Roteiro em modo texto: [ Download ]
               ANCHIETANOS
	               roteiro de Jorge Furtado,
	               Carlos Gerbase
	               e Giba Assis Brasil
	               primeiro tratamento - 11/02/1993
	               (formato de longa-metragem - não realizado)
projeto: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - CORREDOR DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
	Um corredor de colégio, largo, comprido e vazio. Azulejos na
	parede, basculantes, piso preto de pedra. Ouvem-se ao longe, um
	andar acima, passos que se aproximam. É um salto de madeira, e o
	som dos passos ecoa pelo colégio vazio. O ritmo muda quando os
	passos começam a descer a escada. O som cresce e se aproxima. Uma
	mulher GORDINHA, provavelmente uma professora, aparece no
	corredor, saindo da escada. Ela caminha alguns passos no corredor
	e some. Os passos agora descem a escada e se afastam. Ouve-se
	muito longe uma porta que abre e fecha. O corredor, largo,
	comprido e vazio, agora está vazio até de sons. Nada acontece.
Toca a sirene.
	Mil ADOLESCENTES explodem no corredor. Correm, riem, xingam,
	abanam, beijam, mascam, pulam, gaguejam, falam, coçam, apertam,
	sacodem, sentam, levantam, caminham, falam e, principalmente,
	gritam. São loiros, morenos, ruivos, sardentos, cheios de
	espinha, gordos, de aparelho, de boné, baixos, altos, de óculos,
	meninos, meninas, magros e brancos.
Toca a sirene.
	No corredor vazio, comprido, largo e silencioso, um copo de
	plástico quebrado é sacudido pelo vento.
CENA 2 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
	MAURÍCIO, um professor baixinho troncudo com cara de cavalo,
	vestindo um terno xadrez, termina de fazer a chamada dos alunos.
	               CHICO (OFF)
	               Eu lembro de um professor de alguma coisa que, no
	               primeiro dia de aula, acho que era segundo
	               ginasial, se apresentou com uma frase incrível:
	               MAURÍCIO
	               Meu nome é muito mau. Meu nome é Maurício.
	Os ALUNOS, todos meninos (entre eles CHICO, LUCIANO e EMÍLIO),
	ficam paralisados, olhando o professor Maurício, que começa a
	escrever uma série de coisas no quadro, muito animado. Ele tem
	gestos teatrais e parece excessivamente simpático.
	               CHICO (OFF)
	               Todos nós, cinqüenta pré-adolescentes idiotas e
	               cheios de espinhas, ficamos momentaneamente
	               paralisados pela súbita e coletiva revelação de
	               que um professor, adulto, responsável pela nossa
	               educação nos próximos oito meses, era muito mais
	               idiota que nós.
CENA 3 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR
	CHICO está caminhando por um estúdio de televisão, vazio, em
	frente a um grande céu aerografado. Magro, não muito alto, trinta
	anos, Chico tem a aparência de quem está cansado demais para
	conseguir dormir. Caminha olhando para o chão. O estúdio tem
	restos de uma festa, pratos plásticos, copos e garrafas,
	espalhados sobre mesas improvisadas.
	               CHICO (OFF)
	               Eu esqueci o nome de muitos professores que tive,
	               mas o nome do Maurício continua ocupando algum
	               arquivo morto do meu cérebro. O que prova que ser
	               idiota às vezes dá resultado.
Chico esbarra numa mesa. Um copo plástico cai no chão.
CENA 4 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
	Os alunos chegam para as aulas: descem de ônibus escolares,
	kombis e carros e vão entrando na escola. Os PAIS, as MÃES e as
	EMPREGADAS se despedem das crianças. Gritaria geral.
	               CHICO (OFF)
	               O ano era mil novecentos e sessenta e nove,
	               Brasil, e quase todas as pessoas que existiam
	               tinham dez anos. Todo mundo bem alimentado com
	               três refeições diárias, grapete, pastelina e
	               kibamba. É claro que, não muito longe dali, atrás
	               das sete montanhas, depois das sete florestas, na
	               casa dos sete anões, uma quadrilha de assaltantes
	               tomava conta do país. Hoje todo mundo sabe. Eu
	               fiquei sabendo quase dez anos depois. Até ali, nós
	               éramos o futuro do país do futuro.
CENA 5 - CLÍNICA - INTERIOR, DIA
	LISA sentada num banco de praça. Lisa, trinta anos, é bonita e
	triste. Chico está ao seu lado.
	               LISA
	               (cantando) Onde o arco-íris é ponte, onde vivem os
	               imortais...
CENA 6 - CASAS E TELEVISÃO (ARQUIVO)
	               LISA (OFF)
	               ... do trovão é deus guarda-mor, o barra-limpa, o
	               grande Thor!
	Bebês e crianças comendo na frente da televisão. Comem mingau,
	bolacha, arroz com feijão, sucrilhos, pão, bolo, doce, bebem
	leite, suco, coca-cola. Assistem de tudo: abertura de Thor,
	Vigilante rodoviário, Shazam e Xerife, Hebe, Família Trapo, Três
	patetas, Tom e Jerry, Silvio Santos, Jornal nacional, filmes de
	terror, comerciais.
Edição de trilhas de TV.
	               CHICO (OFF)
	               Eu gostava do Thor porque ele era imortal. O pior
	               era o Homem de Ferro, que era cardíaco. Achava
	               ridículo um super-herói cardíaco. Hoje não acho
	               mais.
	               LISA (OFF)
	               Eu lembro o nome do Vigilante rodoviário: tenente
	               Carlos. Eu lembro dos Incas Venusianos, do
	               Reizinho, dos Patrulheiros Toddy, do Perdidos no
	               espaço e dos três irmãos Cartwright, do Bonanza:
	               Adam, Little Joe e...
	A televisão desliga, fica só aquele pontinho luminoso no meio da
	tela.
CENA 7 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA
	Lisa, no banco de praça, não lembra o nome do terceiro irmão
	Cartwright.
	               LISA
	               Você lembra o nome do outro?
	               CHICO
	               Não.
Chico olha o relógio.
	               LISA
	               Eu também não. Eu passei a maior parte da minha
	               infância mudando de uma casa para outra. Mas eu
	               não lembro de casa nenhuma. Eu só lembro do que eu
	               via na televisão.
	Chico levanta. Eles estão num pequeno jardim interno, cercado de
	muros altos. Uma ENFERMEIRA caminha ao fundo.
	               CHICO
	               Eu preciso ir.
	               LISA
	               Eu sabia o nome e o jeito de todas as pessoas da
	               televisão e é só disso que eu me lembro, agora.
	               Toda a memória que me sobrou foi criada por
	               roteiristas americanos. (ri) A Carolina esteve
	               aqui esses dias. (pausa) Eu não lembro mais o nome
	               do terceiro irmão Cartwright. Não que isso tenha
	               alguma importância.
CENA 8 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
	Chico caminhando pelo estúdio. O fundo agora é uma multidão
	pintada na parede. Chico encontra um balão sobre a mesa. Pega o
	balão.
	               CHICO (OFF)
	               Nenhuma importância.  
CENA 9 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
	Chico, Emílio, Luciano e outros meninos observam a chegada de
	Roal no colégio. ROAL é um menino louro, com um topete enorme.
	Ele desce de um carrão com motorista.
	               CHICO (OFF)
	               Todos nós tínhamos dinheiro, o que não nos impedia
	               de odiar secretamente os que tinham mais dinheiro
	               que nós. E mais ainda o Roal, que, tendo mais
	               dinheiro que todos os outros, ainda ganhou um
	               mini-bug no concurso da Toddy. Logo o Roal foi
	               ganhar o mini-bug! Ali eu comecei a me tornar um
	               ateu marxista. E o penteado do cara então? Pelo
	               amor de deus! O cara era um completo imbecil!
	               Também, com esse nome: Roal. Pelo amor de deus!
	De repente, Luciano interrompe a brincadeira e aponta para um
	carro que chega ao estacionamento. Os guris correm para ver de
	perto. O carro estaciona. Dele desce um GORDO ENORME, com as
	naturais dificuldades de um gordo enorme ao sair de um carro.
	               CHICO (OFF)
	               Tinha um gordo que dava aulas de técnicas
	               comerciais. A gente fingia que aprendia a fazer
	               notas, descontos e faturas. O gordo era muito
	               gordo e o banco do carro dele era afundado no
	               chão. Era impressionante.
CENA 10 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
	A PROFESSORA DE INGLÊS, uma senhora baixinha, 50 anos, bate uma
	caneta na mesa para chamar a atenção dos alunos.
	               PROFESSORA
	               Atention, please... Listen: élefant!
	No quadro negro está escrito: "Elephant". Os alunos, todos
	meninos, respiram fundo, entediados. Luciano levanta a mão.
	               CHICO (OFF)
	               Quase sempre era o Luciano quem começava.
	               LUCIANO
	               Cavalo!
	               PROFESSORA
	               (rindo) No, no, no.
	               ALUNO 2
	               Vaca!
	               CHICO
	               Jumenta!
	               PROFESSORA
	               No, no, no.
	               CHICO (OFF)
	               O mais católico, quase sempre o Emílio, acabava
	               com a tortura.
	               EMÍLIO
	               Elefante.
A professora fazia um gesto de "That's it!".
	               CHICO (OFF)
	               E ela recomeçava.
	               PROFESSORA
	               (Escrevendo "Hippopotamus" no quadro)
	               Ráipopótamusss...
	               LUCIANO
	               Macaco!
	               ALUNO 2
	               Minhoca!
	               CHICO
	               Égua!
CENA 11 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE
	Chico acende alguns refletores do estúdio. Os refletores iluminam
	uma parede onde a palavra "DAVI" se repete dezenas de vezes, em
	relevo, formando uma retícula.
	               
	               CHICO (OFF)
	               Tinha um professor louco, de física, que parecia o
	               Hortelino do mundo bizarro, que além de tudo tinha
	               um assistente com um olho de vidro. O assistente
	               chamava a gente para o quadro-negro e a gente
	               nunca sabia para quem ele estava olhando.
CENA 12 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
	O ASSISTENTE do professor de física, com um olho de vidro, chama
	alguém ao quadro.
	               ASSISTENTE
	               Você! Você mesmo aí!
	               CHICO
	               Quem? Eu?
	Chico levanta-se e caminha para o quadro. A sala de aula agora
	tem MENINAS.
	               CHICO (OFF)
	               Isso foi em 72, quando eu tinha aula de física. E
	               aí já tinha meninas na escola. No início não, era
	               um colégio jesuíta, masculino. Aí os padres
	               compraram um outro colégio, só de meninas, e elas
	               entraram de bando na nossa aula. Quase rodei em
	               física. Quase que todos nós rodamos em física.
	Chico sobe na base de um gerador Van Der Graaf, uma espécie de
	banqueta de metal. O Assistente do professor explica alguma coisa
	para a classe mas Chico não ouve, fascinado pela visão das
	meninas, que olham todas para ele.
	               CHICO (OFF)
	               Todas elas eram lindas, maravilhosas, puras,
	               perfumadas, educadas, tímidas e, obviamente,
	               brancas. Esqueci de dizer isso: naquela época,
	               todos nós éramos brancos.
	O assistente liga o gerador Van Der Graaf. Os cabelos de Chico se
	arrepiam. As meninas morrem de rir.
CENA 13 - MUSEU DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
	A turma de Chico entra, caminhando em fila, no salão de
	exposições do museu da escola. Chico, 12 anos, troca olhares com
	Carolina através das vitrines. Eles se cruzam várias vezes,
	sempre separados por pacas, tatus e cotias empalhadas.
	               CHICO (OFF)
	               Eu me apaixonei por Carolina às duas e trinta e
	               oito da tarde de uma quinta-feira, nove de junho,
	               dia de Anchieta. Não me lembro o ano, acho que era
	               setenta e dois, mas foi numa aula de ciências, no
	               museu do colégio. Tinha uma aranha enorme, peluda,
	               e um monte de bicho empalhado no museu. Carolina
	               era linda como um Blastocerus Dichotomus, pura
	               como um Troquilídeo. Eu acho que agora bicho
	               empalhado deve ser politicamente incorreto, mas na
	               época ainda não tinham inventado a ecologia.
CENA 14 - CENÁRIO DE ALICE - INTERIOR/NOITE
	Um cenário de teatro infantil. CAROLINA, 25 anos, bonita, um
	jeito de menina acentuado pelo figurino da peça, dá o texto final
	de "Alice no País das Maravilhas".
	               CAROLINA
	               Ao final imaginou a irmã já transformada em mulher
	               adulta, e como ela conservaria, através dos anos,
	               o coração simples e afetuoso da época de sua
	               infância. Ela estava cercada de outras crianças e
	               fazia os olhos delas brilharem quando lhes
	               constava histórias curiosas, talvez até mesmo o
	               sonho do País das Maravilhas, de há muito tempo
	               atrás.
	Chico, com uma criança de 2 anos (JOSÉ) no colo, LUCIANO e
	ANDREW, no meio de uma platéia de mães com seus filhos, batem
	palmas. Os outros atores entram em cena. Carolina agradece.
CENA 15 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
	No quadro-negro, alguém escreve o nome WITTGENSTEIN. É ABRAÃO, um
	professor baixinho, precocemente careca e de fala mansa, que não
	tem qualquer controle sobre o caos à sua volta, e não parece se
	importar muito com isso. Ele fala fazendo muito gestos e sempre
	olhando para cima, o que lhe confere uma certa dignidade e impede
	que ele enxergue o óbvio: não há um só aluno prestando atenção ao
	que ele diz. Uma menina se penteia com o auxílio de um espelho,
	um menino desenha uma mulher nua no tampo de sua classe, um grupo
	se diverte com um joguinho qualquer. Ao fundo, de pé, quatro
	meninos conversam animadamente, sem ao menos se preocupar em
	baixar a voz.
	               CHICO (OFF)
	               Eu lembro também do Abraão, o professor de
	               filosofia, isso já no científico. Eu nunca entendi
	               como foi que um judeu foi dar aula de filosofia
	               num colégio jesuíta. A gente aproveitava as aulas
	               dele para jogar fruta-flor, passar bilhetinhos ou
	               conversar sobre qualquer coisa. Só muitos anos
	               depois eu fui descobrir o que era filosofia.
	De repente, uma coisa verde e gosmenta jogada não se sabe de onde
	explode no quadro, cobrindo parte de um esquema de história da
	filosofia e respingando no rosto e na camisa de Abraão. Ele
	interrompe o seu discurso sobre Wittgenstein e, pela primeira
	vez, encara a turma. Silêncio total.
	               CHICO (OFF)
	               Teve uma única vez em que o Abraão conseguiu ser
	               ouvido na aula. Ali a gente podia ter aprendido
	               alguma coisa de filosofia. Mas ele resolveu contar
	               uma história.
	Abraão, calmamente, tira os óculos e limpa-os com um lenço.
	Depois, recoloca os óculos e volta a encarar a turma, que
	permanece em absoluto silêncio.
	               ABRAÃO
	               Cinco anos atrás, na melhor escola técnica de
	               Israel, os alunos pediram ao diretor para não ter
	               mais aulas de filosofia, história e ciências
	               sociais. Afinal, eles iam ser engenheiros,
	               técnicos, matemáticos, e achavam aquilo tudo uma
	               perda de tempo.
	Pausa. Os alunos todos olham para Abraão, concordando com seus
	colegas israelenses, mas sem se mexer.
	               ABRAÃO
	               O diretor disse que concordava em mudar o
	               currículo, desde que os alunos fizessem um
	               trabalho extra nas férias: eles tinham que
	               apresentar o projeto de um grande sistema de
	               encanamento ligando o norte ao sul de Israel, e
	               que fosse capaz de transportar por dia três mil
	               litros de sangue.
Nova pausa. Alguns alunos se olham, curiosos com a história.
	               ABRAÃO
	               Os alunos se dividiram em grupos: alguns estudaram
	               técnicas de conservação de sangue, outros
	               pesquisaram qual seria o melhor material para
	               fazer os canos, que minérios do país poderiam ser
	               usados, como aproveitar o relevo da região, como
	               bombear o sangue de um lugar pro outro. Quando
	               acabaram as férias, entregaram o projeto pro
	               diretor.
	Pausa. Abraão finge que tem o projeto nas mãos e o examina,
	virando as páginas com atenção.
	               ABRAÃO
	               O diretor examinou o projeto e disse: "Muito bem,
	               o projeto de vocês é ótimo. Mas eu acabo de
	               resolver que, a partir deste semestre, vocês vão
	               ter O DOBRO de aulas de filosofia, história e
	               ciências sociais."
	Pausa. Abraão encara os alunos, procurando um único que tenha
	entendido a atitude do diretor. Mas estão todos perplexos. Abraão
	sorri e se prepara para explicar.
	Neste momento, toca a campainha. Os alunos, imediatamente,
	abandonam a perplexidade e saem correndo da sala. Abraão fica
	parado, impotente. A sala se esvazia. Apenas CAROLINA permanece
	sentada, olhando para Abraão, como que entendendo tudo. Chico
	pára na porta e fica esperando Carolina. Abraão olha para ela por
	alguns instantes e depois vira-se para juntar suas coisas e ir
	embora. Carolina fica sozinha na sala.
	               CHICO (OFF)
	               Uma semana depois, Carolina encontrou o Abraão no
	               bar do colégio e perguntou por que o diretor da
	               escola de Israel resolveu fazer aquilo. Ele olhou,
	               deu um sorriso e disse que, se ela tinha
	               perguntado, era porque não precisava mais da
	               resposta. (pausa) Carolina podia ter se apaixonado
	               por ele. Mas ele era judeu.
CENA 16 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE
	No estúdio, Chico está deitado no chão, sobre uma cama
	improvisada de cobertores e folhas de isopor. Ao fundo, a
	multidão aerografada. Carolina examina um monte de fitas, anota
	dados das fitas numa prancheta.
	               CHICO
	               Carolina, você quer me ouvir?
	               CAROLINA
	               Não, Chico, não quero te ouvir. Eu já te ouvi
	               demais. Você tem sempre uma belíssima
	               justificativa pra tua covardia, você tem sempre
	               uma ótima desculpa pra fazer o que é mais fácil,
	               mais cômodo e mais conveniente.
	               CHICO
	               Carolina, isso é um trabalho, um emprego. Você
	               acha tão vergonhoso ser pago pra fazer um
	               trabalho?
	               CAROLINA
	               (rindo) Ah, Chico, até parece que você acredita
	               nisso. Você devia ter sido ator. Você seria um
	               ótimo ator. E sabe por que você não foi? Por que
	               você tem medo, medo de se expor.
	               CHICO
	               Carolina, por favor. Se você quer ir embora, se
	               você quer abandonar mais um trabalho pela metade,
	               tudo bem, o problema é seu. Mas eu vou ter pedir
	               favor: não me analisa.
	               CAROLINA
	               Tudo bem, então eu vou lhe responder
	               profissionalmente. Você me convidou para trabalhar
	               na produtora durante a campanha. Eu agradeci e
	               aceitei, eu precisava da grana. Eu já fui paga,
	               agora eu vou embora. Profissionalmente.
	               CHICO
	               E agora que a campanha terminou e a gente vai
	               poder tocar os nossos projetos, você vai embora.
	               Por quê?
	               CAROLINA
	               Problema meu.
	               CHICO
	               Então me responde como amiga.
	               CAROLINA
	               Como amiga? Tudo bem, eu vou lhe responder como
	               amiga. Eu vou me embora por que você é um canalha.
	               Você pensa que é uma ilha cercada de canalhas,
	               todos os canalhas pensam isso.
	               CHICO
	               (erguendo-se) Deixa ver se eu entendi... Nós
	               fizemos um trabalho, juntos, um trabalho que tinha
	               o mesmo objetivo. Mas eu sou um canalha por fazer
	               melhor aquilo que precisava ser feito.
Carolina termina de arrumar as fitas e anotar os dados.
	               CAROLINA
	               Você fez mais do que precisava ser feito. E você
	               gostou de fazer. Você só faz o que gosta.
	               CHICO
	               Quem disse que eu gosto?
Vai saindo.
	               CAROLINA
	               Você faz e parece gostar. Pra mim é o suficiente.
	               Tchau, Chico.
Chico fica sozinho no estúdio vazio.
CENA 17 - BIBLIOTECA - INTERIOR/DIA
Chico está sentado na biblioteca, lendo Asterix.
	               CHICO (OFF)
	               Eu me apaixonei por Lisa às dez e vinte cinco de
	               uma manhã de outono, não lembro o dia. Eu estava
	               lendo Asterix na biblioteca. A sobrevivência nos
	               recreios era mais difícil que na floresta de
	               Carnutes, onde os irredutíveis gauleses faziam
	               tremer os imperialistas romanos. Eu achava que a
	               biblioteca era um território livre, silencioso e
	               seguro. Eu ainda não sabia como os livros podiam
	               ser perigosos.
	LISA senta na outra ponta da mesa. Chico levanta os olhos. Ela
	sorri, ele também. Ele volta a olhar para o livro.
	               CHICO (OFF)
	               Ela está lendo um livro em francês. Acho que é em
	               francês. Vou perguntar. Vou perguntar porra
	               nenhuma, vou ficar na minha. Vou fingir que ela
	               nem está aqui.
	Chico ergue os olhos outra vez. Lisa está lendo, aparentemente
	compenetrada.
	               CHICO (OFF)
	               Tinha um monte de mesas vazias e ela sentou
	               exatamente na minha. É lance, só pode ser lance.
Lisa pega da bolsa, meio escondida, uma bolacha.
	               CHICO (OFF)
	               Ela está comendo bolacha. Por isso ela sentou
	               aqui, porque não pode comer na biblioteca e nesta
	               mesa a Dona Irene não pode ver. É isso, claro, não
	               podia ser lance, essa mina é muito estranha. Comer
	               bolacha na biblioteca. Pelo menos ela podia me
	               oferecer uma. Tô morrendo de fome. Tudo bem, vou
	               ficar na minha, vou ficar na minha.
Chico volta a prestar atenção no Asterix.
	               LISA
	               Tem horas?
	               CHICO
	               (nervoso) Não, obrigado.
	               LISA
	               O teu relógio não funciona?
	               CHICO
	               Ah, horas... Faltam cinco.
	               LISA
	               Cinco o quê?
	               CHICO
	               Cinco minutos pra acabar o recreio. São dez e
	               vinte e cinco.
	               LISA
	               Quer uma bolacha?
	               CHICO
	               Não, obrigado.
Chico volta a olhar para o livro.
	               CHICO (OFF)
	               Por que você disse não, sua anta? A guria
	               ofereceu, você tava a fim. Agora azar, vou ficar
	               na minha. Vou ficar na minha!
	Chico volta a erguer os olhos. Pelo decote de Lisa, percebe uma
	nesga de sutiã preto.
	               CHICO (OFF)
	               Ela tá de sutiã. Sutiã preto! Ai meu deus do céu,
	               ai meu deus do céu... Vou ficar na minha, vou
	               ficar na minha. Sutiã preto, ela nem tem muito
	               peito. A bundinha é ótima, mas peito ela quase não
	               tem. Ou será que tem?
	Lisa olha para ele e fecha o último botão da blusa. Chico baixa
	os olhos rapidamente, constrangido.
	               CHICO (OFF)
	               Ela se deu conta que eu tava olhando os peitos
	               dela. Azar, quem mandou usar sutiã preto. Vou
	               ficar na minha.
Lisa levanta, pega a bolsa e vem sentar ao lado de Chico.
	               LISA
	               Você já fez o trabalho de física?
	               CHICO
	               Do pêndulo? Não.
	               LISA
	               A gente podia fazer junto, lá em casa.
	               CHICO
	               Legal. Quando?
	               LISA
	               Hoje à tarde.
	               CHICO
	               Tudo bem.
Lisa pega um papel e anota um endereço. Entrega para Chico.
	               LISA
	               É bem aqui perto, conhece a rua?
Chico faz que sim.
	               LISA
	               Duas horas?
	               CHICO
	               Duas horas.
	               LISA
	               Legal.
Lisa levanta e vai saindo. Luciano chega.
	               LUCIANO
	               Oi, Lisa.
Luciano senta ao lado de Chico.
	               LUCIANO
	               Essa mina é louca mas é muito gostosa. O Emílio te
	               mostrou o cavador?
	               CHICO
	               (ainda em estado de choque) Acho que não.
	               LUCIANO
	               O Emílio comprou um cavador bárbaro. Ele disse que
	               hoje ninguém ganha dele, que ele vai se fechar na
	               defesa.
	               CHICO
	               (lembrando-se) O campeonato! Não vai poder ser
	               hoje.
	               LUCIANO
	               Como? Você disse que tava tudo certo!
	               CHICO
	               É que a minha mãe tem novena e elas vão usar a
	               garagem.
	               LUCIANO
	               Novena??? Porra, Chico, hoje de manhã eu ainda
	               falei contigo do campeonato, você esqueceu que...
Lisa volta.
	               LISA
	               Esqueci minhas bolachas. (para Luciano) Você já
	               fez o trabalho de física?
	               CHICO
	               Já.
	               LUCIANO
	               (estranhando) Por quê?
	               LISA
	               A gente podia fazer um grupo de três. Eu e o Chico
	               vamos trabalhar lá em casa, às duas.
	               LUCIANO
	               Hoje? (olhando para Chico) Hoje. Tudo bem. Eu vou
	               com o Chico.
	               LISA
	               Legal.
	Lisa sai. Luciano e Chico ficam olhando Lisa se afastar, enquanto
	Emílio chega, excitado.
	               EMÍLIO
	               (abrindo a sua pasta para mostrar algo) Chico,
	               aposto que você nunca viu um cavador de acrílico
	               com três camadas...
	               CHICO
	               (distraído) Não...
	               LUCIANO
	               (cortando) Não vai ter campeonato hoje, Emílio.
	               EMÍLIO
	               Por quê???
	Chico olha para a porta da biblioteca, por onde Lisa vai saindo,
	conversando com uma colega.
	               LUCIANO
	               Novena. Eu e o Chico temos novena.
	Emílio fica olhando para eles, com o cavador na mão, achando que
	os dois estão tirando sarro da cara dele, mas sem muita certeza.
	               
CENA 18 - CASA DE LISA - INTERIOR/DIA
	Chico, Luciano e Lisa estão sentados no chão da sala, entre
	papéis e gráficos espalhados. Lisa está maravilhosamente sedutora
	vestindo uma bermuda e um pulôver velho. Chico e Luciano estão
	hipnotizados. Lisa gesticula e dá instruções sobre o melhor modo
	de realizar uma experiência científica com um pêndulo. Chico deve
	contar a oscilação, Luciano deve medir a amplitude enquanto ela,
	de pés descalços sobre um pufe cor-de-laranja, segura o pêndulo.
	Ela segura o pêndulo, que se move lentamente. Chico e Luciano
	ficam parados, de pé, sem conseguir tirar os olhos dela.
	               CHICO (OFF)
	               Eu fui colega do Luciano desde o jardim da
	               infância. Ele era tão idiota quanto eu, o que
	               sempre é muito prático, a gente se entende fácil.
CENA 19 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA
	Um grupo de trinta pessoas acompanha um enterro. Chico, Luciano e
	Andrew caminham em silêncio, lado a lado, pelos corredores do
	cemitério. Nas paredes destacam-se as fotos e os nomes esculpidos
	dos mortos. Alguns túmulos têm flores de plástico.
	               CHICO (OFF)
	               Eu vi o Luciano pela última vez no enterro do
	               Velho, acho que já faz dois meses. Não o meu
	               velho, que continua vivo, aliás cada vez mais
	               vivo. Luis Carlos Silveira Velho, um cara que me
	               ensinou muita coisa. O Andrew, é claro, também
	               estava lá.
	Chico olha para Andrew no momento exato em que estoura o flash de
	um fotógrafo.
CENA 20 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA
	DOIS TIMES DE FUTEBOL de adolescentes e um JUIZ esperam a
	cobrança de um pênalti. O batedor é Chico. O goleiro é ANDREW.
	Chico ajeita a bola. Andrew chuta a trave para limpar a chuteira.
	Chico toma distância. Andrew coloca-se no centro do campo. Chico
	olha para um canto da goleira. Andrew olha para a bola. Chico
	olha para o outro canto da goleira. Andrew olha para os pés de
	Chico. Chico e Andrew se olham. Chico corre para a bola.
	               CHICO (OFF)
	               Andrew, hoje todo mundo sabe, não era anchietano.
	               Eu achei que a gente tinha se visto pela primeira
	               vez em 74, na semifinal do Interescolar Pérola, um
	               campeonato de futebol patrocinado por um óleo de
	               soja, que reuniu os times do Colégio Anchieta e da
	               Escola Técnica de Viamão. Andrew jogava no gol. A
	               escola vencedora receberia o troféu no Revista
	               Pérola, um programa de televisão, sábado de manhã.
	               O time deles tinha melhor saldo e jogava pelo
	               empate. A gente teve um pênalti a nosso favor bem
	               no fim do jogo. Eu bati o pênalti.
	Chico aproxima-se da bola. Andrew flexiona os joelhos. Chico
	chuta a bola. Andrew salta. A bola dirige-se para o canto
	esquerdo do gol. Andrew pulou para a direita. A bola continua seu
	caminho para as redes. Andrew tenta inverter a direção do seu
	salto. É muito tarde. Andrew estica a perna para a esquerda,
	inutilmente. A bola aproxima-se das redes. Andrew cai junto ao
	poste direito. A bola bate no poste esquerdo. O time de Andrew
	comemora. Chico fica parado, mãos na cintura. Andrew levanta e é
	abraçado. Luciano dá um tapinha de consolo nas costas de Chico. O
	juiz apita o final da partida.
	               CHICO (OFF)
	               Nossa amizade futura só se tornou possível porque
	               o time deles foi massacrado na final pelo Colégio
	               Militar, grande campeão do Interescolar Pérola 74.
CENA 21 - BAR DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE
	Um bar de faculdade, apinhado de gente e forrado de cartazes.
	Luciano faz um discurso num megafone. Por trás dele, Chico segura
	um gravador e, com outro estudante, uma faixa de pano onde está
	escrito: "ISTO É UMA FAIXA DE PANO". O gravador toca "AMAPOLA".  
	               LUCIANO
	               A Aliança Místico-Anarquista Pró Orgasmos e Livre
	               Arbítrio, AMAPOLA, pede um minuto de atenção aos
	               nossos distintos eleitores. Exigimos anistia
	               ampla, geral e irrestrita a todos os condenados
	               por crimes políticos. Exigimos que o professor de
	               editoração escove os dentes antes das aulas.
	               Exigimos que todos os congressos da UNE sejam
	               realizados em cidades com praia. Exigimos a
	               renúncia imediata do presidente dos Estados Unidos
	               da América. Exigimos eleições livres e diretas em
	               todos os níveis. Se nossas exigências não forem
	               atendidas em 48 horas nós ficaremos bastante
	               chateados. Muito obrigado!
	A platéia ri, vaia e aplaude. Na platéia, Andrew acha graça, mas
	não muito. Chico, Luciano e seu companheiro de chapa distribuem
	panfletos, impressos em páginas arrancadas de uma lista
	telefônica.
	               CHICO (OFF)
	               Eu só reencontrei Andrew na faculdade, em setenta
	               e nove. Eu era candidato a secretário numa das
	               chapas na eleição pro diretório acadêmico.
Chico oferece um panfleto a Andrew. Gentilmente, Andrew recusa.
	               CHICO (OFF)
	               Andrew era vice na chapa da situação.
CENA 22 - AUDITÓRIO DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE
	O candidato da situação, um BAIXINHO com um cavanhaque, faz um
	discurso inflamado. Andrew está ao seu lado.
	               BAIXINHO
	               O inimigo mais perigoso não está na direita,
	               companheiros. O inimigo mais perigoso está
	               camuflado de progressista e tenta ridicularizar a
	               luta dos estudantes.
	Luciano está de pijama e segura um travesseiro. Parte da platéia
	se diverte. O Baixinho está cada vez mais irado.
	               BAIXINHO
	               Mas esta luta vai continuar. Ao lado dos
	               operários, dos camponeses, das donas de casa, dos
	               funcionários públicos, os estudantes vão continuar
	               resistindo à ditadura militar, ao arrocho salarial
	               e ao ensino alienante. Operários foram presos em
	               São Paulo por lutar pelo direito de greve.
	               (olhando para Luciano) E isso não é engraçado,
	               companheiro. A luta dos camponeses por terra
	               para...
	               LUCIANO
	               Engraçado é chamar alguém de camponês. Camponês
	               usa gorro de lã e ceroula, e mora em Sherwood!
	               BAIXINHO
	               Eu não lhe concedi aparte, companheiro!
	               LUCIANO
	               O seu discurso é importado e a tradução é muito
	               ruim! Aqui nunca ninguém viu um camponês, no
	               Brasil não existe camponês. Chama um agricultor de
	               camponês e ele acerta o seu pé com a enxada.
	               BAIXINHO
	               O seu discurso serve à ditadura, companheiro. O
	               anarquismo é a direita vestida de palhaço.
	               LUCIANO
	               O que serve à direita é a incompetência da
	               esquerda.
	Os dois gritam ao mesmo tempo. Luciano pega um grande
	despertador. O despertador toca, aumentando o caos. A platéia
	vaia, grita e aplaude.
CENA 23 - RESTAURANTE UNIVERSITÁRIO - INTERIOR/DIA
	Chico está terminando de almoçar. Andrew procura um lugar e acaba
	sentando ao lado de Chico.
	               CHICO
	               Parabéns.
Andrew vê Chico.
	               ANDREW
	               Tudo bem? Obrigado. Eu sou só o vice. Vice é quase
	               o mesmo que nada. (pausa) A campanha de vocês foi
	               ótima. É importante que alguém questione a forma
	               como se faz política estudantil.
Andrew começa a comer. Pelo jeito está com muita fome.
	               CHICO
	               Desde que não toque no conteúdo.
	               ANDREW
	               O conteúdo é sempre o mesmo: derrubar e começar a
	               construir de novo.
	               CHICO
	               Sempre igual? Será que a política não pode ser
	               feita de maneira mais... divertida?
	               ANDREW
	               A realidade nem sempre é divertida. Você não vai
	               comer o pão?
	               CHICO
	               Não, pode pegar.
	Andrew pega o pão que Chico não comeu. Parte o pão e começa a
	comer com o molho da carne.
	               CHICO
	               Você lembra da semifinal do Interescolar Pérola de
	               setenta e quatro?
	               ANDREW
	               Semifinal? Não. Eu lembro da final.
	               CHICO
	               Nosso time jogou contra o teu na semifinal. Foi
	               zero a zero, vocês se classificaram para a final
	               pelo saldo de gols.
	               ANDREW
	               Não lembro. Mas eu lembro que a gente perdeu a
	               final pros milicos. Foi tudo armado.
Chico acha graça.
	               ANDREW
	               Você não acredita? O juiz e um bandeirinha eram
	               militares da reserva.
	               CHICO
	               Você acha que a ditadura militar estava preocupada
	               com o resultado do Interescolar Pérola? Eu vi a
	               final. Vocês levaram um banho de bola, cinco a um.
	               
	               ANDREW
	               Veja bem, a imagem que a direita tentava passar
	               dos militares era a de...
	               CHICO
	               Tudo bem, Andrew, não precisa me convencer de
	               nada. A campanha já terminou, vocês ganharam. O
	               Interescolar Pérola também já terminou e vocês
	               perderam. Ou você ainda quer revanche?(pausa)
	               Você ainda joga futebol?
	               ANDREW
	               Não. Eu nunca gostei muito de futebol. Por isso
	               jogava no gol. (pausa) Eu lembrei da semifinal.
	               Você estudava no Anchieta?
Chico confirma.
	               ANDREW
	               Lembra de Vila Oliva?
	               CHICO
	               Claro.
	               ANDREW
	               Eu morava lá. Meu pai era o zelador.
	               CHICO
	               Sei. Eu não lembro de você.
	               ANDREW
	               Claro que não. Mas eu lembro de vocês.
	               CHICO
	               Vocês quem, cara pálida?
	               ANDREW
	               Vocês. Os anchietanos. O que eu mais me lembro é
	               que vocês falavam muito alto, vocês gritavam quase
	               todo o tempo. Crianças ricas quando estão felizes
	               gritam muito. (acrescentando) Crianças pobres
	               também, só que é mais raro.
	               CHICO
	               Eu adorava ir na Vila Oliva. A gente ia uma vez
	               por semestre, cada turma. (pausa) Eu ficava
	               esperando o dia, na véspera eu mal conseguia
	               dormir pensando no campeonato de futebol, na
	               viagem de ônibus, nas gurias. Principalmente nas
	               gurias.
	Chico levanta, pega a bandeja. Andrew vê que Chico vai devolver a
	bandeja com uma laranja intacta.
	               ANDREW
	               Posso pegar a laranja?
	               CHICO
	               Pode. Nós não vamos comer a laranja.
CENA 24 - ENTRADA DE VILA OLIVA - EXTERIOR/DIA
	Um ônibus escolar ultrapassa o portão da Vila Oliva. O ônibus
	está cheio de crianças, que gritam muito. O PAI DE ANDREW, um
	homem alto, moreno, fecha o portão. A seu lado, Andrew, com 11
	anos, o ajuda. O ônibus pára e as crianças começam a descer,
	tremendamente excitadas, gritando e correndo. Os meninos, com
	uniformes de futebol, dirigem-se ao ginásio. Andrew fica em
	silêncio, olhando os anchietanos que se afastam.
CENA 25 - GINÁSIO DE VILA OLIVA - INTERIOR/DIA
	Final da manhã. No ginásio, DOIS TIMES disputam uma partida de
	futebol de salão. Chico e Luciano jogam no mesmo time. O JUIZ é
	um professor, em trajes civis. Na arquibancada, Emílio está
	torcendo, ao lado de Carolina. Lisa chega e senta ao lado de
	Emílio.
	               LISA
	               Você não vai jogar?
	               EMÍLIO
	               Não. Eu não jogo muito bem.
	               LISA
	               E daí?
	               EMÍLIO
	               Acho que eles gostam de ganhar.
	               LISA
	               Ganhar o quê? Aquelas medalhas horríveis?
	Luciano faz um golaço. O time inteiro corre pro abraço. Carolina
	e Emílio vibram. Lisa sai correndo, invade o campo e participa da
	comemoração. Ela gruda em Chico e fala alguma coisa no ouvido
	dele, sempre fazendo de conta que está festejando o gol. Chico
	faz uma cara de surpresa.
	               CAROLINA
	               (para Emílio) Essa guria é louca, pirada.
	               EMÍLIO
	               É. Completamente.
Lisa volta correndo e senta outra vez ao lado de Emílio.
	               LISA
	               Quanto tá o jogo?
	               EMÍLIO
	               Três a zero.
	               LISA
	               Isso é muito ou pouco?
	               EMÍLIO
	               É bastante. O jogo tá ganho.
	               LISA
	               Legal. (E grita, escandalosamente:) Vamo lá,
	               Chico!
	Chico está com a bola. Olha para Lisa. Ela está de pé, linda,
	usando um casaco como se fosse uma bandeira. E ri. É uma bela
	visão. Chico passa a bola para Luciano e corre para receber.
	Luciano lança. O zagueiro adversário chega antes e corta. Chico,
	que vinha correndo, choca-se com ele e cai no chão, cara de dor.
	O juiz marca a falta.
	               ZAGUEIRO
	               (para o juiz) Não foi nada, seu juiz!
	Chico está segurando a perna e gritando de dor. Os companheiros
	de time vêm ver o que aconteceu com ele. O juiz-professor fica
	preocupado.
	               JUIZ
	               Quê que houve, Chico?
	               CHICO
	               Ai, ai. Tá doendo muito.
	               LUCIANO
	               Não faz onda, Chico. Não foi nada. (E tenta
	               levantá-lo do chão)
	               CHICO
	               (enquanto grita de dor) Minha perna, minha perna!
	Luciano volta a colocá-lo no chão. O juiz examina a perna. Mais
	gritos de Chico.
	               JUIZ
	               Acho que não foi nada grave.
	               LUCIANO
	               Levanta aí, Chico, não faz onda.
	               CHICO
	               Não dá mesmo, Luck. Vamos botar o reserva.
	               LUCIANO
	               (surpreendido) Que reserva? Tá louco?
	O juiz carrega Chico pra fora da quadra. No meio do caminho,
	Chico fala:
	               CHICO
	               O Emílio. Bota o Emílio.
Carolina, Lisa e Emílio vêm pra examinar Chico.
	               LUCIANO
	               Pirou na jogada?
	               CHICO
	               (para Emílio) Entra, Emílio! O jogo já tá no fim.
	               EMÍLIO
	               Eu?
	               CHICO
	               (passando a camiseta para Emílio) Vai lá, entra.
	Emílio não tem coragem. Mas Lisa dá um empurrão nele. Luciano não
	está entendendo nada. Mas o juiz já voltou pro campo. A falta
	precisa ser batida. Luciano chega perto de Emílio.
	 
	               LUCIANO
	               Fica na defesa.
	Luciano bate a falta. A bola bate na barreira e vai no pé de
	Emílio. Ele está tão nervoso que não consegue fazer absolutamente
	nada. O time adversário toma a bola facilmente e faz o gol. A
	torcida adversária vibra. Luciano fica louco. Vai correndo até
	Chico, que continua deitado.
	               LUCIANO
	               Volta, cara.
	               CHICO
	               Não dá. Tá doendo muito.
	               LUCIANO
	               Você me paga! (E vai correndo até Emílio. Grita
	               pra ele:) Vai pro ataque! E não sai de lá!
Carolina está preocupada com Chico.
	               CAROLINA
	               Será que você não quebrou a perna?
	               CHICO
	               Não. No máximo, rompi os ligamentos.
	               LISA
	               Eu sei fazer massagem pros ligamentos.
Lisa começa a massagear a coxa de Chico.)
	               CAROLINA
	               (desconfiada) Ligamentos não é no joelho?
	               CHICO
	               Também tem na coxa. Tem ligamento no corpo todo.
	               Ai, ai! Cuidado, Lisa.
	O jogo continua. Emílio está parado, sozinho, do outro lado do
	campo. O resto do time agüenta a pressão dos adversários. Então
	Luciano corta com a cabeça uma cobrança de escanteio e a bola vai
	direitinho no pé de Emílio. O goleiro do outro time sai do gol,
	desesperado. Emílio não sabe o que fazer. Mas decide: é agora!
	Fecha os olhos e dá um bico. No ângulo. Golaço. O time corre pro
	abraço. Lisa invade o campo outra vez. Chico levanta e corre
	atrás, esquecendo de mancar. Pula no bolinho. Carolina não
	entende nada. Emílio chora de alegria.
CENA 26 - BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA
	Umas pedras, na beira do rio. É um local de acesso difícil, pois
	é preciso descer o morro por um caminho em declive acentuado.
	Chico e Lisa estão de pé, lado a lado, encostados numa pedra. Ele
	ainda está com o fardamento do jogo. Ela soltou o cabelo e está
	ainda mais linda.
	               CHICO
	               Você prometeu.
	               LISA
	               Prometi.
	               CHICO
	               Então cumpre.
	               LISA
	               Você pensou que eu ia dar pra trás?
	               CHICO
	               Não sei... Essas coisas...
	               LISA
	               (cortando) Se eu falei, eu cumpro.
	Lisa levanta a blusa devagar, mostrando os seios. Chico olha para
	eles, completamente abobado.
	               LISA
	               Gostou? São meio pequenos, né?
	               CHICO
	               Não. São bonitos. Muito bonitos.
Lisa chega um pouco mais perto de Chico.
	               LISA
	               Eu prometi que te deixava pegar.
	Chico está paralisado. Não consegue nem levantar a mão. Lisa
	percebe o estado de Chico e sorri.
	               LISA
	               Eu te ajudo.
	Pega a mão direita de Chico e a leva até os seios. Chico sua.
	Lisa larga a mão de Chico, que imediatamente a recolhe. Ele está
	grudado numa pedra, todo encolhido.
	               LISA
	               (puxando a blusa de volta) Bom, eu cumpri a minha
	               palavra. (pausa)  E sabe, Chico, até que eu
	               gostei.
	               CHICO
	               Eu também gostei.
	               LISA
	               Nem parece.
	               CHICO
	               Eu gostei. Gostei muito.
	               LISA
	               Vamos voltar?
	               CHICO
	               Não.
	               LISA
	               O que nós vamos ficar fazendo aqui?
	               CHICO
	               Eu quero um beijo.
	               LISA
	               Isso eu não prometi.
	               CHICO
	               (ganhando coragem e chegando perto) Mas eu quero.
	               LISA
	               Não sei... Você não é meio namorado da Carolina?
	               CHICO
	               Não.
	               LISA
	               Então tudo bem.
	Lisa fecha os olhos, esperando um superbeijo. Mas Chico dá um
	beijinho muito recatado. Lisa fica decepcionada, mas disfarça.
	               CHICO
	               Agora vamos voltar.
	Chico sai, tão feliz que quase esquece Lisa. Ele sobe a longa
	escadaria correndo. Lisa vai ficando para trás. Lisa ouve um
	ruído, percebe que há alguém no mato.
	               LISA
	               Quem está aí?
	Ninguém responde. Lisa entra no mato por uma trilha. Ouve passos
	de alguém que se afasta. Lisa chega numa clareira. Há uma grande
	pedra de onde se avista a beira do rio, o lugar onde Lisa estava
	com Chico. Não há ninguém ali, e é impossível seguir adiante.
	Lisa se volta e dá de cara com Carolina. Ela tem os olhos
	vermelhos e tenta esconder o choro.
	               CAROLINA
	               Oi, Lisa. O pôr-do-sol está lindo. Você gosta mais
	               do nascer ou do pôr-do-sol?
Lisa fica confusa, surpresa com a pergunta de Carolina.
	               LISA
	               Não sei... acho que são iguais.
	               CAROLINA
	               Iguais? Imagine! Claro que não são iguais. O pôr-
	               do-sol é muito mais vermelho, o nascer do sol é
	               mais branco. E o pôr-do-sol é mais devagar, não
	               sei por que, mas é. Eu lembro de um dia, na praia,
	               a gente...
Lisa segura o braço de Carolina
	               LISA
	               Carolina. Ele é só um guri bobo. Não precisa ficar
	               triste por causa dele.
	Carolina fica em silêncio. Seca os olhos na manga da blusa. Lisa
	passa os braço sobre o ombro de Carolina.
	               LISA
	               Vamos voltar, tá ficando escuro.
CENA 27 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA
	Carolina toma um refrigerante no balcão do bar do aeroporto.
	Chico, Luciano e Lisa estão parados, sem assunto.
	               LISA
	               A temperatura externa de um vôo de jato chega a
	               quarenta graus abaixo de zero.
Todos concordam, sem muito interesse. Ficam em silêncio.
	               CAROLINA
	               Eu sei que vocês não vão escrever.
Todos reagem ao mesmo tempo.
	               LUCIANO
	               Ai, meu deus...
	               CHICO
	               Carolina, não começa com esse papo de novo. A
	               gente já disse que vai escrever.
	               CAROLINA
	               Eu sempre digo que vou escrever e nunca escrevo.
	               LUCIANO
	               É que você é uma mentirosa, cínica, falsa e
	               trapaceira. E nós não.
	A MÃE DE CAROLINA se aproxima. Ao fundo, o PAI DE CAROLINA, um
	coronel fardado, se despede de outros militares.
	               MÃE DE CAROLINA
	               Agora nós temos que ir, filha.
Carolina pega sua sacola. Todo mundo se despede.
	               CAROLINA
	               Dessa vez eu vou escrever. Eu já vou começar a
	               escrever agora, no avião.
CENA 28 - RUAS DA CIDADE - EXTERIOR/DIA
	Algumas ruas do centro da cidade às seis e meia da manhã (no
	verão). Ainda há pouco movimento, mas já tem gente indo pro
	trabalho. O sol está atrás dos edifícios.
CENA 29 - BANCA DE JORNAL - EXTERIOR/DIA
	Chico, cara de sono, compra um jornal que exibe a manchete:
	"COMEÇA O VESTIBULAR". Chico sai caminhando, lendo o jornal.
CENA 30 - QUARTO DE LUCIANO - INTERIOR/DIA
	O rádio-relógio está funcionando no quarto de Luciano, que dorme
	pesadamente.
	               LOCUTOR (OFF)
	               ...o épico da família Terra-Cambará. E agora as
	               últimas dicas para a prova de português, com o
	               professor Dalbém.
	               PROFESSOR DALBÉM (OFF)
	               Sempre há pelo menos duas questões de acentuação
	               no vestibular Unificado. Lembre que todas as
	               proparoxítonas são acentuadas. As paroxítonas
	               terminadas em ditongo crescente...
	Luciano continua dormindo. Na mesinha de cabeceira, um envelope
	de comprimidos. Três comprimidos já foram usados.
	A MÃE DE LUCIANO, de camisola, entra no quarto. Desliga o rádio-
	relógio. Sacode Luciano, mas ele não reage. Então ela percebe o
	envelope de calmante. Fica apavorada e sai do quarto.
CENA 31 - PARADA DE ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA
	Chico, na parada de ônibus, lê o jornal. Olha o relógio, olha
	para o fim da rua, volta a ler o jornal.
A partir daí, intercalam-se as cenas *** e ***.
	O pai e a mãe de Luciano no quarto dele. A mãe está com um copo
	de água na mão. Joga uns pingos no rosto de Luciano, que reage,
	mas muito devagar.
	               PAI
	               Eu avisei que era perigoso dar calmante pro guri.
	               MÃE
	               Um só não tinha problema. Luciano! Luciano, meu
	               filho!
	               PAI
	               (sacudindo Luciano com força) Acorda, desgraçado.
	Chico está na parada de ônibus. Um ônibus passa, mas ele não
	pega. Olha para o relógio. Sai da parada.
O telefone toca na sala. A mãe vai atender.
	               MÃE DE LUCIANO
	               (nervosa) Alô?
É Chico, que está num telefone público.
	               CHICO
	               Dona Alice? Eu estou esperando o Luciano, ele já
	               saiu de casa?
	               MÃE
	               Ele está no banho, mas ainda não acordou. Vai
	               indo, meu filho. Nós vamos levar ele de carro.
	No banheiro da casa de Luciano. Ele está de pé, no box, pelado,
	amparado pelo pai. A água vem forte, molhando o pijama do pai.
	               PAI (furioso)
	               Acorda, Luciano!
	Luciano, agora um pouco mais acordado, com a água correndo pelo
	rosto, olha para o pai, faz uma cara de espanto e pergunta:
	               LUCIANO
	               Pai, por que você tá tomando banho de roupa?
	Chico no ônibus. Olha para um papel, onde estão rabiscadas
	algumas coisas. Dá pra ver que são regras de acentuação.
	               CHICO (murmurando)
	               Paroxítonas terminadas em ditongo...
	Luciano, vestido, mas ainda muito sonolento, está sentado na
	mesinha da copa. O pai enfia uma xícara de café preto na sua
	boca. A mãe passa manteiga numa fatia de pão.
	               PAI
	               Sabe quanto eu gastei no cursinho desse
	               débil-mental?
	               MÃE
	               Calma, Guilherme. Ele vai fazer a prova. Não vai,
	               meu filho?
	               LUCIANO (arrastando as palavras)
	               Proparoxítonas... (longa pausa) todas.
	               Paroxítonas... as que terminam em ditongo
	               crescente... ditongo... crescente... (fecha os
	               olhos e dorme sentado)
CENA 32 - ENTRADA DE COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
	Um colégio grande, com uma porta enorme, e alguns VESTIBULANDOS
	entrando, em passo acelerado. O PORTEIRO faz sinal para que eles
	se apressem. Chico está parado, do lado de fora de porta,
	esperando, nervoso. Olha para o relógio. Aproxima-se do porteiro.
	               CHICO
	               Quanto falta?
	               FISCAL
	               Um minuto. Entra logo.
	Um carro estaciona. O pai de Luciano dirige. O próprio está no
	banco da frente, dormindo. A mãe, nervosíssima, está no banco de
	trás. Chico vai correndo até o carro para ajudar. Mas Luciano tem
	que ser praticamente arrastado. O porteiro não deixa os pais de
	Luciano entrarem. A porta é fechada. Chico não agüenta o peso de
	Luciano. Os dois escorregam até ficar sentados no chão. Chico
	pede ajuda. Uns RAPAZES se prontificam. Levam Luciano até a sala
	dele, sob os olhares espantados dos OUTROS ESTUDANTES.
CENA 33 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
Chico, com a prova à sua frente, murmura.
	               CHICO
	               Paroxítonas terminadas...
CENA 34 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
Luciano, com a prova à sua frente, dorme sentado.
CENA 35 - RUA - EXTERIOR/DIA
	Chico olhando para a frente. Surge uma mão com um pincel.
	Lambuzam a cara de Chico com tinta vermelha. Depois derramam um
	monte de talco no cabelo. Surge uma mão com uma tesoura, que
	corta uma mecha do cabelo de Chico. Mais tinta. Lambança geral.
CENA 36 - JUNTA DE ALISTAMENTO - INTERIOR/DIA
Luciano está sentado a uma mesa. À sua frente, um SARGENTO.
	               SARGENTO
	               QUER servir?
	               LUCIANO
	               Não.
	               SARGENTO
	               Por quê?
	               LUCIANO
	               Eu tenho que estudar.
	               SARGENTO
	               (enquanto olha uma ficha à sua frente) Tem o
	               comprovante de matrícula na faculdade?
	               LUCIANO
	               Não.
	               SARGENTO
	               Você é arrimo de família?
	               LUCIANO
	               Não.
	               SARGENTO
	               Tem algum problema físico?
	               LUCIANO
	               Asma. Já entreguei o atestado.
	               SARGENTO
	               Asma? Sabe quantos caras com asma eu já
	               entrevistei hoje? Doze. Tem uma epidemia de asma
	               na cidade. Asma e pé-chato. Você é o
	               décimo-terceiro. Sabe o quê que eu acho? Que vocês
	               não querem servir a pátria! (Carimbando a ficha)
	               Exame médico na quinta. E não falta. (Ameaçador)
	               Se você não vem... a gente busca em casa.
CENA 37 - SALA DE EXAMES - INTERIOR/DIA
	Luciano, pelado, ao lado de outros CINCO CARAS, também pelados.
	Um OFICIAL-MÉDICO passeia entre eles, com um estetoscópio na mão.
	Pára na frente de Luciano. Ausculta o pulmão.
	               OFICIAL-MÉDICO
	               Asma?
	               LUCIANO
	               Sim, senhor. Desde que eu tenho dois anos.
	               OFICIAL-MÉDICO
	               (bem alto) Todos vocês têm asma?
	               PELADO 1
	               Eu tenho bronquite alérgica.
	               OFICIAL-MÉDICO
	               (auscultando o pelado 1) E tem mesmo! Vai, meu
	               filho, te veste. (O pelado começa imediatamente a
	               se vestir) Dá um abraço no doutor Mânica. E vê se
	               cura essa bronquite, viu?
	O oficial-médico continua a passear entre os pelados. Ausculta um
	pouco, manda tossir, manda levantar os braços, manda mostrar a
	língua. Finalmente pára bem no meio da fila e discursa:
	               OFICIAL-MÉDICO
	               Cinco rapazes fortes, bem-nutridos, com todos os
	               dentes, sem nenhuma doença venérea. Ideais para o
	               Exército. Mas vocês têm asma. Algum de vocês,
	               apesar de ter asma, quer servir? (Silêncio total)
	               Não? Que pena. Sabe, eu já vi muito soldado curar
	               asma aqui no 18. Sargento, faltam quantos recrutas
	               pra completar o contingente?
	               SARGENTO
	               Um, capitão.
	               OFICIAL-MÉDICO
	               Um? Só um? Que pena. Quem será que vai curar a
	               asma graças ao Exército Brasileiro?
CENA 38 - BARBEARIA DO EXÉRCITO - INTERIOR/DIA
	Uma mecha de cabelo cai no chão, misturando-se a um monte de
	outras mechas, de todos os tamanhos e cores. Uma máquina de
	cortar cabelo, zunindo como um marimbondo furioso, faz o seu
	serviço. O som irritante se mistura ao Hino do Exército,
	assoviado com maestria pelo BARBEIRO. Acompanhamos, em detalhe,
	uma das "raspadas", que acaba revelando o rosto de Luciano,
	estático, olhando para o infinito. Ao seu lado, mais uns TRINTA
	ADOLESCENTES esperam a vez. O barbeiro desliga a máquina e pára
	de assoviar quando considera o corte pronto. Luciano levanta da
	cadeira e é logo substituído por outro RECRUTA. A máquina volta a
	zumbir. O barbeiro recomeça o Hino do Exército.
CENA 39 - RUAS PRÓXIMAS AO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA
	Um coturno pequeno atravessa a rua. Um tênis Adidas com três
	listras azuis desce de um táxi. Um coturno bem grande desce de um
	ônibus.
CENA 40 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
	O primeiro coturno, o pequeno, já está entrando no saguão do
	aeroporto. A câmara sobe, revelando uma calça jeans preta com
	umas tachinhas. Sobe mais um pouco, mostrando a bunda de Lisa. Um
	remendo dos Sex Pistols adorna a paisagem. Agora vemos o tênis
	Adidas, também no saguão. Quando a câmara sobe, revela uma pasta
	de plástico com a inscrição "COMUNICAÇÃO", na mão de Chico. O
	coturno grande também está no saguão. A câmara sobe por uma calça
	verde-oliva, até a mão de Luciano, que segura a "cobertura" de
	passeio. Voltamos para Lisa, mais especificamente para as suas
	costas. Jaqueta de couro preta. A câmara sobe até a nuca, que
	está quase raspada. Lisa exibe um corte "meio-moicano" azul. Lisa
	afasta-se da câmara, rumo ao setor de desembarque. Agora estamos
	nas costas de Chico. Ao subir, a câmara mostra que o seu cabelo
	está quase a zero. Chico afasta-se da câmara. Finalmente, as
	costas de Luciano. A câmara sobe e mostra um típico corte militar
	(nuca raspada e um pouco de cabelo em cima). Luciano afasta-se da
	câmara. Um plano mais aberto de cima. Os três encontram-se perto
	do desembarque.
CENA 41 - PÁTIO DO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA
	Final da escada do avião, no nível da pista. Um sapato feminino
	entra em quadro por cima. Vemos depois as pernas de Carolina. E,
	a seguir, a sua barriga, bastante proeminente, uns oito meses de
	gravidez. Vemos o rosto de Carolina, tenso, enquanto ela caminha
	rumo ao setor de desembarque. Entra no prédio do aeroporto.
CENA 42 - AEROPORTO/SETOR DE DESEMBARQUE - INTERIOR/DIA
	Carolina sai do setor de bagagens e olha em frente. Três carecas
	abanam para ela. Ela não reconhece de imediato. Olha pra trás,
	achando que eles podem estar abanando para outra pessoa. Mas não
	há ninguém. Ela olha outra vez e sorri: são eles. Os três a
	abraçam. Também estão surpreendidos pela barriga dela.
	               CAROLINA
	               (rindo) Meu Deus, quê que houve com vocês?
	               Epidemia de piolho?
	               LUCIANO
	               (fazendo continência) Soldado cento e trinta e
	               dois, Luciano, da Companhia de Comando da Terceira
	               Região Militar.
	               CHICO
	               Aluno zero sete nove três, barra setenta e sete.
	               Bixo.
	               LISA
	               Sem número. Você gosta de azul?
	Os quatro se abraçam mais uma vez, emocionados, fazendo um
	bolinho que atrapalha a saída dos outros passageiros.
CENA 43 - BERÇÁRIO DO HOSPITAL - INTERIOR/DIA
	Nas janelas do berçário do hospital, Luciano e Chico abanam para
	um bebê (José). Lisa se junta a eles. Ficam os três fazendo
	gracinhas. Uma AUXILIAR DE ENFERMAGEM empurra o carrinho para
	fora da sala. Os três saem da janela. No corredor, brigam para
	decidir quem empurra o carrinho, apesar dos olhares repressores
	da auxiliar de enfermagem. Chegam à porta do quarto de Carolina.
	Entram. Carolina está na cama. Beijos generalizados. A auxiliar
	de enfermagem pega o bebê e o coloca no colo de Carolina, para
	que ela dê de mamar. Mas o bebê não parece muito a fim.
	               AUXILIAR DE ENFERMAGEM
	               Se a senhora precisar, é só me chamar. Tem que
	               insistir. Ele é meio preguiçoso. (E sai do quarto)
	               LUCIANO
	               Vai, meu irmão, aproveita que essa comida aí é
	               boa.
	               CHICO
	               É, aproveita enquanto você não tem que engolir a
	               bóia do quartel.
	               CAROLINA
	               Coitadinho... (para o bebê) Você não vai ser bobo
	               que nem o tio Luck, vai?
	               CHICO
	               É, pelo amor de Deus, já chega um panaca na turma.
	               LUCIANO
	               Falando em panaca, eu ainda tenho que passar em
	               dois bancos antes de voltar pro quartel.
	               LISA
	               É assim que você serve à pátria? Indo em banco?
	               LUCIANO
	               Não, normalmente eu lavo banheiro e sirvo
	               cafezinho.
	               LISA
	               Por mim, dava pra matar todos os milicos do mundo.
	               (Ela percebe que falou besteira e tenta
	               consertar.) Quer dizer, tem exceções... Tem os
	               caras que apesar de serem milicos...
	               CAROLINA
	               Não enrola, Lisa.
	               LISA
	               Não... É que o teu pai, por exemplo, eu sempre
	               achei que ele...
	               CAROLINA
	               (cortando) O meu pai, por exemplo, é um grande
	               filho-da-puta.
Fica um clima pesado no quarto.
	               CAROLINA
	               Eu descobri muitas coisas no Rio. Descobri o que o
	               meu pai realmente faz no Exército. (pausa) Acho
	               que, pessoalmente, ele nunca torturou ninguém. Mas
	               nem isso eu tenho mais certeza. (pausa) Vocês não
	               me perguntaram quem era o pai da criatura.
	               LUCIANO
	               Se você não falou é porque não interessa.
	               CAROLINA
	               Interessa pra mim. (olhando para o bebê) E talvez
	               interesse pra ele. (pausa) Saí de casa, fui morar
	               com uma colega do colégio. Aí eu conheci um cara
	               super legal, me apaixonei por ele, pensei que ele
	               era o cara da minha vida, fiquei grávida. E
	               descobri que o cara conhecia muito bem o meu pai.
	               (pausa) É isso. O pai dele (e aponta outra vez
	               para o bebê) é um milico filho-da-puta, que foi
	               mandado pelo avô milico filho-da-puta pra me
	               vigiar.
	Chico, Lisa e Luciano não sabem o que dizer. Estão surpresos
	demais.
	               CAROLINA
	               Ele fugiu, com medo que o meu pai acabasse com
	               ele. O que seria bem possível. E eu não quis
	               abortar, apesar de todas as ameaças. Fugi de novo,
	               pra cá. E encontrei vocês. Final feliz.
Chico, Lisa e Luciano continuam mudos. Carolina sorri.
	               CAROLINA
	               Eu tenho sorte.
	Lisa segura a mão de Carolina. Chico e Luciano ficam olhando o
	filho de Carolina.
	               CHICO
	               Neto e filho de milicos filhos-da-puta. Tem tudo
	               pra ser boa gente.
	               LUCIANO
	               Provavelmente ele não vai ser milico.
	               CHICO
	               A não ser que ele durma demais.
	               LUCIANO
	               Provavelmente o filho dele vai ser milico.
	               CHICO
	               A criatura já tem nome?
	               CAROLINA
	               José.
	               CHICO
	               Por que não José Francisco?
	               LUCIANO
	               Ou José Luciano?
	               CAROLINA
	               Que horror!
	               LISA
	               Já sei! José de Anchieta!
	               LUCIANO
	               Evidente!
	               CHICO
	               Óbvio!
	               CAROLINA
	               José de nada, só José. José do que ele quiser.
	               LUCIANO
	               É muito comprido.
CENA 44 - FRENTE DA CASA DE LISA - EXTERIOR/NOITE
	O carro de Chico pára em frente à casa de Lisa. Ele desce,
	apressado, e caminha em direção à casa. A porta da casa de Lisa
	se abre. Lisa sai, seguida pela mãe, DILMA, que está segurando
	alguma coisa na mão. Chico pára. A mãe pega o braço de Lisa,
	ansiosa. Imediatamente começam a discutir. Chico não consegue
	ouvir direito. Só chegam até ele algumas palavras como "doente" e
	"velha". Lisa vem caminhando em direção a Chico. A mãe vem atrás.
	               CHICO
	               O que foi, Lisa?
	               LISA
	               Vamos embora daqui.
	Lisa abre a porta do carro, entra e fecha a porta violentamente.
	Dilma se debruça na janela.
	               LISA
	               Vamos embora.
	               DILMA
	               Me respeita! Eu sou sua mãe!
Chico percebe que Dilma está drogada, ou bêbada.
	               LISA
	               (olhando fixamente para a frente) Chico, vamos
	               embora!
Chico entra no carro.
	               CHICO
	               A sua mãe tá doente?
	               DILMA
	               Tô. Tô doente, e a minha própria filha se recusa a
	               me ajudar.
	               LISA
	               (sempre olhando para a frente) Porra, Chico,
	               arranca logo essa merda de carro!
	               DILMA
	               Olha pra mim, olha pra mim!
	               LISA
	               Antes te olha no espelho. Chico, por favor!
	Chico arranca. Lisa esconde o rosto entre as mãos. Chico fica
	olhando a mãe de Lisa pelo retrovisor. Um MENINO vem atravessando
	a rua de bicicleta. Chico, que está olhando para trás, não vê.
	Lisa ergue os olhos.
	               LISA
	               Cuidado!
	Chico buzina e dá uma freada brusca. A bicicleta passa raspando.
	Chico pára o carro, tentando se acalmar. Olha para Lisa e para a
	mãe de Lisa, na calçada.
	               CHICO
	               Será que eu não posso ajudar em alguma coisa?
	               LISA
	               Você sabe achar veia no braço?
	Chico fica alguns segundos olhando para Lisa e, pelo espelho,
	para Dilma, ainda na calçada.
	               CHICO
	               Não.
	               LISA
	               Vamos embora daqui, Chico.
O carro se afasta.
CENA 45 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Lisa está deitada no sofá da sala do apartamento de Chico. Na
	parede, pôsters de cinema, uma prateleira feita com tijolos, um
	som. No balcão da cozinha, Chico faz café.
	               LISA
	               Ela começou a se picar há pouco tempo. Antes, só
	               cheirava. Eu tô com medo, é perigoso.
	               CHICO
	               Tem um centro médico em São Paulo, no interior, eu
	               acho, onde trabalha um cara muito legal...
	 
	               LISA
	               Ela não precisa de médico. Precisa de alguém que
	               cuide dela, que trate ela que nem criança. Minha
	               mãe precisa de uma mãe.
	               CHICO
	               Todo mundo precisa.
	Chico vem sentar no sofá. Lisa deita no colo dele. Chico começa a
	acariciar os cabelos de Lisa.
	               LISA
	               Hoje eu fui na casa da Carolina.
	               CHICO
	               Ela já foi pra casa?
	               LISA
	               Desde terça. (pausa) Vendo a Carolina com o José,
	               me deu uma puta inveja. Ela passou por tanta
	               merda, tanta coisa ruim, e a impressão que me deu
	               é que ela tá tranqüila, que a vida dela tá
	               recomeçando agora, e que ela se transformou. E
	               isso é muito bom.
Chico pára de acariciar Lisa.
	               LISA
	               Continua.
	Chico volta a acariciar. Toma coragem. Aproxima-se e dá um beijo
	em Lisa. Leve, mas quente. Afasta-se, como quem perdeu a coragem.
	               LISA
	               Continua.
	Chico está indeciso. Mas decide prosseguir. Mais um beijo. Desta
	vez, Lisa toma a iniciativa logo que os lábios se tocam. É um
	beijo de verdade. Longo e molhado. Afastam-se. Chico estende a
	mão devagar. Primeiro acaricia os seios de Lisa por cima da
	camiseta. Depois, coloca a mão na barra da camiseta e vai subindo
	o tecido devagar. Descobre os dois seios. Inclina-se e beija um,
	depois o outro. Afasta-se outra vez. Olha para Lisa. Lisa tira de
	vez a camiseta.
	               LISA
	               Continua.
Mas Chico está paralisado.
	               LISA
	               Continua.
	Como Chico não reage, Lisa pega a mão direita de Chico e a conduz
	até o cinto da sua (dela) calça.
	               LISA
	               Continua. (E ajeita-se no sofá, facilitando o
	               trabalho de Chico)
	Chico abre o cinto. Depois desabotoa a calça. Lisa estende as
	pernas. Chico tira os coturnos dela. Puxa a calça pra baixo até
	ela sair. E fica olhando Lisa, que agora está só de calcinha.
	               LISA
	               Continua.
	Chico inclina-se. Novo beijo longo. Depois, Chico vai lentamente
	- e sempre beijando - conduzindo sua cabeça para baixo. O rosto
	de Lisa, de olhos fechados, feliz. Mas, de repente, abre os
	olhos, insatisfeita e ameaça:
	               LISA
	               Se eu tiver que dizer "continua" mais uma vez, só
	               mais uma vez, eu vou embora.
	Pouco depois, Lisa volta a fechar os olhos. A câmara aproxima-se
	muito, o mais possível, dos seus lábios. E então ela murmura, tão
	baixinho que só os espectadores do filme podem ouvir:
	               LISA
	               Continua, continua, continua...
CENA 46 - ESCOMBROS DE QUARTEL - EXTERIOR/NOITE
	Ruínas do que já foi um quartel no centro da cidade. Uma grande
	placa avisa: "ÁREA MILITAR, NÃO ULTRAPASSE". Da construção
	original, sobrou só um pequeno quarto, onde ficam dois beliches
	utilizados como dormitório da guarda. Há uma casamata, bem na
	esquina da rua. Luciano, de guarda na casamata, tenta ler "Um
	Estranho numa Terra Estranha", edição de bolso, mas o sono não
	deixa. Ele guarda o livro. Tira o carregador do FAL e olha as
	balas. Ele está fazendo isso quando surge o SARGENTO-RONDA.
	Luciano assume a posição de "sentido" e se apresenta.
	               LUCIANO
	               Soldado cento e trinta e dois, Luciano, da
	               Companhia de Comando da Terceira Região Militar.
	               SARGENTO
	               (olhando para as balas) Tudo em ordem, soldado?
	               LUCIANO
	               Serviço sem alteração, sargento.
	               SARGENTO
	               Por que tá mexendo no FAL?
	               LUCIANO
	               Eu estava verificando a munição, sargento.
O Sargento pensa em dar uma mijada, mas desiste, não vale a pena.
	               SARGENTO
	               Boa noite. (Faz continência e sai.)
	               LUCIANO
	               (respondendo à continência) Boa noite, sargento.
	               (Fica olhando o sargento se afastar.)
	Luciano começa a recolocar as balas no carregador. Coloca duas.
	Quando está colocando a terceira, sente uma mão se enfiando pelo
	meio das suas pernas. É RODRIGUES, milico como ele, mas com um ar
	mais "marginal". Luciano se vira rápido, em posição de defesa.
	               RODRIGUES
	               Ah, deixa eu segurar o seu FAL, deixa.
	               LUCIANO
	               Porra, Rodrigues, não enche o saco.
	               RODRIGUES
	               Você sabe o quê que o Joaquim disse quando eu
	               acordei ele? (com sotaque de colono alemão) Eu
	               pedi que me acordassem quinze minutos antes! E
	               faltam só cinco! (Pára de imitar) Que cara bem
	               trouxa!
	               LUCIANO
	               Deixa o guri em paz, Rodrigues.
	Rodrigues percebe um casal no outro lado da rua. Ela é Marli, uma
	prostituta; ele é SIDMAR, um prostituto.
	               RODRIGUES
	               Olha ali a Marli! (Assobia) Ô Marli, vem aqui.
O casal acena e atravessa a rua, na direção da casamata.
	               LUCIANO
	               Pelo amor de Deus, Rodrigues. Não vai fazer
	               besteira.
	               RODRIGUES
	               Fica frio, militar. (O casal chega) Marli, eu tô
	               me sentindo tão sozinho...
	               MARLI
	               Isso aí a gente resolve rápido.
	               SIDMAR
	               E eu podia ajudar...
	               LUCIANO
	               Rodrigues...
	               RODRIGUES
	               (Para Sidmar) Sidmar, se você botar o pé aqui, eu
	               juro que te enfio essa baioneta no rabo, entendeu?
	               SIDMAR
	               Ai, que morte gloriosa.
	               RODRIGUES
	               Entra, Marli.
	Nesse momento, vindo da casamata, chega JOAQUIM, um milico alto,
	alemão, com ar estúpido e desengonçado.
	               JOAQUIM
	               O que está acontecendo?
	               RODRIGUES
	               Não te mete, Joaquim.
	               JOAQUIM
	               Eu não vou permitir que...
	               RODRIGUES
	               (já entrando, de mãos dadas com Marli) Não enche,
	               Joaquim.
	               JOAQUIM
	               Alto! Alto! Eu vou denunciar, Rodrigues.
	               RODRIGUES (OFF)
	               (gritando) Experimenta, militar, pra ver o que
	               acontece.
	               LUCIANO
	               (suspirando) Fica frio, Joaquim. Não vale a pena.
	               O ronda já passou. Assume o posto que eu vou
	               dormir.
	Luciano sai, entra no alojamento. Joaquim fica sozinho com
	Sidmar.
	               SIDMAR
	               Não fica triste, querido.
	               JOAQUIM
	               Some daqui.
	               SIDMAR
	               Tu é do interior?
	               JOAQUIM
	               Some.
	               SIDMAR
	               Aposto que tu é do interior, que nem eu. Eu sou de
	               Santana, mas caí na vida em Bagé.
	               JOAQUIM
	               (tirando o FAL do ombro e engatilhando) Some, já!
	               SIDMAR
	               Ai, esse barulho, que coisa máscula.
CENA 47 - ALOJAMENTO - INTERIOR/NOITE
	No interior do alojamento, Luciano tenta dormir, mas Rodrigues
	está trepando com Marli e os dois fazem muito barulho.
	               LUCIANO
	               Pô, Rodrigues, eu quero dormir.
	               RODRIGUES
	               Ele quer dormir, Marli. Não faz escândalo.
E os dois se calam por um instante.
	               RODRIGUES
	               Ai, como o exército é bom!
Marli começa a rir. Luciano vira-se na cama.
CENA 48 - ESCOMBROS DO QUARTEL - EXTERIOR/NOITE
	Sidmar está bem perto da casamata. Joaquim está com o FAL
	apontado para ele, o olho na mira.
	               JOAQUIM
	               (destrava o FAL) Se você der mais um passo, eu
	               atiro.
	               SIDMAR
	               Tu não ia fazer isso comigo... Olha, eu não vou
	               fazer nada de mais. Eu prometo. A gente não pode
	               só conversar?
	               JOAQUIM
	               Eu tô avisando, paisano, eu tenho instruções
	               claras para ...
	Mas a pressão do dedo já é suficiente e o FAL dispara. Sidmar é
	atingido bem no meio da testa e cai. Luciano vem correndo.
	Rodrigues e Marli se vestem, apavorados. Pouco depois, também
	chega o sargento-ronda. Todos ficam em volta do cadáver. Joaquim
	está branco, em estado de choque. Luciano fica paralisado,
	olhando para o corpo.
	               RODRIGUES
	               Sargento, essa bicha também tentou entrar quando
	               eu tava na hora. Eu mesmo alertei o Joaquim para
	               tomar cuidado. Inclusive ele já tinha roubado uns
	               tijolos.
	               MARLI
	               (chorando) O Sidmar nunca roubou ninguém.
	               SARGENTO
	               (para Joaquim) O que aconteceu, soldado?
	               JOAQUIM
	               (lívido, quase uma estátua) Ele queria entrar. Eu
	               matei o cara, sargento.
	               RODRIGUES
	               Sargento, eu assisti tudo. O cara se jogou em cima
	               do Joaquim. (abaixando-se) Inclusive ele tava
	               segurando esse tijolo aqui.
	Rodrigues pega um dos muitos tijolos no chão. O sargento pega o
	tijolo e examina.
	               SARGENTO
	               Eu vou fazer um relatório. Soldado Joaquim, me
	               acompanhe. Soldado Rodrigues, assuma o serviço.
	               RODRIGUES
	               Sim, senhor.
	               SARGENTO
	               Não mexam no corpo.
O sargento sai, com o tijolo na mão, acompanhado de Joaquim.
	               LUCIANO
	               (olhando para o cadáver) O Joaquim errou todos os
	               tiros no treinamento. A pior pontaria da
	               companhia.
	               RODRIGUES
	               (acendendo um cigarro e abraçando Marli, que chora
	               baixinho) Treino é treino. Guerra é guerra. Na
	               guerra o sujeito se supera.
Luciano fica olhando Sidmar sangrar entre os tijolos.
CENA 49 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA
	Luciano está em sua mesa numa sala de redação. É um lugar meio
	decadente, com obras incompletas, móveis improvisados e velhas
	máquinas de escrever. Luciano pega, na gaveta, um saco plástico.
	Dentro do saco, um tijolo. O saco está lacrado e tem várias
	etiquetas do exército.
	               LUCIANO
	               O tijolo, prova número um do inquérito policial
	               militar número dez mil quatrocentos e trinta e
	               seis, barra setenta e nove, que obviamente não deu
	               em nada, roubado da sede da auditoria pelo soldado
	               Luciano de Almeida.
Luciano põe sobre a mesa um roteiro.
	               LUCIANO
	               "O Tijolo", roteiro inédito de Luciano de Almeida,
	               para caso especial de televisão a ser dirigido por
	               Francisco Freire. A Carolina faz a Marli. O Abraão
	               pode ser o Sidmar.
Chico pega o roteiro, folheia.
	               LUCIANO
	               Eu já contei pro Velho, ele achou interessante,
	               que é o máximo que ele acha de qualquer coisa. O
	               problema é o custo.
	               CHICO
	               Por que você não dirige?
	               LUCIANO
	               Por que eu não quero ser diretor, nem jornalista,
	               nem trabalhar em televisão.
	               CHICO
	               E o que você está fazendo aqui?
	               LUCIANO
	               Juntando dinheiro para abrir uma padaria. Já tenho
	               até um sócio uruguaio. Pra abrir uma padaria um
	               sujeito precisa de um sócio uruguaio.
Chico acha graça.
	               LUCIANO
	               É sério.
	O VELHO, um sujeito de uns quarenta e cinco anos, aparência
	cansada, abre a porta que dá para a sala de redação. Faz um sinal
	para Luciano. Ele levanta.
	               LUCIANO
	               Vamos lá. Cadê a fita?
Chico mostra uma fita de vídeo.
CENA 50 - FAZENDA DE SOJA - EXTERIOR/DIA
	Fotos de uma pequena propriedade rural. Uma FAMÍLIA DE COLONOS
	alemães posa pra foto em frente da casa. Detalhe da foto mostra
	um menino de doze anos, UBIRAJARA.
	               CHICO (OFF)
	               Em 1968 esta pequena propriedade rural produzia
	               milho, mandioca, alface, tomate e batata.
	               Ubirajara tinha nove anos.
Imagens da fazenda hoje, coberta de soja.
	               CHICO (OFF)
	               Dez anos depois, o pai de Ubirajara morreu. A
	               fazenda ficou para os cinco filhos, que resolveram
	               plantar soja.
	Depoimento de UBIRAJARA, hoje, com vinte e poucos anos. Fala dos
	custos de produção, das dificuldades em pagar o financiamento
	para o banco e da sua decisão de vir para Porto Alegre.
Ubirajara no ônibus, a caminho de Porto Alegre.
	               CHICO (OFF)
	               Todos os anos, milhares pequenos agricultores
	               expulsos do campo vêm para Porto Alegre. Trazem na
	               bagagem algumas roupas, nenhum dinheiro e o sonho
	               de uma vida melhor.
	Ubirajara trabalhando na construção de um prédio. Ubirajara num
	bar, com amigos. Ubirajara, a mulher grávida e um filho pequeno,
	na frente de um barraco.
	               CHICO (OFF)
	               Ubirajara mora na Restinga Velha, num barraco de
	               uma peça. Sua mulher, Regina, trabalha como
	               doméstica. Seu filho Ricardo, de seis anos, vende
	               marcela na rua, para ajudar no orçamento. Regina
	               está grávida.
	Depoimento de Ubirajara: "Eu quero voltar". Edição de vários
	depoimentos de COLONOS, no interior, e de MORADORES DA VILA. Os
	colonos falam da vontade de vir para Porto Alegre. Os moradores
	da vila dizem que querem voltar para o interior.
CENA 51 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA
	Luciano desliga o vídeo e tira a fita. Entrega para Chico. O
	VELHO está sentado em uma velha escrivaninha, cheia de fitas de
	vídeo e papéis. Um jornal está aberto sobre a mesa. Um enorme
	cinzeiro está cheio de baganas de cigarro. O Velho acende mais
	um. Durante todo o diálogo ele divide a atenção entre Chico e o
	jornal.
	               VELHO
	               (não muito animado) Interessante. Você já sabe o
	               salário?
	               CHICO
	               O Luciano me disse. Tudo bem.
	               VELHO
	               E o horário?
	               CHICO
	               Madrugada, tudo bem.
	               VELHO
	               (para Luciano) O Andrew já terminou a edição?
	               LUCIANO
	               Deve estar terminando.
	               VELHO
	               Diz pra ele dar uma chegada aqui.
Luciano sai.
	               VELHO
	               A audiência do jornal é mínima, mas sempre tem
	               alguém que acorda às sete da manhã e liga a tevê.
	               O patrocinador principal é uma revenda de
	               tratores, o jornal sempre tem matérias de
	               agricultura, previsão do tempo, essas merdas. A
	               editora chefe é a Dona Miriam Junqueira, conhece?
Chico faz que não.
	               VELHO
	               Ninguém conhece, nem o marido. Ela dorme às sete,
	               chega na tevê às quatro, volta pra casa ao meio
	               dia. Ela não dá a mínima pro texto das matérias,
	               desde que não tenha três linguodentais fricativas
	               na mesma frase. Eu já vi ela trocar a frase "os
	               assaltantes são sete" por "os ladrões eram oito".
	               É boa gente.
Chico acha graça. Andrew, com Luciano, entra na sala.
	               VELHO
	               O apresentador do jornal é Rubens Ribeiro, o
	               imbecil mais bem penteado da cidade. Boa gente
	               também. (pausa) Andrew, este é o Chico.
	               ANDREW
	               A gente já se conhece da faculdade. Tudo bem?
Cumprimentam-se.
	               VELHO
	               O Chico vai segurar a outra alça da mala.
	               ANDREW
	               Já avisou das linguodentais fricativas?
	               VELHO
	               Já. (para Chico) Passa no departamento de pessoal
	               pra acertar tudo. Tem certificado de reservista?
	               CHICO
	               Tenho.
	               VELHO
	               Meu pai dizia que tudo que um ser humano precisa é
	               um pênis, um emprego e um certificado de
	               reservista.
	               LUCIANO
	               Então tá tudo em ordem.  
Chico fica esperando mais alguma instrução.
	               VELHO
	               É isso aí, pode ir. (pausa) Você já leu Dante?
Chico faz que não.
	               VELHO
	               Na porta do inferno estava escrito: "Aos que
	               entram, esqueçam suas esperanças".
CENA 52 - VILA DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR/DIA
Seqüência sem diálogos.
	Kombi da TV estaciona na frente de um bar, numa vila pobre de
	periferia. A kombi é cercada por CRIANÇAS. Chico e Andrew descem
	da kombi. Com eles, um CINEGRAFISTA, um OPERADOR DE VT e o
	MOTORISTA. O motorista desce e entra no bar. Andrew está de terno
	e gravata e segura o microfone. Chico dá instruções ao câmara. Um
	CASAL vem falar com Andrew. Andrew reconhece o homem,
	cumprimentam-se.
	Andrew entrevista o casal. O homem aponta para o esgoto que sai
	de uma fábrica, correndo a céu aberto e passando pelas casas.
	Chico orienta o cinegrafista, que faz imagens das crianças
	brincando no valão.
	Os GUARDAS, na portaria da fábrica, não deixam Chico entrar para
	fazer imagens. Chico filma o guarda fechando o portão, pondo a
	mão na frente da lente.
CENA 53 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA
Prossegue a seqüência sem diálogos.
	No monitor da ilha, imagens da vila, das crianças, da fábrica.
	Andrew orienta o EDITOR, que edita a matéria. Chico, de pé, ao
	seu lado, fica acompanhando o processo. Dona MIRIAM dá uma olhada
	desinteressada nas imagens, faz alguma observação e vai embora.
	Chico, insatisfeito, sugere uma mudança na edição. Andrew gosta
	da idéia e orienta o editor, que opera o equipamento. Agora as
	imagens dos guardas no portão aparecem intercaladas com as das
	crianças brincando no esgoto. Andrew e o editor comentam que
	ficou bom. Chico, no seu canto, fica muito satisfeito.
CENA 54 - COZINHA DE CAROLINA - INTERIOR/DIA
	Carolina dá a papinha de José, que agora tem em torno de um ano
	de idade. Ela tem cara de muito sono e ele está a mil, fazendo a
	maior sujeirada. Chico está sentado ao lado dela. Toma café e tem
	os olhos fixos na TV, onde Andrew está apresentando a matéria da
	vila, microfone na mão, fábrica ao fundo.
	               ANDREW
	               ...e é a mesma fábrica que patrocinou (mostrando)
	               esta revista de ecologia. Mas aqui, na vida real,
	               a fábrica despeja milhares de litros de resíduos
	               químicos sobre as casas destas pessoas. A fábrica
	               já foi multada e preferiu pagar a multa a tratar o
	               esgoto.
Os guardas na portaria da fábrica.
	               ANDREW
	               (na TV) Tentamos ouvir os responsáveis pela
	               fábrica mas eles não quiseram nos receber. Parece
	               que aqui a sujeira não está só do lado de fora.
	               CHICO
	               (para Carolina) Olha só essa edição agora...
José dá um tapão no prato e voa mingau pra tudo que é lado.
	               CAROLINA
	               José!
Carolina limpa a mesa com um pano.
	               CHICO
	               Viu só?
	Na TV, o apresentador RUBENS RIBEIRO começa a dar a previsão do
	tempo.
	               CAROLINA
	               Ótima matéria, Chico!
	               CHICO
	               Você não viu a edição.
	               CAROLINA
	               É um absurdo o que esses caras fazem. Pra
	               economizar uns trocados eles jogam o lixo no meio
	               das pessoas, destruindo tudo. E depois posam de
	               defensores do meio ambiente.
	               CHICO
	               Você não viu a edição. A edição final sintetizava
	               tudo.
	Carolina levanta, limpa o rosto de José, enfia o bico na boca da
	criatura, lava o prato na pia, faz dez coisas ao mesmo tempo,
	quase automaticamente.
	               CAROLINA
	               Liga pro aeroporto e confirma a chegada.
	               CHICO
	               Já liguei, confirmado, nove e meia.
	               CAROLINA
	               Fica um pouco com o José que eu fico pronta em
	               cinco minutos. Se o bico cair no chão, lava com
	               água do filtro.
O bico cai no chão. Chico pega o bico, lava na água do filtro.
	               CHICO
	               Tinha uma coisa do movimento da mão do segurança
	               juntar com uma zoom rápida no rosto da criança no
	               lixo, você não viu...
	Chico põe o bico na boca de José. Ele cospe e o bico cai no chão.
	Chico faz uma cara de "ai, meu saco", recolhe o bico e lava no
	filtro outra vez.
	               CHICO
	               (muito sorridente, para José) E a culpa é sua,
	               seu... analfabeto. Porque é isso que você é: um
	               inútil, analfabeto e egoísta. Você sabia que o
	               filho de um búfalo quando nasce tem que sair
	               caminhando em meia hora? Se ele não levanta
	               rapidinho a manada vai embora e ele fica de almoço
	               pros coiotes, não tem moleza não. (pausa) Tua mãe
	               provavelmente vai te dar papinha até os dezoito.
	               Aí você vai procurar outra trouxa que te dê
	               papinha. Não pensa que você me engana, não, que eu
	               te conheço.
Chico enfia o bico na boca de José. Ele joga o bico no chão.
	               CHICO
	               Agora azar o seu, garoto.
José começa a resmungar.
	               CAROLINA
	               (fora de cena) Dá o bico pra ele, Chico!
	Chico junta o bico no chão, assopra, passa na camisa e põe na
	boca de José.
CENA 55 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
	Chico e Carolina, ela com José no colo, entram no aeroporto.
	Caminham rápido pelo saguão.
	               CHICO
	               O vôo já deve ter chegado.
	               CAROLINA
	               Ela deve estar nos esperando. (Aponta em frente)
	               Olha lá o Luciano.
	               CHICO
	               (apertando o passo) Quem é aquela figura?
	               CAROLINA
	               Não sei.
	Eles chegam perto de Luciano e de sua acompanhante, que veste um
	traje "krishna" completo. Só então Luciano e Chico olham direito
	para o rosto da "krishna": é Lisa. Os dois ficam completamente
	patetas.
	               LISA
	               (sorrindo) Hare-krishna.
	               CAROLINA
	               (tentando aparentar normalidade, mas ainda
	               desnorteado) Lisa... Ôi... Hare... Hare-krishna.
	Chico, depois de um momento de hesitação, decide cumprimentar à
	maneira ocidental, com um beijo, mas Lisa o detém com um gesto.
	               LISA
	               (sempre sorrindo, meio beatífica) Desculpe, Chico,
	               mas o beijo é maia. Nós não somos casados.
Chico fica sem saber o que fazer.
	               CHICO
	               Apertar a mão pode?
	               LISA
	               (sorrindo) Pode.
Os dois apertam as mãos.
	               LISA
	               Que bom que vocês vieram. (pausa) Vocês podem me
	               levar até o templo?
	               CHICO
	               Claro.
	Os rapazes pegam as bagagens de Lisa, muito esquisitas. As duas
	meninas vão na frente. Luciano segura Chico pelo braço, deixando
	as duas se distanciarem um pouco.
	               LUCIANO
	               Ela vai morar num templo, e não beija mais
	               ninguém?
	               CHICO
	               Pelo que eu entendi, só se for marido.
	               LUCIANO
	               Por Deus, essa é a maior demonstração de loucura
	               que eu já vi na vida.
	As duas meninas notam que Luciano e Chico ficaram pra trás.
	Carolina faz sinais, chamando-os. Os dois vão correndo até elas.
CENA 56 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
	Chico, Luciano, Carolina e Lisa estão sentados em volta de uma
	mesa, cabeça baixa. Silêncio absoluto, como se estivessem num
	ritual religioso. O apartamento é decorado com tudo que há de
	mais astral: krishnas, budas, macramês e batiques, samambaias e
	George Harrison. Lisa já não veste a roupa krishna.
	               CHICO (OFF)
	               Um dia a Lisa me contou que inventava os sonhos
	               pra contar para o analista. Ela ficava muito
	               ansiosa por não lembrar dos sonhos e começou a
	               inventar, a caminho da sessão, no táxi. Ela achava
	               que dava no mesmo, que inventar pecados é quase o
	               mesmo que cometê-los. Quase.
CENA 57 - CONSULTÓRIO DO ANALISTA DE LISA - INTERIOR/DIA
	Lisa está sentada numa poltrona de couro e gesticula muito,
	contando uma história. O ANALISTA escuta e fala algumas coisas.
	               CHICO (OFF)
	               O problema é que a maioria dos sonhos se passava
	               num táxi, sempre com o motorista como personagem.
	               O analista começou a achar que ela tinha uma
	               fixação em táxi.
CENA 58 - BANCA DE REVISTAS - EXTERIOR/DIA
	Lisa compra uma revista numa banca. O nome da revista é "BONS
	SONHOS".
	               CHICO (OFF)
	               Aí ela comprou uma revista de interpretação de
	               sonhos pra decorar um sonho qualquer que era dado
	               como exemplo, pra contar pro analista.
CENA 59 - RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA
	Lisa caminha nua pela rodoviária. Tenta se esconder com um
	jornal. As PESSOAS passam por ela mas não prestam atenção. Um
	GUARDA se aproxima.
	               CHICO (OFF)
	               Ela leu e contou que tinha sonhado que estava nua
	               na rodoviária quando um guarda aparecia e pedia
	               uma informação. O guarda queria saber onde ele
	               podia pegar o ônibus para Caxias.
CENA 60 - CONSULTÓRIO - INTERIOR/DIA
Lisa termina de contar o sonho pro analista.
	               CHICO (OFF)
	               O analista disse que a análise estava mexendo com
	               ela, que ela estava se sentindo exposta, que eles
	               precisavam falar sobre o pai dela. A revista disse
	               que sonhar com guarda é sinal de sorte e que
	               sonhar com ônibus é camelo.
CENA 61 - BANCA DE BICHO - INTERIOR/DIA
	Lisa conversa com o CAIXA DO BAR. Ele anota o palpite dela no
	bicho: camelo.
	               CHICO (OFF)
	               Ela jogou uma grana no camelo, invertido do
	               primeiro ao quinto. Alguma coisa dizia que o fato
	               de ela ter escolhido especificamente aquele sonho
	               na revista tinha algo a ver com algo, sei lá.
CENA 62 - CASA DE CÂMBIO - INTERIOR/DIA
	Lisa deixa cair alguns dólares. Vai juntar e é ajudada por um
	homem de mãos fortes, braços fortes e cabeça raspada. Ele é
	KRISHNA.
	               CHICO (OFF)
	               Deu porco, mas ela conheceu um uruguaio na casa de
	               câmbio onde foi trocar os dólares para jogar no
	               bicho. O cara era krishna. Eu disse que achava
	               estranho um krishna numa casa de câmbio mas ela
	               não prestou atenção. Ela largou o analista.
CENA 63 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
Os quatro em volta da mesa, ainda em silêncio.
	               CHICO (OFF)
	               Eles foram juntos pra Índia. Aí ela teve uma
	               infecção por estafilococos e voltou pro Brasil.
	               Duas semanas longe do uruguaio e ela deixou de ser
	               krishna. Ela diz que lembra de todos os sonhos.
	               Estes dias ela sonhou com um cavalo e jogou no
	               bicho outra vez. Deu avestruz. É muito difícil
	               ganhar na loteria.
	               LUCIANO
	               (gritando) STOP!
Os quatro, que estavam estáticos, se agitam muito.
	               LISA
	               Não acredito! Você conseguiu bicho com "ene"?
	               LUCIANO
	               Bicho com "ene" é fácil. Difícil foi novela com
	               "ene".
	               CAROLINA
	               Nina.
	               CHICO
	               Ene? Não era "Eme"?
	               LISA
	               Não, Chico, tá brincando que você fez tudo com
	               "Eme"! Eu falei dez vezes, e-ne, e-ne, e-ne!
	               Acorda, Chico! Acorda!
CENA 64 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE
	Chico está na central técnica, com cara de sono, mexendo nos
	controles da mesa. O relógio na parede marca 3:47. Lisa, a um
	canto, observa tudo. Chico aperta os olhos e olha para o monitor.
CENA 65 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
	Carolina, interpretando "Alice no país das maravilhas", agita os
	braços na frente de um fundo azul.
	               CAROLINA
	               Dinah vai sentir muito a minha falta esta noite,
	               eu acho...
	No monitor, graças ao "chroma-key", Carolina-Alice parece estar
	caindo em um poço sem fundo.
	               CAROLINA
	               Dinah, eu queria que você estivesse comigo aqui.
	               Não tem nenhum rato no ar, infelizmente, mas bem
	               que você podia pegar um morcego...
	De repente, o fundo do "chroma-key" termina, e Alice fica
	sacudindo os braços no ar sobre as imagens da reportagem do cano.
CENA 66 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE
	Lisa, bastante divertida, sacode o braço de Chico, que está
	dormindo sentado, em frente ao monitor. Chico cabeceia e olha
	para o monitor, assustado.
CENA 67 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
	Carolina, sem saber o que se passa, continua agitando os braços e
	dando o texto de Alice.
	               CAROLINA
	               ...é igualzinho a um rato, sabe? Gatos comem
	               morcegos? Gatos comem morcegos?
	               CHICO (OFF)
	               (no microfone) Parou. Terminou a base do chroma.
	               São quase quatro da manhã, eu reedito depois.
	               Ficou ótimo.
	Luciano entra em cena, seguido por Andrew. Luciano tem um baseado
	na mão e faz sinais para Chico, apontando para o lado. Carolina e
	Andrew morrem de rir.
	               CHICO
	               Que é isso?
	Chico vê que no monitor onde está escrito "PROGRAMAÇÃO" surge a
	imagem de Luciano. Percebe que a TV está no ar.
	               CHICO
	               (assustado, grita no comunicador) Porra, Luciano,
	               você é louco! Desliga está merda, Luciano!
	               LISA
	               Que foi?
	               CHICO
	               (levantando) Ele ligou o transmissor. A tevê tá no
	               ar! (sai)
	Lisa fica rindo. Luciano pega o livro "Alice no país das
	maravilhas" na mão, dá uma tragada e segura a fumaça nos pulmões.
	               LUCIANO
	               No ar, zê-ipslon-cá-cete, tevê Lisão, canal Cem.
	               (Abre o livro, procura um trecho.) "Era briluz. As
	               lesmolisas touvas roldavam e relviam nos
	               gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas e os
	               momirratos davam grilvos". E agora com vocês,
	               nosso comentarista comunista e pobre, Andrew Silva
	               Terceiro.
	Luciano passa o baseado para Andrew. Ele dá uma tragada e vem
	para frente da câmara.
	               ANDREW
	               Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades
	               democráticas e por uma melhor distribuição de
	               maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la
	               marijuana jamás!
	Chico entra no estúdio e desliga a luz. Luciano entra em cena e
	continua a transmissão clandestina.
	               LUCIANO
	               Camaradas! Mercenários a soldo do capitalismo
	               ianque estão invadindo nossos estúdios. Querem
	               calar a nossa voz, camaradas! A Tele Rebelde,
	               canal nove, uma emissora da Fundação Raul
	               Seixas...
	Luciano fica falando mas não se ouve o que ele diz. Chico cortou
	o som dos microfones. Chico entra em cena, ainda irritado,
	gesticulando muito. Luciano estende o baseado para Chico. Ele
	pára de discutir, pega o cigarro e fuma.
CENA 68 - SALA DE ESPERA DA CRECHE - INTERIOR/DIA
	Chico está sentado num banquinho, numa sala de espera. A
	decoração infantil é supercolorida. As mesinhas e banquinhos dão
	a impressão de que Chico cresceu ou está tendo uma alucinação.
	               CHICO (OFF)
	               "Muito estranhíssimo, muito estranhíssimo, gritou
	               Alice. Eu estou crescendo como um telescópio.
	               Adeus pés".
Chico levanta-se.
	               CHICO (OFF)
	               Quartas-feiras Carolina tinha ensaio até mais
	               tarde e eu buscava o José na escolinha.
	A PROFESSORA surge com José, que agora tem uns quatro anos. Chico
	pega José pela mão e sai.
	               CHICO (OFF)
	               Este era um dos meus poucos rituais, eu não ia à
	               missa desde o primário. De vez em quando eu também
	               ia ao teatro, ver a Carolina.  
CENA 69 - FRENTE DA CASA DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA
	Chico acompanha José até a porta de casa. Carolina abre a porta,
	abraça José.
CENA 70 - CENÁRIO DE TEATRO - INTERIOR/NOITE
	Cenário da peça "Seis personagens à procura de um autor".
	Carolina, com um boneco no colo, faz o papel da MÃE. Abraão,
	aquele que era professor de filosofia, faz o DIRETOR.
	               CAROLINA
	               (desesperada) Meu filho! Meu filho! (sai gritando)
	               Socorro! Socorro!
	               DIRETOR
	               Feriu-se? Feriu-se de verdade?
	               PRIMEIRA ATRIZ
	               (entrando em cena pela direita, penalizada)
	               Morreu! Pobre menino! Morreu! Oh! Que coisa, meu
	               deus...
	               PRIMEIRO ATOR
	               (entrando pela esquerda, rindo) Morto o quê!
	               Ficção, ficção, não acredite!...
	               OUTROS ATORES
	               (gritando) Ficção? Realidade! Realidade! Está
	               morto! Não! Ficção! Mas que ficção? Realidade!
	               Ficção!
	               ABRAÃO
	               (interrompendo, aos gritos) Ficção, realidade! Vão
	               todos para o diabo que os carregue! Luz! Luz! Luz!
	O teatro inteiro se ilumina. Chico, Lisa e Andrew estão na
	platéia.
	               ABRAÃO
	               Ah! Jamais me tinha acontecido coisa semelhante!
	               Fizeram-me perder o dia. Podem ir, podem ir. Que
	               mais querem fazer agora? Muito tarde para
	               recomeçar o ensaio. Até logo à noite!...
Os atores saem todos, cumprimentando o diretor. Ele fica só.
	               ABRAÃO
	               Ó eletricista! Apague tudo!
O teatro cai na mais densa escuridão.
	               ABRAÃO
	               O que é isso? Deixem-me acesa ao menos uma
	               lâmpada, para eu ver onde ponho os pés!
	De repente, por trás do telão branco, como por erro de ligação,
	acende-se um refletor que projeta as sombras dos Personagens. O
	diretor se assusta e foge do palco. A luz volta ao normal. Cai o
	pano. O público aplaude muito. Os atores surgem no palco.
	Carolina está muito feliz, cansada e bonita.
CENA 71 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE
	No camarim lotado, clima de alegria, confusão, todos falando ao
	mesmo tempo. Chico cumprimenta Abraão e lhe apresenta Andrew. Os
	atores todos gritam muito. Chico abraça Carolina.
CENA 72 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE
	Chico, Andrew, Carolina e Abraão comem e conversam. Abraão e
	Andrew embarcaram num papo seríssimo.
	               ABRAÃO
	               Todo teatro é teatro político.
	               ANDREW
	               Eu falo de uma coisa mais popular, mais
	               compreensível.
	               ABRAÃO
	               A idéia de uma dramaturgia popular e outra erudita
	               é ultrapassada e preconceituosa. Shakespeare
	               sempre foi popular. Pirandello pode ser muito
	               popular. Só depende da mídia.
	               ANDREW
	               Eu acho, que por mais que se aperfeiçoem as
	               mídias, satélite, computador, a revolução vai ser
	               anunciada num panfleto, numa pichação de parede.
	               Você acha que Pirandello pode ser eficiente para
	               combater o bombardeio de alienação que a televisão
	               despeja sobre as pessoas todos os dias?
	               ABRAÃO
	               Não menos eficiente que Brecht ou Plínio Marcos.
	               Meu amigo, eu fiquei metade da minha vida
	               esperando uma revolução. A tal revolução ia chegar
	               um dia, para julgar os vivos e os mortos. Eu não
	               sou adventista. Eu acho que é possível fazer
	               coisas que melhorem a vida das pessoas. Teatro é
	               só uma delas. Eu faço o que posso e pra mim isso é
	               que é política: fazer o que você pode. Fazer. É a
	               melhor maneira de dizer. Bertold Brecht.
CENA 73 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE
	Um vidro cheio de ovos de conserva em cima de um balcão, num bar
	de vila. Andrew e um CASAL conversam numa mesa. Eles falam baixo,
	para não dar bandeira.
	               HOMEM
	               O Lima ficou cuidando os carros. Passou um
	               camburão e nós largamos as pás, ficamos encostados
	               na cerca. Eles passaram reto, nem aí.
CENA 74 - RUA DA VILA - EXTERIOR/NOITE
	TRÊS HOMENS cavam um buraco ao lado da rua. Um QUARTO HOMEM fica
	na cerca da casa, cuidando a rua.
	               ANDREW (OFF)
	               Que horas eram?
	               HOMEM (OFF)
	               Onze, onze e dez. Mas o lugar é claro, tinha que
	               ser pra encontrar o cano. É perto do poste. Quando
	               a gente encontrou o cano é que a coisa engrossou.
	               Depois da água jorrar tinha que ser rápido, não
	               dava mais para parar. Uma lasca do cano pegou na
	               perna do Mancha, um corte feio.
	Os três lutam contra o barro e a força da água, tentando encaixar
	um cano no cano quebrado.
	               HOMEM (OFF)
	               Tinha água pra tudo que é lado. O nosso cano tinha
	               uma bitola maior e o cotovelo ficou curto. No meio
	               daquele barral, pra acertar o cotovelo foi um
	               parto. Depois foi frouxo. Tapamos a folga com uma
	               corda e fomos ligando os canos, eu e o Lima. O
	               Pedrão e o Mancha taparam o buraco. Depois foi
	               tapar a vala, encaixar outro cotovelo e distribuir
	               a água, prum lado e pro outro. No começo a água
	               saiu barrenta, depois limpou.
	               ANDREW (OFF)
	               E agora? Não apareceu ninguém pra reclamar?
CENA 75 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE
No bar, Andrew continua entrevistando o casal.
	               HOMEM
	               Muito cedo. Mas os carinhas já devem ter percebido
	               que a força diminuiu lá pra cima. Leva uns dias.
	               MULHER
	               A gente tá organizado em turnos, criança também.
	               Quando eles vierem a gente chama a imprensa, faz
	               barulho. Não sei se vêm alguém. Vocês vêm?
CENA 76 - RUA DA VILA - EXTERIOR/DIA
	Algumas PESSOAS carregam faixas "QUEREMOS ÁGUA". FUNCIONÁRIOS da
	companhia de água cavam no mesmo lugar, sob a proteção da
	POLÍCIA. Andrew, Chico e um CINEGRAFISTA estão lá. As pessoas
	gritam palavras de ordem enquanto Andrew tenta entrevistar o
	CHEFE DOS FUNCIONÁRIOS.
	               CHEFE
	               Eu faço o que me mandaram. Não entendo nada de
	               política.
	               ANDREW
	               Quem foi que mandou?
	               CHEFE
	               O meu chefe. Quer ver a ordem?
CENA 77 - CASA DO CHEFE DO CHEFE - INTERIOR/DIA
	O sujeito, provavelmente DIRETOR DA COMPANHIA de água, dá uma
	entrevista para Andrew na frente de casa. Enquanto ele fala,
	Chico percebe que uma MENINA molha a grama do jardim da casa do
	cara.
	               DIRETOR
	               A distribuição de água obedece a um planejamento
	               técnico rigoroso. Nós não podemos permitir que os
	               moradores interfiram na rede programada conforme
	               sua própria vontade.
Chico chega na orelha do cinegrafista.
	               CHICO
	               Faz o foco na menina do jardim.
	IMAGEM DE VíDEO. O Diretor fica completamente fora de foco. O
	foco é na menina, molhando a grama, feliz, com a mangueira.
	               DIRETOR
	               A água é um direito de todos e deve ser
	               distribuída democraticamente.
Duas crianças, de pé no chão, numa rua coberta de pó.
	               DIRETOR (OFF)
	               Democraticamente...
CENA 78 - SALA DO VELHO - INTERIOR/DIA
	Chico e Andrew estão sentados na frente da mesa do Velho, que
	mostra um ofício.
	               VELHO
	               Essa é a melhor parte. (lendo) "e no momento em
	               que este órgão público se alia a esta emissora
	               numa grande campanha publicitária, é
	               incompreensível o tratamento desonesto a que foi
	               submetido nosso diretor técnico na referida
	               reportagem, etcetera, etcetera". Eles
	               provavelmente vão cancelar a campanha. Vinte mil
	               dólares. E desligaram o cano, de qualquer jeito.
	               CHICO
	               E aí?
	               VELHO
	               Pediram a cabeça dos dois. O coronel já me ligou
	               três vezes. Chamou a edição de "molecagem".
	               CHICO
	               Velho, dá um resumo.
	               VELHO
	               Tudo bem, eu segurei essa. Só que matérias desse
	               tipo eu quero ver antes de ir ao ar.
	               CHICO
	               De que tipo?
	               VELHO
	               Interessantes.
	               CHICO
	               Você ia cortar a matéria?
	               VELHO
	               Não sei, acho que não.
Chico e Andrew levantam pra sair da sala.
	               CHICO
	               Regra número um: toda reportagem é contra alguém.
	               O resto é publicidade.
	               VELHO
	               Regra dois: a publicidade paga o nosso salário.
CENA 79 - SAGUÃO E ELEVADOR DE EDIFÍCIO - INTERIOR/DIA
	Um edifício moderno e luxuoso no centro da cidade. Chico entra no
	elevador.
CENA �� - SEDE DA BRASETIC - INTERIOR/DIA
	Chico chega ao último andar. Uma placa na parede: "BRASETIC
	CONSTRUÇÕES". Chico entra numa pequena ante-sala. LAURA, a
	recepcionista, é elegante e muito bonita. Tem uns trinta anos,
	mas aparenta menos.
	               LAURA
	               Boa tarde, doutor Francisco.
	               CHICO
	               Oi, Laura. O Emílio já chegou?
	               LAURA
	               Ele está na sala do doutor Ernâni.
	Ela usa o interfone. Logo depois, introduz Chico na sala, onde
	estão ERNÂNI (pai de Chico) e Emílio. Laura sai, fechando a porta
	atrás de si.
	               CHICO
	               A Laura é MUITO gostosa. Ôi, pai. Ôi, Emílio.
	               EMÍLIO
	               (constrangido) Fala baixo, ela pode ouvir.
	               CHICO
	               E você pensa que eu já não disse isso pra ela?
	               ERNÂNI
	               (sorrindo, meio sacana) Ela é muito competente.
	               Vocês estão se dando bem, não é, Emílio?
	               EMÍLIO
	               (sem jeito) Muito bem. Quer dizer, ela é muito
	               competente. (envergonhado) Bom, vocês me dão
	               licença?
	 
	Emílio sai da sala. Chico aproxima-se da mesa do pai, que é
	enorme. Na parede da sala, grandes fotos que mostram obras de
	grande porte: estradas, hidroelétricas, edifícios públicos, etc.
	               ERNÂNI
	               E aí, filho, veio pra assinar o teu contrato?
	               CHICO
	               Pai, eu já tenho emprego, esqueceu? Oito horas por
	               dia.
	               ERNÂNI
	               Quanto você ganha?
	               CHICO
	               Eu não discuto o meu salário.
	               ERNÂNI
	               Aquilo não é salário, você não tem emprego. Aqui,
	               além de ganhar decentemente, você vai contribuir
	               para que a empresa cresça. Quatro por cento das
	               ações estão no teu nome, você esqueceu?
	               CHICO
	               (levantando-se) Eu não quero ação nenhuma. Você
	               ainda espera que eu, um dia, chegue aqui nessa
	               mesa e diga "Pai, eu assumo tudo. Vai pra casa
	               descansar que eu cuido do império da família".
	               ERNÂNI
	               Eu não espero nada. Tô te oferecendo um trabalho.
	               Se não quiser tudo bem.
	               CHICO
	               (de pé, junto às primeiras fotos da parede) Que
	               obra é essa?
	               ERNÂNI
	               Uma estação de tratamento de água em Brasília.
	               CHICO
	               Quem era o presidente na época?
	               ERNÂNI
	               Sessenta e cinco? O Castelo Branco.
	               CHICO
	               (apontando outra obra) E essa? (lendo) Avenida
	               Tiradentes, em Goiânia. Obra federal. Quem era o
	               presidente?
	               ERNÂNI
	               Acho que o Costa e Silva. Por que este interesse?
	 
	               CHICO
	               (apontando outra obra) E essa?
	               ERNÂNI
	               Isso é uma rede de esgotos em Belém.
	               CHICO
	               Obra federal. Quem era o presidente? O Médici.
	               (apontando outras fotos) Isso aí é um hospital de
	               Campo Grande. Geisel. Essa aí também tem a data:
	               Figueiredo. Esta é mais nova, rede de esgotos, em
	               São Luiz. Sarney.
	               ERNÂNI
	               E aí?
	               CHICO
	               Pai, só me responde duas coisas: primeiro, como
	               você conseguiu se dar bem com todos os governos
	               que o Brasil teve desde o Jango; segundo, por que
	               você botou a Laura pra trabalhar com o Emílio.
	               ERNÂNI
	               (ri) Ela é eficiente. E eu comecei a trabalhar pro
	               governo com o Juscelino.
	               CHICO
	               E talvez o Emílio acabe comendo ela.
	               ERNÂNI
	               Talvez. Seria bom pra ele. Ela é discreta.
	               CHICO
	               E seria bom pra ele, que é tão tímido. Pai, você é
	               um grande calhorda. (indo em direção à porta) Mas
	               eu te amo.
	               ERNÂNI
	               Vê se liga pra tua mãe de vem em quando.
	               CHICO
	               Eu ligo.
CENA 81 - REPORTAGEM - INTERIOR/NOITE
	Uma reportagem, em vídeo, que Chico e Andrew fizeram sobre
	Abraão. Cenas de Abraão se maquilando, no palco, dando aulas.
	               ABRAÃO (OFF)
	               Eu nem era comunista. Eu só não gostava do que os
	               militares faziam: torturar gente, prender músicos,
	               proibir filmes. E eu fazia teatro, dava aula de
	               filosofia, estas coisas. (...) Os caras que me
	               torturavam me chamavam de "judeu!", "veado!",
	               "atorzinho!". Eles me torturavam por ser tão
	               diferente deles.
Abraão, sentado no cenário da peça, termina de tirar a maquiagem.
	               ABRAÃO
	               Tinha um lado irônico: era tudo verdade, eu era
	               mesmo um atorzinho veado e judeu. Mas não era
	               engraçado. (...) Eu continuo querendo mudar o
	               mundo, eu continuo achando que a mudança se faz
	               por ação política, organizada, e também por ação
	               política individual, eu continuo sendo...
	               esquerdo. Só que eu quero me reservar o direito,
	               neste momento, de não seguir incondicionalmente a
	               opinião da maioria. E aí fica difícil fazer
	               política partidária.(...) Tem uma frase no
	               Orlando... "eu estou crescendo. Estou perdendo
	               algumas ilusões. Talvez para adquirir outras".
	               Tomara que sim.  
CENA 82 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
	Chico desliga o VT. O Velho fica olhando para o monitor apagado.
	Chico e Andrew ficam esperando uma resposta do Velho.
	               VELHO
	               (muito sério) Interessante. Muito interessante. Só
	               que não vai ao ar.
Chico ri, como quem não acredita. Andrew não esboça uma reação.
	               CHICO
	               Por quê, Velho?
	               VELHO
	               (levantando) Chico, por favor, não vamos começar
	               uma conversa adolescente a esta hora. Não vai
	               porque não vai, você é um bom jornalista, sabe por
	               que não vai.
	               CHICO
	               Não, Velho, eu não sou um bom jornalista. Aliás,
	               eu sou um péssimo jornalista. Não vai porque ele é
	               veado, ator ou judeu?
	               VELHO
	               Ele fala que os militares no governo torturavam
	               gente... Não é momento de radicalizar com os
	               militares, você sabe disso.
Andrew ri. Chico guarda a fita, entrega na mão do Velho.
	               CHICO
	               Tudo bem, Velho. Mas eu tô fora. Eu gasto o meu
	               salário em gasolina pra chegar aqui. Já aprendi o
	               que tinha pra aprender nessa tevê. Eu vou sair e
	               botar a boca.
	               VELHO
	               Onde? No bar? Ou no jornal do sindicato? Chico,
	               vai dormir.
	               ANDREW
	               Como é que você se conforma com um papel desses,
	               Velho?
	               VELHO
	               Da mesma maneira que vocês: eu sou pago pra isso.
Andrew levanta, começa a pegar suas coisas, papéis, livros.
	               ANDREW
	               Eu não. Não mais.
	               VELHO
	               Não seja ridículo, Andrew. Vocês têm que, pelo
	               menos, acabar de editar o jornal. Isso não é
	               profissional.
	               ANDREW
	               Então eu não sou profissional. Sabe qual é o seu
	               problema, Velho? É que você cansou. Cansou, de
	               tanto levar porrada, e resolveu colaborar com o
	               inimigo. Tudo bem, dá pra compreender. Mas eu
	               ainda nem comecei e não vou me submeter aos seu
	               critérios nazistas. Eu tô fora.
Andrew sai. Chico senta, fica olhando para o Velho.
	               VELHO
	               E você Chico? Vai pegar ou vai continuar? O prêmio
	               está acumulado em dez milhões. O carro vale
	               quarenta milhões...
	               CHICO
	               Deixa de ser cínico, Velho.
	               VELHO
	               Deus me livre! Ser cínico é que me faz suportar
	               idiotas como vocês dois. O Andrew nem gosta deste
	               Abraão. Disse que ele era um desbundado. E você
	               também, no fundo, tá cagando pra esse Abraão, você
	               quer é ganhar um premiozinho qualquer e comover
	               meia dúzia de donas de casa que acorda cedo pra
	               fazer café pro marido e depois não consegue
	               dormir. "Ele foi torturado? Pobrezinho..."
	               Ninguém vê a merda deste jornal às sete e meia da
	               manhã nessa tevê de merda, Chico, o Ibope de vocês
	               é traço! Não se faz merda de revolução nenhuma
	               dando traço no Ibope.
	O Velho vai saindo. Chico senta na cadeira do editor. Apóia a
	cabeça com a mão.
	               VELHO
	               Termina de editar o jornal e vai pra casa. Amanhã
	               a gente conversa sobre o "Vida Comum".
	               CHICO
	               "Vida Real".
	               VELHO
	               Ou isso, sei lá que programa é esse. Dá pra fazer
	               sem o Andrew?
	               CHICO
	               Não sei.
	               VELHO
	               Ele não te falou que recebeu uma proposta pra
	               trabalhar numa rádio, falou? Três vezes o salário
	               daqui.
Chico fica surpreso, faz que não, com um gesto.
	               VELHO
	               Ele quer sair daqui dando uma de ofendido. E você
	               quer perder o emprego, quer que eu arrisque o meu
	               emprego pelas bichices de um ator.
	               CHICO
	               Você esqueceu de dizer que ele é judeu.
	               VELHO
	               Podia ser pior. Ele podia ser negro.
CENA 83 - EDIFÍCIO DE CHICO - EXTERIOR/NOITE
	Chico chega em casa, muito cansado. Lisa está sentada na escada
	do edifício, evidentemente deprimida. Ela levanta e abraça Chico.
	               CHICO
	               Quê que houve?
	               LISA
	               Minha mãe. Levaram ela pra clínica.
	               CHICO
	               Tua mãe? Que absurdo! Vamos lá.
	E faz meia-volta, carregando Lisa, disposto a partir para a
	clínica.
	               LISA
	               (fazendo Chico parar) Não... é melhor não. Deixa.
	               Amanhã a gente vai lá.
	               CHICO
	               Vamos tirar tua mãe de lá, Lisa, se ela tá mal, só
	               vai ficar pior. Eles vão enfiar um monte de
	               calmantes na velha, e quando ela acordar vão dar
	               mais um monte de calmantes, e todo o dia a mesma
	               coisa.
	               
	               LISA
	               (irritada) O que você entende da vida da minha
	               mãe? Nada. E da minha vida? Nada. Eu não vim aqui
	               pedir opinião, eu vim aqui... (Fica indecisa e
	               depois decide ir embora.) ...eu nem sei por que eu
	               vim aqui.
	Lisa desce as escadas, vai sair do prédio, desiste. Senta na
	escada.
	               LISA
	               Eu não tenho pra onde ir. (pausa) E fui eu que
	               chamei os caras.
	               CHICO
	               Você mandou internar sua mãe?
	               LISA
	               Mandei.
CENA 84 - FESTA DE ANIVERSÁRIO - EXTERIOR/DIA
	Edição de fotos. Dilma, a mãe de Lisa, bem mais jovem, com Lisa
	no colo, com AMIGOS, brincando.
	               LISA (OFF)
	               Tudo o que a minha mãe me deu, depois ela tirou.
	               Toda a minha infância, eu achava que ela era a
	               única mãe legal do mundo. Nunca, nunca, eu quis
	               ter um pai de verdade. Eu gostava de todos os pais
	               que passaram na minha casa. Porque eles estavam
	               com a minha mãe, e a gente se divertia junto.
	               Quando eu cresci, achei que ela também seria a
	               melhor amiga que eu poderia ter. E ela também
	               achou isso. E deixou de ser mãe de repente. E
	               começou a me tirar tudo. Tirava minhas roupas.
	               Roubava minha maquilagem. Tomava todas as drogas
	               que eu levava pra casa. Tentou me tirar um
	               namorado.
CENA �� - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Lisa está deitada. Chico está sentado na cama, ao seu lado.
	               LISA
	               No começo, eu achava tudo legal. Ninguém tinha uma
	               mãe como aquela. Uma mãe que se preocupava quando
	               NÃO tinha maconha na minha gaveta. Mas depois
	               ficou chato. Muito chato. Às vezes parecia que eu
	               era a mãe dela. E ser mãe é chato. (pausa) É muito
	               fácil dizer que não existe loucura, que não se
	               deve internar alguém só porque é diferente dos
	               outros. Outra coisa é ter essa diferença dentro de
	               casa.   
CENA 86 - CASA NÃO IDENTIFICADA - INTERIOR/NOITE
	Uma GAROTA, segurando uma boneca, está sentada no chão, no canto
	da sala, quase embaixo da mesa. Ela tem um olhar assustado e se
	agarra à boneca, tudo muito melodramático. No centro da sala, a
	MÃE abraça um HOMEM de terno e gravata, barba mal feita. Eles
	riem muito. A mãe segura uma garrafa de gim.
	               CIÇA (OFF)
	               No começo eu gostava dos homens que ficavam com a
	               minha mãe. Porque eles estavam com a minha mãe, e
	               a gente se divertia.
CENA 87 - CENÁRIO "VIDA REAL" - INTERIOR/NOITE
	Uma mulher, CIÇA, óculos escuros e lenço no cabelo, fala e chora,
	secando as lágrimas com um lenço.
	               CIÇA
	               Eu achei que ela também seria a melhor amiga que
	               eu poderia ter. (chora) E então ela deixou de ser
	               mãe e passou a ser minha rival. E começou a me
	               roubar tudo. Roubava minhas roupas. Roubava minha
	               maquilagem. Tomava todas as drogas que eu levava
	               pra casa. Tentou me tirar um namorado. (chora) Foi
	               horrível.
	A Mulher está sentada numa cadeira giratória e há um pequeno
	PÚBLICO, umas trinta pessoas, ouvindo a entrevista. Algumas
	pessoas choram, emocionadas. A luz torna-se dramática. Ouve-se a
	voz de um APRESENTADOR, fora de cena.
	               APRESENTADOR
	               Nós não estamos aqui para julgar, nós não estamos
	               aqui para chocar. Nós estamos aqui para contar a
	               história de pessoas como você, para mostrar, sem
	               disfarces, os conflitos e os dramas da "VIDA
	               REAL"! (sobe música)
	Entra vinheta eletrônica: VIDA REAL. Direção e Produção: CHICO
	FREIRE.
	Chico entra no estúdio, roteiro na mão. A Mulher entrevistada
	tira os óculos, seca os olhos.
	               CHICO
	               Muito bom, Ciça, muito verdadeiro. Aquela história
	               da rival foi caco, mas tudo bem.
Ciça pega o roteiro, no chão.
	               CIÇA
	               Não falava em rival? Desculpe, eu achei que podia.
	               CHICO
	               Tudo bem, ficou legal. Quantos quadros a gente já
	               gravou?
Carolina está no estúdio, confere uma planilha.
	               CAROLINA
	               Seis. Este foi o sexto.
	               CHICO
	               Tá bom, amanhã a gente continua. Tem mais alguma
	               coisa hoje?
	               CAROLINA
	               Luciano tá te esperando.
	               CHICO
	               (lembrando) O clipe, eu tinha me esquecido. Você
	               vai?
	               CAROLINA
	               Você disse que não precisava, eu não chamei babá.
	               Eu não posso levar o José, posso?
	               CHICO
	               Melhor não.
CENA 88 - ESTÚDIO DE ENSAIOS - INTERIOR/DIA
	Um estúdio de ensaios caseiro. Lisa empunha uma guitarra à frente
	de um microfone. Mais dois caras: um BAIXISTA e um BATERISTA.
	Eles têm cabelos curtos e se vestem de preto. Chico e Luciano
	gravam um clipe da banda. Chico faz câmara e Luciano segura um
	pau-de-luz. Lisa puxa a introdução da música, que é bem simples,
	mas tem uma melodia interessante. O baixista entra. Logo depois,
	o baterista. Ficam tocando juntos por uns quinze segundos. Lisa
	não está satisfeita. Olha para seus companheiros de banda, que
	não erguem os olhos para ela. Lisa pára de tocar, evidentemente
	contrariada. Mas os dois continuam. Ela espera um pouco, cada vez
	mais puta-da-cara. E então dá uma porrada com a palheta nas
	cordas. Eles não reagem. Lisa dá mais umas três ou quatro
	porradas. Eles continuam tocando. Ela tira a guitarra do ombro e
	a joga no chão. Vai até o amplificador do baixo e tira o plug.
	Barulho típico. O baterista pára de tocar. O baixista tá puto.
	Chico continua gravando tudo.
	               BAIXISTA
	               Me diz uma coisa, cara: você quer queimar o ampli?
	               
	               LISA
	               Eu já disse que essa música não é assim.
	               BATERISTA
	               Puta embalo, Lisa. Tava tri punk.
	               LISA
	               (para Chico) Esse sujeito é a prova de que o uso
	               excessivo de drogas destrói os neurônios. (para o
	               baterista) Essa música NÃO É PUNK. Quantas vezes
	               eu tenho que dizer? Essa banda NÃO É PUNK.
	               BATERISTA
	               Eu não vou fazer som astral.
	               LISA
	               Porra, que merda vocês têm na cabeça? Eu não quero
	               fazer música astral, nem música punk, nem merda
	               nenhuma. Eu não vou seguir merda nenhuma de
	               tendência, não vou copiar banda inglesa, nem
	               americana, nem aquela merda de banda da Finlândia.
	               Eu quero que a Finlândia se fôda!
	Lisa levanta a guitarra sobre os ombros e a atira com toda a
	força em cima da bateria, quase acertando o baterista. Fica todo
	mundo parado, espantado com o ataque de Lisa. Ela se acalma.
	Chico continua gravando.
	               LISA
	               Desculpa. Se estragou alguma coisa, eu pago.
	               LUCIANO
	               Vamos embora, Lisa.
	               BATERISTA
	               (verificando a bateria) Você tá maluca? Pirou?
	               LISA
	               Não. Foi só uma cópia. E mal feita, ainda por
	               cima. Podem ficar com guitarra por enquanto.
	               Tchau. Valeu. (E sai.)
	O baterista continua verificando o instrumento. Luciano vai até a
	janela e abre uma fresta, pra ver Lisa saindo de casa. Chico, que
	continuava gravando tudo, desliga a câmara.
	               CHICO
	               Acho que perdi o foco quando ela jogou a guitarra.
	               O resto ficou legal.
	               LUCIANO
	               (baixinho) Acho que eu tô apaixonado.
CENA 89 - REDAÇÃO - INTERIOR/DIA
	Luciano trabalhando na redação da TV. Ele consulta um mapa do
	céu, verificando a posição das estrelas. Na parede, por trás de
	sua mesa, há uma serigrafia colorida, meio hippie, onde se lê: "A
	coisa mais medíocre que um ser humano pode fazer é pendurar
	frases exemplares na parede do escritório. Lucky Luciano, *
	1959 - + 1999 ".
	               CHICO (OFF)
	               Luciano, na televisão, fazia economia e horóscopo.
	               Ele escrevia os textos que a Madame Mirna lia no
	               Jornal da Mulher, meu programa de televisão
	               preferido.
CENA 90 - CENÁRIO MADAME MIRNA - INTERIOR/DIA
	Cenário de um programa de horóscopo na TV. MADAME MIRNA é uma
	ruiva gordinha com sotaque castelhano. Ela fala olhando levemente
	sobre a câmara.
	               MADAME MIRNA
	               Aos nativos de Câncer a recomendação é cautela e
	               caldo de galinha. O posicionamento de Mercúrio em
	               Virgem e a frente fria argentina favorecem a gripe
	               e os distúrbios pulmonares. Cuidado com pessoa
	               invejosa. Cor bege, número vinte e três.
CENA 91 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/NOITE
	Luciano escreve numa velha máquina Remington. Segura o telefone
	com o ombro. Luciano escuta alguém que fala ao telefone e, em
	intervalos regulares, diz "hum-hum".
	               CHICO (OFF)
	               Economia parecia ser bem mais fácil.
	               LUCIANO
	               Sessenta? (...) Setenta e dois. (...) Hum-hum.
	               (...) Sei. (...) Rogério, eu escuto esta conversa
	               desde março. (...) Certeza? (...) Isso vai dar uns
	               quarenta e cinco por cento numa semana... (...) E
	               dá pra acreditar? (...) Claro, Rogério, nem
	               precisa falar. Sigilo absoluto.
CENA 92 - BAR DA TV - INTERIOR/NOITE
	Luciano toma uma cerveja e fala com o Velho, Chico e quem mais
	quiser ouvir.
	               LUCIANO
	               Quarenta e cinco por cento numa semana, talvez
	               cinqüenta. Depois não digam que eu não avisei. Eu
	               estou botando nessas ações o dinheiro de quatro
	               investidores. Todo o dinheiro que eles têm.
	               CHICO
	               Eles toparam?
	               LUCIANO
	               Se eles soubessem, topariam, tenho certeza.
Chico e o Velho ficam olhando para Luciano, sem acreditar.
	               LUCIANO
	               Eu vou vender o meu carro, o terreno na Guarda e
	               os dólares que eu guardei. Vou pedir emprestado
	               todo o dinheiro que eu conseguir, pago vinte por
	               cento de juros em quinze dias.
	               VELHO
	               E se der errado?
	               LUCIANO
	               Ai, meu santo... Será que Cristóvão Colombo tinha
	               um sujeito cutucando ele e dizendo "e se der
	               errado?".
	               VELHO
	               Vários, certamente.
	               LUCIANO
	               Não vai dar errado, Velho. Júpiter em Sagitário,
	               Mercúrio em Libra, não tem como dar errado.
CENA 93 - CENTRO COMUNITÁRIO - EXTERIOR/NOITE
	Uma festa de casamento. O lugar é um centro comunitário da
	periferia de Porto Alegre. Tem uma churrasco sendo feito numa
	churrasqueira enorme, chopp servido em copos de papel num balcão
	e um MONTE DE GENTE mais ou menos pobre em roupas de festa. Os
	noivos, Andrew e SÍLVIA, recebem os cumprimentos. Sílvia é uma
	mulher morena, bonita e evidentemente grávida. Chico e Carolina
	esperam na fila dos cumprimentos. Andrew avista Chico e sorri.
	Chico e Carolina se aproximam. Se abraçam, todos muito
	sorridentes.
	               CAROLINA
	               Parabéns! (para Sílvia) Você está linda!
	               SÍLVIA
	               Obrigado. O Andrew fala em vocês toda hora. Que
	               bom que vocês vieram.
	               CHICO
	               (cumprimentando Andrew) Parabéns. Pelo casamento e
	               pelo sucesso.
	               ANDREW
	               Obrigado. Depois a gente fala com mais calma. E o
	               Luciano?
	               CHICO
	               Disse que vinha. Nunca se sabe.
	               ANDREW
	               Vocês já comeram?
	Chico e Carolina tentam comer churrasco e salada de batata num
	prato de papel apoiado sobre os joelhos. Carolina resolve o
	problema pegando um pedaço de costela com a mão. Andrew tenta
	fazer um discurso. A festa tem um conjunto que toca música
	caribenha, salsa, essas coisas. A música é muito alta e todos
	gritam muito. Chico avista Luciano e Lisa. Ela está linda, feliz
	e levemente drogada, na boa. Luciano está estranhamente bem
	vestido. Se cumprimentam. Luciano está eufórico e conta alguma
	coisa para Chico e Carolina. Eles ficam parados, de boca aberta.
	Luciano gesticula muito. Chico larga o prato de churrasco e faz
	sinal para que Luciano o acompanhe até o lado de fora do salão.
	Lisa senta ao lado de Carolina.
CENA 94 - CANCHA DE FUTEBOL DE SALÃO - EXTERIOR/NOITE
	Chico e Luciano estão numa cancha de futebol de salão e basquete
	do centro comunitário.
	               LUCIANO
	               Tenho que descontar os impostos, a comissão de um
	               agente financeiro, tenho que devolver a grana que
	               me emprestaram... Eu acho que sobra uns... quase
	               cem mil.
	               CHICO
	               Cem mil?
Luciano concorda.
	               CHICO
	               Cem mil dólares?
Luciano concorda.
	               CHICO
	               Você ganhou - você, Luciano - cem mil dólares na
	               bolsa, em uma semana?
	               LUCIANO
	               Doze dias.
	               CHICO
	               Você ficou rico, você agora é um homem rico, um
	               milionário!
Luciano concorda.
	               CHICO
	               O que você vai fazer com cem mil dólares?
	               LUCIANO
	               O que a gente pode fazer com cem mil dólares? Vou
	               gastar.
CENA 95 - CENTRO COMUNITÁRIO - INTERIOR/NOITE
Inicia seqüência sem diálogos.
	Chico, Carolina, Lisa, Luciano, Andrew e Sílvia dançam no meio do
	salão. Todos parecem muito felizes e já estão suficientemente
	alcoolizados para perder a noção do ridículo. A banda ataca uma
	salsa explosiva.
CENA 96 - LUCKY BREAD - EXTERIOR/DIA
	Chico e Luciano observam os operários que terminam a fachada da
	"LUCKY BREAD, Delícias Naturais". Luciano dá algumas instruções
	aos operários. IBARRI, um sujeito de bigode, relógio Rolex,
	corrente de ouro no pescoço, camisa e gravata, se aproxima de
	Luciano. Luciano apresenta o sujeito para Chico.
CENA 97 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA
	Ciça e outros atores contam tragédias e choram. O público chora e
	aplaude. É a gravação do "Vida Real".
CENA 98 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
	Luciano, Chico, Carolina e Lisa assistem "Vida Real". Todos,
	menos Carolina, acham muita graça no clima exageradamente trágico
	do programa.
CENA 99 - PARQUE - EXTERIOR/DIA
	Num parque florido, uma EQUIPE DE PRODUÇÃO prepara a gravação de
	um comercial. É o cenário de um piquenique: toalha estendida na
	grama, entre as flores, um monte de pães, de diferentes tipos,
	dentro de uma cesta de vime. O MAQUILADOR, a CABELEIREIRA e a
	MANICURE preparam uma modelo, RENATA, para entrar em cena. Chico
	e Luciano discutem baixinho, longe da modelo.
	               CHICO
	               Não dá, cara. Olha, nós já ensaiamos duzentas
	               vezes. Essa guria não vai conseguir dar o texto.
	               LUCIANO
	               Claro que vai, Chico, olha lá que gracinha.
	               CHICO
	               Eu odeio esse negócio, eu odeio publicidade.
	               LUCIANO
	               Claro. Publicitário tem que morrer, você já me
	               disse isso trezentas vezes. Acontece que a gente
	               precisa de dinheiro para o projeto, acontece que
	               você aceitou fazer este comercial, acontece que eu
	               quero vender bastante pão e acontece que a gente
	               só tem mais uma hora de equipamento.
	               CHICO
	               Eu não posso fazer um comercial que vai ser pior
	               que todos os comerciais que eu odeio.
	               LUCIANO
	               Chico, o sol tá caindo, Chico... (Aponta a
	               modelo.) Olha lá a Renata. Ela é linda. Ela vai
	               comer o meu pão e dizer que é gostoso, macio e
	               fofinho. Todo mundo vai acreditar nela, porque ela
	               é linda. Publicidade é só isso.
	Chico fica olhando para Luciano. Depois dá uma olhada para
	Renata. Ela dá um sorriso simpático para Chico. Chico retribui.
CENA 100 - APTO.DE LUCIANO - INTERIOR/NOITE
	A tela de uma TV colorida. Renata começa a comer o pãozinho,
	linda e simpática. Musiquinha no fundo. Ela fica comendo o pão,
	com mordidas pequenas.
	               LOCUTOR 1
	               Cláudia foi contratada para dizer que os pãezinhos
	               da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. A
	               Cláudia foi escolhida por que ela também é
	               gostosa, macia e fofinha. Ela está ganhando um
	               ótimo cachê só para dizer isso, que os pãezinhos
	               da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. É
	               um serviço fácil. Cláudia... Basta parar de comer
	               e dizer que os pãezinhos da Lucky Bread são muito
	               gostosos, macios e fofinhos. Ela sabe o texto de
	               cór, já ensaiou várias vezes. Ela é uma
	               profissional. Cláudia, por favor... Cláudia,
	               Cláudia!
	Ela ainda está comendo. Entra a assinatura da Lucky Bread, com a
	locução final.
	               LOCUTOR 2
	               Pãezinhos Lucky Bread. Experimente, e depois nos
	               diga se eles não são gostosos, macios e fofinhos.
	Chico, Carolina, Luciano e Renata estão na sala do apto. de
	Luciano, onde se reuniram para tomar cerveja e ver a primeira
	veiculação do comercial. Carolina e Luciano aplaudem,
	entusiasmados.
	               CAROLINA
	               Ficou ótimo!
	               CHICO
	               É... podia ser pior.
	               RENATA
	               (sem entender) E o meu texto?
	 
	               LUCIANO
	               (beijando Renata) Era um subtexto.
Renata continua sem entender.
	               LUCIANO
	               Subtexto... um texto que fica por baixo do outro,
	               não aparece, é super comum nos comerciais, eles
	               usam muito nos Estado Unidos. (Dá outro beijo)
	               Parabéns, Cláudia, você tá linda.
Renata fica mais contente.
	               RENATA
	               Obrigado.
	               LUCIANO
	               E eu vou vender montanhas de pão. Parabéns, Chico,
	               
	               CHICO
	               Publicitário tem que morrer.
	               LUCIANO
	               (erguendo o copo de cerveja) Longa vida ao Chico,
	               um publicitário que um dia vai morrer.
	               CAROLINA
	               Ao "Tijolo"!
	               CHICO
	               Muitos tijolos!
Todos brindam, alegres. Luciano dá um longo beijo em Renata.
CENA 101 - BAR - INTERIOR/NOITE
	O Velho está numa mesa de bar, sozinho. Na sua frente, um copo
	com um resto de chopp, várias "bolachas" e um copinho de cachaça.
	Ele faz sinal para o GARÇOM, que passa sem lhe dar atenção. Chico
	entra no bar, procura e encontra o Velho. Vai até a mesa.
	               CHICO
	               Sozinho?
	Velho vira-se com a dificuldade natural dos bêbados, olha para
	cima, reconhece Chico.
	               VELHO
	               (discursando) Sozinho, não! Com os trabalhadores
	               na luta pelo socialismo!
Chico puxa uma cadeira e senta.
	               CHICO
	               Eu preciso falar com você.
	               VELHO
	               Quando alguém que JÁ está falando com você diz que
	               precisa falar com você, pode ter certeza que tem
	               sacanagem no meio. Tem, teve ou vai ter.
	               CHICO
	               Eu vou sair da tevê.
	               VELHO
	               Não te falei? Eu não disse? No caso, VAI TER
	               sacanagem.
	               CHICO
	               O Luciano vai abrir uma produtora, me convidou pra
	               trabalhar com ele.
	               VELHO
	               Você vai virar publicitário. Publicitário é um
	               sujeito num balcão com uma caneta de ouro atrás da
	               orelha. "Queira mais, patrão". (chamando) Garçom!
	               Ôoo... Chumbo! Pelo amor de deus, Chumbo, faz duas
	               horas que eu pedi um conhaque e um chopp! Quer o
	               pedido por escrito?
	               CHICO
	               Velho, eu quero é fazer os meus projetos. A minha
	               condição pra trabalhar na produtora é não fazer SÓ
	               comerciais. Eu tenho um projeto com a Carolina, "O
	               Tijolo", um especial pra televisão, o roteiro é do
	               Luciano, eu já te mostrei.  
	               VELHO
	               Se você que virar publicitário, tudo bem, eu
	               entendo. Publicitário vive cercado de modelos
	               maravilhosas, trabalha pouco, se diverte muito...
	               Em compensação ganha uma fortuna. Tudo bem, Chico.
	               Vai fundo.
	O garçom chega e larga dois copos de chopp na mesa. Chico faz
	menção de devolver o dele, o Velho não deixa.
	               VELHO
	               E o conhaque? Ôoo... Chumbo! E o conhaque?
Chumbo já foi.
	               VELHO
	               Deixa aí! Vamos fazer um brinde... um brinde... ao
	               Chumbo! Um brinde ao Chumbo, que não vai virar
	               publicitário e, um dia, vai me trazer o conhaque.
	               CHICO
	               Ao Chumbo!
CENA 102 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Chico dorme. O porteiro eletrônico bate várias vezes seguidas.
	Chico acorda e vai atender. É a voz de Luciano
	               LUCIANO (OFF)
	               Chico, desce.
	               CHICO
	               Quê que houve?
	               LUCIANO (OFF)
	               Desce. Eu te explico no caminho.
CENA 103 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/NOITE
Luciano dirige em grande velocidade por uma avenida.
	               LUCIANO
	               Colocaram uma camisa de força nela e arrastaram
	               pra dentro da ambulância. Ela tava gritando o meu
	               nome. O vizinho pegou a guitarra, que era toda
	               rabiscada, achou meu número e telefonou.
	               CHICO
	               Quem foi que chamou a clínica?
	               LUCIANO
	               Não sei. Quem atendeu o telefone foi a Cláudia, eu
	               estava no banho. Deve ter sido a mãe.
	               CHICO
	               Que Cláudia?
	               LUCIANO
	               A Renata.
	               CHICO
	               Você avisou a Carolina?
CENA 104 - FRENTE DA CLÍNICA / PORTARIA - INTERIOR/NOITE
	Carolina já está na portaria, discutindo com um SEGURANÇA. Chico
	e Luciano entram.
	               CAROLINA
	               Esse imbecil tá dizendo que a gente não pode
	               entrar.
	               SEGURANÇA
	               Vocês são familiares?
	               LUCIANO
	               Eu sou, sou irmão dela. A minha mãe taí?
	               SEGURANÇA
	               (desconfiado) O senhor tem uma carteira de
	               identidade?
	               LUCIANO
	               Claro que eu tenho carteira de identidade, mas não
	               aqui comigo, agora. Eu saí correndo de casa. Mas o
	               senhor, por favor, chame a minha mãe, ela deve
	               estar aí com a Lisa, não está?
O segurança, irritado, verifica uma ficha.
	               SEGURANÇA
	               (pelo telefone interno) Por favor, senhora Dilma
	               Reis, queira comparecer à recepção.
Chico leva Luciano para um canto.
	               CHICO
	               Qual é a idéia, Luciano? Eu não estou entendendo.
	               LUCIANO
	               No mínimo eu vou dar umas porradas nela.
	               CHICO
	               Isso não resolve nada.
Uma porta abre. Surge a mãe de Lisa.
	               CHICO
	               (para o segurança) Vocês estão cometendo um erro.
	               Esta senhora já esteve internada aqui, dois anos
	               atrás. Você não lembra dela?
	Dilma bota os óculos escuros, o que só contribui para a armação
	de Chico.
	               CHICO
	               Pode conferir aí nos arquivos... Dilma Reis.
	               Ela... tem problemas. O senhor há de concordar
	               comigo que ela não tem condições de atestar sobre
	               a saúde mental da filha...
	               DILMA
	               Chico, pára com isso.
	               SEGURANÇA
	               (confuso) Eu não posso ver os arquivos daqui.
	               CHICO
	               Então chama um médico.
	               DILMA
	               (baixo, para Chico) Chico, não faz isso comigo,
	               Chico...
	               CHICO
	               (baixo, para Dilma) Manda soltar a Lisa.
	               DILMA
	               Ela tá muito perturbada, Chico. Ela tá violenta.
	               Eu não tenho mais condições de...
	               CAROLINA
	               Ela não vai voltar pra sua casa. A gente toma
	               conta, pode deixar.
	               DILMA
	               Ela não me respeita mais.
	               LUCIANO
	               (para o segurança) Você não está vendo que ela é
	               que é maluca? Vê a ficha dela!
	               CHICO
	               Calma, Luciano.
	O segurança pega o telefone outra vez. Logo depois, surge um
	ENFERMEIRO, muito forte.
	               ENFERMEIRO
	               Qual é o problema?
	               CAROLINA
	               O problema é que essa senhora é toxicômana e
	               mandou internar a própria filha.
	               ENFERMEIRO
	               (olhando bem para a mãe de Lisa) Eu conheço a
	               senhora...
	               CHICO
	               Claro, ela esteve internada aqui, há dois anos.
	               ENFERMEIRO
	               (para Dilma) Como é o nome da senhora?
	               DILMA
	               Olha doutor, minha filha está doente...
	               ENFERMEIRO
	               Como é o seu nome?
	               DILMA
	               Dilma. Dilma Reis.
	               ENFERMEIRO
	               Com licença.
E sai. A mãe de Lisa fica desconcertada.
	               CHICO
	               Dona Dilma, vamos fazer um acordo.
	               LUCIANO
	               A gente sabe que a Lisa não tá legal, mas aqui ela
	               não pode ficar.
	 
	               DILMA
	               Mas eu não posso...
	               CAROLINA
	               A gente fica com ela, Dona Dilma. A senhora sabe
	               que nós gostamos dela.
	               DILMA
	               Ela não tem dinheiro.
	               LUCIANO
	               Eu me responsabilizo.
	               DILMA
	               Eu sou mãe dela, e ninguém gosta dela mais do que
	               eu. E se eu trouxe ela pra cá, era pro bem dela.
	Dilma caminha nervosamente pelo saguão. Pára, pega um cigarro. Vê
	que há uma grande placa de NÃO FUME na parede. Guarda o cigarro.
	               DILMA
	               Vocês tem que me prometer que ela não vai ficar
	               sozinha, nem um minuto, nem um segundo. (pausa) Se
	               acontecer alguma coisa com ela, eu juro que mato
	               vocês.
CENA 105 - CALÇADA DA CLÍNICA - EXTERIOR/NOITE
	Lisa sai da clínica, amparada por Luciano. Ela está dormindo em
	pé e mal consegue caminhar.
	               CHICO (OFF)
	               Nós tiramos a Lisa da clínica meia hora depois,
	               mas ela já estava dopada. Dormiu quase vinte horas
	               seguidas.
CENA 106 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA
	Chico e Carolina esperam o desembarque de um vôo. Carolina sorri
	e aponta para Luciano e Lisa. Eles parecem muito felizes e
	cansados, cheios de presentes e malas.
	               CHICO (OFF)
	               Quando acordou, na casa do Luciano, disse que
	               estava a fim de viajar. Ele comprou duas passagens
	               para Nova Iorque. Ele sempre quis cuidar da Lisa,
	               ser responsável por ela. Foram pra passar um mês,
	               voltaram oito dias depois, de casamento marcado. O
	               Luciano dizia sempre que era um homem do seu tempo
	               e tinha pressa. O que ele não dizia é que a frase
	               era do Médici.  
CENA 107 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/DIA
	Luciano e Chico, de terno e gravata, entram num grande e luxuoso
	escritório. O escritório é decorado com grandes fotos de vacas,
	garrafas de leite e queijos. DAVI levanta de sua mesa e
	cumprimenta Luciano.
	               DAVI
	               Lucky Luciano!
	               LUCIANO
	               Fala, Davi!
Luciano apresenta Chico.
	               LUCIANO
	               Davi, este é o famoso Chico Freire, o mago das
	               telinhas.
	               DAVI
	               O Luciano não pára de falar do seu trabalho.
	               CHICO
	               O Luciano normalmente não pára de falar. Ele
	               exagera um pouco.
	               DAVI
	               No seu caso, eu não acho. Eu já vi o seu trabalho
	               e é realmente muito bom.
	               CHICO
	               Obrigado.
	Davi apresenta dois assessores, GUSTAVO e LÚCIO, e uma
	secretária, dona LOURDES.
	               DAVI
	               GUSTAVO, do departamento de marketing, Doutor
	               Lúcio, do jurídico, Dona Lourdes... Vamos sentar.
	Chico cumprimenta a todos e vai sentando numa grande sala de
	reuniões.
	               DAVI
	               Nós fomos colegas de Anchieta, não da mesma turma,
	               eu era um pouco mais velho. Não sou mais.
	Os assessores riem muito. Chico faz cara de quem tenta se lembrar
	de Davi no colégio.
	               DAVI
	               No colégio me chamavam de Roal, meu nome é Davi
	               Roal, mas eu não queria que pensassem que eu era
	               judeu. Agora eu quero.
Os assessores riem muito.
	               DAVI
	               O Gustavo vai expor rapidamente qual é a nossa
	               estratégia de marketing, nosso target, e qual é o
	               recall esperado com essa campanha.
	Gustavo, o assessor de marketing, começa a falar e mostrar
	gráficos e alguns panfletos com fotos de mulheres de maiô comendo
	iogurte. Chico finge que presta muita atenção. Um GARÇOM serve
	cafezinho e iogurte para todos. Luciano faz alguns comentários
	durante a exposição de Gustavo.
	               CHICO (OFF)
	               Quando eu fiz faculdade, achava que jornalistas
	               falavam a verdade por opção ideológica, e
	               publicitários mentiam profissionalmente. Os meus
	               colegas, tanto os estudantes de publicidade quanto
	               de jornalismo, também achavam isso. Os próprios
	               professores achavam isso. E hoje eu me pergunto:
	               como um engano tão grande enganou tanta gente
	               durante tanto tempo? Como eu acreditei que era
	               possível dividir tão facilmente as pessoas em dois
	               times, o meu time e o time deles? E como eu fui
	               capaz de trocar de time enquanto ainda acreditava
	               nisso?
CENA 108 - OBRAS DA PADARIA - INTERIOR/DIA
	Durante todo o diálogo, Chico e Luciano caminham pela obra da
	padaria.
	               CHICO
	               Roal ou Davi, ele continua sendo um imbecil. Ele
	               sempre foi e sempre vai ser um imbecil. Lembra
	               quando ele ganhou aquele mini-bug no concurso?
	               LUCIANO
	               (balançando a cabeça) Chico, deixa eu te explicar
	               uma coisa. Uma produtora de comerciais faz
	               comerciais. Sacou? (articula bem a palavra) Co-
	               mer-ci-ais. A palavra vem de comércio, que
	               significa troca de mercadorias, de serviços, de
	               idéias, de qualquer porra, por dinheiro. Você não
	               pode se recusar a fazer esse ou aquele comercial.
	               O raciocínio é o oposto: você quer fazer
	               (articulando) qual-quer comercial, se pagarem o
	               que você pede. E o Davi tem muita grana, pode até
	               sustentar a produtora.
	               CHICO
	               Luciano, eu não disse que eu não vou fazer o
	               comercial. Eu disse que a gente poderia ter uma
	               produtora diferente das outras, uma produtora mais
	               seletiva, que a princípio não aceitasse fazer
	               qualquer merda. Eu acho que isso, a longo prazo...
	               LUCIANO
	               Uma merda bem feita e bem paga é absolutamente
	               digna, Chico. Nós estamos há três horas nessa
	               discussão. Eu te propus um negócio, uma coisa
	               séria, montar uma produtora pra poder viabilizar
	               os teus projetos, os nossos projetos. Você não
	               quer fazer "O Tijolo" com a Carolina, vocês não
	               falam disso há anos, se queixando que não tem
	               espaço, que ninguém apóia a cultura?
	No meio do discurso, Luciano grita com TONHO, o operário que está
	rebocando a parede da obra.
	               LUCIANO
	               (gritando) Tonho, essa parede não era pra tá
	               pronta desde ontem?
	Tonho pára, olha para Luciano, mas não chega a responder porque
	Luciano se afasta, puxando Chico e retomando o assunto.
	               LUCIANO
	               A produtora é uma chance de você ganhar dinheiro
	               com o teu talento e ainda por cima viabilizar os
	               teus projetos. Quando tudo isso está a um passo de
	               se tornar possível, você vem com esse papo de
	               coerência política! Tudo bem, Chico, você não é
	               obrigado a ser meu sócio.
	               CHICO
	               Luciano, você sabe que, se fosse só pela grana, eu
	               tava trabalhando com o meu velho na construtora.
	               Podia ser vice de qualquer coisa.
	               LUCIANO
	               Então vai, cara. Vai ser vice de qualquer coisa.
	Luciano estende um projeto arquitetônico sobre uma mesa, no meio
	da obra. Fica examinando o projeto, como se considerasse a
	conversa encerrada.
	               CHICO
	               Você sabe que eu não gosto de publicidade.
Sem olhar para Chico.
	               LUCIANO
	               Sei. Eu também não gosto. Prefiro ficar em casa
	               fumando um e vendo a sessão da tarde na tevê.
	 
	               CHICO
	               Eu tô falando sério. Se a gente vai ser sócio, as
	               coisas têm que ficar claras.
	               LUCIANO
	               (ainda olhando para baixo) Mais claras,
	               impossível. Eu entro com a grana, monto a
	               estrutura, tomo uísque com caras como o Davi e
	               consigo trabalho. Você faz com que os trabalhos
	               fiquem bons. É simples. Eu tenho setenta por cento
	               da empresa, você tem trinta. E mais os cachês por
	               cada trabalho que você dirigir.
	               CHICO
	               Luciano, falando sério, você sabe que o único
	               comercial que eu fiz na vida foi aquele do "Lucky
	               Bread". Você sabe que eu não gosto disso. Por que
	               você acha que eu vou ser um bom sócio?
	               LUCIANO
	               (agora olhando diretamente para Chico) Porque
	               poucas pessoas na cidade são capazes de fazer um
	               bom comercial do "Lucky Bread". E nenhuma, entre
	               essas pessoas, ainda têm coragem de falar em
	               coerência política. (pausa) A gente pode se
	               divertir e ganhar dinheiro ao mesmo tempo. Se
	               divertir e ganhar dinheiro é o meu ramo de
	               negócios. Você tem que descobrir qual é o seu.
	               CHICO
	               Eu pensava que era jornalismo.
	               LUCIANO
	               Isso não é ramo. É doença.
	Chico vai responder, mas desiste. Fica olhando para Luciano, com
	uma expressão de tédio e derrota.
CENA 109 - PISCINA DE COMERCIAL - EXTERIOR/DIA
	Uma MODELO morena, vestindo um maiô, pula do trampolim para a
	água. A entrada na água é perfeita, num ângulo de 90 graus. O
	movimento é registrado em câmara super lenta. Só ouvimos o
	barulho da câmara rodando.
	               CHICO
	               Corta! (Olha para o diretor de fotografia.) Valeu?
O diretor de fotografia faz sinal de positivo.
	               CHICO
	               Então deu pra nós. Parabéns pra todos. (gritando,
	               para a modelo) Pode te vestir. Obrigado.
	Chico senta num banquinho, suspirando, satisfeito porque a
	tortura acabou. Mas GERALDINHO, um rapaz da agência, rapidamente
	se agacha ao seu lado.
	               GERALDINHO
	               (sussurrando) Nós vamos fazer de novo esse último
	               plano?
	               CHICO
	               (sem dar muita atenção) Não, esse último ficou
	               ótimo. E tem mais duas opções.
	               GERALDINHO
	               A gente podia tentar com aquela outra modelo.
	               CHICO
	               A outra cai de barriga. Quase se afogou no ensaio.
	               GERALDINHO
	               É que... o doutor Gustavo acha a outra mais
	               bonita.
	               CHICO
	               (tentando colocar um ponto final) Então ele paga
	               um cursinho rápido de natação pra ela. Geraldinho,
	               o comercial vai ficar ótimo. Não te preocupa.
	Geraldinho levanta e caminha até onde está Gustavo, que sorri
	para todos os lados. Geraldinho fala com ele, que não gosta do
	que ouve. Geraldinho aproxima-se de Luciano e fala com ele.
	Chico está conversando com o diretor de fotografia. Luciano
	aproxima-se, abraça Chico e o leva para um canto.
	               LUCIANO
	               Vamos fazer de novo o último plano.
	               CHICO
	               Pra quê? Ficou ótimo!
	               LUCIANO
	               O cliente chegou atrasado. E viu que a gente não
	               usou a modelo que ele prefere.
	               CHICO
	               Azar o dele.
	               LUCIANO
	               É ele que aprova o comercial, Chico. (irritado) O
	               que você prefere? Fazer agora, que tá tudo pronto,
	               ou voltar daqui a uma semana?
	Chico vai responder, mas desiste. Olha para Luciano, com uma
	expressão de tédio e derrota. Uma OUTRA MODELO, loura, prepara-se
	para saltar do trampolim. Está nitidamente nervosa, mas disfarça
	sorrindo amarelo. Ela salta. A entrada na água é desastrosa, de
	barriga. Assistimos a tudo em câmara super-lenta.
CENA 110 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
	Chico tenta editar o comercial dos maiôs. Luciano está sentado ao
	lado de Chico e fala sem olhar para o monitor. Chico, ao
	contrário, não tira os olhos da tela. No monitor, a modelo loura,
	num trampolim, prepara-se para mergulhar na piscina.
	               LUCIANO
	               Um candidato é um produto como qualquer outro,
	               Chico. Um biscoito, um iogurte, um maiô.
	               CHICO
	               (irônico) Tá bom...
	A modelo loura pula do trampolim e cai de barriga na água. O
	EDITOR congela a cena, volta lentamente a imagem até o ponto em
	que a modelo loura quase toca na água.
	               LUCIANO
	               Qual a diferença?
	               CHICO
	               A diferença é que o biscoito não quer ser prefeito
	               da cidade, o iogurte não vai mandar transferir as
	               favelas, o maiô não vai dizer onde o ônibus vai
	               passar.
	O monitor agora mostra a imagem submarina da modelo morena
	mergulhando, em câmara-lenta. O editor congela a imagem no
	momento em que se percebe claramente que o cabelo dela é preto.
	Ele recua a imagem alguns quadros antes. Ele aciona a máquina,
	que faz a edição. No monitor, a modelo loura pula no trampolim, a
	modelo morena mergulha, a modelo loura sai da água.
	               LUCIANO
	               Você acha que o Davi é pior que os outros? Ele vai
	               ser candidato de qualquer jeito, você não pode
	               impedir isso.
	               CHICO
	               Mas não preciso ser cúmplice. (para o editor) O
	               plano submarino ficou um pouco curto. Experimenta
	               um pouco mais lento, acho que pode dar certo.
O editor começa a refazer a edição.
	               LUCIANO
	               Você e a Carolina vivem criando projetos que nunca
	               vão sair do papel por absoluta falta de grana, "O
	               Tijolo" é um exemplo. Você desistiu do "Tijolo"?
	               (pausa) Não é crime ser candidato a prefeito. Vota
	               nele quem quer.
	               CHICO
	               E compra iogurte quem quer, vê televisão quem
	               quer... Você sabe que não é assim, Luciano. As
	               pessoas querem acreditar em alguma coisa. A gente
	               diz pra elas que comendo esta merda de iogurte,
	               cheio de conservantes, acidulantes, flavorizantes
	               e aromatizantes cancerígenos ela vai ser forte,
	               bonita e sexualmente atraente. A gente diz e elas
	               acreditam, por que elas tão super a fim de
	               acreditar em qualquer merda que tire elas da vida
	               de merda que elas levam, seja um iogurte, um
	               cigarro, um chinelo de plástico ou um candidato a
	               prefeito. Só que um candidato a prefeito pode ser
	               mais cancerígeno, mais mortal que qualquer
	               biscoito ou iogurte. Um candidato NÃO é um produto
	               qualquer.
	               LUCIANO
	               Chico, a verba da campanha do Davi pra televisão é
	               de dois milhões de dólares.
	A edição do comercial fica pronta. A modelo loura pula do
	trampolim, o plano submarino mostra a modelo morena, a modelo
	loura sai da água, pega uma embalagem do iogurte DAVI e toma um
	gole. Entra a assinatura em computação gráfica: "Qualidade DAVI".
CENA 111 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE
	Vários ASSESSORES, aspecto cansado, discutem com Davi as
	estratégias de campanha. Há vários lay-outs sobre a mesa,
	cartazes, plásticos, buttons. Copos de café e cigarros atestam
	que a reunião já dura algumas horas. As pessoas gritam e
	gesticulam mas Chico não escuta mais.
	               CHICO (OFF)
	               Eu tenho que ter uma idéia, uma idéia só. Todo
	               mundo já disse as obviedades de sempre, já marcou
	               posição, já puxou o saco, já pediu café, já
	               telefonou pra família, já disse piadas, já
	               comentou o jornal de hoje. Agora é hora de alguém
	               ter realmente alguma idéia. Assim que alguém tiver
	               alguma idéia todos vão se agarrar a ela como
	               náufragos numa bóia.
	Chico escreve o nome DAVI, uma, duas, muitas vezes, num pedaço de
	papel.
	               CHICO (OFF)
	               Com uma idéia a gente gasta o resto do repertório
	               da reunião. Alguns vão odiar, outros vão adorar, a
	               maioria vai tentar adivinhar o que o Davi vai
	               achar pra concordar por antecipação. Outros, mais
	               práticos, vão esperar pra ver o que ele acha pra
	               depois achar alguma coisa. De qualquer maneira, no
	               máximo em quinze minutos, todos vão concordar que
	               é melhor pensar com calma e voltar a conversar
	               amanhã e eu vou poder ir para casa, sentar no
	               banheiro, ler o Planeta Diário que eu comprei,
	               tomar banho, fumar um e dormir vendo um filme do
	               Billy Wilder. Pra tudo isso acontecer, basta eu
	               ter uma idéia, uma idéia de verdade.
	Chico rasga a folha de papel, isolando o nome DAVI num papelzinho
	bem pequeno. Chico rasga o nome DAVI ao meio, inverte as sílabas
	e lê: VIDA. Volta a inverter: DAVI. Chico fica olhando para
	aquele pedacinho de papel. Levanta os olhos, encara Davi.
	               CHICO
	               Eu tive uma idéia.
CENA 112 - ESTÚDIO DE SOM - INTERIOR/DIA
	Num estúdio de som, quatro cantores e alguns músicos gravam o
	jingle da campanha de Davi. A palavra "Vida" cantada várias vezes
	se transforma em "Davi". Chico acompanha a gravação.
CENA 113 - GRÁFICA - INTERIOR/DIA
	Uma máquina imprime um cartaz com a marca "DAVIDAVIDAVI". Um
	FUNCIONÁRIO corta uma folha com várias tiras, em que a marca
	"DAVIDAVIDAVI" aparece em um padrão ligeiramente diferente.
	QUATRO CEGOS colocam presilhas na parte anterior de alguns
	buttons, todos com a marca "DAVIDAVIDAVI". MULHERES colam
	adesivos com a marca "DAVIDAVIDAVI" em caixas de fósforos.
CENA 114 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA
	PINTORES, OPERÁRIOS e CENOTÉCNICOS aprontam o estúdio de
	gravação. Uma parede está coberta com a palavra "VIDA". Noutra
	parede terminam de ser colocadas, em frente a um grande céu
	aerografado, grandes letras que formam a palavra "DAVI".
CENA 115 - SALA DE PÓS-PRODUÇÃO - INTERIOR/DIA
	Num monitor, Chico vê os primeiros movimentos de uma animação em
	computação gráfica. A ilha de edição está sendo montada e ainda
	há um monte de equipamentos encaixotados.
CENA 116 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA
	Chico dirige um comercial. Ele fala com um CASAL DE ATORES. Ela
	está de costas para a câmara, em pé sobre uma caixa. Duas
	ASSISTENTES prendem o cabelo dela por trás, com um grampo. O
	vestido dela está cheio de fitas adesivas nas costas. Ela veste
	uma calça jeans sob o vestido. O ator lê o roteiro e exercita os
	músculos da face. O FOTÓGRAFO e o CABELEIREIRO se esforçam para
	puxar alguns fios de cabelo que cubram a reluzente careca do
	ator. Não têm muito sucesso. O ator está visivelmente irritado
	com a atriz. Aparentemente eles se odeiam. O fotógrafo cola um
	pedaço de papel atrás da orelha do ator. Um ASSISTENTE DE
	PRODUÇÃO, um gordo sem camisa, fica agachado atrás da atriz,
	segurando o vestido, que está rasgado nas costas. Tudo parece
	estar finalmente pronto e é horrível, visto pelas costas.
	Pela frente, os dois estão lindos e felizes. A cena é um
	encontro. Ele segura um copo de vinho.
	               ATOR
	               (muito feliz) Oi! Você aqui?
	               ATRIZ
	               (muito feliz) Oi! Claro! (olhando em volta) Eu
	               adoro este lugar... O que você está tomando?
	               ATOR
	               Vinho Marquês de Santana.
	               ATRIZ
	               Você está sozinho?
CENA 117 - VÍDEO-CLUBE - INTERIOR/NOITE
	Chico está agachado, tentando ler o título dos filmes na lombada
	das caixinhas de vídeo. Como algumas caixinhas estão viradas de
	um lado e outras de outro, Chico fica virando a cabeça, numa
	coreografia meio ridícula. Carolina se aproxima e reconhece
	Chico.
	               CAROLINA
	               Chico...
Chico olha pra cima. Levanta-se.
	               CHICO
	               Carolina.
	Beijam-se, carinhosos e realmente felizes por terem se
	encontrado.
	               CAROLINA
	               Tá mais magro.
	               CHICO
	               Impossível.
Eles riem.
	               CHICO
	               E o José?
	               CAROLINA
	               Tudo bem. Está no Rio, com a vó.
	               CHICO
	               Já consegue se desgrudar? Que progresso...
	               CAROLINA
	               Tudo bem? A gente não se vê mais desde que, aquele
	               dia, na clínica.
	               CHICO
	               Pois é. Tudo bem com você?
	               CAROLINA
	               Tudo bem. (pausa) E a Lisa? Tudo bem?
	               CHICO
	               Acho que sim. O Luciano, pelo menos, diz que sim.
	               CAROLINA
	               Estou preparando uma peça nova.
	               CHICO
	               Infantil?
	               CAROLINA
	               Infantil. Bem legal, direção do Abraão.
	               CHICO
	               Tudo bem com ele?
	               CAROLINA
	               Tudo. Ele adorou o roteiro do "Tijolo", disse que
	               a gente tem que fazer o vídeo de qualquer jeito.
	               CHICO
	               Pois é... Problema é arranjar grana... E tempo.
	Eles ficam um pouco sem assunto, parados na frente da prateleira
	de vídeos onde se lê: "SUSPENSE"
	               CAROLINA
	               Eu fico sabendo de você pelo jornal. Você vai
	               fazer a campanha do Davi.
	Chico caminha, meio desconfortável, meio tentando evitar olhar
	diretamente para Carolina. Ela percebe o constrangimento.
	               CHICO
	               Vou.
	               CAROLINA
	               Ele é legal?
	               CAROLINA
	               Político. Estou fazendo pela grana. Pelo menos é
	               melhor que esse Gabriel.
	               CAROLINA
	               Claro.
	Eles ficam outra vez sem assunto, agora parados na frente das
	fitas "COMÉDIA".
	               CAROLINA
	               (olhando a fita que Chico tem na mão) Que filme
	               você pegou?
	               CHICO
	               (mostrando) "Passagem sem Volta". Você conhece?
	               CAROLINA
	               Não.
	               CHICO
	               Nem eu. Mas eu gostei da sinopse. (lendo) "Luca,  
	               - Michael Sean, "Assassinato no Metrô" - é um
	               jovem boxeador contratado para ser guarda-costas
	               do empresário Carlo Fabrizzi - John Davis, "Uma
	               noite muito louca". Através das reportagens de
	               Pearl Cristhie - Martina Mills, "A Montanha
	               Assassina Dois", Luca descobre que Fabrizzi
	               controla o contrabando de armas para o Oriente
	               Médio. Uma intriga internacional repleta de ação,
	               erotismo e aventura, produzida pela mesma equipe
	               de "Esquadrão Suicida".
	               CAROLINA
	               Interessante.
	               CHICO
	               E você?
	               CAROLINA
	               Eu estou devolvendo um, "Brincadeira Arriscada".
	               CHICO
	               Acho que eu vi o trailer. Não é um com a Cindy
	               Parker?
Eles agora estão na frente do "DRAMA".
	               CAROLINA
	               Isso. Ela é uma médica e todos os caras com quem
	               ela sai morrem de uma peste horrorosa, cheios de
	               bolhas e feridas. Você já viu?
	               CHICO
	               Não tenho certeza...
	               CAROLINA
	               No fim o detetive descobre que é o ex-marido dela
	               que contamina as pessoas. Ela acaba sozinha,
	               porque o detetive, não sei o nome do ator, era
	               casado com a Cecilia McKane, uma ruiva crespa, com
	               umas sardas.
	               CHICO
	               Sei quem é. Aquela do "Nosso Último Verão".
	               CAROLINA
	               Ela mesma. Claro que o detetive fica com ela.
	               Ninguém deixa a Cecilia McKane.
	               CHICO
	               Claro que não, deve estar no contrato dela.
Eles riem. Agora eles estão no "ROMANCE".
	               CHICO
	               Você não vai pegar nada?
	               CAROLINA
	               Acho que não. Vou só devolver. Como está caro o
	               aluguel, é incrível!
	               CHICO
	               É. (pausa) A gente podia comer alguma coisa, eu
	               estou morrendo de fome. (pausa) Ou podia também ir
	               a um cinema.
	Ela fica alguns segundos pensando, olha para os filmes na
	estante, olha para Chico.
	               CAROLINA
	               É. Podia.
CENA 118 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Chico e Carolina estão na cama, nus. Carolina está abraçada em
	Chico, ele assiste que assiste televisão. Na TV, um
	VENDEDOR/GAROTO PROPAGANDA fala olhando diretamente para a
	câmara. Ao seu lado, uma caixa de "New Life".
	               VENDEDOR
	               ...sabe como eu me sentia? Eu acordava de manhã e
	               não via motivo pra sair da cama. Eu não gostava do
	               meu emprego, mas precisava do salário para viver.
	               Eu me irritava com o trânsito, com os meus colegas
	               e com o meu chefe. E quando eu voltava do trabalho
	               eu me irritava com a minha mulher, com meus
	               filhos, com o jornal e com a novela. Tudo isso
	               mudou quando eu conheci "New Life". Com "New
	               Life"...
	Chico aciona o controle remoto e troca de canal, sem ficar
	sabendo o que é ou para que serve "New Life". Um APRESENTADOR
	vestido com um escafandro entrevista uma SOCIALITE em traje de
	gala. Ela está de braço dado com um SUJEITO DE SMOKING que,
	durante a entrevista, fica abanando para algumas pessoas fora de
	quadro. Eles estão numa festa à beira de uma piscina e gritam
	muito. A música ambiente é insuportavelmente alta e ruim.
	               APRESENTADOR
	               ...você poderia explicar em poucas palavras, pro
	               público de casa, o que é neurolingüística?
	               SOCIALITE
	               (gritando) O quê?
	               APRESENTADOR
	               (gritando) Eu estou pedindo para você explicar
	               para o público o que é o seu trabalho, o que é
	               neurolingüística!
	               SOCIALITE
	               Ah..! É que por trás de tudo que você faz, cada
	               gesto, cada ação, existe uma programação, um
	               procedimento programado, como se fosse um programa
	               de computador...
	               APRESENTADOR
	               Até pra namorar?
Eles acham graça.
	               APRESENTADOR
	               Por falar nisso, você não me apresentou o seu
	               namorado.
Eles acham graça.
	               SOCIALITE
	               Ele não é meu namorado.
	               APRESENTADOR
	               E televisão? É verdade que você vai fazer uma
	               novela?
	Chico muda de canal. Dá de cara com o comercial que ele fez,
	aquele da piscina. Muda de canal outra vez. Pára num telejornal
	que mostra uma matéria policial numa favela. A REPÓRTER mostra os
	furos de bala na parede de um barraco.
	               REPÓRTER
	               ...o segundo tiro entrou aqui, vocês podem ver o
	               buraco da bala, que perfurou a parede e veio
	               atingir Waldecir quando ele estava tomando café
	               aqui nesta mesa...
	Chico tira o som da TV. Aparece uma MULHER chorando, desesperada.
	A repórter agora entrevista a mulher, que não pára de chorar,
	sempre escondendo o rosto com a mão.
	               CAROLINA
	               Acho que a gente sempre soube que um dia isto ia
	               acontecer. Eu, pelo menos, sempre soube. A minha
	               analista disse que a gente confunde desejo com
	               destino. Quando a gente quer muito que uma coisa
	               aconteça a gente acaba fazendo de tudo para que
	               esta coisa aconteça, mesmo sem se dar conta. Aí
	               quando acontece a gente acha que foi o destino.
	               Mas eu acho legal que tenha acontecido agora e não
	               quando a gente se conheceu. (pausa) Você não tinha
	               certeza que isso um dia ia acontecer?
	               CHICO
	               O quê?
	               CAROLINA
	               A gente.
	               CHICO
	               Ah...
	               CAROLINA
	               Você achava que podia acontecer?
	               CHICO
	               Achava sim.
	               CAROLINA
	               Eu tinha certeza.
Davi aparece na TV, dando uma entrevista. Chico aumenta o som.
	               DAVI
	               ...e a questão da segurança, que aflige a todos,
	               aos jovens e aos pais, eu acredito que deva ser
	               enfrentada pelo governo com coragem e com
	               determinação. Os governos municipais são omissos,
	               transferindo a responsabilidade para o governo
	               estadual e federal. Enquanto isso a população se
	               tranca em suas casas, entrincheirada nesta guerra
	               sem fronteiras em que estão mergulhadas as grandes
	               cidades brasileiras.
Volta para o APRESENTADOR.
	               APRESENTADOR
	               E o último candidato na corrida para a prefeitura
	               foi definido hoje...
	               CAROLINA
	               Fala bem o Davi. Mas essa conversa de segurança é
	               sempre igual, só serve para aumentar a paranóia.
	               Estes políticos ...
Chico aumenta o volume.
	               CHICO
	               Só um pouquinho.
	               APRESENTADOR
	               ... na tumultuada convenção da Frente Democrática.
	               REPÓRTER
	               As candidaturas do economista Joaquim Canhette e
	               do deputado Luiz Renato ameaçavam rachar a Frente.
	               A solução acabou sendo a terceira via,
	               representada pelo azarão da noite e agora
	               candidato a prefeito, o jornalista e líder
	               comunitário Andrew Ribeiro.
Andrew dá entrevista, vários microfones na frente.
	               REPÓRTER
	               O senhor era o azarão e sai da convenção
	               candidato. Isso pode se repetir na eleição?
	               ANDREW
	               Acho que pode, mas não por minha causa. Eu acho
	               que a Frente Democrática tem todas as condições de
	               conquistar a prefeitura porque é da Frente
	               Democrática o melhor programa de governo. Além
	               disso a Frente defende os interesses dos
	               trabalhadores, dos assalariados, dos estudantes,
	               daqueles que moram nas vilas populares e exigem
	               melhores condições de vida, enfim...
CENA 119 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA
Chico, Davi e alguns ASSESSORES assistem ao jornal.
	               ANDREW
	               ... da imensa maioria da população da cidade.
	               Nossos oponentes defendem os interesses das
	               elites, que estão em menor número. Lembre-se que
	               na hora da eleição a gente vale o mesmo que eles.
Chico desliga o VT.
	               DAVI
	               O fato de ele ter sido seu amigo faz diferença?
	               CHICO
	               Eu assinei um contrato, não assinei?
Davi fica alguns segundos observando Chico.
	               DAVI
	               "A gente" e "eles". Essa deve ser a linha da
	               campanha dele, querer me apresentar como candidato
	               dos ricos.
	               ASSESSOR
	               Vamos usar na tevê aquela pesquisa que mostra
	               nossos eleitores de classe C e D. Pobre não gosta
	               dessa conversa de luta de classes.
	               CHICO
	               Assumir pesquisa pode ser perigoso. Se a gente
	               começa a cair ou se ele começa a subir a gente não
	               pode mais falar mal da pesquisa.
	               DAVI
	               Você acha que isso pode acontecer?
	               CHICO
	               Tudo pode acontecer. (levantando) Vamos trabalhar?
	               A equipe já deve estar nos esperando há horas.
	               DAVI
	               Você vem?
	               CHICO
	               Eu encontro vocês lá. Vou dar uma passada na casa
	               de um amigo.
CENA 120 - CASA DE ANDREW - EXTERIOR/DIA
	Chico bate palmas em frente a casa de Andrew. Sílvia aparece na
	porta. Uma CRIANÇA de dois anos está agarrada à perna dela. Um
	cachorrinho late muito.
	               SÍLVIA
	               Sim?
	               CHICO
	               Sílvia? Lembra de mim? Eu sou o Chico, amigo do
	               Andrew.
	               SÍLVIA
	               (não muito animada) Ah...
	               CHICO
	               O Andrew... ele está?
	               SÍLVIA
	               O Andrew não mora mais aqui. Faz mais de um ano.
	               CHICO
	               Ah... E você não sabe o novo endereço ou ...
	               SÍLVIA
	               Eu não sei do Andrew. Só pelo jornal. Mas eu não
	               vou dar nenhuma entrevista, muito menos para
	               ajudar aquele Davi, se é isso que você quer.
	               CHICO
	               Não, claro que não. (pausa) Eu só queria conversar
	               com o Andrew, fora do comitê... (pausa) O filho de
	               vocês tá enorme...
	               SÍLVIA
	               Filha. Clarissa. Agora ela está melhor.
	               CHICO
	               Ela esteve doente?
	               SÍLVIA
	               Teve meningite, quase morreu. O Andrew não te
	               falou?
	               CHICO
	               Na verdade eu não vejo o Andrew há algum tempo...
	               SÍLVIA
	               Mas ela ficou boa, graças a deus. Depois teve
	               caxumba, mas caxumba tudo bem.
	               CHICO
	               Claro. O José, filho da Carolina, também teve
	               caxumba. Tudo bem.
Ficam sem assunto.
	               SÍLVIA
	               (para o cachorro) Quieto, Biluca! (para Chico)
	               Você quer entrar um pouco?
	               CHICO
	               Não, não... Eu tenho que trabalhar. Bom, se você
	               falar com o Andrew...
	               SÍLVIA
	               Eu não vou encontrar o Andrew. (pausa) Se você
	               encontrar o Andrew, diga que a Clarissa teve
	               caxumba.
	               CHICO
	               Eu digo.
CENA 121 - VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA
	Chico acompanha Davi e uma comitiva numa visita a uma vila. Um
	caminhão de som toca o jingle sem parar. Os cabos eleitorais
	distribuem camisetas e panfletos. Chico orienta o CINEGRAFISTA
	nas gravações. Chico entra numa casa miserável atrás de Davi. É
	uma única peça com várias camas, fogão e uma TV. Algumas CRIANÇAS
	bem pequenas assistem TV. Davi fala com a MÃE delas. Ela tem um
	BEBÊ no colo e está grávida. Na televisão, Chico vê o comercial
	do iogurte.
CENA 122 - CARRO NA FREE-WAY - EXTERIOR/DIA
	Chico dirige. Carolina ao seu lado. No banco de trás, Lisa e
	Luciano beijam-se, apaixonados. Rock'n'roll no rádio.
CENA 123 - ESTRADA SECUNDÁRIA - EXTERIOR/DIA
	O carro entra numa estrada secundária. Uma placa indica "RAINHA
	DO MAR - 2 km"
CENA 124 - CASA DE PRAIA/VARANDA - EXTERIOR/DIA
	Chico, Lisa e Luciano estão sentados na varanda da casa, no final
	da tarde, fumando, tomando chimarrão e bebendo cachaça, tudo ao
	mesmo tempo. Estão morrendo de frio. Carolina chega da rua.
	               LISA
	               Telefonou?
	               CAROLINA
	               Telefonei. Está tudo bem, ele está sem febre.
	               LUCIANO
	               O José estava com febre?
	               CAROLINA
	               Não. Mas ele estava um pouco gripado, eu achei que
	               ele podia ter febre hoje.
	               CHICO
	               Você foi lá telefonar porque achou que ele podia
	               ter febre... Meu deus...
	               CAROLINA
	               (esfregando as mãos) Quem teve a idéia de vir para
	               a praia no Inverno?
	               LUCIANO
	               (enrolando-se mais no cobertor) O Chico. Ele disse
	               que é a melhor época.
	               CHICO
	               Eu gosto. Olha só, não tem ninguém pra encher o
	               saco. A gente pode fazer qualquer coisa.
	               LISA
	               Qualquer coisa?
CENA 125 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
	Os três enfileirados, de pé, na areia, morrendo de frio. Olham
	para a frente. Lisa sai correndo do mar e chega perto deles. Ela
	está vestindo uma roupa de borracha completa, tipo essas dos
	surfistas no inverno).
	               CAROLINA
	               Tem certeza que essa roupa funciona, Lisa?
	               LISA
	               Claro que funciona. Vocês acham que eu ia ser
	               louca de entrar na água se não funcionasse?
	               CHICO
	               Eu acho.
	               LUCIANO
	               Eu também acho.
Lisa dá um beijo em cada um.
	               LISA
	               O último a chegar em casa é um pingüim!
	E sai correndo. Os outros se olham por um instante. Depois,
	também saem atrás.
CENA 126 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
	Chico está no fogão fazendo uma massa. Lisa está tomando um
	banho. Luciano e Carolina conversam na sacada.
	               LISA
	               (berrando do banheiro) O quê que vai ter no
	               jantar? Eu tô morrendo de fome.
	               CHICO
	               Minha especialidade: massa com sardinha.
	               LUCIANO
	               (berrando da sala) Não. Tudo menos massa com
	               sardinha!
	               CHICO
	               (enquanto descarrega as compras de um saco de
	               supermercado) Cadê as latas de sardinhas?
Ele olha pra dentro do saco. Nada.
	               CHICO
	               Eu não comprei sardinha!
	               LUCIANO
	               Graças a Deus. Eu vou comprar alguma coisa decente
	               pra gente comer. Aquele supermercado de Capão fica
	               aberto até as oito.
	               CHICO
	               (chegando na sala) Eu só preciso duas latas de
	               sardinha.
	               LUCIANO
	               Tudo bem. Aí eu já aproveito e compro um monte de
	               comida congelada.
	               CAROLINA
	               Não foi você que disse que cada dia um de nós ia
	               pra cozinha?
	               LUCIANO
	               (afirmativo) Eu vou fazer a minha comida.
	               CAROLINA
	               Congelada não vale.
	               LUCIANO
	               Tá. Vem comigo. No caminho a gente acerta esse
	               negócio.
	Luciano carrega Carolina pelo braço em direção à porta. Eles
	saem. Chico vai até a porta do banheiro.
	               CHICO
	               Lisa, a água não tá fria?
	O velho chuveiro elétrico, cheio de fios mal encapados, faz muito
	barulho.
	               LISA
	               (gritando) Sabe que não? Eu tava mesmo pensando
	               nisso. (Começa a sair uma fumacinha do chuveiro).
	               Até que esse chuveiro é bem legal.
	O chuveiro entra em curto total. Faz um barulho estranho e pega
	fogo. Lisa olha, apavorada, e dá um grito.
	               CHICO
	               Quê que houve, Lisa?
As cortinas do box pegam fogo também.
	               LISA
	               (saindo do box, correndo) Fogo! Tá pegando fogo
	               aqui!
Ela está apavorada, não consegue fazer nada.
	               CHICO
	               Abre a porta, Lisa!
	Ele entra. O banheiro está todo enfumaçado. Juntaram-se o vapor
	da água do banho com a fumaça do pequeno incêndio. Há fogo no
	box.
	               CHICO
	               Sai daqui, Lisa!
	               LISA
	               Eu vou pegar o extintor no carro.
	Lisa sai correndo, quase pelada mesmo, tentando se enrolar numa
	toalha muito pequena. Chico fica assistindo o fogo sem fazer
	nada.
	               CHICO
	               O carro não tá aqui. Eles foram comprar comida
	               congelada.
	               LISA
	               Então vamos pegar água. Onde tem balde?
	               CHICO
	               Na cozinha. Mas espera, não se usa água em fogo de
	               eletricidade.
	               LISA
	               (já com o balde na mão) Quem foi que disse?
	               CHICO
	               Não se usa.
	O fogo se extingue rapidamente. Afinal, o chuveiro já queimou o
	que tinha que queimar, e a cortina também. It's over.
	               LISA
	               Quem foi que disse?
	               CHICO
	               Não se usa. Dá choque! O incêndio já acabou.
	Lisa olha, percebe que o perigo passou e sorri. Mas então percebe
	que está toda molhada e sente frio, muito frio. Começa a tremer.
	               LISA
	               Chico... eu tô com frio!.
	Chico pega outra toalha, maior, e alcança pra ela. Ela se enrola,
	mas está com tanto frio que não consegue se secar.
	               CHICO
	               Que cheiro horrível! Eu vou pegar mais toalhas.
	               LISA
	               (rígida) Eu vou congelar.
	               CHICO
	               Pára de brincar, Lisa. Te seca logo.
	               LISA
	               Eu tô congelando.
Chico, todo sem jeito, começa a passar a toalha em Lisa.
	               LISA
	               Eu tô congelando! Mais forte!
Chico passa mais forte.
	               LISA
	               Tem que fazer como os esquimós. Assim.
Lisa se agarra em Chico, que continua passando a toalha.
	               CHICO
	               Cadê as tuas roupas?
	               LISA
	               Eu tô congelando, Chico, não pára!
	Chico se concentra na secagem. Passa com força. Lisa vai se
	virando pra facilitar. Chico vê os seios de Lisa.
	               LISA
	               Dessa vez, não te devo nada.
	               CHICO
	               Quem foi que disse?
	               LISA
	               O quê?
	               CHICO
	               Que os esquimós fazem assim?
	               LISA
	               De onde você acha que veio o tal do beijo esquimó?
	               Disso aqui. Um sai do banho e o outro fica se
	               esfregando nele. Esfrega tudo. Até o nariz.
	               (pausa) O jantar não ia ser massa com sardinha?
	               CHICO
	               Ia.
CENA 127 - CARRO - EXTERIOR/DIA
Carolina e Luciano no carro.
	               LUCIANO
	               A Lisa me assusta.
	               CAROLINA
	               Por quê?
	               LUCIANO
	               Às vezes parece que faz as coisas sem pensar. E
	               depois parece que pensa demais.
	               CAROLINA
	               Eu gosto disso. Melhor que ficar deprimida, ou se
	               entupir de cocaína.
	               LUCIANO
	               É, isso é. (pausa) Sabe como é que a gente
	               começou?
Carolina fica atenta.
	               LUCIANO
	               Ela simplesmente me agarrou e pronto.
	               CAROLINA
	               Como assim?
	               LUCIANO
	               Numa festa. Ela me levou prum quarto, tirou a
	               minha roupa e... pronto!
	               CAROLINA
	               Tem certas coisas que só a Lisa é capaz de fazer.
	               LUCIANO
	               (sorrindo) Isso é.
Carolina não acha graça.
CENA 128 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
	Jantar do Chico. Uma grande panela de massa com sardinha chega no
	centro da mesa. Os quatro avançam, animados, e começam a comer.
	               CAROLINA
	               (depois de provar) Tá ótima, Chico.
	               LISA
	               É. Super boa.
	               LUCIANO
	               (sentindo-se obrigado a concordar) Tá melhor que
	               eu pensava.
	               CHICO
	               A fome sempre deixa a comida melhor. Aristóteles.
	               LISA
	               É. Sabe, eu fiz um cursinho em Nova Iorque com um
	               filósofo paquistanês, um cara super quente, e o
	               cara falava isso, que é a necessidade que gera o
	               prazer.
	               LUCIANO
	               Que bobajada.
	               LISA
	               Bobagem nada. O sexo também é assim. Quanto mais
	               você deseja, mais você quer, melhor fica quando
	               você consegue.
	               CHICO
	               O Freud dizia ao contrário: quanto mais você
	               deseja, e não consegue, mais merda dá depois.
	               CAROLINA
	               Eu sempre detestei o Freud. Como é o nome desse
	               paquistanês, Lisa?
	               LISA
	               Maharishi Chuttranata.
	               CAROLINA
	               Como é?
	               LISA
	               Maharishi Chuttranata.
	Luciano olha para Chico. Chico olha para Carolina. Carolina olha
	para Luciano. Luciano começa a rir, mesmo de boca cheia. O riso
	contagia os outros, que não conseguem engolir a massa que está na
	boca. Chico se engasga e começa a tossir. Luciano bate nas costas
	dele. Carolina chora de tanto rir. Lisa, a princípio, fica
	indignada, mas depois também é contagiada e ri tanto quanto os
	outros.
	 
CENA 129 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
	Esta seqüência acontece simultaneamente num dos quartos, onde
	estão Lisa e Luciano, e na sala, onde estão Chico e Carolina,
	tomando vinho.
	QUARTO
	Luciano e Lisa estão trepando. O problema é que a cama, como toda
	cama de casa de praia, é antiga, de molas, está meio quebrada e
	range desesperadamente. Lisa, ainda por cima, não é nem um pouco
	discreta.
	               LISA
	               Ahhh! (Ou algo parecido)
	               LUCIANO
	               (sussurrando) Shshsh...
	               LISA
	               O quê?
	               LUCIANO
	               O Chico e a Carolina. Não faz tanto barulho.
SALA
	Carolina e Chico estão em cadeiras próximas, com copos de vinho
	na mão. Ouvem nitidamente, tanto os rangidos da cama, como os
	gemidos de Lisa.
	               CAROLINA
	               Você não acha estranho isso tudo?
	               CHICO
	               Tudo o quê?
	               CAROLINA
	               Os dois juntos, no quarto, trepando, e nós ouvindo
	               e tomando vinho.
	               CHICO
	               Acho.
QUARTO
Lisa grita bem alto.
	               LISA
	               Ahhh!
	               LUCIANO
	               (animado) Deu?
	               LISA
	               (pára um pouco e olha firme nos olhos de Luciano)
	               Tá com pressa?
	               LUCIANO
	               Não.
	               LISA
	               (beijando Luciano com suavidade) Então, por favor,
	               respira direito. Você sabe como respirar direito é
	               importante.
	Luciano respira fundo duas vezes, recompõe as energias. Lisa geme
	mais alto ainda.
SALA
	Os gemidos de Lisa dominam a sala. Chico e Carolina se olham.
	Chico ainda está meio indeciso sobre o que fazer, mas levanta e
	vai até a mesa onde está o vinho. Pega a garrafa e aproxima-se de
	Carolina. Serve o vinho. Carolina olha para ele. Chico está
	tomando uma decisão. Talvez sua próxima ação seja beijar
	Carolina. Mas a porta do quarto abre. Lisa entra na sala,
	terminando de vestir uma camiseta cumprida. Está evidentemente
	irritada. Pega um copo, enche de vinho e senta. Chico e Carolina
	não sabem o que fazer. Ficam alguns segundos em silêncio.
	               LISA
	               Por que tem que ser tão difícil?
Chico e Carolina se olham.
	               LISA
	               Por que a gente não tem um botãozinho pra regular
	               tudo?
	               CAROLINA
	               (delicadamente) Regular o quê, Lisa?
	               LISA
	               Tudo. Eu. E principalmente o Luciano.
	               LUCIANO (OFF)
	               (do quarto) Vai te regular primeiro!
	               CAROLINA
	               O que aconteceu?
	               LISA
	               Nada. Bobagem. (terminando o copo com um grande
	               gole) Vinho é uma das poucas coisas decentes que
	               esse estado ainda produz.
	               CHICO
	               Vinhos e centro-médios.
QUARTO
Carolina entra e senta-se ao lado de Luciano.
	               CAROLINA
	               Não sei se esse fim-de-semana foi uma boa idéia. É
	               difícil fazer de conta que tudo continua igual.
Luciano fica alguns segundos pensando.
	               LUCIANO
	               No fundo, tá tudo igual. A Lisa não mudou nada. A
	               gente casou, eu pensei que isso fizesse diferença,
	               mas não faz.
Carolina fica olhando Luciano.
SALA
Lisa e Chico conversando.
	               LISA
	               Eu já te contei como o Luciano me convenceu a
	               casar com ele?
	               CHICO
	               Não.
	               LISA
	               Ele me disse que se eu me casasse com ele nunca
	               mais seria internada. E eu achei ótimo ter alguém
	               se preocupando com isso. Mesmo que seja mentira.
	Lisa começa a chorar, bem de mansinho. Chico levanta e
	aproxima-se. Fica de joelhos na frente dela. Lisa olha para ele.
	Chico a abraça. Ficam assim abraçados um longo tempo.
CENA 130 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA
	Uma embalagem de alumínio aterrisa no centro da mesa. Outra vem
	logo depois. Ambas contêm comidas aparentemente saborosas.
	               LUCIANO
	               Vualá! Camarões à catupiri e filés de haddock ao
	               molho de champanhe.
	               CHICO
	               Isso é totalmente irregular.
	               LUCIANO
	               (rindo) Então não come.
	               CAROLINA
	               (servindo-se) As regras não ficaram bem claras.
	               Por mim, tudo bem.
	               LISA
	               (também servindo-se) O Luciano não gosta de perder
	               tempo. Abriu, enfiou no forno, tirou, tá pronto.
	Carolina e Chico não percebem o duplo sentido da frase, mas
	Luciano fecha a cara.
	               CAROLINA
	               (comendo) Deixa de frescura, Chico. Tá ótimo.
	               (para Luciano) As vezes você tem algumas idéias
	               razoáveis, Luciano.
	Ele não acha graça. Carolina e Chico percebem que ele não achou
	graça.
	               CAROLINA
	               Quê que foi, Luciano?
	               LUCIANO
	               Nada. Eu não estou com muita fome, só isso.
	Luciano sai da mesa. Clima pesado. Chico e Carolina não entendem
	bem o que tá acontecendo. Lisa come, quieta.
CENA 131 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
	Agora, no jantar de Lisa, dominam os pratos integrais, mas
	bastante sofisticados. Lisa está na cozinha, fazendo bolinhos de
	verdura. Os outros três estão na mesa, já comendo.
	               CAROLINA
	               (gritando para Lisa) Vem comer, Lisa.
	               LISA
	               (da cozinha) Tô só terminando o Alu Patra. Já vou.
	               CAROLINA
	               (em voz baixa, para Luciano, em tom imperativo) Se
	               vocês continuarem com esse joguinho idiota de não
	               se falarem, eu juro que pego o carro agora e volto
	               pra Porto Alegre.
	               LUCIANO
	               Não é joguinho. Eu não tenho nada pra dizer.
	               CHICO
	               Dá um tempo, Luciano.
	Lisa chega com os bolinhos. Coloca a travessa sobre a mesa e
	senta. Luciano nem olha pra ela.
	               LISA
	               Agora só falta você, Carolina.
	               CAROLINA
	               (levantando) Infelizmente vocês dois já
	               esculhambaram o meu fim-de-semana. Não vou passar
	               mais um dia inteiro vendo essa briga infantil.
	               LISA
	               O que você quer? Ele não quer falar, tudo bem.
	               Ninguém sente falta.
Chico levanta.
	               CHICO
	               Eu também vou.
	               LUCIANO
	               O que vocês querem? Que a gente fique posando de
	               casal feliz? (Levanta, vai até Lisa e a abraça)
	               Olha, pessoal, como a gente se ama. Vocês querem
	               que a gente se beije? Tudo bem.
Luciano beija Lisa, que está impassível.
	               CHICO
	               Eu só quero que vocês parem de bancar adolescentes
	               em crise.
	               LISA
	               Tudo bem. (E para Luciano:) Nunca mais, mas nunca
	               mais mesmo, me chama de louca.
	               LUCIANO
	               Eu não te chamei de louca.
	               LISA
	               Tudo bem. Eu vou fazer de conta que não falou.
	               Agora sentem. Se vocês não comerem tudo, tenho um
	               surto psicótico em cima dos rolinhos de repolho.
	Chico e Carolina sentam outra vez. Discretamente, mas muito
	discretamente mesmo, Carolina segura por um instante a mão de
	Luciano.
CENA 132 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
	Os quatro estão jogando canastra de parceria. Homens contra
	mulheres. Um baseado corre de mão em mão. Lisa bate. Chico está
	com trezentas cartas na mão. Fica alucinado.
	               CHICO
	               Eu só precisava de um sete de ouros!
	               LUCIANO
	               E eu tinha ele na mão, ô animal. Por quê não foi
	               baixando aos poucos?
	               CHICO
	               Eu tava esperando a Carolina me dar.
	               LISA
	               Esse é teu problema, Chico. Tá sempre escondendo o
	               jogo.
	               CHICO
	               Não tem onde comprar chocolate nessa praia!
	               LUCIANO
	               Par ou ímpar?
	               CHICO
	               Par.
Eles mostram os dedos. Luciano ganhou.
	               LUCIANO
	               (aliviado) Vai, meu irmão.
	               CHICO
	               Mas era só brincadeira.
	               CAROLINA
	               Brincadeira nada. Larica é coisa muito séria.
	               LISA
	               Pára de chorar, Chico. Eu vou contigo. (E
	               levanta.)
CENA 133 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE
Chico e Lisa andam por uma rua deserta.
	               CHICO
	               Que frio.
	               LISA
	               (abraçando Chico) Eu te esquento.
	Segura Chico pelo braço e olha firme pra ele. Começa um beijo
	apaixonado.
CENA 134 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Um beijo longo, quente e apaixonado entre Carolina e Luciano.
CENA 135 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA
	Uma grande travessa de arroz com galinha aterrisa sobre a mesa. O
	clima é bem alegre. Carolina está servindo. Todos comem com
	satisfação.
CENA 136 - CARRO - EXTERIOR/NOITE
	A volta para Porto Alegre, no carro, à noite. Os quatro estão em
	silêncio.
	               LUCIANO
	               Vocês gostam de fofoca?
Segundos de silêncio.
	               CAROLINA
	               Gostamos.
Segundos de silêncio.
	               LUCIANO
	               E de ba-baleia?
	Continua o silêncio. Lisa começa a sorrir. Carolina solta um
	risinho abafado. Chico começa a rir. Luciano ri alto. Todos riem.
	O carro se perde na escuridão.
CENA 137 - CASA DE CHICO - INTERIOR/DIA
	Chico está ao telefone e rabisca sua agenda. Tem vários números
	de telefone riscados.
	               CHICO
	               Eu precisava muito falar com o Andrew, eu liguei
	               da praia, ontem. (...) Você me disse isso ontem.
	               (...) Mas tem certeza que ele recebeu o recado?
	               (...) E você disse que era eu? (...) Eu já liguei
	               pra lá, várias vezes, disseram que ele não tinha
	               chegado, depois disseram que ele já tinha saído.
	               (...) Tudo bem. (...) Eu lhe dei também o meu
	               telefone de casa? (...) Certo. Tudo bem. Desculpe
	               a insistência, mas é importante. (...) Tudo bem,
	               obrigado.
CENA 138 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Onze da noite no apartamento de Chico. Ele está assistindo ao
	programa político no vídeo-cassete. É um comício do Andrew. Toca
	a campainha. Chico dá pause, congelando a imagem de Andrew. Sai
	do quarto e vai atender a porta. É Lisa.
	               LISA
	               Você tá sozinho? Você não tá sozinho...
	               CHICO
	               Estou sim, estava vendo um pouco de televisão.
	               LISA
	               Eu vim me despedir.
	               CHICO
	               Tá indo viajar? Pra onde?
	               LISA
	               Pro Acre.
	               CHICO
	               Acre?
	               LISA
	               É. Um lugar chamado Céu do Mapiá.
	               CHICO
	               (decepcionado) Daime, Lisa...
	               LISA
	               Você já conhece?
CENA 139 - ACRE - EXTERIOR/DIA
	A partir daqui, os diálogos ficam OFF e aparecem imagens
	correspondentes às falas, ilustrando a futura odisséia de Lisa,
	sob dois pontos-de-vista completamente diferentes.
Lisa dentro de uma canoa, com muitas árvores ao fundo
	               LISA (OFF)
	               É o último lugar mágico de mundo. Pra chegar lá,
	               tem que andar dois dias de canoa no meio da
	               floresta.
	Lisa, já toda de branco, pôr-do-sol ao fundo, dança e canta um
	hino religioso.
	               CHICO (OFF)
	               É uma religião, Lisa. Mais católica que a
	               católica. As mulheres nem podem dançar perto dos
	               homens.
Lisa fuma um grande baseado com outros FIÉIS.
	               LISA (OFF)
	               Sabem como é que eles chamam baseado? Santa Maria.
Lisa toma um grande gole do daime e olha em frente.
	               CHICO (OFF)
	               Isso é nostalgia, saudade da infância. Lisa, os
	               caras bebem um troço mais forte que ácido. E você
	               sabe o que acontece quando você toma ácido.
Lisa olha para as árvores, que mudam de cor e forma.
	               LISA (OFF)
	               O ácido é pura química. O daime é a própria
	               floresta. Raiz, folha, terra. Deve ser
	               maravilhoso.
Lisa vomita.
	               CHICO (OFF)
	               Lisa, deve ser horrível.
	Lisa, em paz, deitada numa rede, depois de vomitar, olha para a
	floresta.
CENA 140 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Chico e Lisa estão sentados na sala.
	               LISA
	               Deve ser maravilhoso.
	Ficam em silêncio por alguns segundos. Chico desistiu de
	argumentar com Lisa. De repente, o som da televisão invade a
	sala, alto.
	               LISA
	               Tem alguém aí.
	               CHICO
	               Não, é o vídeo.
Chico se levanta, vai até o quarto e desliga a tevê.
	               CHICO
	               (voltando do quarto) Não adianta, quando você bota
	               um negócio na cabeça, ninguém tira.
	               LISA
	               Me faz um favor? Conta pro Luciano?
	               CHICO
	               Que você vai pro Acre?
	               LISA
	               Eu não tive coragem, não queria discutir. Disse
	               que tava indo prum congresso de numerologia em
	               Manaus.
	               CHICO
	               Quando você vai?
	               LISA
	               Amanhã de manhã. Não gosto de despedida. Tchau,
	               Chico.
	Lisa beija Chico, na boca, mas rapidamente. Vai em direção à
	porta.
	               CHICO
	               Espera um pouco!
Lisa abre a porta, abana e some.
CENA 141 - ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - INTERIOR/NOITE
	Davi está sentado numa grande mesa ao lado de vários EMPRESÁRIOS.
	Uma faixa indica o "Fórum Contra a Corrupção". Davi faz um
	discurso inflamado. Chico e sua EQUIPE gravam tudo.
	               DAVI
	               ...a presença excessiva do estado na economia é a
	               principal causa da corrupção. Pois se o estado,
	               com sua grande máquina emperrada, obstrui a
	               passagem da iniciativa privada, é natural e, não
	               sejamos hipócritas, é mesmo previsível que o
	               empresário use de todos os meios ao seu alcance
	               para limpar o caminho. Nenhum empresário vai ficar
	               passivamente observando a falência de sua empresa
	               enquanto o estado coloca impecilhos para o
	               desenvolvimento: impostos abusivos, exigências
	               legais antiquadas e um sem número de taxas sociais
	               que têm como único objetivo sustentar os currais
	               eleitorais de políticos profissionais.
	Aplausos. Chico avista seu pai, o doutor Ernâni, no meio da
	platéia. Eles trocam um cumprimento discreto.  
	               DAVI
	               Isso sem falar no protecionismo cartorial
	               praticado por algumas sindicalistas que, ao invés
	               de se preocupar com a segurança e as melhores
	               condições de trabalho de sua categoria, preferem
	               acirrar o confronto com os empresários, incentivar
	               as greves e dar entrevistas na televisão.
	Aplausos. No fundo da sala, Luciano e Ibarri discutem e
	gesticulam muito. Luciano parece estar bastante irritado. Chico
	percebe.
	               DAVI
	               Depois, com a falência das empresas, com a quebra
	               de fábricas que não suportam as folhas de
	               pagamento e os encargos sociais, vêm o desemprego
	               e o trabalhador fica desassistido. E aí aqueles
	               mesmos sindicalistas culpam os empresários pelo
	               desemprego. É pura demagogia! (aplausos
	               entusiasmados)
CENA 142 - PRÉDIO DA ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - EXTERIOR/NOITE
	Do lado de fora do prédio, Davi cumprimenta os empresários,
	despede-se, ri muito. Todos parecem exageradamente ricos, gordos
	e felizes. Davi embarca em seu carro de luxo sob aplausos e
	flashes. A cena é parte do programa de TV de Andrew.
	               LOCUÇÃO
	               O candidato dos grandes empresários diz que a
	               culpa da corrupção é do estado. Mas não diz que
	               são os grandes empresários que pagam o suborno. O
	               candidato dos patrões diz que o desemprego é culpa
	               dos trabalhadores. Mas não diz que as grandes
	               empresas nunca abrem mão do seu lucro.
	O motorista bate a porta e dá a volta no carro. Dois MENINOS DE
	RUA se aproximam do carro. A SEGURANÇA barra a passagem das
	crianças. Davi sai abanando e sorrindo para as câmaras. A imagem
	congela com um flash estourando no rosto sorridente de Davi em
	seu carro e o braço de um segurança impedindo a passagem das
	crianças.
	               LOCUTOR
	               O candidato dos ricos diz que o seu governo vai
	               ser bom para os pobres. Você acredita?
REPÓRTER caminhando na rua.
	               REPÓRTER
	               (uma edição repete a pergunta várias vezes
	               sugerindo o nome de Davi)
	               Como é que vai a vida / a vida / davidavi ?
	               VÁRIAS PESSOAS
	               Terrível! / Ruim pros pobres. / Mal. / Pra quem
	               trabalha vai mal. / Tá difícil, né?
	Vinheta eletrônica encerra o programa de Andrew. Outra vinheta
	(ridícula) começa o programa de GABRIEL, o candidato da situação,
	um velhinho simpático de gravata borboleta e colete.
	               GABRIEL
	               Meus queridos amigos. Nós não vamos entrar nesse
	               jogo de agressões. Como muito bem disse
	               Chesterton, "quando dois homens se ofendem em
	               público é justo crer que os dois têm razão".
	               Vamos, ao contrário, usar este espaço para meditar
	               sobre o sentido da democracia. A democracia, meus
	               amigos...
A televisão é desligada.
CENA 143 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
	Carolina estava assistindo ao programa. Chico entra, carregando
	umas fitas. Carolina desliga a TV.
	               CHICO
	               E aí? Viu o programa dele?
	               CAROLINA
	               Acabei de ver. É bom.
	               CHICO
	               Bom em que sentido?
	               CAROLINA
	               Bom, bem feito. Bom pro Andrew. (pausa) Conseguiu
	               falar com ele?
	               CHICO
	               Não. Já deixei quinhentos recados, ele não
	               respondeu.
Chico entrega um papel para Carolina.
	               CHICO
	               Dá uma olhada nisso aqui.
	               CAROLINA
	               Pesquisa? E aí?
Carolina olha o papel com atenção.
	               CHICO
	               O Davi subiu, dois pontos. O Andrew subiu oito
	               pontos. Oito pontos em quinze dias. Sabe o que
	               isso significa? A diferença agora é de dez pontos.
	               Aquele imbecil do Gabriel caiu mais três, o resto
	               continuou na mesma, com um ou dois pontos.
	               CAROLINA
	               Hoje o Gabriel queria "meditar sobre o sentido da
	               democracia".
	               CHICO
	               O sentido da democracia é de fora pra dentro.
	               (pausa) Se continuar assim a decisão vai ser entre
	               o Andrew e o Davi.
	               CAROLINA
	               O que significa...
	               CHICO
	               Provavelmente, uma úlcera.
CENA 144 - ESTAÇÃO RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA
	Lisa desce de um ônibus. Carrega apenas uma mochila e uma sacola
	cheia de garrafas.
CENA 145 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Lisa está vestida com uma bata azul cheia de desenhos coloridos.
	À sua frente, muito constrangidos, estão Chico, Carolina e
	Luciano.
	               LISA
	               Vocês se recusam a cantar os hinos, tudo bem. Eu
	               entendo. Mas na hora de tomar vocês devem fazer o
	               que eu mandar, certo?
	               LUCIANO
	               Depende...
	               LISA
	               Então fica sem.
	               CHICO
	               A gente tem um pouco de medo.
	               LISA
	               Medo de quê? Eu tô aqui, pra cuidar de vocês. Não
	               tem nenhuma energia negativa nessa sala.
	               CAROLINA
	               Lisa, eu não quero passar mal, vomitar, essas
	               coisas.
	               LISA
	               Nem todos vomitam. (Aproxima-se de Carolina com um
	               copo cheio) Carolina, você acha que eu ia te dar
	               uma coisa ruim?
	               CAROLINA
	               Não.
	               LISA
	               Então toma.
Lisa estende o copo para Carolina, que o pega, ainda receosa.
	               CAROLINA
	               Tudo?
	               LISA
	               Tudo. Se quiser, fecha o nariz com a mão.
	Carolina tapa o nariz, olha rápido para Chico e Luciano e toma
	tudo num gole só. Senta numa cadeira e respira fundo. Lisa
	ajoelha na frente dela, sorri e segura suas mãos com força.
	Depois enche um copo para si e também toma tudo. Senta ao lado de
	Carolina. Luciano e Chico, ainda de pé, sentem-se covardes.
	               CHICO
	               Tudo bem. Eu tomo, mas não o copo todo.
	               LUCIANO
	               A gente mesmo se serve, tá?
	               LISA
	               Se tomar muito pouco, é desperdício.
	Chico e Luciano servem-se, menos de um terço de copo cada um, e
	bebem. Sentam-se num outro sofá. Chico bota a mão na boca e sai
	correndo da sala. Barulho de vômito vindo do banheiro. Os olhos
	de Carolina ficam muito injetados.
	               CAROLINA
	               Que árvore linda! Toda vermelha...
	Lisa sorri e fala baixinho no ouvido dela. Luciano sai da sala,
	rumo à cozinha. Abre a geladeira e pega uma garrafa de Coca-Cola
	litro. Enche um copo e bebe sofregamente. Chico também vai para a
	cozinha.
	               LUCIANO
	               Tô tentando diluir essa merda.
	               CHICO
	               Eu preciso de um troço doce.
	Do fundo da geladeira, Chico pega uma torta de chocolate e começa
	a comer compulsivamente.
Chico e Luciano servem-se de torta.
	Luciano abre uma garrafa de dois litros de refrigerante e serve
	dois copos.
	Luciano e Chico, ao lado da geladeira aberta, dividem o último
	pedaço da torta.
	Carolina e Lisa chegam na cozinha, completamente viajantes.
	Carolina parece não entender o que está acontecendo. Mas Lisa, de
	dentro de sua viagem, consegue articular:
	               LISA
	               No Mapiá, só o padrinho Sebastião tem geladeira.
	Luciano e Chico olham para elas, culpados, sem qualquer defesa.
	Lisa começa a cantar, em tom de hino religioso.
	               LISA
	               Com minha mãe estarei / na santa glória um dia /
	               ao lado de Maria, no céu triunfarei.
Carolina começa a cantar junto.
	               LISA E CAROLINA
	               No céu, no céu, no céu triunfarei...    
CENA 146 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA
	O céu aerografado, no estúdio. Davi está sentado em frente ao
	cenário, olhando diretamente para a câmara. Chico fala fora de
	cena.
	               CHICO (OFF)
	               Você já usou drogas?
	               DAVI
	               (rindo) Não. Mas eu conheço...
	               CHICO (OFF)
	               Por favor, Davi, não ria quando responder
	               perguntas. Você fica parecendo pedante.
	Davi fica sério, um pouco seguindo instruções, um pouco porque
	não gostou da objetividade agressiva de Chico.
	               CHICO (OFF)
	               Você já usou drogas?
	               DAVI
	               Não. Mas eu conheço gente que usa, são meus
	               amigos.
	               CHICO (OFF)
	               Você é amigo de drogados?
	               DAVI
	               Não é isso, é que eu acho que..
	               CHICO (OFF)
	               Diga que você não usa, nunca usou, ponto. Se o
	               repórter perguntar se você conhece alguém que usa
	               ou usou você diz que sim, ponto. Se ele perguntar
	               mais, diga que você não é juiz de ninguém, que os
	               viciados devem ser tratados, que os traficantes
	               devem ser presos, que tem muitos poderosos
	               acobertando o narcotráfico, enfim, obviedades.
Davi acha graça.
	               CHICO (OFF)
	               Não tente ser engraçado nem informal. Você não é
	               engraçado. Seja sério e pareça honesto. E não diga
	               "eu acho". Achar, qualquer um acha, parece chute,
	               palpite. Você quer ser o prefeito. Diga "eu penso"
	               ou "eu acredito". Se você se comportar e subir dez
	               pontos nas pesquisas eu deixo você usar "eu
	               creio".
	               DAVI
	               (achando graça) Tudo bem.
	               CHICO (OFF)
	               Você já usou drogas?
	               DAVI
	               Não.
	               CHICO (OFF)
	               Nunca?
	               DAVI
	               Nunca.
	               CHICO (OFF)
	               Acredita em Deus?
	               DAVI
	               Eu sou católico.
	               CHICO (OFF)
	               Diga que acredita. Diga que é católico mas acha
	               que religião é uma opção pessoal, íntima. Diga
	               exatamente aquilo que todos já disseram, que é
	               exatamente aquilo que todos querem ouvir. Não
	               tente ser original. Isso assusta as pessoas.
	               DAVI
	               Certo.
	               CHICO (OFF)
	               Qual sua opinião sobre o aborto?
	               DAVI
	               Eu acho que... Eu acredito que... o aborto é crime
	               e portanto... (pausa) O que eu devo dizer?
Chico entra em cena.
	               CHICO
	               (para o cinegrafista, fora de cena) Chega, pode
	               parar. (para Davi) Não sei. Qual a sua opinião
	               sobre o aborto?
	A luz do estúdio é desligada. Chico e Davi ficam silhuetados
	contra o céu do estúdio.
	               DAVI
	               Não sei, nunca pensei nisso. O que a prefeitura
	               tem a ver com isso? Por que interessa a minha
	               opinião sobre deus, drogas ou aborto?
	Chico sorri, um pouco decepcionado, um pouco cansado, um pouco
	absorto. Fala quase que para si mesmo.
	               CHICO
	               Não sei, Davi. Não tenho a menor idéia.
CENA 147 - ENTRADA DE VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA
	Dois carros cheios de adesivos da campanha de Davi saem de uma
	estrada de asfalto e entram numa rua secundária, sem asfalto,
	típica entrada de vila popular. No carro da frente, estão o
	MOTORISTA, Davi (no banco da frente, sempre acenando), Chico e um
	SEGURANÇA. Chico está com cara de ressaca e saco-cheio. No carro
	de trás está a EQUIPE de TV que faz a campanha de Davi
	(motorista, câmara, operador de VT e diretor). O carro balança
	muito.
	               CHICO
	               Davi, lembra que essa vila é território do Andrew.
	               Se você for vaiado, não se irrite. Também não fica
	               rindo, como você fez ontem.
	               DAVI
	               Eu sei lidar com esse tipo de gente.
	               CHICO
	               Esse tipo de gente vai decidir a eleição.
	               DAVI
	               (sempre rindo e acenando para os moradores, que em
	               sua maioria acenam de volta) Eles não sabem nem o
	               que é uma eleição. Eles só sabem que têm que fazer
	               um xis. Um xis depois de Davi. É só isso. O resto,
	               deixa comigo.
	Chico está deprimido, fica em silêncio. Davi vira-se pela
	primeira vez para Chico, preocupado com o silêncio dele.
	               DAVI
	               Ô, Chico, não posso mais nem brincar? Você me traz
	               num buraco desses, onde eu vou ouvir vaia, tomar
	               cafezinho frio e vão jogar coisas em mim. Eu
	               venho, de bom-humor e disposto a fazer tudo que
	               você mandar. Qual é o problema?
	               CHICO
	               Não tem problema, Davi. (pausa) Por favor, não
	               fala mais naquele negócio das trezentas mil casas
	               populares.
	               DAVI
	               Por que não? É uma estimativa muito simples. Se
	               cada habitante da cidade tiver acesso a um
	               financiamento...
	               CHICO
	               (cortando) Cada habitante da cidade? Pelo amor de
	               Deus, Davi...
	               DAVI
	               Tudo bem. É melhor eu não gastar saliva com
	               eleitor garantido.
	Chico enterra-se ainda mais no banco de trás. Olha pela janela.
	Os MORADORES acenam para o carro. Um MENINO, com uma bandeira de
	Andrew, faz um gesto obsceno, bem agressivamente. Mas logo a
	seguir aparece uma NEGRONA desdentada, com uma faixinha do Davi
	na cabeça, e acena positivamente. Chico olha para trás. Ainda
	consegue ver que a negrona chega perto do menino, tira a bandeira
	dele e dá um empurrão. O menino cospe nela. Ela tira o chinelo e
	parte pra cima do menino. O carro faz uma curva fechada e Chico
	não consegue acompanhar o final da cena.
CENA 148 - COMITÊ DA VILA - EXTERIOR/DIA
	Davi discursa na frente do "Comitê da Vila Caixa D'Água pela
	vitória de Davi", que é um casebre caindo aos pedaços. Está em
	cima de uma caixa de cerveja. Umas CEM PESSOAS à sua frente. A
	maioria das bandeiras é de Andrew. A equipe de TV registra, sob o
	comando do diretor. Chico está perto de Davi, mas fica em
	silêncio o tempo todo.
	               DAVI
	               (empolgado, no final do discurso) E quando eu falo
	               em trezentas mil casas populares, podem dizer que
	               eu sonho, podem dizer que é demagogia, que é
	               discurso eleitoreiro. Mas eu não sonho com casas
	               prontas que caem do céu, presentes de Deus ou do
	               governo. Eu sonho com as ferramentas, com o
	               material de construção, com os terrenos, com o
	               dinheiro a juros baixos, com a capacidade de cada
	               um erguer, a partir de seus sonhos, uma morada
	               mais digna, mais saudável e mais humana. Muito
	               obrigado.
	Uma grande vaia responde ao final do discurso. Há alguns aplausos
	e "muito bens", mas a reação da maioria é nitidamente negativa.
	Não chega a haver agressividade, e sim descontentamento. Davi
	reage bem: ergue as mãos, aponta os que o aplaudem e agradece.
CENA 149 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
	Na ilha de edição, estão sentados Chico, Carolina e um operador
	de VT. Um monte de fitas etiquetadas pelo chão e em cima da mesa.
	No monitor, acompanhamos os últimos segundos do discurso de Davi.
	Logo que as vaias começam, Chico interrompe:
	               CHICO
	               Dá pause aí. Carolina, me dá a fita da vila
	               Recreio.
	Carolina alcança uma fita. Chico dá uma olhada rápida na ficha da
	fita.
	               CHICO
	               Dez minutos e trinta segundos.
	O operador coloca a fita, dá reset na máquina e depois fast-
	forward. Chega no ponto pedido por Chico: é uma pequena multidão
	começando a aplaudir um discurso de Davi. Muitas bandeiras. Clima
	festivo.
	               CHICO
	               Ainda não usamos isso aí. Edita no final do
	               discurso.
	 
	Assistimos, a seguir, ao procedimento de edição que transforma a
	reação ao discurso de Davi. Era negativa. Agora é muito positiva.
	Carolina está evidentemente contrariada. Quando a sacanagem está
	pronta, Chico levanta.
	               CHICO
	               Por favor, Carolina, coloca pra mim a vinheta
	               final e cronometra.
	Carolina faz um sinal de positivo com a mão. Depois pega uma fita
	com a etiqueta "vinhetas" e coloca no VT1. O operador posiciona o
	VT2 no final dos aplausos e dá edit. Começa a vinheta final que
	tem várias imagens de Davi e, ao fundo o jingle da campanha.
	Carolina assiste a vinheta até o final, com uma cara de enterro.
	Luciano entra na ilha de edição, visivelmente nervoso.
	               LUCIANO
	               Cadê o Chico?
	               CAROLINA
	               Saiu há pouco. Quê que houve?
	               LUCIANO
	               Não entendi direito. A mãe da Lisa me ligou. Elas
	               estão na delegacia.
CENA 150 - DELEGACIA DE TÓXICOS - INTERIOR/NOITE
	Sala do delegado, que está nervoso. Em cima da mesa, quatro
	garrafas de Daime. A mãe de Lisa, Carolina e Luciano discutem com
	o DELEGADO, já faz algum tempo.
	               LUCIANO
	               Nós queremos ver a Lisa, agora!
	               DELEGADO
	               Agora não é possível. Ela está sendo interrogada.
	               MÃE DE LISA
	               (quase histérica) Mentira!
	               CAROLINA
	               Calma. Desse jeito a gente não chega em lugar
	               nenhum. (Tentando manter-se calma:) Delegado, o
	               senhor não tem o direito de escondê-la.
	               DELEGADO
	               Eu não estou escondendo nada. Daqui a pouco vocês
	               podem entrar.
	               MÃE DE LISA
	               Eu quero ver a minha filha! Vocês bateram nela!
	               DELEGADO
	               Ela resistiu à prisão.
	               MÃE DE LISA
	               Seu desgraçado!
	               DELEGADO
	               A senhora se acalme, ou eu prendo a senhora por
	               desacato!
	               LUCIANO
	               Calma, dona Dilma.
	               DELEGADO
	               (apontando para a mãe de Lisa) Vocês conhecem bem
	               essa senhora? (olha para Luciano e Carolina, que
	               não sabem o que dizer) Aposto que não. É bom que
	               vocês saibam de uma coisa: a nossa diligência era
	               pra pegar cocaína, que essa senhora consome em
	               larga escala. Dois traficantes já nos deram o nome
	               dela. Mas não achamos cocaína. Em compensação,
	               achamos isso (e aponta as garrafas). E a filha
	               dessa senhora está presa por porte e tráfico de...
	               não sei o nome desse negócio na garrafa, mas sei
	               que é uma substância estupefaciente.
	               CAROLINA
	               (cortando) Olha, eu não quero discutir isso agora,
	               nós vamos chamar um advogado pra acompanhar tudo.
	               Eu só quero ver a minha amiga. Agora!
	               DELEGADO
	               Impossível.
	Chico chega com a equipe de gravação do programa, se fazendo de
	repórter. O operador de pau-de-luz liga a refletor.
	               DELEGADO
	               O que é isso?
	               CHICO
	               (com o microfone, falando para a câmara) É um caso
	               típico de abuso de autoridade. O delegado mantém
	               um preso incomunicável.
	               DELEGADO
	               Não é verdade!  
	               MÃE DE LISA
	               É verdade. Eu quero ver a minha filha!
	               CHICO
	               (para a mãe de Lisa) O que aconteceu?
	               MÃE DE LISA
	               Eles entraram na minha casa à força. E bateram na
	               minha filha!
	               CHICO
	               (para o delegado) Senhor delegado, os agentes
	               tinham mandado de busca?
	               DELEGADO
	               (muito nervoso, não sabe o que dizer) E o senhor
	               tem autorização para invadir minha sala? Qual é a
	               emissora de vocês?
	               CHICO
	               Desliga um pouco a luz aí, Alemão. Dá pause,
	               Salvador.
Salvador abaixa a câmara.
	               DELEGADO
	               (Percebe que é melhor mudar de tática) Eu gostaria
	               de dar uma palavrinha em particular com o senhor
	               antes de gravar qualquer entrevista.
	Chico entrega o microfone para o cinegrafista e faz sinal para
	que eles saiam da sala.
	               DELEGADO
	               Olha, eu vou seu franco. A nossa intenção era
	               pegar a mãe, ela cheira faz tempo, arruma confusão
	               com os vizinhos. Demos azar, nada de cocaína. Mas
	               tinha isso aqui (mostra a garrafa), e a menina
	               assumiu que era dela. E resistiu à prisão.
	 
	               CHICO
	               Eu gostaria de ver o mandado de busca.
	               DELEGADO
	               Hoje não vai ser possível, o mandado está com o
	               escrivão.
	               CHICO
	               (aproximando-se) Olha, doutor, se eu fizer as
	               imagens da menina o senhor vai ficar numa situação
	               difícil. Se o senhor me impedir, digo que a prisão
	               é ilegal: houve invasão da casa e violência. O
	               senhor não acha que nós podemos resolver isso de
	               outra maneira? Afinal, o senhor só que tem essas
	               garrafas. (pausa) O senhor já mandou analisar o
	               conteúdo?
O delegado pega a garrafa, examina, balança a cabeça.
	               CHICO
	               E se não for droga nenhuma?
CENA 151 - SALA DA DELEGACIA - INTERIOR/NOITE
	Chico e o delegado entram numa sala pequena. Lisa está sentada
	numa cadeira, algemada, em frente a uma mesa. Um policial está de
	pé perto dela. O rosto de Lisa está todo arrebentado,
	principalmente um dos olhos. Ela olha para a frente,
	inexpressiva. Não reage à entrada de Chico.
	               DELEGADO
	               Ela caiu e machucou olho.
Chico está tão chocado que não consegue falar.
	               DELEGADO
	               Tião, solta a moça.
	 
	Tião solta as algemas. Lisa continua sentada.
	               CHICO
	               O senhor promete que o assunto está encerrado.
	O delegado assente, com um gesto. Chico ajuda Lisa a se levantar.
	Ela olha pra ele, reconhece-o, mas continua calada. Caminha
	devagar ao lado de Chico, rumo à porta.
CENA 152 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE
	Lisa está sentada numa poltrona, com o mesmo olhar perdido de
	sempre. Aparentemente perdeu o contato com a realidade. Carolina
	e Chico conversam com Dilma.
	               CHICO
	               E ela não reage?
	               DILMA
	               (muito triste) Não. Fica aí, quieta, olhando pra
	               frente... Eu tenho que dar comida, levar no
	               banheiro...
Dilma começa a chorar. Chico olha o relógio, parece ansioso.
	               CHICO
	               Talvez ela precise tratamento.
	               DILMA
	               Que tratamento?
	               CHICO
	               Psiquiátrico.
Carolina e Dilma se olham, surpreendidos pela posição de Chico.
	               DILMA
	               Eu tentei uma vez, mas vocês não deixaram.
	               CHICO
	               É diferente. A senhora tava querendo proteger o
	               mundo da Lisa. E agora ela é que precisa proteção.
Chico olha outra vez o relógio. Levanta.
	               CHICO
	               Nós temos que ir, Carolina. Dona Dilma, se a
	               senhora precisar de alguma coisa, inclusive algum
	               tipo de ajuda financeira, por favor, nos procure.
Chico aproxima-se de Lisa.
	               CHICO
	               Outra hora a gente volta.
CENA 153 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE
	Sob uma chuva leve, Andrew discursa em um palanque. É um comício
	da Frente Democrática. CANDIDATOS A VEREADOR e alguns
	OPORTUNISTAS se aglomeram atrás de Andrew, tentando pegar lugar
	nas imagens de TV. A equipe de Chico grava o comício.
	               ANDREW
	               ... A presença da equipe de tevê do meu principal
	               oponente...
	Andrew aponta para a equipe de Chico. Explode uma vaia. Algumas
	pessoas jogam bolas de papel e copos na equipe. Chico diz pro
	cinegrafista gravar tudo.
	               ANDREW
	               Calma! O que eles querem é exatamente nos
	               provocar, criar confusão. A elite se protege
	               usando a classe média. Eles querem mostrar ao
	               eleitor de classe média, à dona de casa, ao
	               pequeno empresário, que nós, da plebe, somos
	               desordeiros, que nós iremos trazer o caos social.
	               Fazem isso para esconder que o caos social, a
	               miséria, a violência, o desemprego, já estão aí,
	               companheiros. (aplausos) Fazem isso para esconder
	               que é esta elite que está aí, comandando este
	               país, este estado e esta cidade desde que eles
	               existem, é esta elite a responsável pela miséria,
	               pela violência, pelo desemprego e pela fome!
	               (aplausos) Esta elite, que vampiriza o povo
	               brasileiro...
	Um homem, JÚLIO, bem perto do palanque, no meio do público,
	começa a gritar.
	               JÚLIO
	               Sai, ô comunista! Ateu!
	               ANDREW
	               ... (meio desconcentrado) é esta elite,
	               predatória.
	               JÚLIO
	               Baderneiro!
	Um grupo de SEGURANÇAS, com a camiseta de Andrew, aproxima-se de
	Júlio, que grita. Começa uma pancadaria. Os seguranças,
	especialmente um, GILSON, são muito violentos e massacram o
	sujeito. Chico grava todas as imagens.  
	               ANDREW
	               Calma, companheiros! Calma!
CENA 154 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
Chico chega, cheio de fitas. Carolina está na ilha.
	               CHICO
	               (muito excitado) Receberam o meu recado?
	               CAROLINA
	               Chico...
	               CHICO
	               Preciso de pelo menos dois minutos. Quebrou o
	               maior pau no comício deles, tenho imagens
	               incríveis!
	               CAROLINA
	               Chico.
Chico pára e percebe que Carolina não está com a cara boa.
	               CHICO
	               Que foi, Carolina? Morreu alguém?
Carolina fica parada olhando para Chico.
CENA 155 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/NOITE
	Velório. Algumas PESSOAS ocupam uma capela do cemitério. Os
	rostos são tristes e encaram Chico, que passa por eles em direção
	à capela, com aquele respeito excessivo dos velórios. Chico
	entra, aproxima-se do caixão e observa, através do vidro, o rosto
	do Velho.
	Ele tem um curativo na testa e está bastante maquilado. Dona
	Miriam Junqueira, aquela antiga jornalista das linguodentais
	fricativas, aproxima-se de Chico.
	               DONA MIRIAM
	               Deve ter sido o próprio motorista ou alguém que
	               passava, gente pra fazer uma maldade é que não
	               falta. Ele saiu do restaurante naquele estado,
	               você sabe... Não tinha nenhum dinheiro, tava com a
	               roupa toda suja. Os amigos viram ele pegar o táxi.
	Chico se distrai e começa a olhar em volta, mas dona Miriam
	continua falando, compulsivamente.
	               DONA MIRIAM (OFF)
	               Foi encontrado numa vila lá no fim do mundo, perto
	               de Cachoeirinha. Todo machucado, passou a noite no
	               sereno, coitado, um moço de tanto talento. Não
	               resistiu, a noite foi muito fria, ele já tinha o
	               físico muito enfraquecido. Sabe como é. A bebida.
	               Coitado, descansou.
	Andrew entra na sala. Sua chegada causa alguma agitação. Andrew
	cumprimenta os PAIS DO VELHO. Chico sai da sala, tentando evitar
	um encontro.
CENA 156 - CORREDORES DO CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE
	Chico sai do banheiro dos homens. Caminha pelo corredor do
	cemitério, meio perdido. As paredes estão cobertas por túmulos,
	com as fotos dos mortos e algumas flores de plástico. A luz
	trêmula de uma fluorescente com mau contato deixa o cenário ainda
	mais fúnebre. Chico dobra uma esquina e se vê a poucos passos de
	Andrew, que se aproxima. Todo o diálogo se dá sob a vigilância
	atenta dos mortos nos retratos.
	               ANDREW
	               (secamente) Chico.
	               CHICO
	               Tudo bem?
	               ANDREW
	               Tudo bem. E você?
	               CHICO
	               Tudo bem.
Andrew passa por Chico, vai se afastando, pára.
	               ANDREW
	               Eu queria te avisar de uma coisa, como é que se
	               diz... em nome dos velhos tempos. Você sabe que só
	               eu e o Davi temos alguma chance. E eu nem comecei
	               a usar o que eu tenho contra ele. Você já fez um
	               grande trabalho trazendo ele até aqui. Caia fora
	               antes do debate, se puder.
	               CHICO
	               (rindo) Andrew, você me conhece o suficiente pra
	               saber que eu só jogo pra ganhar.
	               ANDREW
	               Principalmente se o jogo for a dinheiro.
	               CHICO
	               Engano seu, o dinheiro é só uma desculpa. Eu não
	               gosto é de perder. Me ensinaram que os mocinhos
	               sempre ganham.
	               ANDREW
	               E você acreditou? (ri) Na vida real os mocinhos
	               perdem quase todas. Quase. Esta eleição os
	               mocinhos vão ganhar. E os anchietanos vão perder.
Vai saindo. Chico sai atrás dele, irritado.
	               CHICO
	               Você não entende nada de vida real, Andrew. Você
	               entende de estratégias, de aparências e de boas
	               intenções. Mas você nunca entendeu nada da vida
	               real. A vida real tem pessoas e você não gosta
	               muito das pessoas, Andrew, elas às vezes não se
	               encaixam nas sua lógica perfeita. Aí você pega as
	               pessoas, classifica e se livra delas. O Velho era
	               um "vendido", lembra? O Abraão "um desbundado", a
	               Lisa e o Luciano eram uns "porra-loucas". E eu sou
	               "anchietano"  E você, Andrew? O que você é?
Andrew não pára de caminhar e fala sem olhar para Chico.
	               ANDREW
	               Mantenha a discussão no plano político,
	               companheiro. Você está sem argumentos.
	               CHICO
	               Plano político é muito bom. Eu procurei você,
	               muitas vezes, telefonei, deixei recado. Mas os
	               anchietanos não faziam mais parte da sua
	               estratégia. (pausa) Eu encontrei a Sílvia, lembra
	               dela?
Andrew pára e encara Chico.
	               ANDREW
	               O que é, Chico? O que você quer? Aliviar sua culpa
	               cristã em cima de mim?
	               CHICO
	               Ela costumava ser a mãe da sua filha. Da sua filha
	               você lembra? Clarissa, é o nome dela. A Sílvia me
	               disse que você não vê a sua filha há cinco meses.
	               Ela pediu pra avisar que a Clarissa teve caxumba.
	               ANDREW
	               Você escolheu o seu lado, Chico, e está sendo
	               muito bem pago pra isso. Vá em frente.
	               CHICO
	               Você só consegue raciocinar dividindo o mundo em
	               dois, Andrew, e isso não tem nada a ver com a vida
	               real.
	               ANDREW
	               Quem dividiu o mundo em dois não fui eu. Quando eu
	               nasci ele já era assim. E eu nasci no lado errado,
	               no lado sujo, sem água, sem esgoto, sem ar
	               condicionado. Sem futuro. Mas o futuro a gente
	               inventa, Chico, e eu vou inventar o meu. Fique com
	               o Davi. De qualquer jeito, os anchietanos acabam
	               jogando sempre no mesmo time.
Andrew se afasta. Chico fica parado, olhando.
CENA 157 - ENTERRO - EXTERIOR/DIA
	O cortejo segue o enterro do Velho. Chico, Andrew e um grupo de
	PESSOAS segue o caixão pelas galerias do cemitério.
	               CHICO (OFF)
	               O Velho foi um jornalista da pesada. Anistia
	               Internacional, Jornal Movimento, Pasquim,
	               Coojornal, você conhece o tipo. Há uns cinco anos
	               encheu o saco de tudo, foi pros Estados Unidos,
	               lavar prato, varrer chão. Conheceu uma mexicana,
	               acabou trabalhando num posto do correio em "El
	               Paso", no Texas. Os mexicanos com visto temporário
	               nos Estados Unidos só podiam deixar o país e
	               voltar se tivessem um aviso de problemas de saúde
	               com a família. O aviso tinha que vir do México,
	               por telegrama, e falar da saúde de algum parente
	               direto. Óbvio que todos forjavam o tal telegrama
	               pra poder visitar a família. Pra economizar, os
	               cucarachas mandavam pro posto do correio de El
	               Paso sempre o mesmo texto, tarifa econômica até
	               dez letras: MAMA'S GRAVE. A função do Velho era
	               arquivar e catalogar as centenas de telegramas com
	               aquele texto: MAMA'S GRAVE. A mãe está grave. Os
	               americanos achavam aquilo muito estranho, porque
	               eles liam "MAMA'S GREIV": o túmulo de mamãe. O
	               Velho guardou uma pilha de telegramas e alguns
	               dólares, voltou ao Brasil e abriu um bar com esse
	               nome, "MAMA'S GRAVE". Ele forrou uma parede do bar
	               com os telegramas. O bar estava falido, acho de
	               tanto ele beber o estoque. Ontem ele bebeu mais
	               que o normal, entrou num táxi sem dinheiro e foi
	               achado num valão em Cachoerinha, nu e com duas
	               costelas quebradas. Morreu ao dar entrada no
	               hospital de pronto-socorro. Isso é parte daquilo
	               que o Andrew chama de "a vida real".
CENA 158 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA
	Andrew dá entrevistas para vários repórteres, na saída do enterro
	do velho.
	               ANDREW
	               Eu não vim aqui para falar de política, eu vim
	               prestar uma última homenagem ao Velho. Eu aprendi
	               muito de jornalismo com ele, foi um professor para
	               todos nós. Sempre combateu pela liberdade de
	               imprensa, pelos mais humildes, vai deixar uma
	               lacuna difícil de ser preenchida.
	               REPÓRTER
	               Alguma estratégia especial para o último debate?
	               ANDREW
	               Não. Nós chegamos até aqui simplesmente dizendo a
	               verdade, dizendo aquilo que todos os
	               trabalhadores, estudantes e donas-de-casa já
	               sabem: que esta cidade precisa de gente honesta e
	               que trabalhe pelo interesse da maioria.
CENA 159 - ESTACIONAMENTO DO CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA
Chico e Luciano estão saindo do cemitério.
	               LUCIANO
	               A situação ficou insustentável. O Ibarri sumiu.
	               CHICO
	               O Ibarri é aquele teu sócio uruguaio?
	               LUCIANO
	               Eu descobri, entre outras coisas, que ele era
	               Colombiano.
Luciano conduz Chico para o seu carro.
CENA 160 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/DIA
Chico e Luciano no carro em movimento, Luciano dirigindo.
	               LUCIANO
	               Eu tenho que assumir todas as dívidas da padaria.
	               Tenho que vender a minha parte na produtora.
	               CHICO
	               Agora? No meio da campanha?
	               LUCIANO
	               Agora. Se eu esperar mais um pouco, todos os
	               cartórios me protestam e eu tenho que pedir
	               falência. E aí a coisa se complica, porque pode
	               atingir a produtora.
	               CHICO
	               E quem vai querer comprar?
	               LUCIANO
	               O Davi. Pela quinta parte do que vale.
	               CHICO
	               Tá louco, Luciano? Eu não vou ser sócio do Davi.
	               LUCIANO
	               Eu não tenho alternativa. Chico, a verdade é que o
	               Davi é um canalha. Talvez ele tenha planejado tudo
	               com o Ibarri.
	               CHICO
	               E você quer que eu fique sócio de um canalha?
	               LUCIANO
	               Se você quiser, podemos tentar uma última jogada.
	               Você larga tudo, diz que vai abandonar a campanha.
	               Ele fica apavorado e admite pagar a parte do
	               Ibarri.
	               CHICO
	               O que tem a ver a campanha com a padaria? Ele
	               contrata outro cara pro meu lugar, não nos paga o
	               que deve e ainda pode alegar que nós quebramos o
	               contrato.
	               LUCIANO
	               É, é um risco. Se eu tivesse tempo, esperava o
	               final da campanha. Se a gente ganhar, acho que ele
	               paga. Mas se a gente perder...
	               CHICO
	               Luciano, eu não posso assumir o teu prejuízo da
	               padaria só porque você acha que...
	               LUCIANO
	               Eu não acho nada. Eu tenho certeza. Chico, o Davi
	               é um canalha.
	               CHICO
	               Há pouco você disse que achava. Agora tem certeza.
	               LUCIANO
	               Chico, eu estou sendo o mais claro possível: eu
	               tenho que vender a minha parte na produtora, senão
	               tô morto. Morto e enterrado.
	               CHICO
	               (vendo algo no retrovisor) Pro Davi você não vai
	               vender.
	               LUCIANO
	               Então acha um outro comprador.
	               CHICO
	               Eu. Eu vou comprar. (apontando) Tem um táxi aí
	               atrás.
Luciano vê o táxi e começa a fazer sinal.
	               LUCIANO
	               Você não tem dinheiro.
	               CHICO
	               Eu arrumo.
	               LUCIANO
	               (parando o carro) Amanhã é o meu último prazo.
	               CHICO
	               Então amanhã você me cobra. Agora eu vou preparar
	               o debate.
Chico sai do carro. Luciano vê o amigo entrar no táxi.
CENA 161 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
	Andrew, Davi, Gabriel e dois outros CANDIDATOS preparam-se para o
	debate final na TV. Cada um está de pé em um púlpito. O cenário
	tem um logotipo "Eleições 89". Chico está próximo de Davi e lhe
	dá algumas instruções. O ASSISTENTE DE ESTÚDIO faz sinal de que o
	programa vai recomeçar. Chico e os ASSESSORES saem.
	               APRESENTADORA
	               Conforme as regras estabelecidas para este debate,
	               neste bloco os candidatos fazem perguntas um para
	               o outro. A primeira pergunta, por ordem de
	               sorteio. É do candidato da Frente Democrática,
	               doutor Andrew.
	               ANDREW
	               A minha pergunta vai para o candidato da Aliança
	               Liberal. Eu gostaria de perguntar ao doutor Davi
	               qual a opinião dele sobre o uso de drogas, se ele
	               usa ou já usou drogas.
	               DAVI
	               Não uso e nunca usei drogas de nenhum tipo.
	               (pausa)
	               APRESENTADORA
	               O senhor ainda está no seu tempo, doutor Davi.
	               DAVI
	               Eu já respondi à pergunta.
Andrew fala fora de quadro.
	               ANDREW
	               O que acha sobre o uso?
	               DAVI
	               Ah, sim. Eu não sou juiz de ninguém. Acho que os
	               viciados devem ser tratados e que o tráfico deve
	               ser combatido. O tráfico resiste porque é
	               acobertado pelos políticos tradicionais, cúmplices
	               dos traficantes. É preciso aparelhar a polícia,
	               pagar salários dignos aos policiais. Os
	               traficantes hoje estão melhor aparelhados que a
	               polícia. Se o estado se preocupasse mais com a
	               segurança, a saúde, a educação, e menos em manter
	               empresas deficitárias, poderia combater mais
	               diretamente o narcotráfico.
	               ANDREW
	               E como o senhor explica a apreensão pela polícia
	               federal, em sua propriedade (mostrando um
	               documento), a fazenda Santa Fé, na fronteira com a
	               Argentina, de oitenta quilos de cocaína no avião
	               prefixo PT-084, de propriedade de Lúcio Alvarez
	               Ibarri, sócio na empresa "Lucky Bread Panificadora
	               Limitada" de um dos patrocinadores de sua
	               campanha, o empresário Luciano de Almeida. Eu
	               tenho aqui todos os documentos que comprovam a
	               apreensão. Os jornais, talvez atendendo a pedidos
	               de um grande anunciante como o senhor, não
	               noticiaram. Isso foi em maio do ano passado. O
	               senhor poderia esclarecer o fato aos seus
	               eleitores.
	               DAVI
	               (um pouco tenso) É muito simples. Um avião de um
	               sujeito que eu nunca vi e não conheço, com o qual
	               eu não tenho ou tive qualquer relação, pessoal ou
	               comercial, este avião, transportando drogas,
	               invadiu o espaço aéreo brasileiro e pousou na
	               pista de pouso de uma das... de um sítio que eu
	               tenho. A polícia federal apreendeu a droga, o
	               avião e os traficantes estão presos. Eu não tenho
	               nada a ver com isso, não fui acusado nem indiciado
	               de nada. O senhor está me acusando de alguma
	               coisa? (pausa) Porque se o senhor está me acusando
	               eu vou lhe exigir que prove suas acusações, ou
	               então eu vou lhe acusar de calúnia, injúria e
	               difamação!
Toca uma campainha, indicando que o tempo acabou.
	               ANDREW
	               Eu não lhe acusei de nada...
	               APRESENTADORA
	               É a sua vez de perguntar, doutor Davi. Pela ordem,
	               a pergunta do candidato da Aliança Liberal.
	               DAVI
	               Pois eu vou retribuir a gentileza e perguntar ao
	               doutor Andrew.
Os outros candidatos acham graça.
	               DAVI
	               Eu gostaria que o senhor explicasse, doutor
	               Andrew, a atuação do pessoal da sua segurança no
	               comício deste sábado. As imagens daquela
	               selvageria os telejornais mostraram, eu nem
	               preciso relembrar. Eu estive no hospital visitando
	               o seu Júlio, aquele senhor, pai de família, que
	               esteve no seu comício e cometeu o crime de
	               expressar a sua opinião. Ele perdeu dois dentes e
	               talvez fique cego de um olho. É isso que o senhor
	               chama de convivência democrática?
	               ANDREW
	               Não, é isso que eu chamo de armação. E quem tem
	               que explicar é o senhor. Primeiro o senhor tem que
	               explicar o que a sua equipe de televisão estava
	               fazendo no meu comício. Porque as imagens que os
	               telejornais mostraram, como o senhor diz, foram
	               fornecidas pela sua equipe de TV, estrategicamente
	               colocada para documentar a briga. Em segundo
	               lugar... (pega um envelope) o senhor tem que
	               explicar...
	Andrew mostra duas fotos. Numa, tirada do vídeo do comício,
	aparece o Segurança com a camisa do Andrew chutando o seu Júlio.
	Na outra, o mesmo Segurança, num comício, ao lado de Davi. Chico
	também aparece nesta foto.
	               ANDREW
	               ...o que este homem, Gilson Alves, o mesmo que
	               agrediu selvagemente a seu Júlio, o que este homem
	               fazia na sua passeata, poucos dias antes. Isso se
	               chama armação!
CENA 162 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE
	Carolina chega. Chico está vendo o debate, agora reproduzido num
	telejornal.
	               DAVI
	               (gritando) Isso é um absurdo! Meu oponente quer
	               justificar a selvageria da sua segurança,
	               transferindo a culpa para mim. É muita cara de
	               pau! Eu nunca vi este sujeito na minha vida...
Apresentador do jornal.
	               APRESENTADOR
	               E aí, Zé Antônio. O debate pode alterar o
	               resultado da eleição?
	               ZÉ ANTÔNIO
	               Veja bem, faltando poucos dias para a eleição a
	               situação realmente esquentou com as denúncias de
	               Andrew. Davi foi pego de surpresa durante o
	               debate. E o tal segurança, João Alves, parece que
	               saiu do Brasil. Amanhã é o último dia da campanha
	               na televisão e a vantagem de Davi é pequena...
Chico desliga a TV.
	               CAROLINA
	               Foi bem ruinzinho.
Chico ri.
	               CAROLINA
	               Você sabia da armação do comício?
	               CHICO
	               (estranhando a pergunta) Óbvio que não, Carolina.
	               CAROLINA
	               E o que você estava fazendo lá?
	               CHICO
	               A assessoria pediu que eu gravasse o discurso
	               inteiro, pra mostrar o lado mais furioso do
	               Andrew. (pausa) Fazia sentido.
	               CAROLINA
	               E aí eles armaram a briga. São uns cretinos!
	               CHICO
	               Pode ser mentira.
Carolina estranha.
	               CHICO
	               Pode ser a armação da armação. Você não viu como
	               era boa a foto do Davi com o segurança? O cara
	               pode ter ido, a mando do Andrew, antes no comício
	               do Davi, pra ser fotografado. Depois ele vai no
	               comício do Andrew, com a camisa do Andrew, e cobre
	               de porrada um eleitor do Davi. Aí a gente filma e
	               denuncia. E eles mostram a foto, dizem que o cara
	               é da turma do Davi e nos desmoralizam. Xeque. Mas
	               ainda não foi o mate.
	Carolina fica alguns segundos paralisada, assombrada com o
	raciocínio tortuoso de Chico.
	               CAROLINA
	               Você não tá falando sério... O cara sumiu do
	               Brasil, largou tudo, deve ter ganho uma fortuna.
	               CHICO
	               De quem?
	               CAROLINA
	               Do Davi, é óbvio, Chico!
Carolina larga algumas fitas, preenche uma planilha.
	               CAROLINA
	               Saiu a pesquisa?
Chico faz que sim.
	               CAROLINA
	               E aí?
	               CHICO
	               O Andrew ficou na mesma. O Davi caiu um pouco.
	               CAROLINA
	               Um ponto?
	               CHICO
	               Um POUCO. Quatro pontos.
	               CAROLINA
	               Quatro! A diferença ficou...
	               CHICO
	               Três pontos.
	               CAROLINA
	               Isso antes do debate.
	               CHICO
	               Antes do debate.
	               CAROLINA
	               Então o Davi já era, acabou.
	               CHICO
	               Ainda não. Falta um programa, amanhã.
Carolina ri. Levanta.
	               CAROLINA
	               Você não pode mudar o caráter do Davi com dez
	               minutos de vídeo-tape.
	               CHICO
	               Mas talvez eu possa mostrar o do Andrew.
	               CAROLINA
	               Você já fez bastante, Chico. Vamos embora.
	               CHICO
	               Quer ver o que eu já editei?
	Não espera resposta. Aciona a máquina que começa a rodar o VT.
	São imagens do comício. Gilson Alves surra o sujeito, caído no
	chão, pessoas gritam e atiram coisas na câmara. As imagens são
	intercaladas com um amanhecer na cidade, destacando o prédio da
	prefeitura. O gabinete do prefeito, a decoração clássica do
	prédio e a tranqüilidade da manhã formam um grande contraste com
	a fúria da turba no comício.
	               LOCUÇÃO (OFF)
	               A cidade vai escolher seu prefeito, o homem que
	               vai ocupar esta casa nos próximos quatro anos.
	               Este homem precisa ter preparo, tranqüilidade,
	               moderação. Este homem precisa ser DAVI. Ou você
	               entregaria a cidade a este homem?
	Da surra de Júlio, fusão para o rosto enfurecido de Andrew no
	discurso. Fim da edição.
	               CAROLINA
	               Mantenha a plebe longe dos cristais de Versalhes.
	               Muito bom. (pausa) Mas não é o suficiente, você
	               sabe disso. Você fez o possível, Chico, vamos
	               embora. São quase duas da manhã.
	               CHICO
	               Eu vou ficar mais um pouco.
Carolina levanta, vai saindo.
	               CAROLINA
	               Eu vou visitar a Lisa amanhã. Você não quer ir
	               junto?
	               CHICO
	               Acho que não vou poder.
	               CAROLINA
	               Algum recado pra ela?
	               CHICO
	               Mama's grave.
	Carolina não acha graça. Sai. Chico fica sozinho na ilha. Começa
	a rever o final da edição, o rosto enfurecido de Andrew, o homem
	caído no chão, sendo chutado.
	               LOCUTOR
	               ...ou você entregaria a cidade a este homem?
	Chico congela a imagem no rosto de Andrew. Pega uma fita na
	gaveta. Põe na máquina. Posiciona a fita. Aperta o botão
	"PREVIEW". Entra a imagem final da edição.
	               LOCUTOR
	               ...ou você entregaria a cidade a este homem?
Surge, numa continuação da edição, a imagem de Andrew no debate.
	               ANDREW
	               Eu gostaria de perguntar ao meu oponente qual a
	               opinião dele sobre o uso de drogas, se ele usa ou
	               já usou drogas.
	Andrew, alguns anos mais moço, no estúdio da TV, com um baseado
	na mão.
	               ANDREW
	               Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades
	               democráticas e por uma melhor distribuição de
	               maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la
	               marijuana jamás!
A edição intercala as duas imagens de Andrew.
	               ANDREW
	               ...sobre o uso de drogas / por uma melhor
	               distribuição de maconha! / uso de drogas / maconha
	               / se ele usa ou já usou / maconha / sobre o uso de
	               drogas / Hay que endurecerse, pero sin faltar la
	               marijuana jamás!
Congela na expressão de chapado de Andrew.
	               LOCUTOR
	               Você entregaria a cidade a este homem?
	Chico fica alguns segundos avaliando o efeito devastador da
	edição. As máquinas voltam aos pontos originais, as imagens da
	pancadaria e a pergunta de Andrew no debate. O botão "EDIT" fica
	piscando em vermelho. Ao seu lado, apagado, o botão "CANCEL".
	Chico fica olhando o botão piscar. Chico aperta o botão "EDIT".
CENA 163 - IGREJA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
	Um bando de MENINOS E MENINOS estão na fila do confessionário.
	Eles esperam encostados na parede, em silêncio. Quando um
	desocupa o confessionário o outro vai.
	               CHICO (OFF)
	               No colégio, toda primeira sexta-feira do mês a
	               gente tinha que se confessar. A gente ficava em
	               fila e entrava num lugar apertado e falava com
	               alguém que a gente não via, como num banco 24
	               horas. Nós inventávamos todos os pecados. O
	               roteiro dos meus pecados inventados era
	               subliteratura infantil: bati na minha irmã, roubei
	               uma fruta do quintal do vizinho e - para dar
	               alguma credibilidade - disse palavrão. Três
	               Avemaria, três Santoanjo, três Painosso, seguinte!
	               Inventei um jeito de rezar mais rápido, só com os
	               melhores momentos de cada reza. Ave convosco,
	               bendito seus frutos, venha a nós o vosso reino,
	               meu zeloso seatime confiou agora e na hora de
	               nossa morte amém. Pagava minha dívida antes mesmo
	               de sair da igreja e podia começar a pecar de novo,
	               do zero. São os milagres da fé. Eu ainda não sabia
	               que inventar pecados é o mesmo que cometê-los.
	               Quase o mesmo.
CENA 164 - COMITÊ DE ANDREW - INTERIOR/NOITE
	Andrew dá entrevista para vários REPÓRTERES. Ele parece estar
	muito tranqüilo.
	               ANDREW
	               Foi uma grande vitória, uma vitória dos
	               trabalhadores, da sociedade organizada. Nunca na
	               história desta cidade um candidato que
	               representava as classes populares teve uma votação
	               tão expressiva. Elegemos um grande número de
	               vereadores, quase que dobrando a nossa bancada. E
	               só não ganhamos a eleição majoritária porque no
	               último instante nossos adversários apelaram para
	               calúnias e difamações. A Frente Democrática
	               inclusive pretende recorrer até ao Supremo
	               Tribunal Eleitoral...
CENA 165 - ESTÚDIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE
	Festa. Davi é carregado nos ombros da galera. Todos cantam o
	jingle da campanha. As grandes letras D A V I foram arrancadas do
	céu do estúdio e são erguidas pela TURBA como troféus de uma
	batalha. Davi é colocado sobre um palanque improvisado. Pede
	silêncio. Todos ficam quietos.  Davi faz uma longa e emocionada
	pausa.
	               DAVI
	               Meus amigos e minhas amigas. Eu creio...
	Chico, num canto do estúdio, fecha os olhos, suspira. Davi
	continua o seu discurso, mas Chico não escuta mais. A multidão
	aplaude.
	               CHICO (OFF)
	               O ano era mil novecentos e oitenta e nove, Brasil,
	               e quase todas as pessoas tinham trinta anos. Ou
	               mais. Quase todas as pessoas estavam infelizes,
	               angustiadas, desiludidas.
CENA 166 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA
Lisa, sentada ao lado de Chico.
	               CHICO (OFF)
	               Ou mais. É muito perigoso inventar um futuro. Tem
	               sempre alguém que acredita. Aí você tem que
	               inventar outro, e outro, e outro, cada vez mais
	               rápido.
CENA 167 - COLÉGIO DE JOSÉ - EXTERIOR/DIA
	Chico espera José na saída do colégio. José, um garoto de doze
	anos, sai da escola conversando com amigos. José vê Chico e
	oferece carona aos amigos. Todos aceitam e entram no carro.
CENA 168 - FRENTE DO EDIFÍCIO DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA
	José desce do carro de Chico. Caminha em direção à porta de
	casa. Carolina aparece para receber José. Chico abana mas ela não
	retribui. Dá as costas e entra no prédio. José abana para Chico.
	               CHICO (OFF)
	               Sobre o passado, não tenha dúvida que as vidas do
	               herói, do canalha e do mártir são a mesma, com
	               três montagens diferentes. Ou três públicos
	               diferentes.  
CENA 169 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Chico chega em casa, que está a maior bagunça, com uma pilha de
	correspondência e jornais na frente da porta. Chico liga a TV. No
	telejornal, festa dos partidários de Davi pelas ruas da cidade.
	               CHICO (OFF)
	               O primeiro livro que eu lembro é "O Conde de Monte
	               Cristo". Ficar milionário e se vingar de todos é
	               um futuro maravilhoso aos doze anos de idade.
	               Quase todos os livros infantis de sucesso falam de
	               ficar rico e se vingar. Quase todos os livros
	               adultos de sucesso também.
	Chico abre a geladeira. Tem água, um ovo e uma lata de negativo.
	Fecha a geladeira. Senta na frente da televisão. Já é noite. Fica
	mudando de canal com o controle remoto: programas de auditório,
	baixarias variadas, violência e sexo gratuito.
	               CHICO (OFF)
	               Outro futuro bastante popular é o "todos vão se
	               dar bem". Políticos, religiosos e os gentis
	               patrocinadores gostam muito deste futuro. É uma
	               ficção óbvia, ainda mais improvável que o Conde de
	               Monte Cristo. Mas não precisa de inimigos e,
	               portanto, é bom para os negócios.
	Chico vai até a janela. Já é muito tarde, a rua está deserta. Tem
	umas crianças tentando dormir na calçada.
	               CHICO (OFF)
	               O futuro mais normal no Brasil é "quase todo mundo
	               se dá mal, especialmente se tiver nascido pobre e
	               meio escurinho. Se for mulher, nordestino ou
	               deficiente, pior ainda". É claro que os gentis
	               patrocinadores detestam este futuro: é real,
	               injusto e não vai sair em vídeo.
Chico volta para a poltrona, senta na frente da tevê.
	               CHICO (OFF)
	               Você pode tentar inventar o seu futuro. Mas não se
	               preocupe demais. Em todos eles a gente morre no
	               fim.
	 
	A programação da TV chega ao fim. Aparece uma mulher para se
	despedir.
	               MULHER
	               Estamos encerrando nossas transmissões esperando
	               reencontrá-lo amanhã. Um bom descanso para todos e
	               uma boa noite.
FIM
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	(c) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1993-1997
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
29/07/1997
| Anexo | Tamanho | 
|---|---|
| anchiet1.txt | 266.8 KB |