No meio do caminho,
Chico fala:
CHICO
O Emílio. Bota o Emílio.
Carolina, Lisa e Emílio vêm pra examinar Chico.
LUCIANO
Pirou na jogada?
CHICO
(para Emílio) Entra, Emílio! O jogo já tá no fim.
EMÍLIO
Eu?
CHICO
(passando a camiseta para Emílio) Vai lá, entra.
Emílio não tem coragem. Mas Lisa dá um empurrão nele. Luciano não
está entendendo nada. Mas o juiz já voltou pro campo. A falta
precisa ser batida. Luciano chega perto de Emílio.
LUCIANO
Fica na defesa.
Luciano bate a falta. A bola bate na barreira e vai no pé de
Emílio. Ele está tão nervoso que não consegue fazer absolutamente
nada. O time adversário toma a bola facilmente e faz o gol. A
torcida adversária vibra. Luciano fica louco. Vai correndo até
Chico, que continua deitado.
LUCIANO
Volta, cara.
CHICO
Não dá. Tá doendo muito.
LUCIANO
Você me paga! (E vai correndo até Emílio. Grita
pra ele:) Vai pro ataque! E não sai de lá!
Carolina está preocupada com Chico.
CAROLINA
Será que você não quebrou a perna?
CHICO
Não. No máximo, rompi os ligamentos.
LISA
Eu sei fazer massagem pros ligamentos.
Lisa começa a massagear a coxa de Chico.)
CAROLINA
(desconfiada) Ligamentos não é no joelho?
CHICO
Também tem na coxa. Tem ligamento no corpo todo.
Ai, ai! Cuidado, Lisa.
O jogo continua. Emílio está parado, sozinho, do outro lado do
campo. O resto do time agüenta a pressão dos adversários. Então
Luciano corta com a cabeça uma cobrança de escanteio e a bola vai
direitinho no pé de Emílio. O goleiro do outro time sai do gol,
desesperado. Emílio não sabe o que fazer. Mas decide: é agora!
Fecha os olhos e dá um bico. No ângulo. Golaço. O time corre pro
abraço. Lisa invade o campo outra vez. Chico levanta e corre
atrás, esquecendo de mancar. Pula no bolinho. Carolina não
entende nada. Emílio chora de alegria.
CENA 26 - BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA
Umas pedras, na beira do rio. É um local de acesso difícil, pois
é preciso descer o morro por um caminho em declive acentuado.
Chico e Lisa estão de pé, lado a lado, encostados numa pedra. Ele
ainda está com o fardamento do jogo. Ela soltou o cabelo e está
ainda mais linda.
CHICO
Você prometeu.
LISA
Prometi.
CHICO
Então cumpre.
LISA
Você pensou que eu ia dar pra trás?
CHICO
Não sei... Essas coisas...
LISA
(cortando) Se eu falei, eu cumpro.
Lisa levanta a blusa devagar, mostrando os seios. Chico olha para
eles, completamente abobado.
LISA
Gostou? São meio pequenos, né?
CHICO
Não. São bonitos. Muito bonitos.
Lisa chega um pouco mais perto de Chico.
LISA
Eu prometi que te deixava pegar.
Chico está paralisado. Não consegue nem levantar a mão. Lisa
percebe o estado de Chico e sorri.
LISA
Eu te ajudo.
Pega a mão direita de Chico e a leva até os seios. Chico sua.
Lisa larga a mão de Chico, que imediatamente a recolhe. Ele está
grudado numa pedra, todo encolhido.
LISA
(puxando a blusa de volta) Bom, eu cumpri a minha
palavra. (pausa) E sabe, Chico, até que eu
gostei.
CHICO
Eu também gostei.
LISA
Nem parece.
CHICO
Eu gostei. Gostei muito.
LISA
Vamos voltar?
CHICO
Não.
LISA
O que nós vamos ficar fazendo aqui?
CHICO
Eu quero um beijo.
LISA
Isso eu não prometi.
CHICO
(ganhando coragem e chegando perto) Mas eu quero.
LISA
Não sei... Você não é meio namorado da Carolina?
CHICO
Não.
LISA
Então tudo bem.
Lisa fecha os olhos, esperando um superbeijo. Mas Chico dá um
beijinho muito recatado. Lisa fica decepcionada, mas disfarça.
CHICO
Agora vamos voltar.
Chico sai, tão feliz que quase esquece Lisa. Ele sobe a longa
escadaria correndo. Lisa vai ficando para trás. Lisa ouve um
ruído, percebe que há alguém no mato.
LISA
Quem está aí?
Ninguém responde. Lisa entra no mato por uma trilha. Ouve passos
de alguém que se afasta. Lisa chega numa clareira. Há uma grande
pedra de onde se avista a beira do rio, o lugar onde Lisa estava
com Chico. Não há ninguém ali, e é impossível seguir adiante.
Lisa se volta e dá de cara com Carolina. Ela tem os olhos
vermelhos e tenta esconder o choro.
CAROLINA
Oi, Lisa. O pôr-do-sol está lindo. Você gosta mais
do nascer ou do pôr-do-sol?
Lisa fica confusa, surpresa com a pergunta de Carolina.
LISA
Não sei... acho que são iguais.
CAROLINA
Iguais? Imagine! Claro que não são iguais. O pôr-
do-sol é muito mais vermelho, o nascer do sol é
mais branco. E o pôr-do-sol é mais devagar, não
sei por que, mas é. Eu lembro de um dia, na praia,
a gente...
Lisa segura o braço de Carolina
LISA
Carolina. Ele é só um guri bobo. Não precisa ficar
triste por causa dele.
Carolina fica em silêncio. Seca os olhos na manga da blusa. Lisa
passa os braço sobre o ombro de Carolina.
LISA
Vamos voltar, tá ficando escuro.
CENA 27 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA
Carolina toma um refrigerante no balcão do bar do aeroporto.
Chico, Luciano e Lisa estão parados, sem assunto.
LISA
A temperatura externa de um vôo de jato chega a
quarenta graus abaixo de zero.
Todos concordam, sem muito interesse. Ficam em silêncio.
CAROLINA
Eu sei que vocês não vão escrever.
Todos reagem ao mesmo tempo.
LUCIANO
Ai, meu deus...
CHICO
Carolina, não começa com esse papo de novo. A
gente já disse que vai escrever.
CAROLINA
Eu sempre digo que vou escrever e nunca escrevo.
LUCIANO
É que você é uma mentirosa, cínica, falsa e
trapaceira. E nós não.
A MÃE DE CAROLINA se aproxima. Ao fundo, o PAI DE CAROLINA, um
coronel fardado, se despede de outros militares.
MÃE DE CAROLINA
Agora nós temos que ir, filha.
Carolina pega sua sacola. Todo mundo se despede.
CAROLINA
Dessa vez eu vou escrever. Eu já vou começar a
escrever agora, no avião.
CENA 28 - RUAS DA CIDADE - EXTERIOR/DIA
Algumas ruas do centro da cidade às seis e meia da manhã (no
verão). Ainda há pouco movimento, mas já tem gente indo pro
trabalho. O sol está atrás dos edifícios.
CENA 29 - BANCA DE JORNAL - EXTERIOR/DIA
Chico, cara de sono, compra um jornal que exibe a manchete:
"COMEÇA O VESTIBULAR". Chico sai caminhando, lendo o jornal.
CENA 30 - QUARTO DE LUCIANO - INTERIOR/DIA
O rádio-relógio está funcionando no quarto de Luciano, que dorme
pesadamente.
LOCUTOR (OFF)
...o épico da família Terra-Cambará. E agora as
últimas dicas para a prova de português, com o
professor Dalbém.
PROFESSOR DALBÉM (OFF)
Sempre há pelo menos duas questões de acentuação
no vestibular Unificado. Lembre que todas as
proparoxítonas são acentuadas. As paroxítonas
terminadas em ditongo crescente...
Luciano continua dormindo. Na mesinha de cabeceira, um envelope
de comprimidos. Três comprimidos já foram usados.
A MÃE DE LUCIANO, de camisola, entra no quarto. Desliga o rádio-
relógio. Sacode Luciano, mas ele não reage. Então ela percebe o
envelope de calmante. Fica apavorada e sai do quarto.
CENA 31 - PARADA DE ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA
Chico, na parada de ônibus, lê o jornal. Olha o relógio, olha
para o fim da rua, volta a ler o jornal.
A partir daí, intercalam-se as cenas *** e ***.
O pai e a mãe de Luciano no quarto dele. A mãe está com um copo
de água na mão. Joga uns pingos no rosto de Luciano, que reage,
mas muito devagar.
PAI
Eu avisei que era perigoso dar calmante pro guri.
MÃE
Um só não tinha problema. Luciano! Luciano, meu
filho!
PAI
(sacudindo Luciano com força) Acorda, desgraçado.
Chico está na parada de ônibus. Um ônibus passa, mas ele não
pega. Olha para o relógio. Sai da parada.
O telefone toca na sala. A mãe vai atender.
MÃE DE LUCIANO
(nervosa) Alô?
É Chico, que está num telefone público.
CHICO
Dona Alice? Eu estou esperando o Luciano, ele já
saiu de casa?
MÃE
Ele está no banho, mas ainda não acordou. Vai
indo, meu filho. Nós vamos levar ele de carro.
No banheiro da casa de Luciano. Ele está de pé, no box, pelado,
amparado pelo pai. A água vem forte, molhando o pijama do pai.
PAI (furioso)
Acorda, Luciano!
Luciano, agora um pouco mais acordado, com a água correndo pelo
rosto, olha para o pai, faz uma cara de espanto e pergunta:
LUCIANO
Pai, por que você tá tomando banho de roupa?
Chico no ônibus. Olha para um papel, onde estão rabiscadas
algumas coisas. Dá pra ver que são regras de acentuação.
CHICO (murmurando)
Paroxítonas terminadas em ditongo...
Luciano, vestido, mas ainda muito sonolento, está sentado na
mesinha da copa. O pai enfia uma xícara de café preto na sua
boca. A mãe passa manteiga numa fatia de pão.
PAI
Sabe quanto eu gastei no cursinho desse
débil-mental?
MÃE
Calma, Guilherme. Ele vai fazer a prova. Não vai,
meu filho?
LUCIANO (arrastando as palavras)
Proparoxítonas... (longa pausa) todas.
Paroxítonas... as que terminam em ditongo
crescente... ditongo... crescente... (fecha os
olhos e dorme sentado)
CENA 32 - ENTRADA DE COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
Um colégio grande, com uma porta enorme, e alguns VESTIBULANDOS
entrando, em passo acelerado. O PORTEIRO faz sinal para que eles
se apressem. Chico está parado, do lado de fora de porta,
esperando, nervoso. Olha para o relógio. Aproxima-se do porteiro.
CHICO
Quanto falta?
FISCAL
Um minuto. Entra logo.
Um carro estaciona. O pai de Luciano dirige. O próprio está no
banco da frente, dormindo. A mãe, nervosíssima, está no banco de
trás. Chico vai correndo até o carro para ajudar. Mas Luciano tem
que ser praticamente arrastado. O porteiro não deixa os pais de
Luciano entrarem. A porta é fechada. Chico não agüenta o peso de
Luciano. Os dois escorregam até ficar sentados no chão. Chico
pede ajuda. Uns RAPAZES se prontificam. Levam Luciano até a sala
dele, sob os olhares espantados dos OUTROS ESTUDANTES.
CENA 33 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
Chico, com a prova à sua frente, murmura.
CHICO
Paroxítonas terminadas...
CENA 34 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
Luciano, com a prova à sua frente, dorme sentado.
CENA 35 - RUA - EXTERIOR/DIA
Chico olhando para a frente. Surge uma mão com um pincel.
Lambuzam a cara de Chico com tinta vermelha. Depois derramam um
monte de talco no cabelo. Surge uma mão com uma tesoura, que
corta uma mecha do cabelo de Chico. Mais tinta. Lambança geral.
CENA 36 - JUNTA DE ALISTAMENTO - INTERIOR/DIA
Luciano está sentado a uma mesa. À sua frente, um SARGENTO.
SARGENTO
QUER servir?
LUCIANO
Não.
SARGENTO
Por quê?
LUCIANO
Eu tenho que estudar.
SARGENTO
(enquanto olha uma ficha à sua frente) Tem o
comprovante de matrícula na faculdade?
LUCIANO
Não.
SARGENTO
Você é arrimo de família?
LUCIANO
Não.
SARGENTO
Tem algum problema físico?
LUCIANO
Asma. Já entreguei o atestado.
SARGENTO
Asma? Sabe quantos caras com asma eu já
entrevistei hoje? Doze. Tem uma epidemia de asma
na cidade. Asma e pé-chato. Você é o
décimo-terceiro. Sabe o quê que eu acho? Que vocês
não querem servir a pátria! (Carimbando a ficha)
Exame médico na quinta. E não falta. (Ameaçador)
Se você não vem... a gente busca em casa.
CENA 37 - SALA DE EXAMES - INTERIOR/DIA
Luciano, pelado, ao lado de outros CINCO CARAS, também pelados.
Um OFICIAL-MÉDICO passeia entre eles, com um estetoscópio na mão.
Pára na frente de Luciano. Ausculta o pulmão.
OFICIAL-MÉDICO
Asma?
LUCIANO
Sim, senhor. Desde que eu tenho dois anos.
OFICIAL-MÉDICO
(bem alto) Todos vocês têm asma?
PELADO 1
Eu tenho bronquite alérgica.
OFICIAL-MÉDICO
(auscultando o pelado 1) E tem mesmo! Vai, meu
filho, te veste. (O pelado começa imediatamente a
se vestir) Dá um abraço no doutor Mânica. E vê se
cura essa bronquite, viu?
O oficial-médico continua a passear entre os pelados. Ausculta um
pouco, manda tossir, manda levantar os braços, manda mostrar a
língua. Finalmente pára bem no meio da fila e discursa:
OFICIAL-MÉDICO
Cinco rapazes fortes, bem-nutridos, com todos os
dentes, sem nenhuma doença venérea. Ideais para o
Exército. Mas vocês têm asma. Algum de vocês,
apesar de ter asma, quer servir? (Silêncio total)
Não? Que pena. Sabe, eu já vi muito soldado curar
asma aqui no 18. Sargento, faltam quantos recrutas
pra completar o contingente?
SARGENTO
Um, capitão.
OFICIAL-MÉDICO
Um? Só um? Que pena. Quem será que vai curar a
asma graças ao Exército Brasileiro?
CENA 38 - BARBEARIA DO EXÉRCITO - INTERIOR/DIA
Uma mecha de cabelo cai no chão, misturando-se a um monte de
outras mechas, de todos os tamanhos e cores. Uma máquina de
cortar cabelo, zunindo como um marimbondo furioso, faz o seu
serviço. O som irritante se mistura ao Hino do Exército,
assoviado com maestria pelo BARBEIRO. Acompanhamos, em detalhe,
uma das "raspadas", que acaba revelando o rosto de Luciano,
estático, olhando para o infinito. Ao seu lado, mais uns TRINTA
ADOLESCENTES esperam a vez. O barbeiro desliga a máquina e pára
de assoviar quando considera o corte pronto. Luciano levanta da
cadeira e é logo substituído por outro RECRUTA. A máquina volta a
zumbir. O barbeiro recomeça o Hino do Exército.
CENA 39 - RUAS PRÓXIMAS AO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA
Um coturno pequeno atravessa a rua. Um tênis Adidas com três
listras azuis desce de um táxi. Um coturno bem grande desce de um
ônibus.
CENA 40 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
O primeiro coturno, o pequeno, já está entrando no saguão do
aeroporto. A câmara sobe, revelando uma calça jeans preta com
umas tachinhas. Sobe mais um pouco, mostrando a bunda de Lisa. Um
remendo dos Sex Pistols adorna a paisagem. Agora vemos o tênis
Adidas, também no saguão. Quando a câmara sobe, revela uma pasta
de plástico com a inscrição "COMUNICAÇÃO", na mão de Chico. O
coturno grande também está no saguão. A câmara sobe por uma calça
verde-oliva, até a mão de Luciano, que segura a "cobertura" de
passeio. Voltamos para Lisa, mais especificamente para as suas
costas. Jaqueta de couro preta. A câmara sobe até a nuca, que
está quase raspada. Lisa exibe um corte "meio-moicano" azul. Lisa
afasta-se da câmara, rumo ao setor de desembarque. Agora estamos
nas costas de Chico. Ao subir, a câmara mostra que o seu cabelo
está quase a zero. Chico afasta-se da câmara. Finalmente, as
costas de Luciano. A câmara sobe e mostra um típico corte militar
(nuca raspada e um pouco de cabelo em cima). Luciano afasta-se da
câmara. Um plano mais aberto de cima. Os três encontram-se perto
do desembarque.
CENA 41 - PÁTIO DO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA
Final da escada do avião, no nível da pista. Um sapato feminino
entra em quadro por cima. Vemos depois as pernas de Carolina. E,
a seguir, a sua barriga, bastante proeminente, uns oito meses de
gravidez. Vemos o rosto de Carolina, tenso, enquanto ela caminha
rumo ao setor de desembarque. Entra no prédio do aeroporto.
CENA 42 - AEROPORTO/SETOR DE DESEMBARQUE - INTERIOR/DIA
Carolina sai do setor de bagagens e olha em frente. Três carecas
abanam para ela. Ela não reconhece de imediato. Olha pra trás,
achando que eles podem estar abanando para outra pessoa. Mas não
há ninguém. Ela olha outra vez e sorri: são eles. Os três a
abraçam. Também estão surpreendidos pela barriga dela.
CAROLINA
(rindo) Meu Deus, quê que houve com vocês?
Epidemia de piolho?
LUCIANO
(fazendo continência) Soldado cento e trinta e
dois, Luciano, da Companhia de Comando da Terceira
Região Militar.
CHICO
Aluno zero sete nove três, barra setenta e sete.
Bixo.
LISA
Sem número. Você gosta de azul?
Os quatro se abraçam mais uma vez, emocionados, fazendo um
bolinho que atrapalha a saída dos outros passageiros.
CENA 43 - BERÇÁRIO DO HOSPITAL - INTERIOR/DIA
Nas janelas do berçário do hospital, Luciano e Chico abanam para
um bebê (José). Lisa se junta a eles. Ficam os três fazendo
gracinhas. Uma AUXILIAR DE ENFERMAGEM empurra o carrinho para
fora da sala. Os três saem da janela. No corredor, brigam para
decidir quem empurra o carrinho, apesar dos olhares repressores
da auxiliar de enfermagem. Chegam à porta do quarto de Carolina.
Entram. Carolina está na cama. Beijos generalizados. A auxiliar
de enfermagem pega o bebê e o coloca no colo de Carolina, para
que ela dê de mamar. Mas o bebê não parece muito a fim.
AUXILIAR DE ENFERMAGEM
Se a senhora precisar, é só me chamar. Tem que
insistir. Ele é meio preguiçoso. (E sai do quarto)
LUCIANO
Vai, meu irmão, aproveita que essa comida aí é
boa.
CHICO
É, aproveita enquanto você não tem que engolir a
bóia do quartel.
CAROLINA
Coitadinho... (para o bebê) Você não vai ser bobo
que nem o tio Luck, vai?
CHICO
É, pelo amor de Deus, já chega um panaca na turma.
LUCIANO
Falando em panaca, eu ainda tenho que passar em
dois bancos antes de voltar pro quartel.
LISA
É assim que você serve à pátria? Indo em banco?
LUCIANO
Não, normalmente eu lavo banheiro e sirvo
cafezinho.
LISA
Por mim, dava pra matar todos os milicos do mundo.
(Ela percebe que falou besteira e tenta
consertar.) Quer dizer, tem exceções... Tem os
caras que apesar de serem milicos...
CAROLINA
Não enrola, Lisa.
LISA
Não... É que o teu pai, por exemplo, eu sempre
achei que ele...
CAROLINA
(cortando) O meu pai, por exemplo, é um grande
filho-da-puta.
Fica um clima pesado no quarto.
CAROLINA
Eu descobri muitas coisas no Rio. Descobri o que o
meu pai realmente faz no Exército. (pausa) Acho
que, pessoalmente, ele nunca torturou ninguém. Mas
nem isso eu tenho mais certeza. (pausa) Vocês não
me perguntaram quem era o pai da criatura.
LUCIANO
Se você não falou é porque não interessa.
CAROLINA
Interessa pra mim. (olhando para o bebê) E talvez
interesse pra ele. (pausa) Saí de casa, fui morar
com uma colega do colégio. Aí eu conheci um cara
super legal, me apaixonei por ele, pensei que ele
era o cara da minha vida, fiquei grávida. E
descobri que o cara conhecia muito bem o meu pai.
(pausa) É isso. O pai dele (e aponta outra vez
para o bebê) é um milico filho-da-puta, que foi
mandado pelo avô milico filho-da-puta pra me
vigiar.
Chico, Lisa e Luciano não sabem o que dizer. Estão surpresos
demais.
CAROLINA
Ele fugiu, com medo que o meu pai acabasse com
ele. O que seria bem possível. E eu não quis
abortar, apesar de todas as ameaças. Fugi de novo,
pra cá. E encontrei vocês. Final feliz.
Chico, Lisa e Luciano continuam mudos. Carolina sorri.
CAROLINA
Eu tenho sorte.
Lisa segura a mão de Carolina. Chico e Luciano ficam olhando o
filho de Carolina.
CHICO
Neto e filho de milicos filhos-da-puta. Tem tudo
pra ser boa gente.
LUCIANO
Provavelmente ele não vai ser milico.
CHICO
A não ser que ele durma demais.
LUCIANO
Provavelmente o filho dele vai ser milico.
CHICO
A criatura já tem nome?
CAROLINA
José.
CHICO
Por que não José Francisco?
LUCIANO
Ou José Luciano?
CAROLINA
Que horror!
LISA
Já sei! José de Anchieta!
LUCIANO
Evidente!
CHICO
Óbvio!
CAROLINA
José de nada, só José. José do que ele quiser.
LUCIANO
É muito comprido.
CENA 44 - FRENTE DA CASA DE LISA - EXTERIOR/NOITE
O carro de Chico pára em frente à casa de Lisa. Ele desce,
apressado, e caminha em direção à casa. A porta da casa de Lisa
se abre. Lisa sai, seguida pela mãe, DILMA, que está segurando
alguma coisa na mão. Chico pára. A mãe pega o braço de Lisa,
ansiosa. Imediatamente começam a discutir. Chico não consegue
ouvir direito. Só chegam até ele algumas palavras como "doente" e
"velha". Lisa vem caminhando em direção a Chico. A mãe vem atrás.
CHICO
O que foi, Lisa?
LISA
Vamos embora daqui.
Lisa abre a porta do carro, entra e fecha a porta violentamente.
Dilma se debruça na janela.
LISA
Vamos embora.
DILMA
Me respeita! Eu sou sua mãe!
Chico percebe que Dilma está drogada, ou bêbada.
LISA
(olhando fixamente para a frente) Chico, vamos
embora!
Chico entra no carro.
CHICO
A sua mãe tá doente?
DILMA
Tô. Tô doente, e a minha própria filha se recusa a
me ajudar.
LISA
(sempre olhando para a frente) Porra, Chico,
arranca logo essa merda de carro!
DILMA
Olha pra mim, olha pra mim!
LISA
Antes te olha no espelho. Chico, por favor!
Chico arranca. Lisa esconde o rosto entre as mãos. Chico fica
olhando a mãe de Lisa pelo retrovisor. Um MENINO vem atravessando
a rua de bicicleta. Chico, que está olhando para trás, não vê.
Lisa ergue os olhos.
LISA
Cuidado!
Chico buzina e dá uma freada brusca. A bicicleta passa raspando.
Chico pára o carro, tentando se acalmar. Olha para Lisa e para a
mãe de Lisa, na calçada.
CHICO
Será que eu não posso ajudar em alguma coisa?
LISA
Você sabe achar veia no braço?
Chico fica alguns segundos olhando para Lisa e, pelo espelho,
para Dilma, ainda na calçada.
CHICO
Não.
LISA
Vamos embora daqui, Chico.
O carro se afasta.
CENA 45 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Lisa está deitada no sofá da sala do apartamento de Chico. Na
parede, pôsters de cinema, uma prateleira feita com tijolos, um
som. No balcão da cozinha, Chico faz café.
LISA
Ela começou a se picar há pouco tempo. Antes, só
cheirava. Eu tô com medo, é perigoso.
CHICO
Tem um centro médico em São Paulo, no interior, eu
acho, onde trabalha um cara muito legal...
LISA
Ela não precisa de médico. Precisa de alguém que
cuide dela, que trate ela que nem criança. Minha
mãe precisa de uma mãe.
CHICO
Todo mundo precisa.
Chico vem sentar no sofá. Lisa deita no colo dele. Chico começa a
acariciar os cabelos de Lisa.
LISA
Hoje eu fui na casa da Carolina.
CHICO
Ela já foi pra casa?
LISA
Desde terça. (pausa) Vendo a Carolina com o José,
me deu uma puta inveja. Ela passou por tanta
merda, tanta coisa ruim, e a impressão que me deu
é que ela tá tranqüila, que a vida dela tá
recomeçando agora, e que ela se transformou. E
isso é muito bom.
Chico pára de acariciar Lisa.
LISA
Continua.
Chico volta a acariciar. Toma coragem. Aproxima-se e dá um beijo
em Lisa. Leve, mas quente. Afasta-se, como quem perdeu a coragem.
LISA
Continua.
Chico está indeciso. Mas decide prosseguir. Mais um beijo. Desta
vez, Lisa toma a iniciativa logo que os lábios se tocam. É um
beijo de verdade. Longo e molhado. Afastam-se. Chico estende a
mão devagar. Primeiro acaricia os seios de Lisa por cima da
camiseta. Depois, coloca a mão na barra da camiseta e vai subindo
o tecido devagar. Descobre os dois seios. Inclina-se e beija um,
depois o outro. Afasta-se outra vez. Olha para Lisa. Lisa tira de
vez a camiseta.
LISA
Continua.
Mas Chico está paralisado.
LISA
Continua.
Como Chico não reage, Lisa pega a mão direita de Chico e a conduz
até o cinto da sua (dela) calça.
LISA
Continua. (E ajeita-se no sofá, facilitando o
trabalho de Chico)
Chico abre o cinto. Depois desabotoa a calça. Lisa estende as
pernas. Chico tira os coturnos dela. Puxa a calça pra baixo até
ela sair. E fica olhando Lisa, que agora está só de calcinha.
LISA
Continua.
Chico inclina-se. Novo beijo longo. Depois, Chico vai lentamente
- e sempre beijando - conduzindo sua cabeça para baixo. O rosto
de Lisa, de olhos fechados, feliz. Mas, de repente, abre os
olhos, insatisfeita e ameaça:
LISA
Se eu tiver que dizer "continua" mais uma vez, só
mais uma vez, eu vou embora.
Pouco depois, Lisa volta a fechar os olhos. A câmara aproxima-se
muito, o mais possível, dos seus lábios. E então ela murmura, tão
baixinho que só os espectadores do filme podem ouvir:
LISA
Continua, continua, continua...
CENA 46 - ESCOMBROS DE QUARTEL - EXTERIOR/NOITE
Ruínas do que já foi um quartel no centro da cidade. Uma grande
placa avisa: "ÁREA MILITAR, NÃO ULTRAPASSE". Da construção
original, sobrou só um pequeno quarto, onde ficam dois beliches
utilizados como dormitório da guarda. Há uma casamata, bem na
esquina da rua. Luciano, de guarda na casamata, tenta ler "Um
Estranho numa Terra Estranha", edição de bolso, mas o sono não
deixa. Ele guarda o livro. Tira o carregador do FAL e olha as
balas. Ele está fazendo isso quando surge o SARGENTO-RONDA.
Luciano assume a posição de "sentido" e se apresenta.
LUCIANO
Soldado cento e trinta e dois, Luciano, da
Companhia de Comando da Terceira Região Militar.
SARGENTO
(olhando para as balas) Tudo em ordem, soldado?
LUCIANO
Serviço sem alteração, sargento.
SARGENTO
Por que tá mexendo no FAL?
LUCIANO
Eu estava verificando a munição, sargento.
O Sargento pensa em dar uma mijada, mas desiste, não vale a pena.
SARGENTO
Boa noite. (Faz continência e sai.)
LUCIANO
(respondendo à continência) Boa noite, sargento.
(Fica olhando o sargento se afastar.)
Luciano começa a recolocar as balas no carregador. Coloca duas.
Quando está colocando a terceira, sente uma mão se enfiando pelo
meio das suas pernas. É RODRIGUES, milico como ele, mas com um ar
mais "marginal". Luciano se vira rápido, em posição de defesa.
RODRIGUES
Ah, deixa eu segurar o seu FAL, deixa.
LUCIANO
Porra, Rodrigues, não enche o saco.
RODRIGUES
Você sabe o quê que o Joaquim disse quando eu
acordei ele? (com sotaque de colono alemão) Eu
pedi que me acordassem quinze minutos antes! E
faltam só cinco! (Pára de imitar) Que cara bem
trouxa!
LUCIANO
Deixa o guri em paz, Rodrigues.
Rodrigues percebe um casal no outro lado da rua. Ela é Marli, uma
prostituta; ele é SIDMAR, um prostituto.
RODRIGUES
Olha ali a Marli! (Assobia) Ô Marli, vem aqui.
O casal acena e atravessa a rua, na direção da casamata.
LUCIANO
Pelo amor de Deus, Rodrigues. Não vai fazer
besteira.
RODRIGUES
Fica frio, militar. (O casal chega) Marli, eu tô
me sentindo tão sozinho...
MARLI
Isso aí a gente resolve rápido.
SIDMAR
E eu podia ajudar...
LUCIANO
Rodrigues...
RODRIGUES
(Para Sidmar) Sidmar, se você botar o pé aqui, eu
juro que te enfio essa baioneta no rabo, entendeu?
SIDMAR
Ai, que morte gloriosa.
RODRIGUES
Entra, Marli.
Nesse momento, vindo da casamata, chega JOAQUIM, um milico alto,
alemão, com ar estúpido e desengonçado.
JOAQUIM
O que está acontecendo?
RODRIGUES
Não te mete, Joaquim.
JOAQUIM
Eu não vou permitir que...
RODRIGUES
(já entrando, de mãos dadas com Marli) Não enche,
Joaquim.
JOAQUIM
Alto! Alto! Eu vou denunciar, Rodrigues.
RODRIGUES (OFF)
(gritando) Experimenta, militar, pra ver o que
acontece.
LUCIANO
(suspirando) Fica frio, Joaquim. Não vale a pena.
O ronda já passou. Assume o posto que eu vou
dormir.
Luciano sai, entra no alojamento. Joaquim fica sozinho com
Sidmar.
SIDMAR
Não fica triste, querido.
JOAQUIM
Some daqui.
SIDMAR
Tu é do interior?
JOAQUIM
Some.
SIDMAR
Aposto que tu é do interior, que nem eu. Eu sou de
Santana, mas caí na vida em Bagé.
JOAQUIM
(tirando o FAL do ombro e engatilhando) Some, já!
SIDMAR
Ai, esse barulho, que coisa máscula.
CENA 47 - ALOJAMENTO - INTERIOR/NOITE
No interior do alojamento, Luciano tenta dormir, mas Rodrigues
está trepando com Marli e os dois fazem muito barulho.
LUCIANO
Pô, Rodrigues, eu quero dormir.
RODRIGUES
Ele quer dormir, Marli. Não faz escândalo.
E os dois se calam por um instante.
RODRIGUES
Ai, como o exército é bom!
Marli começa a rir. Luciano vira-se na cama.
CENA 48 - ESCOMBROS DO QUARTEL - EXTERIOR/NOITE
Sidmar está bem perto da casamata. Joaquim está com o FAL
apontado para ele, o olho na mira.
JOAQUIM
(destrava o FAL) Se você der mais um passo, eu
atiro.
SIDMAR
Tu não ia fazer isso comigo... Olha, eu não vou
fazer nada de mais. Eu prometo. A gente não pode
só conversar?
JOAQUIM
Eu tô avisando, paisano, eu tenho instruções
claras para ...
Mas a pressão do dedo já é suficiente e o FAL dispara. Sidmar é
atingido bem no meio da testa e cai. Luciano vem correndo.
Rodrigues e Marli se vestem, apavorados. Pouco depois, também
chega o sargento-ronda. Todos ficam em volta do cadáver. Joaquim
está branco, em estado de choque. Luciano fica paralisado,
olhando para o corpo.
RODRIGUES
Sargento, essa bicha também tentou entrar quando
eu tava na hora. Eu mesmo alertei o Joaquim para
tomar cuidado. Inclusive ele já tinha roubado uns
tijolos.
MARLI
(chorando) O Sidmar nunca roubou ninguém.
SARGENTO
(para Joaquim) O que aconteceu, soldado?
JOAQUIM
(lívido, quase uma estátua) Ele queria entrar. Eu
matei o cara, sargento.
RODRIGUES
Sargento, eu assisti tudo. O cara se jogou em cima
do Joaquim. (abaixando-se) Inclusive ele tava
segurando esse tijolo aqui.
Rodrigues pega um dos muitos tijolos no chão. O sargento pega o
tijolo e examina.
SARGENTO
Eu vou fazer um relatório. Soldado Joaquim, me
acompanhe. Soldado Rodrigues, assuma o serviço.
RODRIGUES
Sim, senhor.
SARGENTO
Não mexam no corpo.
O sargento sai, com o tijolo na mão, acompanhado de Joaquim.
LUCIANO
(olhando para o cadáver) O Joaquim errou todos os
tiros no treinamento. A pior pontaria da
companhia.
RODRIGUES
(acendendo um cigarro e abraçando Marli, que chora
baixinho) Treino é treino. Guerra é guerra. Na
guerra o sujeito se supera.
Luciano fica olhando Sidmar sangrar entre os tijolos.
CENA 49 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA
Luciano está em sua mesa numa sala de redação. É um lugar meio
decadente, com obras incompletas, móveis improvisados e velhas
máquinas de escrever. Luciano pega, na gaveta, um saco plástico.
Dentro do saco, um tijolo. O saco está lacrado e tem várias
etiquetas do exército.
LUCIANO
O tijolo, prova número um do inquérito policial
militar número dez mil quatrocentos e trinta e
seis, barra setenta e nove, que obviamente não deu
em nada, roubado da sede da auditoria pelo soldado
Luciano de Almeida.
Luciano põe sobre a mesa um roteiro.
LUCIANO
"O Tijolo", roteiro inédito de Luciano de Almeida,
para caso especial de televisão a ser dirigido por
Francisco Freire. A Carolina faz a Marli. O Abraão
pode ser o Sidmar.
Chico pega o roteiro, folheia.
LUCIANO
Eu já contei pro Velho, ele achou interessante,
que é o máximo que ele acha de qualquer coisa. O
problema é o custo.
CHICO
Por que você não dirige?
LUCIANO
Por que eu não quero ser diretor, nem jornalista,
nem trabalhar em televisão.
CHICO
E o que você está fazendo aqui?
LUCIANO
Juntando dinheiro para abrir uma padaria. Já tenho
até um sócio uruguaio. Pra abrir uma padaria um
sujeito precisa de um sócio uruguaio.
Chico acha graça.
LUCIANO
É sério.
O VELHO, um sujeito de uns quarenta e cinco anos, aparência
cansada, abre a porta que dá para a sala de redação. Faz um sinal
para Luciano. Ele levanta.
LUCIANO
Vamos lá. Cadê a fita?
Chico mostra uma fita de vídeo.
CENA 50 - FAZENDA DE SOJA - EXTERIOR/DIA
Fotos de uma pequena propriedade rural. Uma FAMÍLIA DE COLONOS
alemães posa pra foto em frente da casa. Detalhe da foto mostra
um menino de doze anos, UBIRAJARA.
CHICO (OFF)
Em 1968 esta pequena propriedade rural produzia
milho, mandioca, alface, tomate e batata.
Ubirajara tinha nove anos.
Imagens da fazenda hoje, coberta de soja.
CHICO (OFF)
Dez anos depois, o pai de Ubirajara morreu. A
fazenda ficou para os cinco filhos, que resolveram
plantar soja.
Depoimento de UBIRAJARA, hoje, com vinte e poucos anos. Fala dos
custos de produção, das dificuldades em pagar o financiamento
para o banco e da sua decisão de vir para Porto Alegre.
Ubirajara no ônibus, a caminho de Porto Alegre.
CHICO (OFF)
Todos os anos, milhares pequenos agricultores
expulsos do campo vêm para Porto Alegre. Trazem na
bagagem algumas roupas, nenhum dinheiro e o sonho
de uma vida melhor.
Ubirajara trabalhando na construção de um prédio. Ubirajara num
bar, com amigos. Ubirajara, a mulher grávida e um filho pequeno,
na frente de um barraco.
CHICO (OFF)
Ubirajara mora na Restinga Velha, num barraco de
uma peça. Sua mulher, Regina, trabalha como
doméstica. Seu filho Ricardo, de seis anos, vende
marcela na rua, para ajudar no orçamento. Regina
está grávida.
Depoimento de Ubirajara: "Eu quero voltar". Edição de vários
depoimentos de COLONOS, no interior, e de MORADORES DA VILA. Os
colonos falam da vontade de vir para Porto Alegre. Os moradores
da vila dizem que querem voltar para o interior.
CENA 51 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA
Luciano desliga o vídeo e tira a fita. Entrega para Chico. O
VELHO está sentado em uma velha escrivaninha, cheia de fitas de
vídeo e papéis. Um jornal está aberto sobre a mesa. Um enorme
cinzeiro está cheio de baganas de cigarro. O Velho acende mais
um. Durante todo o diálogo ele divide a atenção entre Chico e o
jornal.
VELHO
(não muito animado) Interessante. Você já sabe o
salário?
CHICO
O Luciano me disse. Tudo bem.
VELHO
E o horário?
CHICO
Madrugada, tudo bem.
VELHO
(para Luciano) O Andrew já terminou a edição?
LUCIANO
Deve estar terminando.
VELHO
Diz pra ele dar uma chegada aqui.
Luciano sai.
VELHO
A audiência do jornal é mínima, mas sempre tem
alguém que acorda às sete da manhã e liga a tevê.
O patrocinador principal é uma revenda de
tratores, o jornal sempre tem matérias de
agricultura, previsão do tempo, essas merdas. A
editora chefe é a Dona Miriam Junqueira, conhece?
Chico faz que não.
VELHO
Ninguém conhece, nem o marido. Ela dorme às sete,
chega na tevê às quatro, volta pra casa ao meio
dia. Ela não dá a mínima pro texto das matérias,
desde que não tenha três linguodentais fricativas
na mesma frase. Eu já vi ela trocar a frase "os
assaltantes são sete" por "os ladrões eram oito".
É boa gente.
Chico acha graça. Andrew, com Luciano, entra na sala.
VELHO
O apresentador do jornal é Rubens Ribeiro, o
imbecil mais bem penteado da cidade. Boa gente
também. (pausa) Andrew, este é o Chico.
ANDREW
A gente já se conhece da faculdade. Tudo bem?
Cumprimentam-se.
VELHO
O Chico vai segurar a outra alça da mala.
ANDREW
Já avisou das linguodentais fricativas?
VELHO
Já. (para Chico) Passa no departamento de pessoal
pra acertar tudo. Tem certificado de reservista?
CHICO
Tenho.
VELHO
Meu pai dizia que tudo que um ser humano precisa é
um pênis, um emprego e um certificado de
reservista.
LUCIANO
Então tá tudo em ordem.
Chico fica esperando mais alguma instrução.
VELHO
É isso aí, pode ir. (pausa) Você já leu Dante?
Chico faz que não.
VELHO
Na porta do inferno estava escrito: "Aos que
entram, esqueçam suas esperanças".
CENA 52 - VILA DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR/DIA
Seqüência sem diálogos.
Kombi da TV estaciona na frente de um bar, numa vila pobre de
periferia. A kombi é cercada por CRIANÇAS. Chico e Andrew descem
da kombi. Com eles, um CINEGRAFISTA, um OPERADOR DE VT e o
MOTORISTA. O motorista desce e entra no bar. Andrew está de terno
e gravata e segura o microfone. Chico dá instruções ao câmara. Um
CASAL vem falar com Andrew. Andrew reconhece o homem,
cumprimentam-se.
Andrew entrevista o casal. O homem aponta para o esgoto que sai
de uma fábrica, correndo a céu aberto e passando pelas casas.
Chico orienta o cinegrafista, que faz imagens das crianças
brincando no valão.
Os GUARDAS, na portaria da fábrica, não deixam Chico entrar para
fazer imagens. Chico filma o guarda fechando o portão, pondo a
mão na frente da lente.
CENA 53 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA
Prossegue a seqüência sem diálogos.
No monitor da ilha, imagens da vila, das crianças, da fábrica.
Andrew orienta o EDITOR, que edita a matéria. Chico, de pé, ao
seu lado, fica acompanhando o processo. Dona MIRIAM dá uma olhada
desinteressada nas imagens, faz alguma observação e vai embora.
Chico, insatisfeito, sugere uma mudança na edição. Andrew gosta
da idéia e orienta o editor, que opera o equipamento. Agora as
imagens dos guardas no portão aparecem intercaladas com as das
crianças brincando no esgoto. Andrew e o editor comentam que
ficou bom. Chico, no seu canto, fica muito satisfeito.
CENA 54 - COZINHA DE CAROLINA - INTERIOR/DIA
Carolina dá a papinha de José, que agora tem em torno de um ano
de idade. Ela tem cara de muito sono e ele está a mil, fazendo a
maior sujeirada. Chico está sentado ao lado dela. Toma café e tem
os olhos fixos na TV, onde Andrew está apresentando a matéria da
vila, microfone na mão, fábrica ao fundo.
ANDREW
...e é a mesma fábrica que patrocinou (mostrando)
esta revista de ecologia. Mas aqui, na vida real,
a fábrica despeja milhares de litros de resíduos
químicos sobre as casas destas pessoas. A fábrica
já foi multada e preferiu pagar a multa a tratar o
esgoto.
Os guardas na portaria da fábrica.
ANDREW
(na TV) Tentamos ouvir os responsáveis pela
fábrica mas eles não quiseram nos receber. Parece
que aqui a sujeira não está só do lado de fora.
CHICO
(para Carolina) Olha só essa edição agora...
José dá um tapão no prato e voa mingau pra tudo que é lado.
CAROLINA
José!
Carolina limpa a mesa com um pano.
CHICO
Viu só?
Na TV, o apresentador RUBENS RIBEIRO começa a dar a previsão do
tempo.
CAROLINA
Ótima matéria, Chico!
CHICO
Você não viu a edição.
CAROLINA
É um absurdo o que esses caras fazem. Pra
economizar uns trocados eles jogam o lixo no meio
das pessoas, destruindo tudo. E depois posam de
defensores do meio ambiente.
CHICO
Você não viu a edição. A edição final sintetizava
tudo.
Carolina levanta, limpa o rosto de José, enfia o bico na boca da
criatura, lava o prato na pia, faz dez coisas ao mesmo tempo,
quase automaticamente.
CAROLINA
Liga pro aeroporto e confirma a chegada.
CHICO
Já liguei, confirmado, nove e meia.
CAROLINA
Fica um pouco com o José que eu fico pronta em
cinco minutos. Se o bico cair no chão, lava com
água do filtro.
O bico cai no chão. Chico pega o bico, lava na água do filtro.
CHICO
Tinha uma coisa do movimento da mão do segurança
juntar com uma zoom rápida no rosto da criança no
lixo, você não viu...
Chico põe o bico na boca de José. Ele cospe e o bico cai no chão.
Chico faz uma cara de "ai, meu saco", recolhe o bico e lava no
filtro outra vez.
CHICO
(muito sorridente, para José) E a culpa é sua,
seu... analfabeto. Porque é isso que você é: um
inútil, analfabeto e egoísta. Você sabia que o
filho de um búfalo quando nasce tem que sair
caminhando em meia hora? Se ele não levanta
rapidinho a manada vai embora e ele fica de almoço
pros coiotes, não tem moleza não. (pausa) Tua mãe
provavelmente vai te dar papinha até os dezoito.
Aí você vai procurar outra trouxa que te dê
papinha. Não pensa que você me engana, não, que eu
te conheço.
Chico enfia o bico na boca de José. Ele joga o bico no chão.
CHICO
Agora azar o seu, garoto.
José começa a resmungar.
CAROLINA
(fora de cena) Dá o bico pra ele, Chico!
Chico junta o bico no chão, assopra, passa na camisa e põe na
boca de José.
CENA 55 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
Chico e Carolina, ela com José no colo, entram no aeroporto.
Caminham rápido pelo saguão.
CHICO
O vôo já deve ter chegado.
CAROLINA
Ela deve estar nos esperando. (Aponta em frente)
Olha lá o Luciano.
CHICO
(apertando o passo) Quem é aquela figura?
CAROLINA
Não sei.
Eles chegam perto de Luciano e de sua acompanhante, que veste um
traje "krishna" completo. Só então Luciano e Chico olham direito
para o rosto da "krishna": é Lisa. Os dois ficam completamente
patetas.
LISA
(sorrindo) Hare-krishna.
CAROLINA
(tentando aparentar normalidade, mas ainda
desnorteado) Lisa... Ôi... Hare... Hare-krishna.
Chico, depois de um momento de hesitação, decide cumprimentar à
maneira ocidental, com um beijo, mas Lisa o detém com um gesto.
LISA
(sempre sorrindo, meio beatífica) Desculpe, Chico,
mas o beijo é maia. Nós não somos casados.
Chico fica sem saber o que fazer.
CHICO
Apertar a mão pode?
LISA
(sorrindo) Pode.
Os dois apertam as mãos.
LISA
Que bom que vocês vieram. (pausa) Vocês podem me
levar até o templo?
CHICO
Claro.
Os rapazes pegam as bagagens de Lisa, muito esquisitas. As duas
meninas vão na frente. Luciano segura Chico pelo braço, deixando
as duas se distanciarem um pouco.
LUCIANO
Ela vai morar num templo, e não beija mais
ninguém?
CHICO
Pelo que eu entendi, só se for marido.
LUCIANO
Por Deus, essa é a maior demonstração de loucura
que eu já vi na vida.
As duas meninas notam que Luciano e Chico ficaram pra trás.
Carolina faz sinais, chamando-os. Os dois vão correndo até elas.
CENA 56 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
Chico, Luciano, Carolina e Lisa estão sentados em volta de uma
mesa, cabeça baixa. Silêncio absoluto, como se estivessem num
ritual religioso. O apartamento é decorado com tudo que há de
mais astral: krishnas, budas, macramês e batiques, samambaias e
George Harrison. Lisa já não veste a roupa krishna.
CHICO (OFF)
Um dia a Lisa me contou que inventava os sonhos
pra contar para o analista. Ela ficava muito
ansiosa por não lembrar dos sonhos e começou a
inventar, a caminho da sessão, no táxi. Ela achava
que dava no mesmo, que inventar pecados é quase o
mesmo que cometê-los. Quase.
CENA 57 - CONSULTÓRIO DO ANALISTA DE LISA - INTERIOR/DIA
Lisa está sentada numa poltrona de couro e gesticula muito,
contando uma história. O ANALISTA escuta e fala algumas coisas.
CHICO (OFF)
O problema é que a maioria dos sonhos se passava
num táxi, sempre com o motorista como personagem.
O analista começou a achar que ela tinha uma
fixação em táxi.
CENA 58 - BANCA DE REVISTAS - EXTERIOR/DIA
Lisa compra uma revista numa banca. O nome da revista é "BONS
SONHOS".
CHICO (OFF)
Aí ela comprou uma revista de interpretação de
sonhos pra decorar um sonho qualquer que era dado
como exemplo, pra contar pro analista.
CENA 59 - RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA
Lisa caminha nua pela rodoviária. Tenta se esconder com um
jornal. As PESSOAS passam por ela mas não prestam atenção. Um
GUARDA se aproxima.
CHICO (OFF)
Ela leu e contou que tinha sonhado que estava nua
na rodoviária quando um guarda aparecia e pedia
uma informação. O guarda queria saber onde ele
podia pegar o ônibus para Caxias.
CENA 60 - CONSULTÓRIO - INTERIOR/DIA
Lisa termina de contar o sonho pro analista.
CHICO (OFF)
O analista disse que a análise estava mexendo com
ela, que ela estava se sentindo exposta, que eles
precisavam falar sobre o pai dela. A revista disse
que sonhar com guarda é sinal de sorte e que
sonhar com ônibus é camelo.
CENA 61 - BANCA DE BICHO - INTERIOR/DIA
Lisa conversa com o CAIXA DO BAR. Ele anota o palpite dela no
bicho: camelo.
CHICO (OFF)
Ela jogou uma grana no camelo, invertido do
primeiro ao quinto. Alguma coisa dizia que o fato
de ela ter escolhido especificamente aquele sonho
na revista tinha algo a ver com algo, sei lá.
CENA 62 - CASA DE CÂMBIO - INTERIOR/DIA
Lisa deixa cair alguns dólares. Vai juntar e é ajudada por um
homem de mãos fortes, braços fortes e cabeça raspada. Ele é
KRISHNA.
CHICO (OFF)
Deu porco, mas ela conheceu um uruguaio na casa de
câmbio onde foi trocar os dólares para jogar no
bicho. O cara era krishna. Eu disse que achava
estranho um krishna numa casa de câmbio mas ela
não prestou atenção. Ela largou o analista.
CENA 63 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
Os quatro em volta da mesa, ainda em silêncio.
CHICO (OFF)
Eles foram juntos pra Índia. Aí ela teve uma
infecção por estafilococos e voltou pro Brasil.
Duas semanas longe do uruguaio e ela deixou de ser
krishna. Ela diz que lembra de todos os sonhos.
Estes dias ela sonhou com um cavalo e jogou no
bicho outra vez. Deu avestruz. É muito difícil
ganhar na loteria.
LUCIANO
(gritando) STOP!
Os quatro, que estavam estáticos, se agitam muito.
LISA
Não acredito! Você conseguiu bicho com "ene"?
LUCIANO
Bicho com "ene" é fácil. Difícil foi novela com
"ene".
CAROLINA
Nina.
CHICO
Ene? Não era "Eme"?
LISA
Não, Chico, tá brincando que você fez tudo com
"Eme"! Eu falei dez vezes, e-ne, e-ne, e-ne!
Acorda, Chico! Acorda!
CENA 64 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE
Chico está na central técnica, com cara de sono, mexendo nos
controles da mesa. O relógio na parede marca 3:47. Lisa, a um
canto, observa tudo. Chico aperta os olhos e olha para o monitor.
CENA 65 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
Carolina, interpretando "Alice no país das maravilhas", agita os
braços na frente de um fundo azul.
CAROLINA
Dinah vai sentir muito a minha falta esta noite,
eu acho...
No monitor, graças ao "chroma-key", Carolina-Alice parece estar
caindo em um poço sem fundo.
CAROLINA
Dinah, eu queria que você estivesse comigo aqui.
Não tem nenhum rato no ar, infelizmente, mas bem
que você podia pegar um morcego...
De repente, o fundo do "chroma-key" termina, e Alice fica
sacudindo os braços no ar sobre as imagens da reportagem do cano.
CENA 66 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE
Lisa, bastante divertida, sacode o braço de Chico, que está
dormindo sentado, em frente ao monitor. Chico cabeceia e olha
para o monitor, assustado.
CENA 67 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
Carolina, sem saber o que se passa, continua agitando os braços e
dando o texto de Alice.
CAROLINA
...é igualzinho a um rato, sabe? Gatos comem
morcegos? Gatos comem morcegos?
CHICO (OFF)
(no microfone) Parou. Terminou a base do chroma.
São quase quatro da manhã, eu reedito depois.
Ficou ótimo.
Luciano entra em cena, seguido por Andrew. Luciano tem um baseado
na mão e faz sinais para Chico, apontando para o lado. Carolina e
Andrew morrem de rir.
CHICO
Que é isso?
Chico vê que no monitor onde está escrito "PROGRAMAÇÃO" surge a
imagem de Luciano. Percebe que a TV está no ar.
CHICO
(assustado, grita no comunicador) Porra, Luciano,
você é louco! Desliga está merda, Luciano!
LISA
Que foi?
CHICO
(levantando) Ele ligou o transmissor. A tevê tá no
ar! (sai)
Lisa fica rindo. Luciano pega o livro "Alice no país das
maravilhas" na mão, dá uma tragada e segura a fumaça nos pulmões.
LUCIANO
No ar, zê-ipslon-cá-cete, tevê Lisão, canal Cem.
(Abre o livro, procura um trecho.) "Era briluz. As
lesmolisas touvas roldavam e relviam nos
gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas e os
momirratos davam grilvos". E agora com vocês,
nosso comentarista comunista e pobre, Andrew Silva
Terceiro.
Luciano passa o baseado para Andrew. Ele dá uma tragada e vem
para frente da câmara.
ANDREW
Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades
democráticas e por uma melhor distribuição de
maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la
marijuana jamás!
Chico entra no estúdio e desliga a luz. Luciano entra em cena e
continua a transmissão clandestina.
LUCIANO
Camaradas! Mercenários a soldo do capitalismo
ianque estão invadindo nossos estúdios. Querem
calar a nossa voz, camaradas! A Tele Rebelde,
canal nove, uma emissora da Fundação Raul
Seixas...
Luciano fica falando mas não se ouve o que ele diz. Chico cortou
o som dos microfones. Chico entra em cena, ainda irritado,
gesticulando muito. Luciano estende o baseado para Chico. Ele
pára de discutir, pega o cigarro e fuma.
CENA 68 - SALA DE ESPERA DA CRECHE - INTERIOR/DIA
Chico está sentado num banquinho, numa sala de espera. A
decoração infantil é supercolorida. As mesinhas e banquinhos dão
a impressão de que Chico cresceu ou está tendo uma alucinação.
CHICO (OFF)
"Muito estranhíssimo, muito estranhíssimo, gritou
Alice. Eu estou crescendo como um telescópio.
Adeus pés".
Chico levanta-se.
CHICO (OFF)
Quartas-feiras Carolina tinha ensaio até mais
tarde e eu buscava o José na escolinha.
A PROFESSORA surge com José, que agora tem uns quatro anos. Chico
pega José pela mão e sai.
CHICO (OFF)
Este era um dos meus poucos rituais, eu não ia à
missa desde o primário. De vez em quando eu também
ia ao teatro, ver a Carolina.
CENA 69 - FRENTE DA CASA DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA
Chico acompanha José até a porta de casa. Carolina abre a porta,
abraça José.
CENA 70 - CENÁRIO DE TEATRO - INTERIOR/NOITE
Cenário da peça "Seis personagens à procura de um autor".
Carolina, com um boneco no colo, faz o papel da MÃE. Abraão,
aquele que era professor de filosofia, faz o DIRETOR.
CAROLINA
(desesperada) Meu filho! Meu filho! (sai gritando)
Socorro! Socorro!
DIRETOR
Feriu-se? Feriu-se de verdade?
PRIMEIRA ATRIZ
(entrando em cena pela direita, penalizada)
Morreu! Pobre menino! Morreu! Oh! Que coisa, meu
deus...
PRIMEIRO ATOR
(entrando pela esquerda, rindo) Morto o quê!
Ficção, ficção, não acredite!...
OUTROS ATORES
(gritando) Ficção? Realidade! Realidade! Está
morto! Não! Ficção! Mas que ficção? Realidade!
Ficção!
ABRAÃO
(interrompendo, aos gritos) Ficção, realidade! Vão
todos para o diabo que os carregue! Luz! Luz! Luz!
O teatro inteiro se ilumina. Chico, Lisa e Andrew estão na
platéia.
ABRAÃO
Ah! Jamais me tinha acontecido coisa semelhante!
Fizeram-me perder o dia. Podem ir, podem ir. Que
mais querem fazer agora? Muito tarde para
recomeçar o ensaio. Até logo à noite!...
Os atores saem todos, cumprimentando o diretor. Ele fica só.
ABRAÃO
Ó eletricista! Apague tudo!
O teatro cai na mais densa escuridão.
ABRAÃO
O que é isso? Deixem-me acesa ao menos uma
lâmpada, para eu ver onde ponho os pés!
De repente, por trás do telão branco, como por erro de ligação,
acende-se um refletor que projeta as sombras dos Personagens. O
diretor se assusta e foge do palco. A luz volta ao normal. Cai o
pano. O público aplaude muito. Os atores surgem no palco.
Carolina está muito feliz, cansada e bonita.
CENA 71 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE
No camarim lotado, clima de alegria, confusão, todos falando ao
mesmo tempo. Chico cumprimenta Abraão e lhe apresenta Andrew. Os
atores todos gritam muito. Chico abraça Carolina.
CENA 72 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE
Chico, Andrew, Carolina e Abraão comem e conversam. Abraão e
Andrew embarcaram num papo seríssimo.
ABRAÃO
Todo teatro é teatro político.
ANDREW
Eu falo de uma coisa mais popular, mais
compreensível.
ABRAÃO
A idéia de uma dramaturgia popular e outra erudita
é ultrapassada e preconceituosa. Shakespeare
sempre foi popular. Pirandello pode ser muito
popular. Só depende da mídia.
ANDREW
Eu acho, que por mais que se aperfeiçoem as
mídias, satélite, computador, a revolução vai ser
anunciada num panfleto, numa pichação de parede.
Você acha que Pirandello pode ser eficiente para
combater o bombardeio de alienação que a televisão
despeja sobre as pessoas todos os dias?
ABRAÃO
Não menos eficiente que Brecht ou Plínio Marcos.
Meu amigo, eu fiquei metade da minha vida
esperando uma revolução. A tal revolução ia chegar
um dia, para julgar os vivos e os mortos. Eu não
sou adventista. Eu acho que é possível fazer
coisas que melhorem a vida das pessoas. Teatro é
só uma delas. Eu faço o que posso e pra mim isso é
que é política: fazer o que você pode. Fazer. É a
melhor maneira de dizer. Bertold Brecht.
CENA 73 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE
Um vidro cheio de ovos de conserva em cima de um balcão, num bar
de vila. Andrew e um CASAL conversam numa mesa. Eles falam baixo,
para não dar bandeira.
HOMEM
O Lima ficou cuidando os carros. Passou um
camburão e nós largamos as pás, ficamos encostados
na cerca. Eles passaram reto, nem aí.
CENA 74 - RUA DA VILA - EXTERIOR/NOITE
TRÊS HOMENS cavam um buraco ao lado da rua. Um QUARTO HOMEM fica
na cerca da casa, cuidando a rua.
ANDREW (OFF)
Que horas eram?
HOMEM (OFF)
Onze, onze e dez. Mas o lugar é claro, tinha que
ser pra encontrar o cano. É perto do poste. Quando
a gente encontrou o cano é que a coisa engrossou.
Depois da água jorrar tinha que ser rápido, não
dava mais para parar. Uma lasca do cano pegou na
perna do Mancha, um corte feio.
Os três lutam contra o barro e a força da água, tentando encaixar
um cano no cano quebrado.
HOMEM (OFF)
Tinha água pra tudo que é lado. O nosso cano tinha
uma bitola maior e o cotovelo ficou curto. No meio
daquele barral, pra acertar o cotovelo foi um
parto. Depois foi frouxo. Tapamos a folga com uma
corda e fomos ligando os canos, eu e o Lima. O
Pedrão e o Mancha taparam o buraco. Depois foi
tapar a vala, encaixar outro cotovelo e distribuir
a água, prum lado e pro outro. No começo a água
saiu barrenta, depois limpou.
ANDREW (OFF)
E agora? Não apareceu ninguém pra reclamar?
CENA 75 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE
No bar, Andrew continua entrevistando o casal.
HOMEM
Muito cedo. Mas os carinhas já devem ter percebido
que a força diminuiu lá pra cima. Leva uns dias.
MULHER
A gente tá organizado em turnos, criança também.
Quando eles vierem a gente chama a imprensa, faz
barulho. Não sei se vêm alguém. Vocês vêm?
CENA 76 - RUA DA VILA - EXTERIOR/DIA
Algumas PESSOAS carregam faixas "QUEREMOS ÁGUA". FUNCIONÁRIOS da
companhia de água cavam no mesmo lugar, sob a proteção da
POLÍCIA. Andrew, Chico e um CINEGRAFISTA estão lá. As pessoas
gritam palavras de ordem enquanto Andrew tenta entrevistar o
CHEFE DOS FUNCIONÁRIOS.
CHEFE
Eu faço o que me mandaram. Não entendo nada de
política.
ANDREW
Quem foi que mandou?
CHEFE
O meu chefe. Quer ver a ordem?
CENA 77 - CASA DO CHEFE DO CHEFE - INTERIOR/DIA
O sujeito, provavelmente DIRETOR DA COMPANHIA de água, dá uma
entrevista para Andrew na frente de casa. Enquanto ele fala,
Chico percebe que uma MENINA molha a grama do jardim da casa do
cara.
DIRETOR
A distribuição de água obedece a um planejamento
técnico rigoroso. Nós não podemos permitir que os
moradores interfiram na rede programada conforme
sua própria vontade.
Chico chega na orelha do cinegrafista.
CHICO
Faz o foco na menina do jardim.
IMAGEM DE VíDEO. O Diretor fica completamente fora de foco. O
foco é na menina, molhando a grama, feliz, com a mangueira.
DIRETOR
A água é um direito de todos e deve ser
distribuída democraticamente.
Duas crianças, de pé no chão, numa rua coberta de pó.
DIRETOR (OFF)
Democraticamente...
CENA 78 - SALA DO VELHO - INTERIOR/DIA
Chico e Andrew estão sentados na frente da mesa do Velho, que
mostra um ofício.
VELHO
Essa é a melhor parte. (lendo) "e no momento em
que este órgão público se alia a esta emissora
numa grande campanha publicitária, é
incompreensível o tratamento desonesto a que foi
submetido nosso diretor técnico na referida
reportagem, etcetera, etcetera". Eles
provavelmente vão cancelar a campanha. Vinte mil
dólares. E desligaram o cano, de qualquer jeito.
CHICO
E aí?
VELHO
Pediram a cabeça dos dois. O coronel já me ligou
três vezes. Chamou a edição de "molecagem".
CHICO
Velho, dá um resumo.
VELHO
Tudo bem, eu segurei essa. Só que matérias desse
tipo eu quero ver antes de ir ao ar.
CHICO
De que tipo?
VELHO
Interessantes.
CHICO
Você ia cortar a matéria?
VELHO
Não sei, acho que não.
Chico e Andrew levantam pra sair da sala.
CHICO
Regra número um: toda reportagem é contra alguém.
O resto é publicidade.
VELHO
Regra dois: a publicidade paga o nosso salário.
CENA 79 - SAGUÃO E ELEVADOR DE EDIFÍCIO - INTERIOR/DIA
Um edifício moderno e luxuoso no centro da cidade. Chico entra no
elevador.
CENA �� - SEDE DA BRASETIC - INTERIOR/DIA
Chico chega ao último andar. Uma placa na parede: "BRASETIC
CONSTRUÇÕES". Chico entra numa pequena ante-sala. LAURA, a
recepcionista, é elegante e muito bonita. Tem uns trinta anos,
mas aparenta menos.
LAURA
Boa tarde, doutor Francisco.
CHICO
Oi, Laura. O Emílio já chegou?
LAURA
Ele está na sala do doutor Ernâni.
Ela usa o interfone. Logo depois, introduz Chico na sala, onde
estão ERNÂNI (pai de Chico) e Emílio. Laura sai, fechando a porta
atrás de si.
CHICO
A Laura é MUITO gostosa. Ôi, pai. Ôi, Emílio.
EMÍLIO
(constrangido) Fala baixo, ela pode ouvir.
CHICO
E você pensa que eu já não disse isso pra ela?
ERNÂNI
(sorrindo, meio sacana) Ela é muito competente.
Vocês estão se dando bem, não é, Emílio?
EMÍLIO
(sem jeito) Muito bem. Quer dizer, ela é muito
competente. (envergonhado) Bom, vocês me dão
licença?
Emílio sai da sala. Chico aproxima-se da mesa do pai, que é
enorme. Na parede da sala, grandes fotos que mostram obras de
grande porte: estradas, hidroelétricas, edifícios públicos, etc.
ERNÂNI
E aí, filho, veio pra assinar o teu contrato?
CHICO
Pai, eu já tenho emprego, esqueceu? Oito horas por
dia.
ERNÂNI
Quanto você ganha?
CHICO
Eu não discuto o meu salário.
ERNÂNI
Aquilo não é salário, você não tem emprego. Aqui,
além de ganhar decentemente, você vai contribuir
para que a empresa cresça. Quatro por cento das
ações estão no teu nome, você esqueceu?
CHICO
(levantando-se) Eu não quero ação nenhuma. Você
ainda espera que eu, um dia, chegue aqui nessa
mesa e diga "Pai, eu assumo tudo. Vai pra casa
descansar que eu cuido do império da família".
ERNÂNI
Eu não espero nada. Tô te oferecendo um trabalho.
Se não quiser tudo bem.
CHICO
(de pé, junto às primeiras fotos da parede) Que
obra é essa?
ERNÂNI
Uma estação de tratamento de água em Brasília.
CHICO
Quem era o presidente na época?
ERNÂNI
Sessenta e cinco? O Castelo Branco.
CHICO
(apontando outra obra) E essa? (lendo) Avenida
Tiradentes, em Goiânia. Obra federal. Quem era o
presidente?
ERNÂNI
Acho que o Costa e Silva. Por que este interesse?
CHICO
(apontando outra obra) E essa?
ERNÂNI
Isso é uma rede de esgotos em Belém.
CHICO
Obra federal. Quem era o presidente? O Médici.
(apontando outras fotos) Isso aí é um hospital de
Campo Grande. Geisel. Essa aí também tem a data:
Figueiredo. Esta é mais nova, rede de esgotos, em
São Luiz. Sarney.
ERNÂNI
E aí?
CHICO
Pai, só me responde duas coisas: primeiro, como
você conseguiu se dar bem com todos os governos
que o Brasil teve desde o Jango; segundo, por que
você botou a Laura pra trabalhar com o Emílio.
ERNÂNI
(ri) Ela é eficiente. E eu comecei a trabalhar pro
governo com o Juscelino.
CHICO
E talvez o Emílio acabe comendo ela.
ERNÂNI
Talvez. Seria bom pra ele. Ela é discreta.
CHICO
E seria bom pra ele, que é tão tímido. Pai, você é
um grande calhorda. (indo em direção à porta) Mas
eu te amo.
ERNÂNI
Vê se liga pra tua mãe de vem em quando.
CHICO
Eu ligo.
CENA 81 - REPORTAGEM - INTERIOR/NOITE
Uma reportagem, em vídeo, que Chico e Andrew fizeram sobre
Abraão. Cenas de Abraão se maquilando, no palco, dando aulas.
ABRAÃO (OFF)
Eu nem era comunista. Eu só não gostava do que os
militares faziam: torturar gente, prender músicos,
proibir filmes. E eu fazia teatro, dava aula de
filosofia, estas coisas. (...) Os caras que me
torturavam me chamavam de "judeu!", "veado!",
"atorzinho!". Eles me torturavam por ser tão
diferente deles.
Abraão, sentado no cenário da peça, termina de tirar a maquiagem.
ABRAÃO
Tinha um lado irônico: era tudo verdade, eu era
mesmo um atorzinho veado e judeu. Mas não era
engraçado. (...) Eu continuo querendo mudar o
mundo, eu continuo achando que a mudança se faz
por ação política, organizada, e também por ação
política individual, eu continuo sendo...
esquerdo. Só que eu quero me reservar o direito,
neste momento, de não seguir incondicionalmente a
opinião da maioria. E aí fica difícil fazer
política partidária.(...) Tem uma frase no
Orlando... "eu estou crescendo. Estou perdendo
algumas ilusões. Talvez para adquirir outras".
Tomara que sim.
CENA 82 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
Chico desliga o VT. O Velho fica olhando para o monitor apagado.
Chico e Andrew ficam esperando uma resposta do Velho.
VELHO
(muito sério) Interessante. Muito interessante. Só
que não vai ao ar.
Chico ri, como quem não acredita. Andrew não esboça uma reação.
CHICO
Por quê, Velho?
VELHO
(levantando) Chico, por favor, não vamos começar
uma conversa adolescente a esta hora. Não vai
porque não vai, você é um bom jornalista, sabe por
que não vai.
CHICO
Não, Velho, eu não sou um bom jornalista. Aliás,
eu sou um péssimo jornalista. Não vai porque ele é
veado, ator ou judeu?
VELHO
Ele fala que os militares no governo torturavam
gente... Não é momento de radicalizar com os
militares, você sabe disso.
Andrew ri. Chico guarda a fita, entrega na mão do Velho.
CHICO
Tudo bem, Velho. Mas eu tô fora. Eu gasto o meu
salário em gasolina pra chegar aqui. Já aprendi o
que tinha pra aprender nessa tevê. Eu vou sair e
botar a boca.
VELHO
Onde? No bar? Ou no jornal do sindicato? Chico,
vai dormir.
ANDREW
Como é que você se conforma com um papel desses,
Velho?
VELHO
Da mesma maneira que vocês: eu sou pago pra isso.
Andrew levanta, começa a pegar suas coisas, papéis, livros.
ANDREW
Eu não. Não mais.
VELHO
Não seja ridículo, Andrew. Vocês têm que, pelo
menos, acabar de editar o jornal. Isso não é
profissional.
ANDREW
Então eu não sou profissional. Sabe qual é o seu
problema, Velho? É que você cansou. Cansou, de
tanto levar porrada, e resolveu colaborar com o
inimigo. Tudo bem, dá pra compreender. Mas eu
ainda nem comecei e não vou me submeter aos seu
critérios nazistas. Eu tô fora.
Andrew sai. Chico senta, fica olhando para o Velho.
VELHO
E você Chico? Vai pegar ou vai continuar? O prêmio
está acumulado em dez milhões. O carro vale
quarenta milhões...
CHICO
Deixa de ser cínico, Velho.
VELHO
Deus me livre! Ser cínico é que me faz suportar
idiotas como vocês dois. O Andrew nem gosta deste
Abraão. Disse que ele era um desbundado. E você
também, no fundo, tá cagando pra esse Abraão, você
quer é ganhar um premiozinho qualquer e comover
meia dúzia de donas de casa que acorda cedo pra
fazer café pro marido e depois não consegue
dormir. "Ele foi torturado? Pobrezinho..."
Ninguém vê a merda deste jornal às sete e meia da
manhã nessa tevê de merda, Chico, o Ibope de vocês
é traço! Não se faz merda de revolução nenhuma
dando traço no Ibope.
O Velho vai saindo. Chico senta na cadeira do editor. Apóia a
cabeça com a mão.
VELHO
Termina de editar o jornal e vai pra casa. Amanhã
a gente conversa sobre o "Vida Comum".
CHICO
"Vida Real".
VELHO
Ou isso, sei lá que programa é esse. Dá pra fazer
sem o Andrew?
CHICO
Não sei.
VELHO
Ele não te falou que recebeu uma proposta pra
trabalhar numa rádio, falou? Três vezes o salário
daqui.
Chico fica surpreso, faz que não, com um gesto.
VELHO
Ele quer sair daqui dando uma de ofendido. E você
quer perder o emprego, quer que eu arrisque o meu
emprego pelas bichices de um ator.
CHICO
Você esqueceu de dizer que ele é judeu.
VELHO
Podia ser pior. Ele podia ser negro.
CENA 83 - EDIFÍCIO DE CHICO - EXTERIOR/NOITE
Chico chega em casa, muito cansado. Lisa está sentada na escada
do edifício, evidentemente deprimida. Ela levanta e abraça Chico.
CHICO
Quê que houve?
LISA
Minha mãe. Levaram ela pra clínica.
CHICO
Tua mãe? Que absurdo! Vamos lá.
E faz meia-volta, carregando Lisa, disposto a partir para a
clínica.
LISA
(fazendo Chico parar) Não... é melhor não. Deixa.
Amanhã a gente vai lá.
CHICO
Vamos tirar tua mãe de lá, Lisa, se ela tá mal, só
vai ficar pior. Eles vão enfiar um monte de
calmantes na velha, e quando ela acordar vão dar
mais um monte de calmantes, e todo o dia a mesma
coisa.
LISA
(irritada) O que você entende da vida da minha
mãe? Nada. E da minha vida? Nada. Eu não vim aqui
pedir opinião, eu vim aqui... (Fica indecisa e
depois decide ir embora.) ...eu nem sei por que eu
vim aqui.
Lisa desce as escadas, vai sair do prédio, desiste. Senta na
escada.
LISA
Eu não tenho pra onde ir. (pausa) E fui eu que
chamei os caras.
CHICO
Você mandou internar sua mãe?
LISA
Mandei.
CENA 84 - FESTA DE ANIVERSÁRIO - EXTERIOR/DIA
Edição de fotos. Dilma, a mãe de Lisa, bem mais jovem, com Lisa
no colo, com AMIGOS, brincando.
LISA (OFF)
Tudo o que a minha mãe me deu, depois ela tirou.
Toda a minha infância, eu achava que ela era a
única mãe legal do mundo. Nunca, nunca, eu quis
ter um pai de verdade. Eu gostava de todos os pais
que passaram na minha casa. Porque eles estavam
com a minha mãe, e a gente se divertia junto.
Quando eu cresci, achei que ela também seria a
melhor amiga que eu poderia ter. E ela também
achou isso. E deixou de ser mãe de repente. E
começou a me tirar tudo. Tirava minhas roupas.
Roubava minha maquilagem. Tomava todas as drogas
que eu levava pra casa. Tentou me tirar um
namorado.
CENA �� - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Lisa está deitada. Chico está sentado na cama, ao seu lado.
LISA
No começo, eu achava tudo legal. Ninguém tinha uma
mãe como aquela. Uma mãe que se preocupava quando
NÃO tinha maconha na minha gaveta. Mas depois
ficou chato. Muito chato. Às vezes parecia que eu
era a mãe dela. E ser mãe é chato. (pausa) É muito
fácil dizer que não existe loucura, que não se
deve internar alguém só porque é diferente dos
outros. Outra coisa é ter essa diferença dentro de
casa.
CENA 86 - CASA NÃO IDENTIFICADA - INTERIOR/NOITE
Uma GAROTA, segurando uma boneca, está sentada no chão, no canto
da sala, quase embaixo da mesa. Ela tem um olhar assustado e se
agarra à boneca, tudo muito melodramático. No centro da sala, a
MÃE abraça um HOMEM de terno e gravata, barba mal feita. Eles
riem muito. A mãe segura uma garrafa de gim.
CIÇA (OFF)
No começo eu gostava dos homens que ficavam com a
minha mãe. Porque eles estavam com a minha mãe, e
a gente se divertia.
CENA 87 - CENÁRIO "VIDA REAL" - INTERIOR/NOITE
Uma mulher, CIÇA, óculos escuros e lenço no cabelo, fala e chora,
secando as lágrimas com um lenço.
CIÇA
Eu achei que ela também seria a melhor amiga que
eu poderia ter. (chora) E então ela deixou de ser
mãe e passou a ser minha rival. E começou a me
roubar tudo. Roubava minhas roupas. Roubava minha
maquilagem. Tomava todas as drogas que eu levava
pra casa. Tentou me tirar um namorado. (chora) Foi
horrível.
A Mulher está sentada numa cadeira giratória e há um pequeno
PÚBLICO, umas trinta pessoas, ouvindo a entrevista. Algumas
pessoas choram, emocionadas. A luz torna-se dramática. Ouve-se a
voz de um APRESENTADOR, fora de cena.
APRESENTADOR
Nós não estamos aqui para julgar, nós não estamos
aqui para chocar. Nós estamos aqui para contar a
história de pessoas como você, para mostrar, sem
disfarces, os conflitos e os dramas da "VIDA
REAL"! (sobe música)
Entra vinheta eletrônica: VIDA REAL. Direção e Produção: CHICO
FREIRE.
Chico entra no estúdio, roteiro na mão. A Mulher entrevistada
tira os óculos, seca os olhos.
CHICO
Muito bom, Ciça, muito verdadeiro. Aquela história
da rival foi caco, mas tudo bem.
Ciça pega o roteiro, no chão.
CIÇA
Não falava em rival? Desculpe, eu achei que podia.
CHICO
Tudo bem, ficou legal. Quantos quadros a gente já
gravou?
Carolina está no estúdio, confere uma planilha.
CAROLINA
Seis. Este foi o sexto.
CHICO
Tá bom, amanhã a gente continua. Tem mais alguma
coisa hoje?
CAROLINA
Luciano tá te esperando.
CHICO
(lembrando) O clipe, eu tinha me esquecido. Você
vai?
CAROLINA
Você disse que não precisava, eu não chamei babá.
Eu não posso levar o José, posso?
CHICO
Melhor não.
CENA 88 - ESTÚDIO DE ENSAIOS - INTERIOR/DIA
Um estúdio de ensaios caseiro. Lisa empunha uma guitarra à frente
de um microfone. Mais dois caras: um BAIXISTA e um BATERISTA.
Eles têm cabelos curtos e se vestem de preto. Chico e Luciano
gravam um clipe da banda. Chico faz câmara e Luciano segura um
pau-de-luz. Lisa puxa a introdução da música, que é bem simples,
mas tem uma melodia interessante. O baixista entra. Logo depois,
o baterista. Ficam tocando juntos por uns quinze segundos. Lisa
não está satisfeita. Olha para seus companheiros de banda, que
não erguem os olhos para ela. Lisa pára de tocar, evidentemente
contrariada. Mas os dois continuam. Ela espera um pouco, cada vez
mais puta-da-cara. E então dá uma porrada com a palheta nas
cordas. Eles não reagem. Lisa dá mais umas três ou quatro
porradas. Eles continuam tocando. Ela tira a guitarra do ombro e
a joga no chão. Vai até o amplificador do baixo e tira o plug.
Barulho típico. O baterista pára de tocar. O baixista tá puto.
Chico continua gravando tudo.
BAIXISTA
Me diz uma coisa, cara: você quer queimar o ampli?
LISA
Eu já disse que essa música não é assim.
BATERISTA
Puta embalo, Lisa. Tava tri punk.
LISA
(para Chico) Esse sujeito é a prova de que o uso
excessivo de drogas destrói os neurônios. (para o
baterista) Essa música NÃO É PUNK. Quantas vezes
eu tenho que dizer? Essa banda NÃO É PUNK.
BATERISTA
Eu não vou fazer som astral.
LISA
Porra, que merda vocês têm na cabeça? Eu não quero
fazer música astral, nem música punk, nem merda
nenhuma. Eu não vou seguir merda nenhuma de
tendência, não vou copiar banda inglesa, nem
americana, nem aquela merda de banda da Finlândia.
Eu quero que a Finlândia se fôda!
Lisa levanta a guitarra sobre os ombros e a atira com toda a
força em cima da bateria, quase acertando o baterista. Fica todo
mundo parado, espantado com o ataque de Lisa. Ela se acalma.
Chico continua gravando.
LISA
Desculpa. Se estragou alguma coisa, eu pago.
LUCIANO
Vamos embora, Lisa.
BATERISTA
(verificando a bateria) Você tá maluca? Pirou?
LISA
Não. Foi só uma cópia. E mal feita, ainda por
cima. Podem ficar com guitarra por enquanto.
Tchau. Valeu. (E sai.)
O baterista continua verificando o instrumento. Luciano vai até a
janela e abre uma fresta, pra ver Lisa saindo de casa. Chico, que
continuava gravando tudo, desliga a câmara.
CHICO
Acho que perdi o foco quando ela jogou a guitarra.
O resto ficou legal.
LUCIANO
(baixinho) Acho que eu tô apaixonado.
CENA 89 - REDAÇÃO - INTERIOR/DIA
Luciano trabalhando na redação da TV. Ele consulta um mapa do
céu, verificando a posição das estrelas. Na parede, por trás de
sua mesa, há uma serigrafia colorida, meio hippie, onde se lê: "A
coisa mais medíocre que um ser humano pode fazer é pendurar
frases exemplares na parede do escritório. Lucky Luciano, *
1959 - + 1999 ".
CHICO (OFF)
Luciano, na televisão, fazia economia e horóscopo.
Ele escrevia os textos que a Madame Mirna lia no
Jornal da Mulher, meu programa de televisão
preferido.
CENA 90 - CENÁRIO MADAME MIRNA - INTERIOR/DIA
Cenário de um programa de horóscopo na TV. MADAME MIRNA é uma
ruiva gordinha com sotaque castelhano. Ela fala olhando levemente
sobre a câmara.
MADAME MIRNA
Aos nativos de Câncer a recomendação é cautela e
caldo de galinha. O posicionamento de Mercúrio em
Virgem e a frente fria argentina favorecem a gripe
e os distúrbios pulmonares. Cuidado com pessoa
invejosa. Cor bege, número vinte e três.
CENA 91 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/NOITE
Luciano escreve numa velha máquina Remington. Segura o telefone
com o ombro. Luciano escuta alguém que fala ao telefone e, em
intervalos regulares, diz "hum-hum".
CHICO (OFF)
Economia parecia ser bem mais fácil.
LUCIANO
Sessenta? (...) Setenta e dois. (...) Hum-hum.
(...) Sei. (...) Rogério, eu escuto esta conversa
desde março. (...) Certeza? (...) Isso vai dar uns
quarenta e cinco por cento numa semana... (...) E
dá pra acreditar? (...) Claro, Rogério, nem
precisa falar. Sigilo absoluto.
CENA 92 - BAR DA TV - INTERIOR/NOITE
Luciano toma uma cerveja e fala com o Velho, Chico e quem mais
quiser ouvir.
LUCIANO
Quarenta e cinco por cento numa semana, talvez
cinqüenta. Depois não digam que eu não avisei. Eu
estou botando nessas ações o dinheiro de quatro
investidores. Todo o dinheiro que eles têm.
CHICO
Eles toparam?
LUCIANO
Se eles soubessem, topariam, tenho certeza.
Chico e o Velho ficam olhando para Luciano, sem acreditar.
LUCIANO
Eu vou vender o meu carro, o terreno na Guarda e
os dólares que eu guardei. Vou pedir emprestado
todo o dinheiro que eu conseguir, pago vinte por
cento de juros em quinze dias.
VELHO
E se der errado?
LUCIANO
Ai, meu santo... Será que Cristóvão Colombo tinha
um sujeito cutucando ele e dizendo "e se der
errado?".
VELHO
Vários, certamente.
LUCIANO
Não vai dar errado, Velho. Júpiter em Sagitário,
Mercúrio em Libra, não tem como dar errado.
CENA 93 - CENTRO COMUNITÁRIO - EXTERIOR/NOITE
Uma festa de casamento. O lugar é um centro comunitário da
periferia de Porto Alegre. Tem uma churrasco sendo feito numa
churrasqueira enorme, chopp servido em copos de papel num balcão
e um MONTE DE GENTE mais ou menos pobre em roupas de festa. Os
noivos, Andrew e SÍLVIA, recebem os cumprimentos. Sílvia é uma
mulher morena, bonita e evidentemente grávida. Chico e Carolina
esperam na fila dos cumprimentos. Andrew avista Chico e sorri.
Chico e Carolina se aproximam. Se abraçam, todos muito
sorridentes.
CAROLINA
Parabéns! (para Sílvia) Você está linda!
SÍLVIA
Obrigado. O Andrew fala em vocês toda hora. Que
bom que vocês vieram.
CHICO
(cumprimentando Andrew) Parabéns. Pelo casamento e
pelo sucesso.
ANDREW
Obrigado. Depois a gente fala com mais calma. E o
Luciano?
CHICO
Disse que vinha. Nunca se sabe.
ANDREW
Vocês já comeram?
Chico e Carolina tentam comer churrasco e salada de batata num
prato de papel apoiado sobre os joelhos. Carolina resolve o
problema pegando um pedaço de costela com a mão. Andrew tenta
fazer um discurso. A festa tem um conjunto que toca música
caribenha, salsa, essas coisas. A música é muito alta e todos
gritam muito. Chico avista Luciano e Lisa. Ela está linda, feliz
e levemente drogada, na boa. Luciano está estranhamente bem
vestido. Se cumprimentam. Luciano está eufórico e conta alguma
coisa para Chico e Carolina. Eles ficam parados, de boca aberta.
Luciano gesticula muito. Chico larga o prato de churrasco e faz
sinal para que Luciano o acompanhe até o lado de fora do salão.
Lisa senta ao lado de Carolina.
CENA 94 - CANCHA DE FUTEBOL DE SALÃO - EXTERIOR/NOITE
Chico e Luciano estão numa cancha de futebol de salão e basquete
do centro comunitário.
LUCIANO
Tenho que descontar os impostos, a comissão de um
agente financeiro, tenho que devolver a grana que
me emprestaram... Eu acho que sobra uns... quase
cem mil.
CHICO
Cem mil?
Luciano concorda.
CHICO
Cem mil dólares?
Luciano concorda.
CHICO
Você ganhou - você, Luciano - cem mil dólares na
bolsa, em uma semana?
LUCIANO
Doze dias.
CHICO
Você ficou rico, você agora é um homem rico, um
milionário!
Luciano concorda.
CHICO
O que você vai fazer com cem mil dólares?
LUCIANO
O que a gente pode fazer com cem mil dólares? Vou
gastar.
CENA 95 - CENTRO COMUNITÁRIO - INTERIOR/NOITE
Inicia seqüência sem diálogos.
Chico, Carolina, Lisa, Luciano, Andrew e Sílvia dançam no meio do
salão. Todos parecem muito felizes e já estão suficientemente
alcoolizados para perder a noção do ridículo. A banda ataca uma
salsa explosiva.
CENA 96 - LUCKY BREAD - EXTERIOR/DIA
Chico e Luciano observam os operários que terminam a fachada da
"LUCKY BREAD, Delícias Naturais". Luciano dá algumas instruções
aos operários. IBARRI, um sujeito de bigode, relógio Rolex,
corrente de ouro no pescoço, camisa e gravata, se aproxima de
Luciano. Luciano apresenta o sujeito para Chico.
CENA 97 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA
Ciça e outros atores contam tragédias e choram. O público chora e
aplaude. É a gravação do "Vida Real".
CENA 98 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
Luciano, Chico, Carolina e Lisa assistem "Vida Real". Todos,
menos Carolina, acham muita graça no clima exageradamente trágico
do programa.
CENA 99 - PARQUE - EXTERIOR/DIA
Num parque florido, uma EQUIPE DE PRODUÇÃO prepara a gravação de
um comercial. É o cenário de um piquenique: toalha estendida na
grama, entre as flores, um monte de pães, de diferentes tipos,
dentro de uma cesta de vime. O MAQUILADOR, a CABELEIREIRA e a
MANICURE preparam uma modelo, RENATA, para entrar em cena. Chico
e Luciano discutem baixinho, longe da modelo.
CHICO
Não dá, cara. Olha, nós já ensaiamos duzentas
vezes. Essa guria não vai conseguir dar o texto.
LUCIANO
Claro que vai, Chico, olha lá que gracinha.
CHICO
Eu odeio esse negócio, eu odeio publicidade.
LUCIANO
Claro. Publicitário tem que morrer, você já me
disse isso trezentas vezes. Acontece que a gente
precisa de dinheiro para o projeto, acontece que
você aceitou fazer este comercial, acontece que eu
quero vender bastante pão e acontece que a gente
só tem mais uma hora de equipamento.
CHICO
Eu não posso fazer um comercial que vai ser pior
que todos os comerciais que eu odeio.
LUCIANO
Chico, o sol tá caindo, Chico... (Aponta a
modelo.) Olha lá a Renata. Ela é linda. Ela vai
comer o meu pão e dizer que é gostoso, macio e
fofinho. Todo mundo vai acreditar nela, porque ela
é linda. Publicidade é só isso.
Chico fica olhando para Luciano. Depois dá uma olhada para
Renata. Ela dá um sorriso simpático para Chico. Chico retribui.
CENA 100 - APTO.DE LUCIANO - INTERIOR/NOITE
A tela de uma TV colorida. Renata começa a comer o pãozinho,
linda e simpática. Musiquinha no fundo. Ela fica comendo o pão,
com mordidas pequenas.
LOCUTOR 1
Cláudia foi contratada para dizer que os pãezinhos
da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. A
Cláudia foi escolhida por que ela também é
gostosa, macia e fofinha. Ela está ganhando um
ótimo cachê só para dizer isso, que os pãezinhos
da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. É
um serviço fácil. Cláudia... Basta parar de comer
e dizer que os pãezinhos da Lucky Bread são muito
gostosos, macios e fofinhos. Ela sabe o texto de
cór, já ensaiou várias vezes. Ela é uma
profissional. Cláudia, por favor... Cláudia,
Cláudia!
Ela ainda está comendo. Entra a assinatura da Lucky Bread, com a
locução final.
LOCUTOR 2
Pãezinhos Lucky Bread. Experimente, e depois nos
diga se eles não são gostosos, macios e fofinhos.
Chico, Carolina, Luciano e Renata estão na sala do apto. de
Luciano, onde se reuniram para tomar cerveja e ver a primeira
veiculação do comercial. Carolina e Luciano aplaudem,
entusiasmados.
CAROLINA
Ficou ótimo!
CHICO
É... podia ser pior.
RENATA
(sem entender) E o meu texto?
LUCIANO
(beijando Renata) Era um subtexto.
Renata continua sem entender.
LUCIANO
Subtexto... um texto que fica por baixo do outro,
não aparece, é super comum nos comerciais, eles
usam muito nos Estado Unidos. (Dá outro beijo)
Parabéns, Cláudia, você tá linda.
Renata fica mais contente.
RENATA
Obrigado.
LUCIANO
E eu vou vender montanhas de pão. Parabéns, Chico,
CHICO
Publicitário tem que morrer.
LUCIANO
(erguendo o copo de cerveja) Longa vida ao Chico,
um publicitário que um dia vai morrer.
CAROLINA
Ao "Tijolo"!
CHICO
Muitos tijolos!
Todos brindam, alegres. Luciano dá um longo beijo em Renata.
CENA 101 - BAR - INTERIOR/NOITE
O Velho está numa mesa de bar, sozinho. Na sua frente, um copo
com um resto de chopp, várias "bolachas" e um copinho de cachaça.
Ele faz sinal para o GARÇOM, que passa sem lhe dar atenção. Chico
entra no bar, procura e encontra o Velho. Vai até a mesa.
CHICO
Sozinho?
Velho vira-se com a dificuldade natural dos bêbados, olha para
cima, reconhece Chico.
VELHO
(discursando) Sozinho, não! Com os trabalhadores
na luta pelo socialismo!
Chico puxa uma cadeira e senta.
CHICO
Eu preciso falar com você.
VELHO
Quando alguém que JÁ está falando com você diz que
precisa falar com você, pode ter certeza que tem
sacanagem no meio. Tem, teve ou vai ter.
CHICO
Eu vou sair da tevê.
VELHO
Não te falei? Eu não disse? No caso, VAI TER
sacanagem.
CHICO
O Luciano vai abrir uma produtora, me convidou pra
trabalhar com ele.
VELHO
Você vai virar publicitário. Publicitário é um
sujeito num balcão com uma caneta de ouro atrás da
orelha. "Queira mais, patrão". (chamando) Garçom!
Ôoo... Chumbo! Pelo amor de deus, Chumbo, faz duas
horas que eu pedi um conhaque e um chopp! Quer o
pedido por escrito?
CHICO
Velho, eu quero é fazer os meus projetos. A minha
condição pra trabalhar na produtora é não fazer SÓ
comerciais. Eu tenho um projeto com a Carolina, "O
Tijolo", um especial pra televisão, o roteiro é do
Luciano, eu já te mostrei.
VELHO
Se você que virar publicitário, tudo bem, eu
entendo. Publicitário vive cercado de modelos
maravilhosas, trabalha pouco, se diverte muito...
Em compensação ganha uma fortuna. Tudo bem, Chico.
Vai fundo.
O garçom chega e larga dois copos de chopp na mesa. Chico faz
menção de devolver o dele, o Velho não deixa.
VELHO
E o conhaque? Ôoo... Chumbo! E o conhaque?
Chumbo já foi.
VELHO
Deixa aí! Vamos fazer um brinde... um brinde... ao
Chumbo! Um brinde ao Chumbo, que não vai virar
publicitário e, um dia, vai me trazer o conhaque.
CHICO
Ao Chumbo!
CENA 102 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Chico dorme. O porteiro eletrônico bate várias vezes seguidas.
Chico acorda e vai atender. É a voz de Luciano
LUCIANO (OFF)
Chico, desce.
CHICO
Quê que houve?
LUCIANO (OFF)
Desce. Eu te explico no caminho.
CENA 103 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/NOITE
Luciano dirige em grande velocidade por uma avenida.
LUCIANO
Colocaram uma camisa de força nela e arrastaram
pra dentro da ambulância. Ela tava gritando o meu
nome. O vizinho pegou a guitarra, que era toda
rabiscada, achou meu número e telefonou.
CHICO
Quem foi que chamou a clínica?
LUCIANO
Não sei. Quem atendeu o telefone foi a Cláudia, eu
estava no banho. Deve ter sido a mãe.
CHICO
Que Cláudia?
LUCIANO
A Renata.
CHICO
Você avisou a Carolina?
CENA 104 - FRENTE DA CLÍNICA / PORTARIA - INTERIOR/NOITE
Carolina já está na portaria, discutindo com um SEGURANÇA. Chico
e Luciano entram.
CAROLINA
Esse imbecil tá dizendo que a gente não pode
entrar.
SEGURANÇA
Vocês são familiares?
LUCIANO
Eu sou, sou irmão dela. A minha mãe taí?
SEGURANÇA
(desconfiado) O senhor tem uma carteira de
identidade?
LUCIANO
Claro que eu tenho carteira de identidade, mas não
aqui comigo, agora. Eu saí correndo de casa. Mas o
senhor, por favor, chame a minha mãe, ela deve
estar aí com a Lisa, não está?
O segurança, irritado, verifica uma ficha.
SEGURANÇA
(pelo telefone interno) Por favor, senhora Dilma
Reis, queira comparecer à recepção.
Chico leva Luciano para um canto.
CHICO
Qual é a idéia, Luciano? Eu não estou entendendo.
LUCIANO
No mínimo eu vou dar umas porradas nela.
CHICO
Isso não resolve nada.
Uma porta abre. Surge a mãe de Lisa.
CHICO
(para o segurança) Vocês estão cometendo um erro.
Esta senhora já esteve internada aqui, dois anos
atrás. Você não lembra dela?
Dilma bota os óculos escuros, o que só contribui para a armação
de Chico.
CHICO
Pode conferir aí nos arquivos... Dilma Reis.
Ela... tem problemas. O senhor há de concordar
comigo que ela não tem condições de atestar sobre
a saúde mental da filha...
DILMA
Chico, pára com isso.
SEGURANÇA
(confuso) Eu não posso ver os arquivos daqui.
CHICO
Então chama um médico.
DILMA
(baixo, para Chico) Chico, não faz isso comigo,
Chico...
CHICO
(baixo, para Dilma) Manda soltar a Lisa.
DILMA
Ela tá muito perturbada, Chico. Ela tá violenta.
Eu não tenho mais condições de...
CAROLINA
Ela não vai voltar pra sua casa. A gente toma
conta, pode deixar.
DILMA
Ela não me respeita mais.
LUCIANO
(para o segurança) Você não está vendo que ela é
que é maluca? Vê a ficha dela!
CHICO
Calma, Luciano.
O segurança pega o telefone outra vez. Logo depois, surge um
ENFERMEIRO, muito forte.
ENFERMEIRO
Qual é o problema?
CAROLINA
O problema é que essa senhora é toxicômana e
mandou internar a própria filha.
ENFERMEIRO
(olhando bem para a mãe de Lisa) Eu conheço a
senhora...
CHICO
Claro, ela esteve internada aqui, há dois anos.
ENFERMEIRO
(para Dilma) Como é o nome da senhora?
DILMA
Olha doutor, minha filha está doente...
ENFERMEIRO
Como é o seu nome?
DILMA
Dilma. Dilma Reis.
ENFERMEIRO
Com licença.
E sai. A mãe de Lisa fica desconcertada.
CHICO
Dona Dilma, vamos fazer um acordo.
LUCIANO
A gente sabe que a Lisa não tá legal, mas aqui ela
não pode ficar.
DILMA
Mas eu não posso...
CAROLINA
A gente fica com ela, Dona Dilma. A senhora sabe
que nós gostamos dela.
DILMA
Ela não tem dinheiro.
LUCIANO
Eu me responsabilizo.
DILMA
Eu sou mãe dela, e ninguém gosta dela mais do que
eu. E se eu trouxe ela pra cá, era pro bem dela.
Dilma caminha nervosamente pelo saguão. Pára, pega um cigarro. Vê
que há uma grande placa de NÃO FUME na parede. Guarda o cigarro.
DILMA
Vocês tem que me prometer que ela não vai ficar
sozinha, nem um minuto, nem um segundo. (pausa) Se
acontecer alguma coisa com ela, eu juro que mato
vocês.
CENA 105 - CALÇADA DA CLÍNICA - EXTERIOR/NOITE
Lisa sai da clínica, amparada por Luciano. Ela está dormindo em
pé e mal consegue caminhar.
CHICO (OFF)
Nós tiramos a Lisa da clínica meia hora depois,
mas ela já estava dopada. Dormiu quase vinte horas
seguidas.
CENA 106 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA
Chico e Carolina esperam o desembarque de um vôo. Carolina sorri
e aponta para Luciano e Lisa. Eles parecem muito felizes e
cansados, cheios de presentes e malas.
CHICO (OFF)
Quando acordou, na casa do Luciano, disse que
estava a fim de viajar. Ele comprou duas passagens
para Nova Iorque. Ele sempre quis cuidar da Lisa,
ser responsável por ela. Foram pra passar um mês,
voltaram oito dias depois, de casamento marcado. O
Luciano dizia sempre que era um homem do seu tempo
e tinha pressa. O que ele não dizia é que a frase
era do Médici.
CENA 107 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/DIA
Luciano e Chico, de terno e gravata, entram num grande e luxuoso
escritório. O escritório é decorado com grandes fotos de vacas,
garrafas de leite e queijos. DAVI levanta de sua mesa e
cumprimenta Luciano.
DAVI
Lucky Luciano!
LUCIANO
Fala, Davi!
Luciano apresenta Chico.
LUCIANO
Davi, este é o famoso Chico Freire, o mago das
telinhas.
DAVI
O Luciano não pára de falar do seu trabalho.
CHICO
O Luciano normalmente não pára de falar. Ele
exagera um pouco.
DAVI
No seu caso, eu não acho. Eu já vi o seu trabalho
e é realmente muito bom.
CHICO
Obrigado.
Davi apresenta dois assessores, GUSTAVO e LÚCIO, e uma
secretária, dona LOURDES.
DAVI
GUSTAVO, do departamento de marketing, Doutor
Lúcio, do jurídico, Dona Lourdes... Vamos sentar.
Chico cumprimenta a todos e vai sentando numa grande sala de
reuniões.
DAVI
Nós fomos colegas de Anchieta, não da mesma turma,
eu era um pouco mais velho. Não sou mais.
Os assessores riem muito. Chico faz cara de quem tenta se lembrar
de Davi no colégio.
DAVI
No colégio me chamavam de Roal, meu nome é Davi
Roal, mas eu não queria que pensassem que eu era
judeu. Agora eu quero.
Os assessores riem muito.
DAVI
O Gustavo vai expor rapidamente qual é a nossa
estratégia de marketing, nosso target, e qual é o
recall esperado com essa campanha.
Gustavo, o assessor de marketing, começa a falar e mostrar
gráficos e alguns panfletos com fotos de mulheres de maiô comendo
iogurte. Chico finge que presta muita atenção. Um GARÇOM serve
cafezinho e iogurte para todos. Luciano faz alguns comentários
durante a exposição de Gustavo.
CHICO (OFF)
Quando eu fiz faculdade, achava que jornalistas
falavam a verdade por opção ideológica, e
publicitários mentiam profissionalmente. Os meus
colegas, tanto os estudantes de publicidade quanto
de jornalismo, também achavam isso. Os próprios
professores achavam isso. E hoje eu me pergunto:
como um engano tão grande enganou tanta gente
durante tanto tempo? Como eu acreditei que era
possível dividir tão facilmente as pessoas em dois
times, o meu time e o time deles? E como eu fui
capaz de trocar de time enquanto ainda acreditava
nisso?
CENA 108 - OBRAS DA PADARIA - INTERIOR/DIA
Durante todo o diálogo, Chico e Luciano caminham pela obra da
padaria.
CHICO
Roal ou Davi, ele continua sendo um imbecil. Ele
sempre foi e sempre vai ser um imbecil. Lembra
quando ele ganhou aquele mini-bug no concurso?
LUCIANO
(balançando a cabeça) Chico, deixa eu te explicar
uma coisa. Uma produtora de comerciais faz
comerciais. Sacou? (articula bem a palavra) Co-
mer-ci-ais. A palavra vem de comércio, que
significa troca de mercadorias, de serviços, de
idéias, de qualquer porra, por dinheiro. Você não
pode se recusar a fazer esse ou aquele comercial.
O raciocínio é o oposto: você quer fazer
(articulando) qual-quer comercial, se pagarem o
que você pede. E o Davi tem muita grana, pode até
sustentar a produtora.
CHICO
Luciano, eu não disse que eu não vou fazer o
comercial. Eu disse que a gente poderia ter uma
produtora diferente das outras, uma produtora mais
seletiva, que a princípio não aceitasse fazer
qualquer merda. Eu acho que isso, a longo prazo...
LUCIANO
Uma merda bem feita e bem paga é absolutamente
digna, Chico. Nós estamos há três horas nessa
discussão. Eu te propus um negócio, uma coisa
séria, montar uma produtora pra poder viabilizar
os teus projetos, os nossos projetos. Você não
quer fazer "O Tijolo" com a Carolina, vocês não
falam disso há anos, se queixando que não tem
espaço, que ninguém apóia a cultura?
No meio do discurso, Luciano grita com TONHO, o operário que está
rebocando a parede da obra.
LUCIANO
(gritando) Tonho, essa parede não era pra tá
pronta desde ontem?
Tonho pára, olha para Luciano, mas não chega a responder porque
Luciano se afasta, puxando Chico e retomando o assunto.
LUCIANO
A produtora é uma chance de você ganhar dinheiro
com o teu talento e ainda por cima viabilizar os
teus projetos. Quando tudo isso está a um passo de
se tornar possível, você vem com esse papo de
coerência política! Tudo bem, Chico, você não é
obrigado a ser meu sócio.
CHICO
Luciano, você sabe que, se fosse só pela grana, eu
tava trabalhando com o meu velho na construtora.
Podia ser vice de qualquer coisa.
LUCIANO
Então vai, cara. Vai ser vice de qualquer coisa.
Luciano estende um projeto arquitetônico sobre uma mesa, no meio
da obra. Fica examinando o projeto, como se considerasse a
conversa encerrada.
CHICO
Você sabe que eu não gosto de publicidade.
Sem olhar para Chico.
LUCIANO
Sei. Eu também não gosto. Prefiro ficar em casa
fumando um e vendo a sessão da tarde na tevê.
CHICO
Eu tô falando sério. Se a gente vai ser sócio, as
coisas têm que ficar claras.
LUCIANO
(ainda olhando para baixo) Mais claras,
impossível. Eu entro com a grana, monto a
estrutura, tomo uísque com caras como o Davi e
consigo trabalho. Você faz com que os trabalhos
fiquem bons. É simples. Eu tenho setenta por cento
da empresa, você tem trinta. E mais os cachês por
cada trabalho que você dirigir.
CHICO
Luciano, falando sério, você sabe que o único
comercial que eu fiz na vida foi aquele do "Lucky
Bread". Você sabe que eu não gosto disso. Por que
você acha que eu vou ser um bom sócio?
LUCIANO
(agora olhando diretamente para Chico) Porque
poucas pessoas na cidade são capazes de fazer um
bom comercial do "Lucky Bread". E nenhuma, entre
essas pessoas, ainda têm coragem de falar em
coerência política. (pausa) A gente pode se
divertir e ganhar dinheiro ao mesmo tempo. Se
divertir e ganhar dinheiro é o meu ramo de
negócios. Você tem que descobrir qual é o seu.
CHICO
Eu pensava que era jornalismo.
LUCIANO
Isso não é ramo. É doença.
Chico vai responder, mas desiste. Fica olhando para Luciano, com
uma expressão de tédio e derrota.
CENA 109 - PISCINA DE COMERCIAL - EXTERIOR/DIA
Uma MODELO morena, vestindo um maiô, pula do trampolim para a
água. A entrada na água é perfeita, num ângulo de 90 graus. O
movimento é registrado em câmara super lenta. Só ouvimos o
barulho da câmara rodando.
CHICO
Corta! (Olha para o diretor de fotografia.) Valeu?
O diretor de fotografia faz sinal de positivo.
CHICO
Então deu pra nós. Parabéns pra todos. (gritando,
para a modelo) Pode te vestir. Obrigado.
Chico senta num banquinho, suspirando, satisfeito porque a
tortura acabou. Mas GERALDINHO, um rapaz da agência, rapidamente
se agacha ao seu lado.
GERALDINHO
(sussurrando) Nós vamos fazer de novo esse último
plano?
CHICO
(sem dar muita atenção) Não, esse último ficou
ótimo. E tem mais duas opções.
GERALDINHO
A gente podia tentar com aquela outra modelo.
CHICO
A outra cai de barriga. Quase se afogou no ensaio.
GERALDINHO
É que... o doutor Gustavo acha a outra mais
bonita.
CHICO
(tentando colocar um ponto final) Então ele paga
um cursinho rápido de natação pra ela. Geraldinho,
o comercial vai ficar ótimo. Não te preocupa.
Geraldinho levanta e caminha até onde está Gustavo, que sorri
para todos os lados. Geraldinho fala com ele, que não gosta do
que ouve. Geraldinho aproxima-se de Luciano e fala com ele.
Chico está conversando com o diretor de fotografia. Luciano
aproxima-se, abraça Chico e o leva para um canto.
LUCIANO
Vamos fazer de novo o último plano.
CHICO
Pra quê? Ficou ótimo!
LUCIANO
O cliente chegou atrasado. E viu que a gente não
usou a modelo que ele prefere.
CHICO
Azar o dele.
LUCIANO
É ele que aprova o comercial, Chico. (irritado) O
que você prefere? Fazer agora, que tá tudo pronto,
ou voltar daqui a uma semana?
Chico vai responder, mas desiste. Olha para Luciano, com uma
expressão de tédio e derrota. Uma OUTRA MODELO, loura, prepara-se
para saltar do trampolim. Está nitidamente nervosa, mas disfarça
sorrindo amarelo. Ela salta. A entrada na água é desastrosa, de
barriga. Assistimos a tudo em câmara super-lenta.
CENA 110 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
Chico tenta editar o comercial dos maiôs. Luciano está sentado ao
lado de Chico e fala sem olhar para o monitor. Chico, ao
contrário, não tira os olhos da tela. No monitor, a modelo loura,
num trampolim, prepara-se para mergulhar na piscina.
LUCIANO
Um candidato é um produto como qualquer outro,
Chico. Um biscoito, um iogurte, um maiô.
CHICO
(irônico) Tá bom...
A modelo loura pula do trampolim e cai de barriga na água. O
EDITOR congela a cena, volta lentamente a imagem até o ponto em
que a modelo loura quase toca na água.
LUCIANO
Qual a diferença?
CHICO
A diferença é que o biscoito não quer ser prefeito
da cidade, o iogurte não vai mandar transferir as
favelas, o maiô não vai dizer onde o ônibus vai
passar.
O monitor agora mostra a imagem submarina da modelo morena
mergulhando, em câmara-lenta. O editor congela a imagem no
momento em que se percebe claramente que o cabelo dela é preto.
Ele recua a imagem alguns quadros antes. Ele aciona a máquina,
que faz a edição. No monitor, a modelo loura pula no trampolim, a
modelo morena mergulha, a modelo loura sai da água.
LUCIANO
Você acha que o Davi é pior que os outros? Ele vai
ser candidato de qualquer jeito, você não pode
impedir isso.
CHICO
Mas não preciso ser cúmplice. (para o editor) O
plano submarino ficou um pouco curto. Experimenta
um pouco mais lento, acho que pode dar certo.
O editor começa a refazer a edição.
LUCIANO
Você e a Carolina vivem criando projetos que nunca
vão sair do papel por absoluta falta de grana, "O
Tijolo" é um exemplo. Você desistiu do "Tijolo"?
(pausa) Não é crime ser candidato a prefeito. Vota
nele quem quer.
CHICO
E compra iogurte quem quer, vê televisão quem
quer... Você sabe que não é assim, Luciano. As
pessoas querem acreditar em alguma coisa. A gente
diz pra elas que comendo esta merda de iogurte,
cheio de conservantes, acidulantes, flavorizantes
e aromatizantes cancerígenos ela vai ser forte,
bonita e sexualmente atraente. A gente diz e elas
acreditam, por que elas tão super a fim de
acreditar em qualquer merda que tire elas da vida
de merda que elas levam, seja um iogurte, um
cigarro, um chinelo de plástico ou um candidato a
prefeito. Só que um candidato a prefeito pode ser
mais cancerígeno, mais mortal que qualquer
biscoito ou iogurte. Um candidato NÃO é um produto
qualquer.
LUCIANO
Chico, a verba da campanha do Davi pra televisão é
de dois milhões de dólares.
A edição do comercial fica pronta. A modelo loura pula do
trampolim, o plano submarino mostra a modelo morena, a modelo
loura sai da água, pega uma embalagem do iogurte DAVI e toma um
gole. Entra a assinatura em computação gráfica: "Qualidade DAVI".
CENA 111 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE
Vários ASSESSORES, aspecto cansado, discutem com Davi as
estratégias de campanha. Há vários lay-outs sobre a mesa,
cartazes, plásticos, buttons. Copos de café e cigarros atestam
que a reunião já dura algumas horas. As pessoas gritam e
gesticulam mas Chico não escuta mais.
CHICO (OFF)
Eu tenho que ter uma idéia, uma idéia só. Todo
mundo já disse as obviedades de sempre, já marcou
posição, já puxou o saco, já pediu café, já
telefonou pra família, já disse piadas, já
comentou o jornal de hoje. Agora é hora de alguém
ter realmente alguma idéia. Assim que alguém tiver
alguma idéia todos vão se agarrar a ela como
náufragos numa bóia.
Chico escreve o nome DAVI, uma, duas, muitas vezes, num pedaço de
papel.
CHICO (OFF)
Com uma idéia a gente gasta o resto do repertório
da reunião. Alguns vão odiar, outros vão adorar, a
maioria vai tentar adivinhar o que o Davi vai
achar pra concordar por antecipação. Outros, mais
práticos, vão esperar pra ver o que ele acha pra
depois achar alguma coisa. De qualquer maneira, no
máximo em quinze minutos, todos vão concordar que
é melhor pensar com calma e voltar a conversar
amanhã e eu vou poder ir para casa, sentar no
banheiro, ler o Planeta Diário que eu comprei,
tomar banho, fumar um e dormir vendo um filme do
Billy Wilder. Pra tudo isso acontecer, basta eu
ter uma idéia, uma idéia de verdade.
Chico rasga a folha de papel, isolando o nome DAVI num papelzinho
bem pequeno. Chico rasga o nome DAVI ao meio, inverte as sílabas
e lê: VIDA. Volta a inverter: DAVI. Chico fica olhando para
aquele pedacinho de papel. Levanta os olhos, encara Davi.
CHICO
Eu tive uma idéia.
CENA 112 - ESTÚDIO DE SOM - INTERIOR/DIA
Num estúdio de som, quatro cantores e alguns músicos gravam o
jingle da campanha de Davi. A palavra "Vida" cantada várias vezes
se transforma em "Davi". Chico acompanha a gravação.
CENA 113 - GRÁFICA - INTERIOR/DIA
Uma máquina imprime um cartaz com a marca "DAVIDAVIDAVI". Um
FUNCIONÁRIO corta uma folha com várias tiras, em que a marca
"DAVIDAVIDAVI" aparece em um padrão ligeiramente diferente.
QUATRO CEGOS colocam presilhas na parte anterior de alguns
buttons, todos com a marca "DAVIDAVIDAVI". MULHERES colam
adesivos com a marca "DAVIDAVIDAVI" em caixas de fósforos.
CENA 114 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA
PINTORES, OPERÁRIOS e CENOTÉCNICOS aprontam o estúdio de
gravação. Uma parede está coberta com a palavra "VIDA". Noutra
parede terminam de ser colocadas, em frente a um grande céu
aerografado, grandes letras que formam a palavra "DAVI".
CENA 115 - SALA DE PÓS-PRODUÇÃO - INTERIOR/DIA
Num monitor, Chico vê os primeiros movimentos de uma animação em
computação gráfica. A ilha de edição está sendo montada e ainda
há um monte de equipamentos encaixotados.
CENA 116 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA
Chico dirige um comercial. Ele fala com um CASAL DE ATORES. Ela
está de costas para a câmara, em pé sobre uma caixa. Duas
ASSISTENTES prendem o cabelo dela por trás, com um grampo. O
vestido dela está cheio de fitas adesivas nas costas. Ela veste
uma calça jeans sob o vestido. O ator lê o roteiro e exercita os
músculos da face. O FOTÓGRAFO e o CABELEIREIRO se esforçam para
puxar alguns fios de cabelo que cubram a reluzente careca do
ator. Não têm muito sucesso. O ator está visivelmente irritado
com a atriz. Aparentemente eles se odeiam. O fotógrafo cola um
pedaço de papel atrás da orelha do ator. Um ASSISTENTE DE
PRODUÇÃO, um gordo sem camisa, fica agachado atrás da atriz,
segurando o vestido, que está rasgado nas costas. Tudo parece
estar finalmente pronto e é horrível, visto pelas costas.
Pela frente, os dois estão lindos e felizes. A cena é um
encontro. Ele segura um copo de vinho.
ATOR
(muito feliz) Oi! Você aqui?
ATRIZ
(muito feliz) Oi! Claro! (olhando em volta) Eu
adoro este lugar... O que você está tomando?
ATOR
Vinho Marquês de Santana.
ATRIZ
Você está sozinho?
CENA 117 - VÍDEO-CLUBE - INTERIOR/NOITE
Chico está agachado, tentando ler o título dos filmes na lombada
das caixinhas de vídeo. Como algumas caixinhas estão viradas de
um lado e outras de outro, Chico fica virando a cabeça, numa
coreografia meio ridícula. Carolina se aproxima e reconhece
Chico.
CAROLINA
Chico...
Chico olha pra cima. Levanta-se.
CHICO
Carolina.
Beijam-se, carinhosos e realmente felizes por terem se
encontrado.
CAROLINA
Tá mais magro.
CHICO
Impossível.
Eles riem.
CHICO
E o José?
CAROLINA
Tudo bem. Está no Rio, com a vó.
CHICO
Já consegue se desgrudar? Que progresso...
CAROLINA
Tudo bem? A gente não se vê mais desde que, aquele
dia, na clínica.
CHICO
Pois é. Tudo bem com você?
CAROLINA
Tudo bem. (pausa) E a Lisa? Tudo bem?
CHICO
Acho que sim. O Luciano, pelo menos, diz que sim.
CAROLINA
Estou preparando uma peça nova.
CHICO
Infantil?
CAROLINA
Infantil. Bem legal, direção do Abraão.
CHICO
Tudo bem com ele?
CAROLINA
Tudo. Ele adorou o roteiro do "Tijolo", disse que
a gente tem que fazer o vídeo de qualquer jeito.
CHICO
Pois é... Problema é arranjar grana... E tempo.
Eles ficam um pouco sem assunto, parados na frente da prateleira
de vídeos onde se lê: "SUSPENSE"
CAROLINA
Eu fico sabendo de você pelo jornal. Você vai
fazer a campanha do Davi.
Chico caminha, meio desconfortável, meio tentando evitar olhar
diretamente para Carolina. Ela percebe o constrangimento.
CHICO
Vou.
CAROLINA
Ele é legal?
CAROLINA
Político. Estou fazendo pela grana. Pelo menos é
melhor que esse Gabriel.
CAROLINA
Claro.
Eles ficam outra vez sem assunto, agora parados na frente das
fitas "COMÉDIA".
CAROLINA
(olhando a fita que Chico tem na mão) Que filme
você pegou?
CHICO
(mostrando) "Passagem sem Volta". Você conhece?
CAROLINA
Não.
CHICO
Nem eu. Mas eu gostei da sinopse. (lendo) "Luca,
- Michael Sean, "Assassinato no Metrô" - é um
jovem boxeador contratado para ser guarda-costas
do empresário Carlo Fabrizzi - John Davis, "Uma
noite muito louca". Através das reportagens de
Pearl Cristhie - Martina Mills, "A Montanha
Assassina Dois", Luca descobre que Fabrizzi
controla o contrabando de armas para o Oriente
Médio. Uma intriga internacional repleta de ação,
erotismo e aventura, produzida pela mesma equipe
de "Esquadrão Suicida".
CAROLINA
Interessante.
CHICO
E você?
CAROLINA
Eu estou devolvendo um, "Brincadeira Arriscada".
CHICO
Acho que eu vi o trailer. Não é um com a Cindy
Parker?
Eles agora estão na frente do "DRAMA".
CAROLINA
Isso. Ela é uma médica e todos os caras com quem
ela sai morrem de uma peste horrorosa, cheios de
bolhas e feridas. Você já viu?
CHICO
Não tenho certeza...
CAROLINA
No fim o detetive descobre que é o ex-marido dela
que contamina as pessoas. Ela acaba sozinha,
porque o detetive, não sei o nome do ator, era
casado com a Cecilia McKane, uma ruiva crespa, com
umas sardas.
CHICO
Sei quem é. Aquela do "Nosso Último Verão".
CAROLINA
Ela mesma. Claro que o detetive fica com ela.
Ninguém deixa a Cecilia McKane.
CHICO
Claro que não, deve estar no contrato dela.
Eles riem. Agora eles estão no "ROMANCE".
CHICO
Você não vai pegar nada?
CAROLINA
Acho que não. Vou só devolver. Como está caro o
aluguel, é incrível!
CHICO
É. (pausa) A gente podia comer alguma coisa, eu
estou morrendo de fome. (pausa) Ou podia também ir
a um cinema.
Ela fica alguns segundos pensando, olha para os filmes na
estante, olha para Chico.
CAROLINA
É. Podia.
CENA 118 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Chico e Carolina estão na cama, nus. Carolina está abraçada em
Chico, ele assiste que assiste televisão. Na TV, um
VENDEDOR/GAROTO PROPAGANDA fala olhando diretamente para a
câmara. Ao seu lado, uma caixa de "New Life".
VENDEDOR
...sabe como eu me sentia? Eu acordava de manhã e
não via motivo pra sair da cama. Eu não gostava do
meu emprego, mas precisava do salário para viver.
Eu me irritava com o trânsito, com os meus colegas
e com o meu chefe. E quando eu voltava do trabalho
eu me irritava com a minha mulher, com meus
filhos, com o jornal e com a novela. Tudo isso
mudou quando eu conheci "New Life". Com "New
Life"...
Chico aciona o controle remoto e troca de canal, sem ficar
sabendo o que é ou para que serve "New Life". Um APRESENTADOR
vestido com um escafandro entrevista uma SOCIALITE em traje de
gala. Ela está de braço dado com um SUJEITO DE SMOKING que,
durante a entrevista, fica abanando para algumas pessoas fora de
quadro. Eles estão numa festa à beira de uma piscina e gritam
muito. A música ambiente é insuportavelmente alta e ruim.
APRESENTADOR
...você poderia explicar em poucas palavras, pro
público de casa, o que é neurolingüística?
SOCIALITE
(gritando) O quê?
APRESENTADOR
(gritando) Eu estou pedindo para você explicar
para o público o que é o seu trabalho, o que é
neurolingüística!
SOCIALITE
Ah..! É que por trás de tudo que você faz, cada
gesto, cada ação, existe uma programação, um
procedimento programado, como se fosse um programa
de computador...
APRESENTADOR
Até pra namorar?
Eles acham graça.
APRESENTADOR
Por falar nisso, você não me apresentou o seu
namorado.
Eles acham graça.
SOCIALITE
Ele não é meu namorado.
APRESENTADOR
E televisão? É verdade que você vai fazer uma
novela?
Chico muda de canal. Dá de cara com o comercial que ele fez,
aquele da piscina. Muda de canal outra vez. Pára num telejornal
que mostra uma matéria policial numa favela. A REPÓRTER mostra os
furos de bala na parede de um barraco.
REPÓRTER
...o segundo tiro entrou aqui, vocês podem ver o
buraco da bala, que perfurou a parede e veio
atingir Waldecir quando ele estava tomando café
aqui nesta mesa...
Chico tira o som da TV. Aparece uma MULHER chorando, desesperada.
A repórter agora entrevista a mulher, que não pára de chorar,
sempre escondendo o rosto com a mão.
CAROLINA
Acho que a gente sempre soube que um dia isto ia
acontecer. Eu, pelo menos, sempre soube. A minha
analista disse que a gente confunde desejo com
destino. Quando a gente quer muito que uma coisa
aconteça a gente acaba fazendo de tudo para que
esta coisa aconteça, mesmo sem se dar conta. Aí
quando acontece a gente acha que foi o destino.
Mas eu acho legal que tenha acontecido agora e não
quando a gente se conheceu. (pausa) Você não tinha
certeza que isso um dia ia acontecer?
CHICO
O quê?
CAROLINA
A gente.
CHICO
Ah...
CAROLINA
Você achava que podia acontecer?
CHICO
Achava sim.
CAROLINA
Eu tinha certeza.
Davi aparece na TV, dando uma entrevista. Chico aumenta o som.
DAVI
...e a questão da segurança, que aflige a todos,
aos jovens e aos pais, eu acredito que deva ser
enfrentada pelo governo com coragem e com
determinação. Os governos municipais são omissos,
transferindo a responsabilidade para o governo
estadual e federal. Enquanto isso a população se
tranca em suas casas, entrincheirada nesta guerra
sem fronteiras em que estão mergulhadas as grandes
cidades brasileiras.
Volta para o APRESENTADOR.
APRESENTADOR
E o último candidato na corrida para a prefeitura
foi definido hoje...
CAROLINA
Fala bem o Davi. Mas essa conversa de segurança é
sempre igual, só serve para aumentar a paranóia.
Estes políticos ...
Chico aumenta o volume.
CHICO
Só um pouquinho.
APRESENTADOR
... na tumultuada convenção da Frente Democrática.
REPÓRTER
As candidaturas do economista Joaquim Canhette e
do deputado Luiz Renato ameaçavam rachar a Frente.
A solução acabou sendo a terceira via,
representada pelo azarão da noite e agora
candidato a prefeito, o jornalista e líder
comunitário Andrew Ribeiro.
Andrew dá entrevista, vários microfones na frente.
REPÓRTER
O senhor era o azarão e sai da convenção
candidato. Isso pode se repetir na eleição?
ANDREW
Acho que pode, mas não por minha causa. Eu acho
que a Frente Democrática tem todas as condições de
conquistar a prefeitura porque é da Frente
Democrática o melhor programa de governo. Além
disso a Frente defende os interesses dos
trabalhadores, dos assalariados, dos estudantes,
daqueles que moram nas vilas populares e exigem
melhores condições de vida, enfim...
CENA 119 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA
Chico, Davi e alguns ASSESSORES assistem ao jornal.
ANDREW
... da imensa maioria da população da cidade.
Nossos oponentes defendem os interesses das
elites, que estão em menor número. Lembre-se que
na hora da eleição a gente vale o mesmo que eles.
Chico desliga o VT.
DAVI
O fato de ele ter sido seu amigo faz diferença?
CHICO
Eu assinei um contrato, não assinei?
Davi fica alguns segundos observando Chico.
DAVI
"A gente" e "eles". Essa deve ser a linha da
campanha dele, querer me apresentar como candidato
dos ricos.
ASSESSOR
Vamos usar na tevê aquela pesquisa que mostra
nossos eleitores de classe C e D. Pobre não gosta
dessa conversa de luta de classes.
CHICO
Assumir pesquisa pode ser perigoso. Se a gente
começa a cair ou se ele começa a subir a gente não
pode mais falar mal da pesquisa.
DAVI
Você acha que isso pode acontecer?
CHICO
Tudo pode acontecer. (levantando) Vamos trabalhar?
A equipe já deve estar nos esperando há horas.
DAVI
Você vem?
CHICO
Eu encontro vocês lá. Vou dar uma passada na casa
de um amigo.
CENA 120 - CASA DE ANDREW - EXTERIOR/DIA
Chico bate palmas em frente a casa de Andrew. Sílvia aparece na
porta. Uma CRIANÇA de dois anos está agarrada à perna dela. Um
cachorrinho late muito.
SÍLVIA
Sim?
CHICO
Sílvia? Lembra de mim? Eu sou o Chico, amigo do
Andrew.
SÍLVIA
(não muito animada) Ah...
CHICO
O Andrew... ele está?
SÍLVIA
O Andrew não mora mais aqui. Faz mais de um ano.
CHICO
Ah... E você não sabe o novo endereço ou ...
SÍLVIA
Eu não sei do Andrew. Só pelo jornal. Mas eu não
vou dar nenhuma entrevista, muito menos para
ajudar aquele Davi, se é isso que você quer.
CHICO
Não, claro que não. (pausa) Eu só queria conversar
com o Andrew, fora do comitê... (pausa) O filho de
vocês tá enorme...
SÍLVIA
Filha. Clarissa. Agora ela está melhor.
CHICO
Ela esteve doente?
SÍLVIA
Teve meningite, quase morreu. O Andrew não te
falou?
CHICO
Na verdade eu não vejo o Andrew há algum tempo...
SÍLVIA
Mas ela ficou boa, graças a deus. Depois teve
caxumba, mas caxumba tudo bem.
CHICO
Claro. O José, filho da Carolina, também teve
caxumba. Tudo bem.
Ficam sem assunto.
SÍLVIA
(para o cachorro) Quieto, Biluca! (para Chico)
Você quer entrar um pouco?
CHICO
Não, não... Eu tenho que trabalhar. Bom, se você
falar com o Andrew...
SÍLVIA
Eu não vou encontrar o Andrew. (pausa) Se você
encontrar o Andrew, diga que a Clarissa teve
caxumba.
CHICO
Eu digo.
CENA 121 - VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA
Chico acompanha Davi e uma comitiva numa visita a uma vila. Um
caminhão de som toca o jingle sem parar. Os cabos eleitorais
distribuem camisetas e panfletos. Chico orienta o CINEGRAFISTA
nas gravações. Chico entra numa casa miserável atrás de Davi. É
uma única peça com várias camas, fogão e uma TV. Algumas CRIANÇAS
bem pequenas assistem TV. Davi fala com a MÃE delas. Ela tem um
BEBÊ no colo e está grávida. Na televisão, Chico vê o comercial
do iogurte.
CENA 122 - CARRO NA FREE-WAY - EXTERIOR/DIA
Chico dirige. Carolina ao seu lado. No banco de trás, Lisa e
Luciano beijam-se, apaixonados. Rock'n'roll no rádio.
CENA 123 - ESTRADA SECUNDÁRIA - EXTERIOR/DIA
O carro entra numa estrada secundária. Uma placa indica "RAINHA
DO MAR - 2 km"
CENA 124 - CASA DE PRAIA/VARANDA - EXTERIOR/DIA
Chico, Lisa e Luciano estão sentados na varanda da casa, no final
da tarde, fumando, tomando chimarrão e bebendo cachaça, tudo ao
mesmo tempo. Estão morrendo de frio. Carolina chega da rua.
LISA
Telefonou?
CAROLINA
Telefonei. Está tudo bem, ele está sem febre.
LUCIANO
O José estava com febre?
CAROLINA
Não. Mas ele estava um pouco gripado, eu achei que
ele podia ter febre hoje.
CHICO
Você foi lá telefonar porque achou que ele podia
ter febre... Meu deus...
CAROLINA
(esfregando as mãos) Quem teve a idéia de vir para
a praia no Inverno?
LUCIANO
(enrolando-se mais no cobertor) O Chico. Ele disse
que é a melhor época.
CHICO
Eu gosto. Olha só, não tem ninguém pra encher o
saco. A gente pode fazer qualquer coisa.
LISA
Qualquer coisa?
CENA 125 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Os três enfileirados, de pé, na areia, morrendo de frio. Olham
para a frente. Lisa sai correndo do mar e chega perto deles. Ela
está vestindo uma roupa de borracha completa, tipo essas dos
surfistas no inverno).
CAROLINA
Tem certeza que essa roupa funciona, Lisa?
LISA
Claro que funciona. Vocês acham que eu ia ser
louca de entrar na água se não funcionasse?
CHICO
Eu acho.
LUCIANO
Eu também acho.
Lisa dá um beijo em cada um.
LISA
O último a chegar em casa é um pingüim!
E sai correndo. Os outros se olham por um instante. Depois,
também saem atrás.
CENA 126 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Chico está no fogão fazendo uma massa. Lisa está tomando um
banho. Luciano e Carolina conversam na sacada.
LISA
(berrando do banheiro) O quê que vai ter no
jantar? Eu tô morrendo de fome.
CHICO
Minha especialidade: massa com sardinha.
LUCIANO
(berrando da sala) Não. Tudo menos massa com
sardinha!
CHICO
(enquanto descarrega as compras de um saco de
supermercado) Cadê as latas de sardinhas?
Ele olha pra dentro do saco. Nada.
CHICO
Eu não comprei sardinha!
LUCIANO
Graças a Deus. Eu vou comprar alguma coisa decente
pra gente comer. Aquele supermercado de Capão fica
aberto até as oito.
CHICO
(chegando na sala) Eu só preciso duas latas de
sardinha.
LUCIANO
Tudo bem. Aí eu já aproveito e compro um monte de
comida congelada.
CAROLINA
Não foi você que disse que cada dia um de nós ia
pra cozinha?
LUCIANO
(afirmativo) Eu vou fazer a minha comida.
CAROLINA
Congelada não vale.
LUCIANO
Tá. Vem comigo. No caminho a gente acerta esse
negócio.
Luciano carrega Carolina pelo braço em direção à porta. Eles
saem. Chico vai até a porta do banheiro.
CHICO
Lisa, a água não tá fria?
O velho chuveiro elétrico, cheio de fios mal encapados, faz muito
barulho.
LISA
(gritando) Sabe que não? Eu tava mesmo pensando
nisso. (Começa a sair uma fumacinha do chuveiro).
Até que esse chuveiro é bem legal.
O chuveiro entra em curto total. Faz um barulho estranho e pega
fogo. Lisa olha, apavorada, e dá um grito.
CHICO
Quê que houve, Lisa?
As cortinas do box pegam fogo também.
LISA
(saindo do box, correndo) Fogo! Tá pegando fogo
aqui!
Ela está apavorada, não consegue fazer nada.
CHICO
Abre a porta, Lisa!
Ele entra. O banheiro está todo enfumaçado. Juntaram-se o vapor
da água do banho com a fumaça do pequeno incêndio. Há fogo no
box.
CHICO
Sai daqui, Lisa!
LISA
Eu vou pegar o extintor no carro.
Lisa sai correndo, quase pelada mesmo, tentando se enrolar numa
toalha muito pequena. Chico fica assistindo o fogo sem fazer
nada.
CHICO
O carro não tá aqui. Eles foram comprar comida
congelada.
LISA
Então vamos pegar água. Onde tem balde?
CHICO
Na cozinha. Mas espera, não se usa água em fogo de
eletricidade.
LISA
(já com o balde na mão) Quem foi que disse?
CHICO
Não se usa.
O fogo se extingue rapidamente. Afinal, o chuveiro já queimou o
que tinha que queimar, e a cortina também. It's over.
LISA
Quem foi que disse?
CHICO
Não se usa. Dá choque! O incêndio já acabou.
Lisa olha, percebe que o perigo passou e sorri. Mas então percebe
que está toda molhada e sente frio, muito frio. Começa a tremer.
LISA
Chico... eu tô com frio!.
Chico pega outra toalha, maior, e alcança pra ela. Ela se enrola,
mas está com tanto frio que não consegue se secar.
CHICO
Que cheiro horrível! Eu vou pegar mais toalhas.
LISA
(rígida) Eu vou congelar.
CHICO
Pára de brincar, Lisa. Te seca logo.
LISA
Eu tô congelando.
Chico, todo sem jeito, começa a passar a toalha em Lisa.
LISA
Eu tô congelando! Mais forte!
Chico passa mais forte.
LISA
Tem que fazer como os esquimós. Assim.
Lisa se agarra em Chico, que continua passando a toalha.
CHICO
Cadê as tuas roupas?
LISA
Eu tô congelando, Chico, não pára!
Chico se concentra na secagem. Passa com força. Lisa vai se
virando pra facilitar. Chico vê os seios de Lisa.
LISA
Dessa vez, não te devo nada.
CHICO
Quem foi que disse?
LISA
O quê?
CHICO
Que os esquimós fazem assim?
LISA
De onde você acha que veio o tal do beijo esquimó?
Disso aqui. Um sai do banho e o outro fica se
esfregando nele. Esfrega tudo. Até o nariz.
(pausa) O jantar não ia ser massa com sardinha?
CHICO
Ia.
CENA 127 - CARRO - EXTERIOR/DIA
Carolina e Luciano no carro.
LUCIANO
A Lisa me assusta.
CAROLINA
Por quê?
LUCIANO
Às vezes parece que faz as coisas sem pensar. E
depois parece que pensa demais.
CAROLINA
Eu gosto disso. Melhor que ficar deprimida, ou se
entupir de cocaína.
LUCIANO
É, isso é. (pausa) Sabe como é que a gente
começou?
Carolina fica atenta.
LUCIANO
Ela simplesmente me agarrou e pronto.
CAROLINA
Como assim?
LUCIANO
Numa festa. Ela me levou prum quarto, tirou a
minha roupa e... pronto!
CAROLINA
Tem certas coisas que só a Lisa é capaz de fazer.
LUCIANO
(sorrindo) Isso é.
Carolina não acha graça.
CENA 128 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Jantar do Chico. Uma grande panela de massa com sardinha chega no
centro da mesa. Os quatro avançam, animados, e começam a comer.
CAROLINA
(depois de provar) Tá ótima, Chico.
LISA
É. Super boa.
LUCIANO
(sentindo-se obrigado a concordar) Tá melhor que
eu pensava.
CHICO
A fome sempre deixa a comida melhor. Aristóteles.
LISA
É. Sabe, eu fiz um cursinho em Nova Iorque com um
filósofo paquistanês, um cara super quente, e o
cara falava isso, que é a necessidade que gera o
prazer.
LUCIANO
Que bobajada.
LISA
Bobagem nada. O sexo também é assim. Quanto mais
você deseja, mais você quer, melhor fica quando
você consegue.
CHICO
O Freud dizia ao contrário: quanto mais você
deseja, e não consegue, mais merda dá depois.
CAROLINA
Eu sempre detestei o Freud. Como é o nome desse
paquistanês, Lisa?
LISA
Maharishi Chuttranata.
CAROLINA
Como é?
LISA
Maharishi Chuttranata.
Luciano olha para Chico. Chico olha para Carolina. Carolina olha
para Luciano. Luciano começa a rir, mesmo de boca cheia. O riso
contagia os outros, que não conseguem engolir a massa que está na
boca. Chico se engasga e começa a tossir. Luciano bate nas costas
dele. Carolina chora de tanto rir. Lisa, a princípio, fica
indignada, mas depois também é contagiada e ri tanto quanto os
outros.
CENA 129 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Esta seqüência acontece simultaneamente num dos quartos, onde
estão Lisa e Luciano, e na sala, onde estão Chico e Carolina,
tomando vinho.
QUARTO
Luciano e Lisa estão trepando. O problema é que a cama, como toda
cama de casa de praia, é antiga, de molas, está meio quebrada e
range desesperadamente. Lisa, ainda por cima, não é nem um pouco
discreta.
LISA
Ahhh! (Ou algo parecido)
LUCIANO
(sussurrando) Shshsh...
LISA
O quê?
LUCIANO
O Chico e a Carolina. Não faz tanto barulho.
SALA
Carolina e Chico estão em cadeiras próximas, com copos de vinho
na mão. Ouvem nitidamente, tanto os rangidos da cama, como os
gemidos de Lisa.
CAROLINA
Você não acha estranho isso tudo?
CHICO
Tudo o quê?
CAROLINA
Os dois juntos, no quarto, trepando, e nós ouvindo
e tomando vinho.
CHICO
Acho.
QUARTO
Lisa grita bem alto.
LISA
Ahhh!
LUCIANO
(animado) Deu?
LISA
(pára um pouco e olha firme nos olhos de Luciano)
Tá com pressa?
LUCIANO
Não.
LISA
(beijando Luciano com suavidade) Então, por favor,
respira direito. Você sabe como respirar direito é
importante.
Luciano respira fundo duas vezes, recompõe as energias. Lisa geme
mais alto ainda.
SALA
Os gemidos de Lisa dominam a sala. Chico e Carolina se olham.
Chico ainda está meio indeciso sobre o que fazer, mas levanta e
vai até a mesa onde está o vinho. Pega a garrafa e aproxima-se de
Carolina. Serve o vinho. Carolina olha para ele. Chico está
tomando uma decisão. Talvez sua próxima ação seja beijar
Carolina. Mas a porta do quarto abre. Lisa entra na sala,
terminando de vestir uma camiseta cumprida. Está evidentemente
irritada. Pega um copo, enche de vinho e senta. Chico e Carolina
não sabem o que fazer. Ficam alguns segundos em silêncio.
LISA
Por que tem que ser tão difícil?
Chico e Carolina se olham.
LISA
Por que a gente não tem um botãozinho pra regular
tudo?
CAROLINA
(delicadamente) Regular o quê, Lisa?
LISA
Tudo. Eu. E principalmente o Luciano.
LUCIANO (OFF)
(do quarto) Vai te regular primeiro!
CAROLINA
O que aconteceu?
LISA
Nada. Bobagem. (terminando o copo com um grande
gole) Vinho é uma das poucas coisas decentes que
esse estado ainda produz.
CHICO
Vinhos e centro-médios.
QUARTO
Carolina entra e senta-se ao lado de Luciano.
CAROLINA
Não sei se esse fim-de-semana foi uma boa idéia. É
difícil fazer de conta que tudo continua igual.
Luciano fica alguns segundos pensando.
LUCIANO
No fundo, tá tudo igual. A Lisa não mudou nada. A
gente casou, eu pensei que isso fizesse diferença,
mas não faz.
Carolina fica olhando Luciano.
SALA
Lisa e Chico conversando.
LISA
Eu já te contei como o Luciano me convenceu a
casar com ele?
CHICO
Não.
LISA
Ele me disse que se eu me casasse com ele nunca
mais seria internada. E eu achei ótimo ter alguém
se preocupando com isso. Mesmo que seja mentira.
Lisa começa a chorar, bem de mansinho. Chico levanta e
aproxima-se. Fica de joelhos na frente dela. Lisa olha para ele.
Chico a abraça. Ficam assim abraçados um longo tempo.
CENA 130 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA
Uma embalagem de alumínio aterrisa no centro da mesa. Outra vem
logo depois. Ambas contêm comidas aparentemente saborosas.
LUCIANO
Vualá! Camarões à catupiri e filés de haddock ao
molho de champanhe.
CHICO
Isso é totalmente irregular.
LUCIANO
(rindo) Então não come.
CAROLINA
(servindo-se) As regras não ficaram bem claras.
Por mim, tudo bem.
LISA
(também servindo-se) O Luciano não gosta de perder
tempo. Abriu, enfiou no forno, tirou, tá pronto.
Carolina e Chico não percebem o duplo sentido da frase, mas
Luciano fecha a cara.
CAROLINA
(comendo) Deixa de frescura, Chico. Tá ótimo.
(para Luciano) As vezes você tem algumas idéias
razoáveis, Luciano.
Ele não acha graça. Carolina e Chico percebem que ele não achou
graça.
CAROLINA
Quê que foi, Luciano?
LUCIANO
Nada. Eu não estou com muita fome, só isso.
Luciano sai da mesa. Clima pesado. Chico e Carolina não entendem
bem o que tá acontecendo. Lisa come, quieta.
CENA 131 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Agora, no jantar de Lisa, dominam os pratos integrais, mas
bastante sofisticados. Lisa está na cozinha, fazendo bolinhos de
verdura. Os outros três estão na mesa, já comendo.
CAROLINA
(gritando para Lisa) Vem comer, Lisa.
LISA
(da cozinha) Tô só terminando o Alu Patra. Já vou.
CAROLINA
(em voz baixa, para Luciano, em tom imperativo) Se
vocês continuarem com esse joguinho idiota de não
se falarem, eu juro que pego o carro agora e volto
pra Porto Alegre.
LUCIANO
Não é joguinho. Eu não tenho nada pra dizer.
CHICO
Dá um tempo, Luciano.
Lisa chega com os bolinhos. Coloca a travessa sobre a mesa e
senta. Luciano nem olha pra ela.
LISA
Agora só falta você, Carolina.
CAROLINA
(levantando) Infelizmente vocês dois já
esculhambaram o meu fim-de-semana. Não vou passar
mais um dia inteiro vendo essa briga infantil.
LISA
O que você quer? Ele não quer falar, tudo bem.
Ninguém sente falta.
Chico levanta.
CHICO
Eu também vou.
LUCIANO
O que vocês querem? Que a gente fique posando de
casal feliz? (Levanta, vai até Lisa e a abraça)
Olha, pessoal, como a gente se ama. Vocês querem
que a gente se beije? Tudo bem.
Luciano beija Lisa, que está impassível.
CHICO
Eu só quero que vocês parem de bancar adolescentes
em crise.
LISA
Tudo bem. (E para Luciano:) Nunca mais, mas nunca
mais mesmo, me chama de louca.
LUCIANO
Eu não te chamei de louca.
LISA
Tudo bem. Eu vou fazer de conta que não falou.
Agora sentem. Se vocês não comerem tudo, tenho um
surto psicótico em cima dos rolinhos de repolho.
Chico e Carolina sentam outra vez. Discretamente, mas muito
discretamente mesmo, Carolina segura por um instante a mão de
Luciano.
CENA 132 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Os quatro estão jogando canastra de parceria. Homens contra
mulheres. Um baseado corre de mão em mão. Lisa bate. Chico está
com trezentas cartas na mão. Fica alucinado.
CHICO
Eu só precisava de um sete de ouros!
LUCIANO
E eu tinha ele na mão, ô animal. Por quê não foi
baixando aos poucos?
CHICO
Eu tava esperando a Carolina me dar.
LISA
Esse é teu problema, Chico. Tá sempre escondendo o
jogo.
CHICO
Não tem onde comprar chocolate nessa praia!
LUCIANO
Par ou ímpar?
CHICO
Par.
Eles mostram os dedos. Luciano ganhou.
LUCIANO
(aliviado) Vai, meu irmão.
CHICO
Mas era só brincadeira.
CAROLINA
Brincadeira nada. Larica é coisa muito séria.
LISA
Pára de chorar, Chico. Eu vou contigo. (E
levanta.)
CENA 133 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE
Chico e Lisa andam por uma rua deserta.
CHICO
Que frio.
LISA
(abraçando Chico) Eu te esquento.
Segura Chico pelo braço e olha firme pra ele. Começa um beijo
apaixonado.
CENA 134 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Um beijo longo, quente e apaixonado entre Carolina e Luciano.
CENA 135 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA
Uma grande travessa de arroz com galinha aterrisa sobre a mesa. O
clima é bem alegre. Carolina está servindo. Todos comem com
satisfação.
CENA 136 - CARRO - EXTERIOR/NOITE
A volta para Porto Alegre, no carro, à noite. Os quatro estão em
silêncio.
LUCIANO
Vocês gostam de fofoca?
Segundos de silêncio.
CAROLINA
Gostamos.
Segundos de silêncio.
LUCIANO
E de ba-baleia?
Continua o silêncio. Lisa começa a sorrir. Carolina solta um
risinho abafado. Chico começa a rir. Luciano ri alto. Todos riem.
O carro se perde na escuridão.
CENA 137 - CASA DE CHICO - INTERIOR/DIA
Chico está ao telefone e rabisca sua agenda. Tem vários números
de telefone riscados.
CHICO
Eu precisava muito falar com o Andrew, eu liguei
da praia, ontem. (...) Você me disse isso ontem.
(...) Mas tem certeza que ele recebeu o recado?
(...) E você disse que era eu? (...) Eu já liguei
pra lá, várias vezes, disseram que ele não tinha
chegado, depois disseram que ele já tinha saído.
(...) Tudo bem. (...) Eu lhe dei também o meu
telefone de casa? (...) Certo. Tudo bem. Desculpe
a insistência, mas é importante. (...) Tudo bem,
obrigado.
CENA 138 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Onze da noite no apartamento de Chico. Ele está assistindo ao
programa político no vídeo-cassete. É um comício do Andrew. Toca
a campainha. Chico dá pause, congelando a imagem de Andrew. Sai
do quarto e vai atender a porta. É Lisa.
LISA
Você tá sozinho? Você não tá sozinho...
CHICO
Estou sim, estava vendo um pouco de televisão.
LISA
Eu vim me despedir.
CHICO
Tá indo viajar? Pra onde?
LISA
Pro Acre.
CHICO
Acre?
LISA
É. Um lugar chamado Céu do Mapiá.
CHICO
(decepcionado) Daime, Lisa...
LISA
Você já conhece?
CENA 139 - ACRE - EXTERIOR/DIA
A partir daqui, os diálogos ficam OFF e aparecem imagens
correspondentes às falas, ilustrando a futura odisséia de Lisa,
sob dois pontos-de-vista completamente diferentes.
Lisa dentro de uma canoa, com muitas árvores ao fundo
LISA (OFF)
É o último lugar mágico de mundo. Pra chegar lá,
tem que andar dois dias de canoa no meio da
floresta.
Lisa, já toda de branco, pôr-do-sol ao fundo, dança e canta um
hino religioso.
CHICO (OFF)
É uma religião, Lisa. Mais católica que a
católica. As mulheres nem podem dançar perto dos
homens.
Lisa fuma um grande baseado com outros FIÉIS.
LISA (OFF)
Sabem como é que eles chamam baseado? Santa Maria.
Lisa toma um grande gole do daime e olha em frente.
CHICO (OFF)
Isso é nostalgia, saudade da infância. Lisa, os
caras bebem um troço mais forte que ácido. E você
sabe o que acontece quando você toma ácido.
Lisa olha para as árvores, que mudam de cor e forma.
LISA (OFF)
O ácido é pura química. O daime é a própria
floresta. Raiz, folha, terra. Deve ser
maravilhoso.
Lisa vomita.
CHICO (OFF)
Lisa, deve ser horrível.
Lisa, em paz, deitada numa rede, depois de vomitar, olha para a
floresta.
CENA 140 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Chico e Lisa estão sentados na sala.
LISA
Deve ser maravilhoso.
Ficam em silêncio por alguns segundos. Chico desistiu de
argumentar com Lisa. De repente, o som da televisão invade a
sala, alto.
LISA
Tem alguém aí.
CHICO
Não, é o vídeo.
Chico se levanta, vai até o quarto e desliga a tevê.
CHICO
(voltando do quarto) Não adianta, quando você bota
um negócio na cabeça, ninguém tira.
LISA
Me faz um favor? Conta pro Luciano?
CHICO
Que você vai pro Acre?
LISA
Eu não tive coragem, não queria discutir. Disse
que tava indo prum congresso de numerologia em
Manaus.
CHICO
Quando você vai?
LISA
Amanhã de manhã. Não gosto de despedida. Tchau,
Chico.
Lisa beija Chico, na boca, mas rapidamente. Vai em direção à
porta.
CHICO
Espera um pouco!
Lisa abre a porta, abana e some.
CENA 141 - ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - INTERIOR/NOITE
Davi está sentado numa grande mesa ao lado de vários EMPRESÁRIOS.
Uma faixa indica o "Fórum Contra a Corrupção". Davi faz um
discurso inflamado. Chico e sua EQUIPE gravam tudo.
DAVI
...a presença excessiva do estado na economia é a
principal causa da corrupção. Pois se o estado,
com sua grande máquina emperrada, obstrui a
passagem da iniciativa privada, é natural e, não
sejamos hipócritas, é mesmo previsível que o
empresário use de todos os meios ao seu alcance
para limpar o caminho. Nenhum empresário vai ficar
passivamente observando a falência de sua empresa
enquanto o estado coloca impecilhos para o
desenvolvimento: impostos abusivos, exigências
legais antiquadas e um sem número de taxas sociais
que têm como único objetivo sustentar os currais
eleitorais de políticos profissionais.
Aplausos. Chico avista seu pai, o doutor Ernâni, no meio da
platéia. Eles trocam um cumprimento discreto.
DAVI
Isso sem falar no protecionismo cartorial
praticado por algumas sindicalistas que, ao invés
de se preocupar com a segurança e as melhores
condições de trabalho de sua categoria, preferem
acirrar o confronto com os empresários, incentivar
as greves e dar entrevistas na televisão.
Aplausos. No fundo da sala, Luciano e Ibarri discutem e
gesticulam muito. Luciano parece estar bastante irritado. Chico
percebe.
DAVI
Depois, com a falência das empresas, com a quebra
de fábricas que não suportam as folhas de
pagamento e os encargos sociais, vêm o desemprego
e o trabalhador fica desassistido. E aí aqueles
mesmos sindicalistas culpam os empresários pelo
desemprego. É pura demagogia! (aplausos
entusiasmados)
CENA 142 - PRÉDIO DA ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - EXTERIOR/NOITE
Do lado de fora do prédio, Davi cumprimenta os empresários,
despede-se, ri muito. Todos parecem exageradamente ricos, gordos
e felizes. Davi embarca em seu carro de luxo sob aplausos e
flashes. A cena é parte do programa de TV de Andrew.
LOCUÇÃO
O candidato dos grandes empresários diz que a
culpa da corrupção é do estado. Mas não diz que
são os grandes empresários que pagam o suborno. O
candidato dos patrões diz que o desemprego é culpa
dos trabalhadores. Mas não diz que as grandes
empresas nunca abrem mão do seu lucro.
O motorista bate a porta e dá a volta no carro. Dois MENINOS DE
RUA se aproximam do carro. A SEGURANÇA barra a passagem das
crianças. Davi sai abanando e sorrindo para as câmaras. A imagem
congela com um flash estourando no rosto sorridente de Davi em
seu carro e o braço de um segurança impedindo a passagem das
crianças.
LOCUTOR
O candidato dos ricos diz que o seu governo vai
ser bom para os pobres. Você acredita?
REPÓRTER caminhando na rua.
REPÓRTER
(uma edição repete a pergunta várias vezes
sugerindo o nome de Davi)
Como é que vai a vida / a vida / davidavi ?
VÁRIAS PESSOAS
Terrível! / Ruim pros pobres. / Mal. / Pra quem
trabalha vai mal. / Tá difícil, né?
Vinheta eletrônica encerra o programa de Andrew. Outra vinheta
(ridícula) começa o programa de GABRIEL, o candidato da situação,
um velhinho simpático de gravata borboleta e colete.
GABRIEL
Meus queridos amigos. Nós não vamos entrar nesse
jogo de agressões. Como muito bem disse
Chesterton, "quando dois homens se ofendem em
público é justo crer que os dois têm razão".
Vamos, ao contrário, usar este espaço para meditar
sobre o sentido da democracia. A democracia, meus
amigos...
A televisão é desligada.
CENA 143 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
Carolina estava assistindo ao programa. Chico entra, carregando
umas fitas. Carolina desliga a TV.
CHICO
E aí? Viu o programa dele?
CAROLINA
Acabei de ver. É bom.
CHICO
Bom em que sentido?
CAROLINA
Bom, bem feito. Bom pro Andrew. (pausa) Conseguiu
falar com ele?
CHICO
Não. Já deixei quinhentos recados, ele não
respondeu.
Chico entrega um papel para Carolina.
CHICO
Dá uma olhada nisso aqui.
CAROLINA
Pesquisa? E aí?
Carolina olha o papel com atenção.
CHICO
O Davi subiu, dois pontos. O Andrew subiu oito
pontos. Oito pontos em quinze dias. Sabe o que
isso significa? A diferença agora é de dez pontos.
Aquele imbecil do Gabriel caiu mais três, o resto
continuou na mesma, com um ou dois pontos.
CAROLINA
Hoje o Gabriel queria "meditar sobre o sentido da
democracia".
CHICO
O sentido da democracia é de fora pra dentro.
(pausa) Se continuar assim a decisão vai ser entre
o Andrew e o Davi.
CAROLINA
O que significa...
CHICO
Provavelmente, uma úlcera.
CENA 144 - ESTAÇÃO RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA
Lisa desce de um ônibus. Carrega apenas uma mochila e uma sacola
cheia de garrafas.
CENA 145 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Lisa está vestida com uma bata azul cheia de desenhos coloridos.
À sua frente, muito constrangidos, estão Chico, Carolina e
Luciano.
LISA
Vocês se recusam a cantar os hinos, tudo bem. Eu
entendo. Mas na hora de tomar vocês devem fazer o
que eu mandar, certo?
LUCIANO
Depende...
LISA
Então fica sem.
CHICO
A gente tem um pouco de medo.
LISA
Medo de quê? Eu tô aqui, pra cuidar de vocês. Não
tem nenhuma energia negativa nessa sala.
CAROLINA
Lisa, eu não quero passar mal, vomitar, essas
coisas.
LISA
Nem todos vomitam. (Aproxima-se de Carolina com um
copo cheio) Carolina, você acha que eu ia te dar
uma coisa ruim?
CAROLINA
Não.
LISA
Então toma.
Lisa estende o copo para Carolina, que o pega, ainda receosa.
CAROLINA
Tudo?
LISA
Tudo. Se quiser, fecha o nariz com a mão.
Carolina tapa o nariz, olha rápido para Chico e Luciano e toma
tudo num gole só. Senta numa cadeira e respira fundo. Lisa
ajoelha na frente dela, sorri e segura suas mãos com força.
Depois enche um copo para si e também toma tudo. Senta ao lado de
Carolina. Luciano e Chico, ainda de pé, sentem-se covardes.
CHICO
Tudo bem. Eu tomo, mas não o copo todo.
LUCIANO
A gente mesmo se serve, tá?
LISA
Se tomar muito pouco, é desperdício.
Chico e Luciano servem-se, menos de um terço de copo cada um, e
bebem. Sentam-se num outro sofá. Chico bota a mão na boca e sai
correndo da sala. Barulho de vômito vindo do banheiro. Os olhos
de Carolina ficam muito injetados.
CAROLINA
Que árvore linda! Toda vermelha...
Lisa sorri e fala baixinho no ouvido dela. Luciano sai da sala,
rumo à cozinha. Abre a geladeira e pega uma garrafa de Coca-Cola
litro. Enche um copo e bebe sofregamente. Chico também vai para a
cozinha.
LUCIANO
Tô tentando diluir essa merda.
CHICO
Eu preciso de um troço doce.
Do fundo da geladeira, Chico pega uma torta de chocolate e começa
a comer compulsivamente.
Chico e Luciano servem-se de torta.
Luciano abre uma garrafa de dois litros de refrigerante e serve
dois copos.
Luciano e Chico, ao lado da geladeira aberta, dividem o último
pedaço da torta.
Carolina e Lisa chegam na cozinha, completamente viajantes.
Carolina parece não entender o que está acontecendo. Mas Lisa, de
dentro de sua viagem, consegue articular:
LISA
No Mapiá, só o padrinho Sebastião tem geladeira.
Luciano e Chico olham para elas, culpados, sem qualquer defesa.
Lisa começa a cantar, em tom de hino religioso.
LISA
Com minha mãe estarei / na santa glória um dia /
ao lado de Maria, no céu triunfarei.
Carolina começa a cantar junto.
LISA E CAROLINA
No céu, no céu, no céu triunfarei...
CENA 146 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA
O céu aerografado, no estúdio. Davi está sentado em frente ao
cenário, olhando diretamente para a câmara. Chico fala fora de
cena.
CHICO (OFF)
Você já usou drogas?
DAVI
(rindo) Não. Mas eu conheço...
CHICO (OFF)
Por favor, Davi, não ria quando responder
perguntas. Você fica parecendo pedante.
Davi fica sério, um pouco seguindo instruções, um pouco porque
não gostou da objetividade agressiva de Chico.
CHICO (OFF)
Você já usou drogas?
DAVI
Não. Mas eu conheço gente que usa, são meus
amigos.
CHICO (OFF)
Você é amigo de drogados?
DAVI
Não é isso, é que eu acho que..
CHICO (OFF)
Diga que você não usa, nunca usou, ponto. Se o
repórter perguntar se você conhece alguém que usa
ou usou você diz que sim, ponto. Se ele perguntar
mais, diga que você não é juiz de ninguém, que os
viciados devem ser tratados, que os traficantes
devem ser presos, que tem muitos poderosos
acobertando o narcotráfico, enfim, obviedades.
Davi acha graça.
CHICO (OFF)
Não tente ser engraçado nem informal. Você não é
engraçado. Seja sério e pareça honesto. E não diga
"eu acho". Achar, qualquer um acha, parece chute,
palpite. Você quer ser o prefeito. Diga "eu penso"
ou "eu acredito". Se você se comportar e subir dez
pontos nas pesquisas eu deixo você usar "eu
creio".
DAVI
(achando graça) Tudo bem.
CHICO (OFF)
Você já usou drogas?
DAVI
Não.
CHICO (OFF)
Nunca?
DAVI
Nunca.
CHICO (OFF)
Acredita em Deus?
DAVI
Eu sou católico.
CHICO (OFF)
Diga que acredita. Diga que é católico mas acha
que religião é uma opção pessoal, íntima. Diga
exatamente aquilo que todos já disseram, que é
exatamente aquilo que todos querem ouvir. Não
tente ser original. Isso assusta as pessoas.
DAVI
Certo.
CHICO (OFF)
Qual sua opinião sobre o aborto?
DAVI
Eu acho que... Eu acredito que... o aborto é crime
e portanto... (pausa) O que eu devo dizer?
Chico entra em cena.
CHICO
(para o cinegrafista, fora de cena) Chega, pode
parar. (para Davi) Não sei. Qual a sua opinião
sobre o aborto?
A luz do estúdio é desligada. Chico e Davi ficam silhuetados
contra o céu do estúdio.
DAVI
Não sei, nunca pensei nisso. O que a prefeitura
tem a ver com isso? Por que interessa a minha
opinião sobre deus, drogas ou aborto?
Chico sorri, um pouco decepcionado, um pouco cansado, um pouco
absorto. Fala quase que para si mesmo.
CHICO
Não sei, Davi. Não tenho a menor idéia.
CENA 147 - ENTRADA DE VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA
Dois carros cheios de adesivos da campanha de Davi saem de uma
estrada de asfalto e entram numa rua secundária, sem asfalto,
típica entrada de vila popular. No carro da frente, estão o
MOTORISTA, Davi (no banco da frente, sempre acenando), Chico e um
SEGURANÇA. Chico está com cara de ressaca e saco-cheio. No carro
de trás está a EQUIPE de TV que faz a campanha de Davi
(motorista, câmara, operador de VT e diretor). O carro balança
muito.
CHICO
Davi, lembra que essa vila é território do Andrew.
Se você for vaiado, não se irrite. Também não fica
rindo, como você fez ontem.
DAVI
Eu sei lidar com esse tipo de gente.
CHICO
Esse tipo de gente vai decidir a eleição.
DAVI
(sempre rindo e acenando para os moradores, que em
sua maioria acenam de volta) Eles não sabem nem o
que é uma eleição. Eles só sabem que têm que fazer
um xis. Um xis depois de Davi. É só isso. O resto,
deixa comigo.
Chico está deprimido, fica em silêncio. Davi vira-se pela
primeira vez para Chico, preocupado com o silêncio dele.
DAVI
Ô, Chico, não posso mais nem brincar? Você me traz
num buraco desses, onde eu vou ouvir vaia, tomar
cafezinho frio e vão jogar coisas em mim. Eu
venho, de bom-humor e disposto a fazer tudo que
você mandar. Qual é o problema?
CHICO
Não tem problema, Davi. (pausa) Por favor, não
fala mais naquele negócio das trezentas mil casas
populares.
DAVI
Por que não? É uma estimativa muito simples. Se
cada habitante da cidade tiver acesso a um
financiamento...
CHICO
(cortando) Cada habitante da cidade? Pelo amor de
Deus, Davi...
DAVI
Tudo bem. É melhor eu não gastar saliva com
eleitor garantido.
Chico enterra-se ainda mais no banco de trás. Olha pela janela.
Os MORADORES acenam para o carro. Um MENINO, com uma bandeira de
Andrew, faz um gesto obsceno, bem agressivamente. Mas logo a
seguir aparece uma NEGRONA desdentada, com uma faixinha do Davi
na cabeça, e acena positivamente. Chico olha para trás. Ainda
consegue ver que a negrona chega perto do menino, tira a bandeira
dele e dá um empurrão. O menino cospe nela. Ela tira o chinelo e
parte pra cima do menino. O carro faz uma curva fechada e Chico
não consegue acompanhar o final da cena.
CENA 148 - COMITÊ DA VILA - EXTERIOR/DIA
Davi discursa na frente do "Comitê da Vila Caixa D'Água pela
vitória de Davi", que é um casebre caindo aos pedaços. Está em
cima de uma caixa de cerveja. Umas CEM PESSOAS à sua frente. A
maioria das bandeiras é de Andrew. A equipe de TV registra, sob o
comando do diretor. Chico está perto de Davi, mas fica em
silêncio o tempo todo.
DAVI
(empolgado, no final do discurso) E quando eu falo
em trezentas mil casas populares, podem dizer que
eu sonho, podem dizer que é demagogia, que é
discurso eleitoreiro. Mas eu não sonho com casas
prontas que caem do céu, presentes de Deus ou do
governo. Eu sonho com as ferramentas, com o
material de construção, com os terrenos, com o
dinheiro a juros baixos, com a capacidade de cada
um erguer, a partir de seus sonhos, uma morada
mais digna, mais saudável e mais humana. Muito
obrigado.
Uma grande vaia responde ao final do discurso. Há alguns aplausos
e "muito bens", mas a reação da maioria é nitidamente negativa.
Não chega a haver agressividade, e sim descontentamento. Davi
reage bem: ergue as mãos, aponta os que o aplaudem e agradece.
CENA 149 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
Na ilha de edição, estão sentados Chico, Carolina e um operador
de VT. Um monte de fitas etiquetadas pelo chão e em cima da mesa.
No monitor, acompanhamos os últimos segundos do discurso de Davi.
Logo que as vaias começam, Chico interrompe:
CHICO
Dá pause aí. Carolina, me dá a fita da vila
Recreio.
Carolina alcança uma fita. Chico dá uma olhada rápida na ficha da
fita.
CHICO
Dez minutos e trinta segundos.
O operador coloca a fita, dá reset na máquina e depois fast-
forward. Chega no ponto pedido por Chico: é uma pequena multidão
começando a aplaudir um discurso de Davi. Muitas bandeiras. Clima
festivo.
CHICO
Ainda não usamos isso aí. Edita no final do
discurso.
Assistimos, a seguir, ao procedimento de edição que transforma a
reação ao discurso de Davi. Era negativa. Agora é muito positiva.
Carolina está evidentemente contrariada. Quando a sacanagem está
pronta, Chico levanta.
CHICO
Por favor, Carolina, coloca pra mim a vinheta
final e cronometra.
Carolina faz um sinal de positivo com a mão. Depois pega uma fita
com a etiqueta "vinhetas" e coloca no VT1. O operador posiciona o
VT2 no final dos aplausos e dá edit. Começa a vinheta final que
tem várias imagens de Davi e, ao fundo o jingle da campanha.
Carolina assiste a vinheta até o final, com uma cara de enterro.
Luciano entra na ilha de edição, visivelmente nervoso.
LUCIANO
Cadê o Chico?
CAROLINA
Saiu há pouco. Quê que houve?
LUCIANO
Não entendi direito. A mãe da Lisa me ligou. Elas
estão na delegacia.
CENA 150 - DELEGACIA DE TÓXICOS - INTERIOR/NOITE
Sala do delegado, que está nervoso. Em cima da mesa, quatro
garrafas de Daime. A mãe de Lisa, Carolina e Luciano discutem com
o DELEGADO, já faz algum tempo.
LUCIANO
Nós queremos ver a Lisa, agora!
DELEGADO
Agora não é possível. Ela está sendo interrogada.
MÃE DE LISA
(quase histérica) Mentira!
CAROLINA
Calma. Desse jeito a gente não chega em lugar
nenhum. (Tentando manter-se calma:) Delegado, o
senhor não tem o direito de escondê-la.
DELEGADO
Eu não estou escondendo nada. Daqui a pouco vocês
podem entrar.
MÃE DE LISA
Eu quero ver a minha filha! Vocês bateram nela!
DELEGADO
Ela resistiu à prisão.
MÃE DE LISA
Seu desgraçado!
DELEGADO
A senhora se acalme, ou eu prendo a senhora por
desacato!
LUCIANO
Calma, dona Dilma.
DELEGADO
(apontando para a mãe de Lisa) Vocês conhecem bem
essa senhora? (olha para Luciano e Carolina, que
não sabem o que dizer) Aposto que não. É bom que
vocês saibam de uma coisa: a nossa diligência era
pra pegar cocaína, que essa senhora consome em
larga escala. Dois traficantes já nos deram o nome
dela. Mas não achamos cocaína. Em compensação,
achamos isso (e aponta as garrafas). E a filha
dessa senhora está presa por porte e tráfico de...
não sei o nome desse negócio na garrafa, mas sei
que é uma substância estupefaciente.
CAROLINA
(cortando) Olha, eu não quero discutir isso agora,
nós vamos chamar um advogado pra acompanhar tudo.
Eu só quero ver a minha amiga. Agora!
DELEGADO
Impossível.
Chico chega com a equipe de gravação do programa, se fazendo de
repórter. O operador de pau-de-luz liga a refletor.
DELEGADO
O que é isso?
CHICO
(com o microfone, falando para a câmara) É um caso
típico de abuso de autoridade. O delegado mantém
um preso incomunicável.
DELEGADO
Não é verdade!
MÃE DE LISA
É verdade. Eu quero ver a minha filha!
CHICO
(para a mãe de Lisa) O que aconteceu?
MÃE DE LISA
Eles entraram na minha casa à força. E bateram na
minha filha!
CHICO
(para o delegado) Senhor delegado, os agentes
tinham mandado de busca?
DELEGADO
(muito nervoso, não sabe o que dizer) E o senhor
tem autorização para invadir minha sala? Qual é a
emissora de vocês?
CHICO
Desliga um pouco a luz aí, Alemão. Dá pause,
Salvador.
Salvador abaixa a câmara.
DELEGADO
(Percebe que é melhor mudar de tática) Eu gostaria
de dar uma palavrinha em particular com o senhor
antes de gravar qualquer entrevista.
Chico entrega o microfone para o cinegrafista e faz sinal para
que eles saiam da sala.
DELEGADO
Olha, eu vou seu franco. A nossa intenção era
pegar a mãe, ela cheira faz tempo, arruma confusão
com os vizinhos. Demos azar, nada de cocaína. Mas
tinha isso aqui (mostra a garrafa), e a menina
assumiu que era dela. E resistiu à prisão.
CHICO
Eu gostaria de ver o mandado de busca.
DELEGADO
Hoje não vai ser possível, o mandado está com o
escrivão.
CHICO
(aproximando-se) Olha, doutor, se eu fizer as
imagens da menina o senhor vai ficar numa situação
difícil. Se o senhor me impedir, digo que a prisão
é ilegal: houve invasão da casa e violência. O
senhor não acha que nós podemos resolver isso de
outra maneira? Afinal, o senhor só que tem essas
garrafas. (pausa) O senhor já mandou analisar o
conteúdo?
O delegado pega a garrafa, examina, balança a cabeça.
CHICO
E se não for droga nenhuma?
CENA 151 - SALA DA DELEGACIA - INTERIOR/NOITE
Chico e o delegado entram numa sala pequena. Lisa está sentada
numa cadeira, algemada, em frente a uma mesa. Um policial está de
pé perto dela. O rosto de Lisa está todo arrebentado,
principalmente um dos olhos. Ela olha para a frente,
inexpressiva. Não reage à entrada de Chico.
DELEGADO
Ela caiu e machucou olho.
Chico está tão chocado que não consegue falar.
DELEGADO
Tião, solta a moça.
Tião solta as algemas. Lisa continua sentada.
CHICO
O senhor promete que o assunto está encerrado.
O delegado assente, com um gesto. Chico ajuda Lisa a se levantar.
Ela olha pra ele, reconhece-o, mas continua calada. Caminha
devagar ao lado de Chico, rumo à porta.
CENA 152 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
Lisa está sentada numa poltrona, com o mesmo olhar perdido de
sempre. Aparentemente perdeu o contato com a realidade. Carolina
e Chico conversam com Dilma.
CHICO
E ela não reage?
DILMA
(muito triste) Não. Fica aí, quieta, olhando pra
frente... Eu tenho que dar comida, levar no
banheiro...
Dilma começa a chorar. Chico olha o relógio, parece ansioso.
CHICO
Talvez ela precise tratamento.
DILMA
Que tratamento?
CHICO
Psiquiátrico.
Carolina e Dilma se olham, surpreendidos pela posição de Chico.
DILMA
Eu tentei uma vez, mas vocês não deixaram.
CHICO
É diferente. A senhora tava querendo proteger o
mundo da Lisa. E agora ela é que precisa proteção.
Chico olha outra vez o relógio. Levanta.
CHICO
Nós temos que ir, Carolina. Dona Dilma, se a
senhora precisar de alguma coisa, inclusive algum
tipo de ajuda financeira, por favor, nos procure.
Chico aproxima-se de Lisa.
CHICO
Outra hora a gente volta.
CENA 153 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE
Sob uma chuva leve, Andrew discursa em um palanque. É um comício
da Frente Democrática. CANDIDATOS A VEREADOR e alguns
OPORTUNISTAS se aglomeram atrás de Andrew, tentando pegar lugar
nas imagens de TV. A equipe de Chico grava o comício.
ANDREW
... A presença da equipe de tevê do meu principal
oponente...
Andrew aponta para a equipe de Chico. Explode uma vaia. Algumas
pessoas jogam bolas de papel e copos na equipe. Chico diz pro
cinegrafista gravar tudo.
ANDREW
Calma! O que eles querem é exatamente nos
provocar, criar confusão. A elite se protege
usando a classe média. Eles querem mostrar ao
eleitor de classe média, à dona de casa, ao
pequeno empresário, que nós, da plebe, somos
desordeiros, que nós iremos trazer o caos social.
Fazem isso para esconder que o caos social, a
miséria, a violência, o desemprego, já estão aí,
companheiros. (aplausos) Fazem isso para esconder
que é esta elite que está aí, comandando este
país, este estado e esta cidade desde que eles
existem, é esta elite a responsável pela miséria,
pela violência, pelo desemprego e pela fome!
(aplausos) Esta elite, que vampiriza o povo
brasileiro...
Um homem, JÚLIO, bem perto do palanque, no meio do público,
começa a gritar.
JÚLIO
Sai, ô comunista! Ateu!
ANDREW
... (meio desconcentrado) é esta elite,
predatória.
JÚLIO
Baderneiro!
Um grupo de SEGURANÇAS, com a camiseta de Andrew, aproxima-se de
Júlio, que grita. Começa uma pancadaria. Os seguranças,
especialmente um, GILSON, são muito violentos e massacram o
sujeito. Chico grava todas as imagens.
ANDREW
Calma, companheiros! Calma!
CENA 154 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
Chico chega, cheio de fitas. Carolina está na ilha.
CHICO
(muito excitado) Receberam o meu recado?
CAROLINA
Chico...
CHICO
Preciso de pelo menos dois minutos. Quebrou o
maior pau no comício deles, tenho imagens
incríveis!
CAROLINA
Chico.
Chico pára e percebe que Carolina não está com a cara boa.
CHICO
Que foi, Carolina? Morreu alguém?
Carolina fica parada olhando para Chico.
CENA 155 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/NOITE
Velório. Algumas PESSOAS ocupam uma capela do cemitério. Os
rostos são tristes e encaram Chico, que passa por eles em direção
à capela, com aquele respeito excessivo dos velórios. Chico
entra, aproxima-se do caixão e observa, através do vidro, o rosto
do Velho.
Ele tem um curativo na testa e está bastante maquilado. Dona
Miriam Junqueira, aquela antiga jornalista das linguodentais
fricativas, aproxima-se de Chico.
DONA MIRIAM
Deve ter sido o próprio motorista ou alguém que
passava, gente pra fazer uma maldade é que não
falta. Ele saiu do restaurante naquele estado,
você sabe... Não tinha nenhum dinheiro, tava com a
roupa toda suja. Os amigos viram ele pegar o táxi.
Chico se distrai e começa a olhar em volta, mas dona Miriam
continua falando, compulsivamente.
DONA MIRIAM (OFF)
Foi encontrado numa vila lá no fim do mundo, perto
de Cachoeirinha. Todo machucado, passou a noite no
sereno, coitado, um moço de tanto talento. Não
resistiu, a noite foi muito fria, ele já tinha o
físico muito enfraquecido. Sabe como é. A bebida.
Coitado, descansou.
Andrew entra na sala. Sua chegada causa alguma agitação. Andrew
cumprimenta os PAIS DO VELHO. Chico sai da sala, tentando evitar
um encontro.
CENA 156 - CORREDORES DO CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE
Chico sai do banheiro dos homens. Caminha pelo corredor do
cemitério, meio perdido. As paredes estão cobertas por túmulos,
com as fotos dos mortos e algumas flores de plástico. A luz
trêmula de uma fluorescente com mau contato deixa o cenário ainda
mais fúnebre. Chico dobra uma esquina e se vê a poucos passos de
Andrew, que se aproxima. Todo o diálogo se dá sob a vigilância
atenta dos mortos nos retratos.
ANDREW
(secamente) Chico.
CHICO
Tudo bem?
ANDREW
Tudo bem. E você?
CHICO
Tudo bem.
Andrew passa por Chico, vai se afastando, pára.
ANDREW
Eu queria te avisar de uma coisa, como é que se
diz... em nome dos velhos tempos. Você sabe que só
eu e o Davi temos alguma chance. E eu nem comecei
a usar o que eu tenho contra ele. Você já fez um
grande trabalho trazendo ele até aqui. Caia fora
antes do debate, se puder.
CHICO
(rindo) Andrew, você me conhece o suficiente pra
saber que eu só jogo pra ganhar.
ANDREW
Principalmente se o jogo for a dinheiro.
CHICO
Engano seu, o dinheiro é só uma desculpa. Eu não
gosto é de perder. Me ensinaram que os mocinhos
sempre ganham.
ANDREW
E você acreditou? (ri) Na vida real os mocinhos
perdem quase todas. Quase. Esta eleição os
mocinhos vão ganhar. E os anchietanos vão perder.
Vai saindo. Chico sai atrás dele, irritado.
CHICO
Você não entende nada de vida real, Andrew. Você
entende de estratégias, de aparências e de boas
intenções. Mas você nunca entendeu nada da vida
real. A vida real tem pessoas e você não gosta
muito das pessoas, Andrew, elas às vezes não se
encaixam nas sua lógica perfeita. Aí você pega as
pessoas, classifica e se livra delas. O Velho era
um "vendido", lembra? O Abraão "um desbundado", a
Lisa e o Luciano eram uns "porra-loucas". E eu sou
"anchietano" E você, Andrew? O que você é?
Andrew não pára de caminhar e fala sem olhar para Chico.
ANDREW
Mantenha a discussão no plano político,
companheiro. Você está sem argumentos.
CHICO
Plano político é muito bom. Eu procurei você,
muitas vezes, telefonei, deixei recado. Mas os
anchietanos não faziam mais parte da sua
estratégia. (pausa) Eu encontrei a Sílvia, lembra
dela?
Andrew pára e encara Chico.
ANDREW
O que é, Chico? O que você quer? Aliviar sua culpa
cristã em cima de mim?
CHICO
Ela costumava ser a mãe da sua filha. Da sua filha
você lembra? Clarissa, é o nome dela. A Sílvia me
disse que você não vê a sua filha há cinco meses.
Ela pediu pra avisar que a Clarissa teve caxumba.
ANDREW
Você escolheu o seu lado, Chico, e está sendo
muito bem pago pra isso. Vá em frente.
CHICO
Você só consegue raciocinar dividindo o mundo em
dois, Andrew, e isso não tem nada a ver com a vida
real.
ANDREW
Quem dividiu o mundo em dois não fui eu. Quando eu
nasci ele já era assim. E eu nasci no lado errado,
no lado sujo, sem água, sem esgoto, sem ar
condicionado. Sem futuro. Mas o futuro a gente
inventa, Chico, e eu vou inventar o meu. Fique com
o Davi. De qualquer jeito, os anchietanos acabam
jogando sempre no mesmo time.
Andrew se afasta. Chico fica parado, olhando.
CENA 157 - ENTERRO - EXTERIOR/DIA
O cortejo segue o enterro do Velho. Chico, Andrew e um grupo de
PESSOAS segue o caixão pelas galerias do cemitério.
CHICO (OFF)
O Velho foi um jornalista da pesada. Anistia
Internacional, Jornal Movimento, Pasquim,
Coojornal, você conhece o tipo. Há uns cinco anos
encheu o saco de tudo, foi pros Estados Unidos,
lavar prato, varrer chão. Conheceu uma mexicana,
acabou trabalhando num posto do correio em "El
Paso", no Texas. Os mexicanos com visto temporário
nos Estados Unidos só podiam deixar o país e
voltar se tivessem um aviso de problemas de saúde
com a família. O aviso tinha que vir do México,
por telegrama, e falar da saúde de algum parente
direto. Óbvio que todos forjavam o tal telegrama
pra poder visitar a família. Pra economizar, os
cucarachas mandavam pro posto do correio de El
Paso sempre o mesmo texto, tarifa econômica até
dez letras: MAMA'S GRAVE. A função do Velho era
arquivar e catalogar as centenas de telegramas com
aquele texto: MAMA'S GRAVE. A mãe está grave. Os
americanos achavam aquilo muito estranho, porque
eles liam "MAMA'S GREIV": o túmulo de mamãe. O
Velho guardou uma pilha de telegramas e alguns
dólares, voltou ao Brasil e abriu um bar com esse
nome, "MAMA'S GRAVE". Ele forrou uma parede do bar
com os telegramas. O bar estava falido, acho de
tanto ele beber o estoque. Ontem ele bebeu mais
que o normal, entrou num táxi sem dinheiro e foi
achado num valão em Cachoerinha, nu e com duas
costelas quebradas. Morreu ao dar entrada no
hospital de pronto-socorro. Isso é parte daquilo
que o Andrew chama de "a vida real".
CENA 158 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA
Andrew dá entrevistas para vários repórteres, na saída do enterro
do velho.
ANDREW
Eu não vim aqui para falar de política, eu vim
prestar uma última homenagem ao Velho. Eu aprendi
muito de jornalismo com ele, foi um professor para
todos nós. Sempre combateu pela liberdade de
imprensa, pelos mais humildes, vai deixar uma
lacuna difícil de ser preenchida.
REPÓRTER
Alguma estratégia especial para o último debate?
ANDREW
Não. Nós chegamos até aqui simplesmente dizendo a
verdade, dizendo aquilo que todos os
trabalhadores, estudantes e donas-de-casa já
sabem: que esta cidade precisa de gente honesta e
que trabalhe pelo interesse da maioria.
CENA 159 - ESTACIONAMENTO DO CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA
Chico e Luciano estão saindo do cemitério.
LUCIANO
A situação ficou insustentável. O Ibarri sumiu.
CHICO
O Ibarri é aquele teu sócio uruguaio?
LUCIANO
Eu descobri, entre outras coisas, que ele era
Colombiano.
Luciano conduz Chico para o seu carro.
CENA 160 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/DIA
Chico e Luciano no carro em movimento, Luciano dirigindo.
LUCIANO
Eu tenho que assumir todas as dívidas da padaria.
Tenho que vender a minha parte na produtora.
CHICO
Agora? No meio da campanha?
LUCIANO
Agora. Se eu esperar mais um pouco, todos os
cartórios me protestam e eu tenho que pedir
falência. E aí a coisa se complica, porque pode
atingir a produtora.
CHICO
E quem vai querer comprar?
LUCIANO
O Davi. Pela quinta parte do que vale.
CHICO
Tá louco, Luciano? Eu não vou ser sócio do Davi.
LUCIANO
Eu não tenho alternativa. Chico, a verdade é que o
Davi é um canalha. Talvez ele tenha planejado tudo
com o Ibarri.
CHICO
E você quer que eu fique sócio de um canalha?
LUCIANO
Se você quiser, podemos tentar uma última jogada.
Você larga tudo, diz que vai abandonar a campanha.
Ele fica apavorado e admite pagar a parte do
Ibarri.
CHICO
O que tem a ver a campanha com a padaria? Ele
contrata outro cara pro meu lugar, não nos paga o
que deve e ainda pode alegar que nós quebramos o
contrato.
LUCIANO
É, é um risco. Se eu tivesse tempo, esperava o
final da campanha. Se a gente ganhar, acho que ele
paga. Mas se a gente perder...
CHICO
Luciano, eu não posso assumir o teu prejuízo da
padaria só porque você acha que...
LUCIANO
Eu não acho nada. Eu tenho certeza. Chico, o Davi
é um canalha.
CHICO
Há pouco você disse que achava. Agora tem certeza.
LUCIANO
Chico, eu estou sendo o mais claro possível: eu
tenho que vender a minha parte na produtora, senão
tô morto. Morto e enterrado.
CHICO
(vendo algo no retrovisor) Pro Davi você não vai
vender.
LUCIANO
Então acha um outro comprador.
CHICO
Eu. Eu vou comprar. (apontando) Tem um táxi aí
atrás.
Luciano vê o táxi e começa a fazer sinal.
LUCIANO
Você não tem dinheiro.
CHICO
Eu arrumo.
LUCIANO
(parando o carro) Amanhã é o meu último prazo.
CHICO
Então amanhã você me cobra. Agora eu vou preparar
o debate.
Chico sai do carro. Luciano vê o amigo entrar no táxi.
CENA 161 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
Andrew, Davi, Gabriel e dois outros CANDIDATOS preparam-se para o
debate final na TV. Cada um está de pé em um púlpito. O cenário
tem um logotipo "Eleições 89". Chico está próximo de Davi e lhe
dá algumas instruções. O ASSISTENTE DE ESTÚDIO faz sinal de que o
programa vai recomeçar. Chico e os ASSESSORES saem.
APRESENTADORA
Conforme as regras estabelecidas para este debate,
neste bloco os candidatos fazem perguntas um para
o outro. A primeira pergunta, por ordem de
sorteio. É do candidato da Frente Democrática,
doutor Andrew.
ANDREW
A minha pergunta vai para o candidato da Aliança
Liberal. Eu gostaria de perguntar ao doutor Davi
qual a opinião dele sobre o uso de drogas, se ele
usa ou já usou drogas.
DAVI
Não uso e nunca usei drogas de nenhum tipo.
(pausa)
APRESENTADORA
O senhor ainda está no seu tempo, doutor Davi.
DAVI
Eu já respondi à pergunta.
Andrew fala fora de quadro.
ANDREW
O que acha sobre o uso?
DAVI
Ah, sim. Eu não sou juiz de ninguém. Acho que os
viciados devem ser tratados e que o tráfico deve
ser combatido. O tráfico resiste porque é
acobertado pelos políticos tradicionais, cúmplices
dos traficantes. É preciso aparelhar a polícia,
pagar salários dignos aos policiais. Os
traficantes hoje estão melhor aparelhados que a
polícia. Se o estado se preocupasse mais com a
segurança, a saúde, a educação, e menos em manter
empresas deficitárias, poderia combater mais
diretamente o narcotráfico.
ANDREW
E como o senhor explica a apreensão pela polícia
federal, em sua propriedade (mostrando um
documento), a fazenda Santa Fé, na fronteira com a
Argentina, de oitenta quilos de cocaína no avião
prefixo PT-084, de propriedade de Lúcio Alvarez
Ibarri, sócio na empresa "Lucky Bread Panificadora
Limitada" de um dos patrocinadores de sua
campanha, o empresário Luciano de Almeida. Eu
tenho aqui todos os documentos que comprovam a
apreensão. Os jornais, talvez atendendo a pedidos
de um grande anunciante como o senhor, não
noticiaram. Isso foi em maio do ano passado. O
senhor poderia esclarecer o fato aos seus
eleitores.
DAVI
(um pouco tenso) É muito simples. Um avião de um
sujeito que eu nunca vi e não conheço, com o qual
eu não tenho ou tive qualquer relação, pessoal ou
comercial, este avião, transportando drogas,
invadiu o espaço aéreo brasileiro e pousou na
pista de pouso de uma das... de um sítio que eu
tenho. A polícia federal apreendeu a droga, o
avião e os traficantes estão presos. Eu não tenho
nada a ver com isso, não fui acusado nem indiciado
de nada. O senhor está me acusando de alguma
coisa? (pausa) Porque se o senhor está me acusando
eu vou lhe exigir que prove suas acusações, ou
então eu vou lhe acusar de calúnia, injúria e
difamação!
Toca uma campainha, indicando que o tempo acabou.
ANDREW
Eu não lhe acusei de nada...
APRESENTADORA
É a sua vez de perguntar, doutor Davi. Pela ordem,
a pergunta do candidato da Aliança Liberal.
DAVI
Pois eu vou retribuir a gentileza e perguntar ao
doutor Andrew.
Os outros candidatos acham graça.
DAVI
Eu gostaria que o senhor explicasse, doutor
Andrew, a atuação do pessoal da sua segurança no
comício deste sábado. As imagens daquela
selvageria os telejornais mostraram, eu nem
preciso relembrar. Eu estive no hospital visitando
o seu Júlio, aquele senhor, pai de família, que
esteve no seu comício e cometeu o crime de
expressar a sua opinião. Ele perdeu dois dentes e
talvez fique cego de um olho. É isso que o senhor
chama de convivência democrática?
ANDREW
Não, é isso que eu chamo de armação. E quem tem
que explicar é o senhor. Primeiro o senhor tem que
explicar o que a sua equipe de televisão estava
fazendo no meu comício. Porque as imagens que os
telejornais mostraram, como o senhor diz, foram
fornecidas pela sua equipe de TV, estrategicamente
colocada para documentar a briga. Em segundo
lugar... (pega um envelope) o senhor tem que
explicar...
Andrew mostra duas fotos. Numa, tirada do vídeo do comício,
aparece o Segurança com a camisa do Andrew chutando o seu Júlio.
Na outra, o mesmo Segurança, num comício, ao lado de Davi. Chico
também aparece nesta foto.
ANDREW
...o que este homem, Gilson Alves, o mesmo que
agrediu selvagemente a seu Júlio, o que este homem
fazia na sua passeata, poucos dias antes. Isso se
chama armação!
CENA 162 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
Carolina chega. Chico está vendo o debate, agora reproduzido num
telejornal.
DAVI
(gritando) Isso é um absurdo! Meu oponente quer
justificar a selvageria da sua segurança,
transferindo a culpa para mim. É muita cara de
pau! Eu nunca vi este sujeito na minha vida...
Apresentador do jornal.
APRESENTADOR
E aí, Zé Antônio. O debate pode alterar o
resultado da eleição?
ZÉ ANTÔNIO
Veja bem, faltando poucos dias para a eleição a
situação realmente esquentou com as denúncias de
Andrew. Davi foi pego de surpresa durante o
debate. E o tal segurança, João Alves, parece que
saiu do Brasil. Amanhã é o último dia da campanha
na televisão e a vantagem de Davi é pequena...
Chico desliga a TV.
CAROLINA
Foi bem ruinzinho.
Chico ri.
CAROLINA
Você sabia da armação do comício?
CHICO
(estranhando a pergunta) Óbvio que não, Carolina.
CAROLINA
E o que você estava fazendo lá?
CHICO
A assessoria pediu que eu gravasse o discurso
inteiro, pra mostrar o lado mais furioso do
Andrew. (pausa) Fazia sentido.
CAROLINA
E aí eles armaram a briga. São uns cretinos!
CHICO
Pode ser mentira.
Carolina estranha.
CHICO
Pode ser a armação da armação. Você não viu como
era boa a foto do Davi com o segurança? O cara
pode ter ido, a mando do Andrew, antes no comício
do Davi, pra ser fotografado. Depois ele vai no
comício do Andrew, com a camisa do Andrew, e cobre
de porrada um eleitor do Davi. Aí a gente filma e
denuncia. E eles mostram a foto, dizem que o cara
é da turma do Davi e nos desmoralizam. Xeque. Mas
ainda não foi o mate.
Carolina fica alguns segundos paralisada, assombrada com o
raciocínio tortuoso de Chico.
CAROLINA
Você não tá falando sério... O cara sumiu do
Brasil, largou tudo, deve ter ganho uma fortuna.
CHICO
De quem?
CAROLINA
Do Davi, é óbvio, Chico!
Carolina larga algumas fitas, preenche uma planilha.
CAROLINA
Saiu a pesquisa?
Chico faz que sim.
CAROLINA
E aí?
CHICO
O Andrew ficou na mesma. O Davi caiu um pouco.
CAROLINA
Um ponto?
CHICO
Um POUCO. Quatro pontos.
CAROLINA
Quatro! A diferença ficou...
CHICO
Três pontos.
CAROLINA
Isso antes do debate.
CHICO
Antes do debate.
CAROLINA
Então o Davi já era, acabou.
CHICO
Ainda não. Falta um programa, amanhã.
Carolina ri. Levanta.
CAROLINA
Você não pode mudar o caráter do Davi com dez
minutos de vídeo-tape.
CHICO
Mas talvez eu possa mostrar o do Andrew.
CAROLINA
Você já fez bastante, Chico. Vamos embora.
CHICO
Quer ver o que eu já editei?
Não espera resposta. Aciona a máquina que começa a rodar o VT.
São imagens do comício. Gilson Alves surra o sujeito, caído no
chão, pessoas gritam e atiram coisas na câmara. As imagens são
intercaladas com um amanhecer na cidade, destacando o prédio da
prefeitura. O gabinete do prefeito, a decoração clássica do
prédio e a tranqüilidade da manhã formam um grande contraste com
a fúria da turba no comício.
LOCUÇÃO (OFF)
A cidade vai escolher seu prefeito, o homem que
vai ocupar esta casa nos próximos quatro anos.
Este homem precisa ter preparo, tranqüilidade,
moderação. Este homem precisa ser DAVI. Ou você
entregaria a cidade a este homem?
Da surra de Júlio, fusão para o rosto enfurecido de Andrew no
discurso. Fim da edição.
CAROLINA
Mantenha a plebe longe dos cristais de Versalhes.
Muito bom. (pausa) Mas não é o suficiente, você
sabe disso. Você fez o possível, Chico, vamos
embora. São quase duas da manhã.
CHICO
Eu vou ficar mais um pouco.
Carolina levanta, vai saindo.
CAROLINA
Eu vou visitar a Lisa amanhã. Você não quer ir
junto?
CHICO
Acho que não vou poder.
CAROLINA
Algum recado pra ela?
CHICO
Mama's grave.
Carolina não acha graça. Sai. Chico fica sozinho na ilha. Começa
a rever o final da edição, o rosto enfurecido de Andrew, o homem
caído no chão, sendo chutado.
LOCUTOR
...ou você entregaria a cidade a este homem?
Chico congela a imagem no rosto de Andrew. Pega uma fita na
gaveta. Põe na máquina. Posiciona a fita. Aperta o botão
"PREVIEW". Entra a imagem final da edição.
LOCUTOR
...ou você entregaria a cidade a este homem?
Surge, numa continuação da edição, a imagem de Andrew no debate.
ANDREW
Eu gostaria de perguntar ao meu oponente qual a
opinião dele sobre o uso de drogas, se ele usa ou
já usou drogas.
Andrew, alguns anos mais moço, no estúdio da TV, com um baseado
na mão.
ANDREW
Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades
democráticas e por uma melhor distribuição de
maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la
marijuana jamás!
A edição intercala as duas imagens de Andrew.
ANDREW
...sobre o uso de drogas / por uma melhor
distribuição de maconha! / uso de drogas / maconha
/ se ele usa ou já usou / maconha / sobre o uso de
drogas / Hay que endurecerse, pero sin faltar la
marijuana jamás!
Congela na expressão de chapado de Andrew.
LOCUTOR
Você entregaria a cidade a este homem?
Chico fica alguns segundos avaliando o efeito devastador da
edição. As máquinas voltam aos pontos originais, as imagens da
pancadaria e a pergunta de Andrew no debate. O botão "EDIT" fica
piscando em vermelho. Ao seu lado, apagado, o botão "CANCEL".
Chico fica olhando o botão piscar. Chico aperta o botão "EDIT".
CENA 163 - IGREJA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
Um bando de MENINOS E MENINOS estão na fila do confessionário.
Eles esperam encostados na parede, em silêncio. Quando um
desocupa o confessionário o outro vai.
CHICO (OFF)
No colégio, toda primeira sexta-feira do mês a
gente tinha que se confessar. A gente ficava em
fila e entrava num lugar apertado e falava com
alguém que a gente não via, como num banco 24
horas. Nós inventávamos todos os pecados. O
roteiro dos meus pecados inventados era
subliteratura infantil: bati na minha irmã, roubei
uma fruta do quintal do vizinho e - para dar
alguma credibilidade - disse palavrão. Três
Avemaria, três Santoanjo, três Painosso, seguinte!
Inventei um jeito de rezar mais rápido, só com os
melhores momentos de cada reza. Ave convosco,
bendito seus frutos, venha a nós o vosso reino,
meu zeloso seatime confiou agora e na hora de
nossa morte amém. Pagava minha dívida antes mesmo
de sair da igreja e podia começar a pecar de novo,
do zero. São os milagres da fé. Eu ainda não sabia
que inventar pecados é o mesmo que cometê-los.
Quase o mesmo.
CENA 164 - COMITÊ DE ANDREW - INTERIOR/NOITE
Andrew dá entrevista para vários REPÓRTERES. Ele parece estar
muito tranqüilo.
ANDREW
Foi uma grande vitória, uma vitória dos
trabalhadores, da sociedade organizada. Nunca na
história desta cidade um candidato que
representava as classes populares teve uma votação
tão expressiva. Elegemos um grande número de
vereadores, quase que dobrando a nossa bancada. E
só não ganhamos a eleição majoritária porque no
último instante nossos adversários apelaram para
calúnias e difamações. A Frente Democrática
inclusive pretende recorrer até ao Supremo
Tribunal Eleitoral...
CENA 165 - ESTÚDIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE
Festa. Davi é carregado nos ombros da galera. Todos cantam o
jingle da campanha. As grandes letras D A V I foram arrancadas do
céu do estúdio e são erguidas pela TURBA como troféus de uma
batalha. Davi é colocado sobre um palanque improvisado. Pede
silêncio. Todos ficam quietos. Davi faz uma longa e emocionada
pausa.
DAVI
Meus amigos e minhas amigas. Eu creio...
Chico, num canto do estúdio, fecha os olhos, suspira. Davi
continua o seu discurso, mas Chico não escuta mais. A multidão
aplaude.
CHICO (OFF)
O ano era mil novecentos e oitenta e nove, Brasil,
e quase todas as pessoas tinham trinta anos. Ou
mais. Quase todas as pessoas estavam infelizes,
angustiadas, desiludidas.
CENA 166 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA
Lisa, sentada ao lado de Chico.
CHICO (OFF)
Ou mais. É muito perigoso inventar um futuro. Tem
sempre alguém que acredita. Aí você tem que
inventar outro, e outro, e outro, cada vez mais
rápido.
CENA 167 - COLÉGIO DE JOSÉ - EXTERIOR/DIA
Chico espera José na saída do colégio. José, um garoto de doze
anos, sai da escola conversando com amigos. José vê Chico e
oferece carona aos amigos. Todos aceitam e entram no carro.
CENA 168 - FRENTE DO EDIFÍCIO DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA
José desce do carro de Chico. Caminha em direção à porta de
casa. Carolina aparece para receber José. Chico abana mas ela não
retribui. Dá as costas e entra no prédio. José abana para Chico.
CHICO (OFF)
Sobre o passado, não tenha dúvida que as vidas do
herói, do canalha e do mártir são a mesma, com
três montagens diferentes. Ou três públicos
diferentes.
CENA 169 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Chico chega em casa, que está a maior bagunça, com uma pilha de
correspondência e jornais na frente da porta. Chico liga a TV. No
telejornal, festa dos partidários de Davi pelas ruas da cidade.
CHICO (OFF)
O primeiro livro que eu lembro é "O Conde de Monte
Cristo". Ficar milionário e se vingar de todos é
um futuro maravilhoso aos doze anos de idade.
Quase todos os livros infantis de sucesso falam de
ficar rico e se vingar. Quase todos os livros
adultos de sucesso também.
Chico abre a geladeira. Tem água, um ovo e uma lata de negativo.
Fecha a geladeira. Senta na frente da televisão. Já é noite. Fica
mudando de canal com o controle remoto: programas de auditório,
baixarias variadas, violência e sexo gratuito.
CHICO (OFF)
Outro futuro bastante popular é o "todos vão se
dar bem". Políticos, religiosos e os gentis
patrocinadores gostam muito deste futuro. É uma
ficção óbvia, ainda mais improvável que o Conde de
Monte Cristo. Mas não precisa de inimigos e,
portanto, é bom para os negócios.
Chico vai até a janela. Já é muito tarde, a rua está deserta. Tem
umas crianças tentando dormir na calçada.
CHICO (OFF)
O futuro mais normal no Brasil é "quase todo mundo
se dá mal, especialmente se tiver nascido pobre e
meio escurinho. Se for mulher, nordestino ou
deficiente, pior ainda". É claro que os gentis
patrocinadores detestam este futuro: é real,
injusto e não vai sair em vídeo.
Chico volta para a poltrona, senta na frente da tevê.
CHICO (OFF)
Você pode tentar inventar o seu futuro. Mas não se
preocupe demais. Em todos eles a gente morre no
fim.
A programação da TV chega ao fim. Aparece uma mulher para se
despedir.
MULHER
Estamos encerrando nossas transmissões esperando
reencontrá-lo amanhã. Um bom descanso para todos e
uma boa noite.
FIM
*****************************************************************
(c) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1993-1997
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
29/07/1997
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