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ÂNGELO ANDA SUMIDO
	        roteiro de Rosângela Cortinhas
	        e Jorge Furtado,
	        abril de 1996
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 0 - TV / ESTÚDIO (ARQUIVO)
	Comercial de páscoa. A televisão muda rapidamente de canal,
	mostrando fragmentos de vários programas. Trilha e créditos.
	        
CENA 1 - INT/NOITE - CORREDOR DO EDIFÍCIO DE JOSÉ
	José, pouco mais de 30 anos, ar tranqüilo, sentado numa poltrona,
	com o controle remoto na mão, desliga a televisão. Ele se
	levanta, pega uma mochila e caminha em direção à porta.
	        JOSÉ (OFF)
	        Eu lembro que saí de casa antes das nove porque a novela
	        estava começando. Eu desliguei a tevê e saí. Eu não tinha
	        almoçado e estava com muita fome.
	José sai e fecha a porta de seu apartamento. No corredor, ele
	abre a caixa de correspondência. Ele examina alguns cartões.
	 
	        JOSÉ (OFF)
	        Eu lembro também que eu peguei a correspondência. Tinha a
	        conta da luz, um cartão de uma desentupidora que eu não
	        lembro o nome e um anúncio de uma loja chamada Siamarrô,
	        tudo junto. Inesquecível.
Põe o cartão no bolso.
CENA 2 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE JOSÉ
	José sai do prédio. O porteiro, 45 anos, gordo, ar relaxado, que
	estava numa cadeira ao lado da porta, ergue-se e acompanha José
	até o portão do prédio, descendo as escadas.
	        PORTEIRO
	        E esse calorão?
	        JOSÉ
	        Esquentou mesmo.
	        PORTEIRO
	        Minha prima passou este fim de semana na praia, voltou com a
	        pele em carne viva.
	José guarda suas chaves no bolso. Com um molho de chaves, o
	porteiro abre o portão.
	        PORTEIRO
	        É o ozônio do sol que provoca estes buracos nas camadas da
	        pele. O ozônio que eles usam para fazer desodorante e motor
	        de geladeira. Eu vi uma reportagem na tevê. Impressionante.
	José fica pensando alguns segundos antes de responder.
	 
	        JOSÉ
	        Pois é.
José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão.
	        JOSÉ
	        (ao porteiro) Boa noite.
José caminha pela calçada.
	        JOSÉ (OFF)
	        Onde eu estava? Ah, sim, indo para a casa do Ângelo.
	        Caminhei até o ponto do ônibus.
José pára. Olha para trás como se tivesse esquecido de algo.
	        JOSÉ
	        Não, não...
Fecha os olhos.
José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão.
	        JOSÉ
	        (ao porteiro) Boa noite.
	        JOSÉ (OFF)
	        Acho que eu peguei um táxi.
José faz sinal para um táxi.
	        JOSÉ
	        Táxi!
O táxi pára.
	        JOSÉ (OFF)
	        É, foi isso, peguei um táxi. Eu estava morrendo de fome.
Ele entra no táxi.
CENA 3 - INT/NOITE - TÁXI
O rádio do táxi toca uma música em altíssimo volume.
	        JOSÉ
	        Eu estou indo para o centro.
O motorista aciona o taxímetro.
	        JOSÉ
	        O senhor pode abaixar um pouco o rádio?
	O motorista diminui o volume do rádio. José pega no bolso a
	carteira e dela tira um papel.
	        JOSÉ (OFF)
	        Eu não via o Ângelo desde a faculdade.
CENA 4 - EXT/DIA - RUA E ÔNIBUS
	Ângelo está dentro de um ônibus, na janela. José está de pé, ao
	lado do ônibus. Ângelo anota alguma coisa num caderno, rasga e
	entrega para José enquanto o ônibus parte.
	        JOSÉ (OFF)
	        A gente se encontrou uns dias antes e marcou de jantar no
	        sábado.
CENA 5 - EXT/NOITE - TÁXI
	O papel está rasgado. Falta um pedaço do número do apartamento:
	40... O táxi dá uma freada brusca.
	        MOTORISTA
	        (gritando) Quer morrer, animal?!
José guarda o papel e dá uma olhada na conta da luz.
	        MOTORISTA
	        (resmungando) Maloqueiro, raça de vagabundo! Só matando
	        tudo!
	        JOSÉ (OFF)
	        Não lembro que caminho o táxi fez.
CENA 6 - TABLE-TOP - MAPAS
Animação mostrando o caminho do táxi pelas ruas da cidade.
	        JOSÉ (OFF)
	        Ele pode ter dobrado a esquerda, logo depois da praça, e
	        seguido direto até o centro. Ou ele pode ter feito a volta
	        na praça e descido até a perimetral. Não lembro.
	 
CENA 7 - EXT/NOITE - RUAS (VIADUTO)
José desce do táxi.
	        JOSÉ
	        Eu lembro que ele me deixou a umas duas quadras da casa do
	        Ângelo, porque a rua dele era contramão.
	José caminha sob o viaduto. Cruza com um homem que tem dois cabos
	de vassouras nos ombros e, em cada um deles, sacolas plásticas de
	diferentes tamanhos. O homem fala sozinho.
	        MENDIGO
	        Eu sabia que aquela era a minha chance. Desgraçado,
	        bagaceiro! Eu sabia! Coisa de bagaceiro, mesmo! (resmungos
	        incompreensíveis].
	José não pára. Cruza com um grupo de mendigos que, aparentemente,
	passa as noites sob o viaduto.
CENA 8 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE ÂNGELO
	José chega na frente de um prédio. É um prédio antigo, cinza,
	quatro andares. Ângelo examina o porteiro eletrônico, confere o
	endereço no papel.
	        JOSÉ (OFF)
	        Duas chances: quatrocentos e um ou quatrocentos e dois.
	        (toca no porteiro eletrônico) Apertei no quatrocentos e um.
	Ninguém responde. De uma janela aberta do prédio vem uma música
	muito alta.
	        JOSÉ (OFF)
	        Alguém estava ouvindo uma música altíssima. Pelo que eu me
	        lembrava do Ângelo, podia até ser ele.
Ele toca outra vez.
	        JOSÉ (OFF)
	        Toquei também no quatrocentos e dois.
	Nada. Uma moça sai do prédio. Ela lê um cartão-postal e sorri.
	Quando vê José, seu rosto se modifica, se fecha. Ela se aproxima
	de José, cautelosa.
	        JOSÉ
	        Boa noite. Podia abrir para mim? O meu amigo não está
	        escutando.
	        MOÇA
	        Onde é que o senhor vai?
	        JOSÉ (OFF)
	        E agora?
	        JOSÉ
	        No apartamento de um amigo meu, o Ângelo do... (cobrindo a
	        boca com a mão) quatrocentos e (grhums).
	A moça olha para ele, de baixo para cima, lentamente. Detalhes do
	tênis de José, da calça de José, mãos e rosto de José.   
	        JOSÉ (OFF)
	        Ela olhou para mim, de baixo para cima. Se eu estivesse de
	        chinelo, ou de calção, ou tivesse as mãos muito fortes, ou
	        se a minha pele fosse marcada pelo trabalho ao sol, ou,
	        simplesmente, se eu fosse preto, não teria a menor chance.
José sorri.
INSERT: Ficha odontológica de José.
	        JOSÉ (OFF)
	        Eu sorri, passando no último teste: todos os dentes.
	 
	Ela abre a porta.
	        JOSÉ (OFF)
	        No Brasil, dente é salvo conduto. Não saia de casa sem eles.
	Ela sai, sempre olhando para José com alguma desconfiança, fecha
	e chaveia o portão externo do prédio.
	        JOSÉ
	        Obrigado.
	José atravessa a ponte do edifício e se depara com a porta do
	prédio fechada. Tenta abri-la. Toca em outro porteiro eletrônico.
	Nada. Os Replicantes continuam aos gritos. Abre-se uma janela no
	terceiro andar. Ele se afasta do prédio e tenta ver alguém. Uma
	mulher surge na janela com um saco plástico nas mãos.
	        JOSÉ
	        Senhora!
	Ela não responde e joga o saco pela janela. O saco cai na calçada
	ao lado de uma lixeira. Ao cair, o saco se abre espalhando lixo
	pela calçada. Mendigos se aproximam e catam o lixo.
	        JOSÉ
	        Senhora!
	        MULHER 1
	        Que que é?
	        JOSÉ
	        A senhora podia abrir para mim?
	        MULHER 1
	        Como é que tu entrou?
	        JOSÉ
	        Eu  estou indo na casa de um amigo meu...
	        MULHER 1
	        Não pode ficar aí. É proibido. Eu vou chamar a polícia.
	        JOSÉ
	        Senhora!
Ela entra e fecha a janela. Ele aperta mais uma vez no porteiro.
	        JOSÉ
	        (gritando) Ângelo!
	Ninguém responde. A música segue alta. Ele senta no degrau da
	porta. Um mendigo passa caminhando na calçada. José olha para
	ele. A música pára. Ele se ergue rapidamente.
	        JOSÉ
	        (gritando) Ângelo! Ângelo! Ângelo!
Ele aperta muitas vezes o botão do porteiro eletrônico.
	        JOSÉ
	        Ângelo!
	A música recomeça. José desiste e tenta sair do prédio. Não
	consegue, o portão está trancado. Ele sacode o portão, muito
	irritado, os Replicantes aos gritos. Ângelo tem um surto, sacode
	e chuta o portão. Dois novos moradores, um homem e um velho,
	surgem nas janelas do prédio e do prédio vizinho.
	        HOMEM 2
	        O que está acontecendo aí?
Ele tenta se acalmar.
	        JOSÉ
	        Desculpe, mas é que eu fiquei preso aqui.
A Mulher abre a janela.
	        HOMEM 3
	        Que barulho é esse? Tem gente doente no prédio!
	        MULHER 1
	        Ele tá emaconhado! A polícia já vem vindo.
	        JOSÉ
	        Eu sou amigo do Ângelo, do quatrocentos e dois.
	        HOMEM 2
	        Quem mora no quatrocentos e dois é a dona Marilda
	        Cantarelli!
	        MULHER 1
	        Eu não disse que ele tá emaconhado?
	        
	Um carro da polícia se aproxima e pára.
	        MULHER 1
	        Olha eles aí. (ao Homem 3) Eu sou tia do delegado Soares da
	        décima primeira.
Um policial desce e se aproxima de José.
	        POLICIAL
	        Qual é o problema?
	        MULHER 1
	        Ele tá emaconhado!
	        HOMEM 3
	        Ele invadiu o prédio!
	        JOSÉ
	        (ao policial) Eu fiquei preso aqui. Estou tentando ir na
	        casa de um amigo meu, o Ângelo, do quatrocentos e um.
	        HOMEM 2
	        Antes ele disse que era no quatrocentos e dois.
	        MULHER 1
	        Viu?
	        HOMEM 3
	        Ele tentou quebrar o portão.
	        JOSÉ
	        Eu fiquei preso, estava tentando sair. É só tocar no
	        apartamento 401, chamar pelo Ângelo.
O policial olha José de baixo a alto. José sorri.
	        POLICIAL
	        (para a Mulher) A senhora podia tocar no 401, por favor?
	        Como é o nome do seu amigo?
	        JOSÉ
	        Ângelo.
	        POLICIAL
	        Ângelo de que?
	        JOSÉ
	        Como?
	        POLICIAL
	        Qual o sobrenome nome dele?
	        JOSÉ
	        Não sei. Acho que é Ângelo Chaves. Todo mundo sempre chamou
	        ele de Ângelo.
	A Mulher sai da janela.
	 
	        HOMEM 3
	        A gente não tem mais sossego nessa rua. Eu estou com a minha
	        mulher doente numa cama com problema de rins. Um inferno.
A música pára. Ângelo aparece na janela.
	        JOSÉ
	        Porra, Ângelo!
	        ÂNGELO
	        O porteiro está estragado. Ele é meu amigo, pode subir.
	        JOSÉ
	        (ao policial) Eu não lhe disse?
Ângelo joga um grande molho de chaves.
	        ÂNGELO
	        (grita) Não pega que dói a mão!
	José protege a cabeça. Um grande molho de chaves se aproxima do
	chão. A chave cai, com um estrondo. José se abaixa e pega.
	        JOSÉ
	        Muito obrigado. (para os moradores, irônico) Obrigado para
	        vocês também. Tudo de bom.
Ele tenta abrir a porta do prédio, testando as muitas chaves.
	        ÂNGELO
	        (grita) Na fechadura de cima é uma com o cabo preto, mais
	        velha. A de baixo é uma doberman.
	Os moradores, o policial e os mendigos ficam todos olhando para
	José. Ele, nervosamente, tenta abrir a porta. Finalmente ele
	consegue e sorri, aliviado. José abana para o policial e entra.
	 
CENA 9 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO
	As portas dos apartamentos do térreo têm sobreportas de grades de
	ferro. José passa por uma porta onde, pela janelinha, dois olhos
	o observam. José entra no elevador.
CENA 10 - INT/NOITE - ELEVADOR
	José aperta o botão do quarto andar e se encosta na parede do
	elevador, tentando relaxar.
	        JOSÉ (OFF)
	        Só lembrei da minha fome quando entrei no elevador. Minha
	        última refeição quente tinha sido o almoço do dia anterior:
	        lombinho de porco, daquele bem fininho, arroz, com o molho
	        do lombinho assim, por cima, purê de maçã e uma saladinha de
	        maionese.
	José chega no quarto andar e descobre que a porta do elevador
	também tem chave. Tenta descobrir no molho de chaves qual é a do
	elevador. A porta pantográfica do elevador começa a se fechar.
	José aperta o botão de "abrir" e tenta, só com uma mão, descobrir
	qual é a chave certa. A porta pantográfica fica enlouquecida,
	tentando se fechar. Finalmente ele abre a porta e sai do
	elevador.
CENA 11 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, QUARTO ANDAR
	No meio do corredor há uma grade de ferro que isola os
	apartamentos do resto do prédio. Ele aperta na campainha do 401 e
	os olhos de Ângelo aparecem na janelinha da porta. Ângelo põe a
	boca na janelinha.
	        ÂNGELO
	        Você vai ter que abrir. Está no mesmo chaveiro, a outra
	        cópia sumiu.
Procurando no chaveiro.
	        JOSÉ
	        Qual é?
	        ÂNGELO
	        Uma gold amarelinha, meio torta. Uma mais quadrada.
	        JOSÉ
	        Achei.
	José abre a grade e se aproxima da porta do apartamento. Tenta
	passar as chaves para o amigo pelo visor da porta mas o chaveiro
	é muito grande.
	        ÂNGELO
	        Não passa.
	        JOSÉ
	        Ai meu Deus!
	        ÂNGELO
	        Abre você. A de cima é uma comprida, redonda, acho que é
	        Jorajas, Jojoras, uma coisa assim. Prateada.
Experimenta a chave.
	        JOSÉ
	        Achei, mas não vira.
	        ÂNGELO
	        Tem um jeitinho. Empurra o miolo da fechadura com o polegar
	        da mão esquerda e gira com a direita, ao mesmo tempo.
A chave gira.
	        JOSÉ
	        Deu.
	        ÂNGELO
	        A do meio está do lado, na mesma argola. Acho que é Papaiz.
Experimenta. A chave gira.
	        JOSÉ
	        Deu. Eu estou morrendo de fome.
Ângelo passa uma bolacha pela janelinha.
	        ÂNGELO
	        Quer uma bolacha?
	        JOSÉ
	        Quero. Qual é a de baixo?
José pega a bolacha e come.
	        ÂNGELO
	        A de baixo é fácil, uma vermelha.
	José acha a chave, põe na fechadura, gira a chave. Experimenta o
	trinco mas a porta não abre.
	        ÂNGELO
	        Acho que na de cima você só deu uma volta.
José procura a chave.
	        JOSÉ
	        Qual é a de cima mesmo?
	        ÂNGELO
	        Uma comprida.
	José põe a chave, gira e tenta a maçaneta. A porta abre mas
	tranca numa correntinha.
	        ÂNGELO
	        Deu. Fecha para eu abrir.
	José fecha a porta. Som da correntinha sendo aberta. A porta se
	abre. Ângelo, com duas bolachas na mão, sai do apartamento.
	        ÂNGELO
	        Nem entra, que a reserva no restaurante é para às dez. Tudo
	        bem? Você emagreceu.
	        JOSÉ
	        Deve ser a fome. Estou morrendo de fome.
	        ÂNGELO
	        Quer outra bolacha?
	José pega a bolacha e come. Ângelo pega as chaves e começa a
	fechar a porta.
	        ÂNGELO
	        A gente não se via há...
	        JOSÉ
	        Sei lá. Um tempão.
	        ÂNGELO
	        Vem cá, você lembra da Jane?
	        JOSÉ
	        Jane?
	        ÂNGELO
	        Da escola. Uma baixinha, morena, cabelo liso, bonitinha.
	        Namorava aquele cara do segundo ano, o... como era o nome
	        dele? Um que tinha uma cinqüentinha, namorava todo mundo. A
	        moto fazia mais sucesso que ele.
	        JOSÉ
	        Lembro. Um magrão.
Ângelo começa a fechar a grade do corredor.
	        ÂNGELO
	        Ele mesmo. Como era mesmo o nome dele?
	        JOSÉ
	        Não lembro.
	Pausa.
	        
	        JOSÉ
	        Afinal o que houve com ele?
	        ÂNGELO
	        Com ele? Não sei.
	        JOSÉ
	        Mas de quem nós estamos falando então?
	        ÂNGELO
	        Da Jane.
	        JOSÉ
	        Jane... Não lembro. O que houve com ela?
	        ÂNGELO
	        Também não sei. Sumiu.
Ele chama o elevador e põe a chave na porta.
	        JOSÉ
	        Mas porque você lembrou dela?
	        ÂNGELO
	        Não sei, achei que você talvez soubesse dela, ela era amiga
	        da Cris.
	        JOSÉ
	        Cris?
	        ÂNGELO
	        Ué? A Cris. Vocês não eram namorados?
	        JOSÉ
	        Cris? Ah, lembrei. A Cris, claro.
	 
	O elevador chega.
CENA 12 - INT/NOITE - ELEVADOR
	Eles entram.
	 
	        JOSÉ
	        Encontrei ela uma vez no supermercado. Nunca mais vi. Sumiu
	        também.
	Pausa. Ficam sem assunto. José examina os detalhes do elevador.
	Lê a plaquinha: "É proibido fumar ou conduzir aceso cigarros ou
	assemelhados. Capacidade máxima permitida: seis pessoas ou
	quatrocentos e noventa quilos. A utilização acima desta
	capacidade é ilegal e perigosa".
	        JOSÉ
	        Quanto você pesa?
	        ÂNGELO
	        Sessenta e oito.
	        JOSÉ
	        Perfeito! Eu peso setenta e dois.
	        ÂNGELO
	        Antes da bolacha.
	        JOSÉ
	        Não deve fazer muita diferença. Uma bolacha...
	        ÂNGELO
	        Duas.
	        JOSÉ
	        Duas. Hoje eu nem almocei.
	        ÂNGELO
	        Você fuma?
	        JOSÉ
	        Não.
	        ÂNGELO
	        Eu também não. Estamos dentro da média e da lei. Isso não te
	        dá assim... uma sensação de segurança?
O elevador chega no térreo e abre.
CENA 13 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO
Eles vão abrir a porta do prédio. A porta está chaveada.
	        JOSÉ
	        Eu deixei aberta.
	        ÂNGELO
	        Alguém já fechou. Olha o aviso.
	Na parede, ao lado da porta, há um aviso: A PORTA DEVE PERMANECER
	FECHADA A CHAVE DEPOIS DAS 20 HORAS. Ângelo abre a porta. Eles
	saem.
CENA 14 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO
	Eles atravessam o pátio do prédio. Ângelo procura a chave para
	abrir o portão.
	        ÂNGELO
	        Você veio de carro?
	        JOSÉ
	        De táxi.
	        ÂNGELO
	        Vamos pegar um ali na praça Quinze, passa toda hora.
	Ângelo abre o portão. Eles saem. Ângelo fecha o portão. José
	começa a caminhar.
	        ÂNGELO
	        Não, vamos pelo outro lado.
	        JOSÉ
	        (apontando) Por aqui não é mais perto?
	        ÂNGELO
	        Nesta esquina tem uns mendigos que moram na calçada, eu
	        prefiro passar pelo outro lado. A gente dá a volta...
Eles saem caminhando.
CENA 15 - TABLE-TOP - MAPAS
Animação do trajeto num mapa.
	        Ângelo (OFF)
	        ... pela Andradas e entra na Sete de Setembro. Não dá para
	        ir sempre pela Sete porque ali tem uma boates meio barra
	        pesada, mas a gente pega aquela travessinha, acho que é a
	        Tiradentes, e depois vai reto pela Dom Pedro até a praça
	        Quinze. Talvez a gente já consiga um táxi na Dom Pedro.
CENA 16 - EXT/NOITE - RUAS
	Eles caminham pelas ruas. Ângelo estende a mão com o chaveiro
	para José.
	        ÂNGELO
	        Posso por na tua mochila?
José guarda as chaves na mochila.
	        ÂNGELO
	        Vamos atravessar que ali na frente tem uma obra onde moram
	        umas pessoas.
	Atravessam a rua. Ao fundo, uma obra abandonada cercada por um
	tapume. Mendigos na obra. Uma forte luz ilumina a cena. A luz vem
	da máquina de um soldador que está colocando uma grade. Caminham
	mais. Dobram uma esquina e se aproximam do fim da rua, onde uma
	grade fecha a passagem.
	        JOSÉ
	        E agora?
	        ÂNGELO
	        Eu não sabia que tinham fechado isso aqui. Será que tem uma
	        passagem?
	        JOSÉ
	        Parece que não.
	        ÂNGELO
	        E se a gente pulasse?
	        JOSÉ
	        Não. É muito alto.
Ângelo tenta subir na grade, mas não tem onde apoiar o pé.
	        ÂNGELO
	        Tem essa ponta aqui que não dá para por o pé. Que largura
	        tem entre uma grade e outra?
	        JOSÉ
	        O suficiente para não passar a cabeça de uma criança.
José mede com a mão.
	        ÂNGELO
	        Vamos dar a volta.
	Eles dão meia volta e procuram um novo caminho. Assustam-se com o
	soldador mascarado armado de um maçarico.
	        JOSÉ
	        Ô! Desculpe...
	Seguem caminhando, sempre cercados de grades. Vêem uns mendigos na
	calçada, a frente.
	        ÂNGELO
	        É melhor a gente atravessar aqui.
Atravessam. Um mendigo caminha na direção deles.
	        ÂNGELO
	        (ao mendigo) Eu não tenho nada.
Afastam-se.
CENA 17 - EXT/NOITE - GUARITA
	Continuam caminhando até encontrar uma guarita com um guarda. Ao
	lado da guarita, um cachorro policial está deitado.
	        GUARDA
	        Boa noite.
	        JOSÉ
	        Boa noite.
	        GUARDA
	        Não pode passar por aqui.
	        ÂNGELO
	        Como não? A rua é pública.
	        GUARDA
	        Essa aqui não é mais. O pessoal aí comprou.
	        ÂNGELO
	        O senhor tá brincando...
	        JOSÉ
	        Mas a gente só quer passar para o outro lado.
	        GUARDA
	        Não dá. Vocês vão ter que dar a volta.
	        JOSÉ
	        Isso é um absurdo!
	        ÂNGELO
	        Quem é que vai ficar sabendo?
	        GUARDA
	        Eu. Vocês vão ter que dar a volta.
	        ÂNGELO
	        A gente atravessa bem rapidinho.
	        GUARDA
	        Não dá. Vocês vão ter que dar a volta.
Ângelo avança.
	        ÂNGELO
	        O senhor me desculpe, mas eu vou passar. A gente está morrendo
	        de fome, aqui não passa táxi, eu vou passar.
O guarda sai da guarita. Ângelo pára.
	        GUARDA
	        Ao cruzar o limite da guarita o senhor estará cometendo o
	        crime definido no artigo cento e cinquenta do código penal;
	        violação de domicílio: entrar ou permanecer clandestina ou
	        astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem
	        de direito, em casa alheia OU EM SUAS DEPENDÊNCIAS.
	Ângelo e José ficam alguns segundos parados, olhando para o
	porteiro.
	        JOSÉ
	        (baixinho, para Ângelo) Esse cara é louco.
	        GUARDA
	        Louco? Não, não. Louco é o meu cachorro. (para o cachorro)
	        Pega Louco!
	Louco se ergue num salto, latindo, e parte em direção a José e
	Ângelo. Eles saem correndo, Louco nos seus calcanhares.
	        GUARDA
	        (discursando) A casa é o asilo inviolável do indivíduo;
	        ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do
	        morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante
	        o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer. Artigo
	        cento e cinqüenta e três, parágrafo décimo da constituição
	        federal de mil novecentos e sessenta e cinco!
José e Ângelo correm do cachorro.
CENA 18 - EXT/NOITE - RUAS
	José corre pela rua, desesperado.
	 
	        JOSÉ
	        Essa constituição nem vale mais!
	José chega a uma cerca. Tenta pular. A mochila prende na grade.
	Louco se aproxima. José se desfaz da mochila e pula. Louco mastiga
	a mochila. José ergue-se e sai correndo. José dobra uma esquina.
CENA 19 - EXT/NOITE - RUAS
	José corre mais um pouco e, sem fôlego, diminui o ritmo. Olha para
	trás e para os lados. Pára. Respira fundo.
	        JOSÉ
	        Ângelo!
Ao longe, Louco late. José começa a caminhar.
	        JOSÉ
	        Ângelo!
José caminha mais um pouco.
	        Ângelo (OFF)
	        José!
	        JOSÉ
	        (gritando) Estou aqui!
	        ÂNGELO (OFF)
	        Aqui onde?
	José dobra uma esquina. Dá de cara com Ângelo, só que do outro lado
	de uma grade.
	        ÂNGELO
	        Que que é isso?
	        JOSÉ
	        Vamos sair daqui. Que loucura!
Os dois tentam recuperar o fôlego.
	        JOSÉ
	        Vamos para casa pedir uma pizza. Eu estou morrendo de fome.
	        ÂNGELO
	        Cadê a mochila?
	        JOSÉ
	        O Louco comeu. Tudo bem, não tinha nada. Minha conta da luz...
	        Eu peço uma segunda via.
	José tira dos bolsos a carteira, o cartão da Siamarrô e suas
	chaves.
	        JOSÉ
	        Minhas coisas estão nos bolsos: carteira, chaves...
José olha para as chaves e para Ângelo. Ângelo olha para José.
	        JOSÉ
	        Não acredito!
	        ÂNGELO
	        Onde foi?
	        JOSÉ
	        Ali atrás. Eu vou voltar para buscar.
José vai saindo.
	        JOSÉ
	        Espere aqui.
	        ÂNGELO
	        Não, eu vou pela outra rua. Não quero ficar aqui parado.
	Ângelo se afasta, dá uma olhadinha para trás e desaparece depois da
	esquina. José caminha pelo meio da rua.
CENA 20 - EXT/NOITE - RUA
	Dobra a esquina e vê a cerca que ele havia pulado. Nem sinal de
	Louco. Ele se aproxima da cerca. A mochila não está ali. Ele fica
	parado, olhando para o outro lado da rua, por trás da grade, para
	o lugar onde Ângelo deve surgir. Ele espera. Muito ao longe, a luz
	de uma solda. Mais ao longe, um latido.
	        JOSÉ (OFF)
	        Fiquei esperando uns... cinco minutos, não sei. Talvez mais.
José caminha no meio da rua.
	        JOSÉ (OFF)
	        Fiz todo o caminho de volta, até a casa do Ângelo. Em cada
	        esquina eu olhava, chamei por ele.
	José dobra uma esquina e se depara com outra grade fechando a rua.
	Muda de direção. Cruza com um homem que solda uma grade. Cruza com
	um mendigo.
	        JOSÉ (OFF)
	        Voltei para casa, esperei que ele me ligasse. Talvez ele
	        tivesse encontrado a mochila. Liguei para casa dele várias
	        vezes, naquela noite e no dia seguinte. Fiquei preocupado.
José dobra uma esquina.
CENA 21 - EXT/NOITE RUA
	José entra numa grande e larga avenida onde há um carrinho de
	cachorro-quente. José se aproxima e pede um. O homem prepara o
	cachorro-quente. Detalhes.
	        JOSÉ (OFF)
	        Uns dias depois, passei na casa dele. Chamei, ninguém atendeu.
	        Também não sei se já tinham arrumado o porteiro, achei melhor
	        não falar com os vizinhos. Aí, eu viajei, fiquei um tempo
	        fora.
	O homem lhe entrega o cachorro quente. Ele paga, dá a primeira
	mordida e sai caminhando.
	        JOSÉ (OFF)
	        Depois que eu voltei, ainda procurei por ele uma vez. O
	        edifício tinha sido reformado, o porteiro estava funcionando.
	        Falei com um cara no apartamento dele que era inquilino novo.
	        Alugou de imobiliária e não sabia do antigo morador.
	José se afasta pela avenida quase deserta. Ao longe, um soldador
	trabalha colocando num prédio mais uma grade.
	        JOSÉ (OFF)
	        Nunca mais procurei nem ouvi falar do Ângelo. Já passou um
	        ano, eu só lembrei por causa da páscoa. A última vez que a
	        gente se viu foi naquela noite, atrás daquela grade. O Ângelo
	        anda sumido. Eu também.
FADE OUT. SOBEM CRÉDITOS FINAIS.
FIM
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	(c) Rosângela Cortinhas e Jorge Furtado, 1996.
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
01/04/1996
| Anexo | Tamanho | 
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