ÂNGELO ANDA SUMIDO

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        ÂNGELO ANDA SUMIDO

        roteiro de Rosângela Cortinhas
        e Jorge Furtado,
        abril de 1996

        produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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CENA 0 - TV / ESTÚDIO (ARQUIVO)

Comercial de páscoa. A televisão muda rapidamente de canal,
mostrando fragmentos de vários programas. Trilha e créditos.
        

CENA 1 - INT/NOITE - CORREDOR DO EDIFÍCIO DE JOSÉ

José, pouco mais de 30 anos, ar tranqüilo, sentado numa poltrona,
com o controle remoto na mão, desliga a televisão. Ele se
levanta, pega uma mochila e caminha em direção à porta.

        JOSÉ (OFF)
        Eu lembro que saí de casa antes das nove porque a novela
        estava começando. Eu desliguei a tevê e saí. Eu não tinha
        almoçado e estava com muita fome.

José sai e fecha a porta de seu apartamento. No corredor, ele
abre a caixa de correspondência. Ele examina alguns cartões.
 
        JOSÉ (OFF)
        Eu lembro também que eu peguei a correspondência. Tinha a
        conta da luz, um cartão de uma desentupidora que eu não
        lembro o nome e um anúncio de uma loja chamada Siamarrô,
        tudo junto. Inesquecível.

Põe o cartão no bolso.

CENA 2 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE JOSÉ

José sai do prédio. O porteiro, 45 anos, gordo, ar relaxado, que
estava numa cadeira ao lado da porta, ergue-se e acompanha José
até o portão do prédio, descendo as escadas.

        PORTEIRO
        E esse calorão?

        JOSÉ
        Esquentou mesmo.

        PORTEIRO
        Minha prima passou este fim de semana na praia, voltou com a
        pele em carne viva.

José guarda suas chaves no bolso. Com um molho de chaves, o
porteiro abre o portão.

        PORTEIRO
        É o ozônio do sol que provoca estes buracos nas camadas da
        pele. O ozônio que eles usam para fazer desodorante e motor
        de geladeira. Eu vi uma reportagem na tevê. Impressionante.

José fica pensando alguns segundos antes de responder.
 
        JOSÉ
        Pois é.

José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão.

        JOSÉ
        (ao porteiro) Boa noite.

José caminha pela calçada.

        JOSÉ (OFF)
        Onde eu estava? Ah, sim, indo para a casa do Ângelo.
        Caminhei até o ponto do ônibus.

José pára. Olha para trás como se tivesse esquecido de algo.

        JOSÉ
        Não, não...

Fecha os olhos.

José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão.

        JOSÉ
        (ao porteiro) Boa noite.

        JOSÉ (OFF)
        Acho que eu peguei um táxi.

José faz sinal para um táxi.

        JOSÉ
        Táxi!

O táxi pára.

        JOSÉ (OFF)
        É, foi isso, peguei um táxi. Eu estava morrendo de fome.

Ele entra no táxi.

CENA 3 - INT/NOITE - TÁXI

O rádio do táxi toca uma música em altíssimo volume.

        JOSÉ
        Eu estou indo para o centro.

O motorista aciona o taxímetro.

        JOSÉ
        O senhor pode abaixar um pouco o rádio?

O motorista diminui o volume do rádio. José pega no bolso a
carteira e dela tira um papel.

        JOSÉ (OFF)
        Eu não via o Ângelo desde a faculdade.

CENA 4 - EXT/DIA - RUA E ÔNIBUS

Ângelo está dentro de um ônibus, na janela. José está de pé, ao
lado do ônibus. Ângelo anota alguma coisa num caderno, rasga e
entrega para José enquanto o ônibus parte.

        JOSÉ (OFF)
        A gente se encontrou uns dias antes e marcou de jantar no
        sábado.

CENA 5 - EXT/NOITE - TÁXI

O papel está rasgado. Falta um pedaço do número do apartamento:
40... O táxi dá uma freada brusca.

        MOTORISTA
        (gritando) Quer morrer, animal?!

José guarda o papel e dá uma olhada na conta da luz.

        MOTORISTA
        (resmungando) Maloqueiro, raça de vagabundo! Só matando
        tudo!

        JOSÉ (OFF)
        Não lembro que caminho o táxi fez.

CENA 6 - TABLE-TOP - MAPAS

Animação mostrando o caminho do táxi pelas ruas da cidade.

        JOSÉ (OFF)
        Ele pode ter dobrado a esquerda, logo depois da praça, e
        seguido direto até o centro. Ou ele pode ter feito a volta
        na praça e descido até a perimetral. Não lembro.
 

CENA 7 - EXT/NOITE - RUAS (VIADUTO)

José desce do táxi.

        JOSÉ
        Eu lembro que ele me deixou a umas duas quadras da casa do
        Ângelo, porque a rua dele era contramão.

José caminha sob o viaduto. Cruza com um homem que tem dois cabos
de vassouras nos ombros e, em cada um deles, sacolas plásticas de
diferentes tamanhos. O homem fala sozinho.

        MENDIGO
        Eu sabia que aquela era a minha chance. Desgraçado,
        bagaceiro! Eu sabia! Coisa de bagaceiro, mesmo! (resmungos
        incompreensíveis].

José não pára. Cruza com um grupo de mendigos que, aparentemente,
passa as noites sob o viaduto.

CENA 8 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE ÂNGELO

José chega na frente de um prédio. É um prédio antigo, cinza,
quatro andares. Ângelo examina o porteiro eletrônico, confere o
endereço no papel.

        JOSÉ (OFF)
        Duas chances: quatrocentos e um ou quatrocentos e dois.
        (toca no porteiro eletrônico) Apertei no quatrocentos e um.

Ninguém responde. De uma janela aberta do prédio vem uma música
muito alta.

        JOSÉ (OFF)
        Alguém estava ouvindo uma música altíssima. Pelo que eu me
        lembrava do Ângelo, podia até ser ele.

Ele toca outra vez.

        JOSÉ (OFF)
        Toquei também no quatrocentos e dois.

Nada. Uma moça sai do prédio. Ela lê um cartão-postal e sorri.
Quando vê José, seu rosto se modifica, se fecha. Ela se aproxima
de José, cautelosa.

        JOSÉ
        Boa noite. Podia abrir para mim? O meu amigo não está
        escutando.

        MOÇA
        Onde é que o senhor vai?

        JOSÉ (OFF)
        E agora?

        JOSÉ
        No apartamento de um amigo meu, o Ângelo do... (cobrindo a
        boca com a mão) quatrocentos e (grhums).

A moça olha para ele, de baixo para cima, lentamente. Detalhes do
tênis de José, da calça de José, mãos e rosto de José.   

        JOSÉ (OFF)
        Ela olhou para mim, de baixo para cima. Se eu estivesse de
        chinelo, ou de calção, ou tivesse as mãos muito fortes, ou
        se a minha pele fosse marcada pelo trabalho ao sol, ou,
        simplesmente, se eu fosse preto, não teria a menor chance.

José sorri.

INSERT: Ficha odontológica de José.

        JOSÉ (OFF)
        Eu sorri, passando no último teste: todos os dentes.
 
Ela abre a porta.

        JOSÉ (OFF)
        No Brasil, dente é salvo conduto. Não saia de casa sem eles.

Ela sai, sempre olhando para José com alguma desconfiança, fecha
e chaveia o portão externo do prédio.

        JOSÉ
        Obrigado.

José atravessa a ponte do edifício e se depara com a porta do
prédio fechada. Tenta abri-la. Toca em outro porteiro eletrônico.
Nada. Os Replicantes continuam aos gritos. Abre-se uma janela no
terceiro andar. Ele se afasta do prédio e tenta ver alguém. Uma
mulher surge na janela com um saco plástico nas mãos.

        JOSÉ
        Senhora!

Ela não responde e joga o saco pela janela. O saco cai na calçada
ao lado de uma lixeira. Ao cair, o saco se abre espalhando lixo
pela calçada. Mendigos se aproximam e catam o lixo.

        JOSÉ
        Senhora!

        MULHER 1
        Que que é?

        JOSÉ
        A senhora podia abrir para mim?

        MULHER 1
        Como é que tu entrou?

        JOSÉ
        Eu  estou indo na casa de um amigo meu...

        MULHER 1
        Não pode ficar aí. É proibido. Eu vou chamar a polícia.

        JOSÉ
        Senhora!

Ela entra e fecha a janela. Ele aperta mais uma vez no porteiro.

        JOSÉ
        (gritando) Ângelo!

Ninguém responde. A música segue alta. Ele senta no degrau da
porta. Um mendigo passa caminhando na calçada. José olha para
ele. A música pára. Ele se ergue rapidamente.

        JOSÉ
        (gritando) Ângelo! Ângelo! Ângelo!

Ele aperta muitas vezes o botão do porteiro eletrônico.

        JOSÉ
        Ângelo!

A música recomeça. José desiste e tenta sair do prédio. Não
consegue, o portão está trancado. Ele sacode o portão, muito
irritado, os Replicantes aos gritos. Ângelo tem um surto, sacode
e chuta o portão. Dois novos moradores, um homem e um velho,
surgem nas janelas do prédio e do prédio vizinho.

        HOMEM 2
        O que está acontecendo aí?

Ele tenta se acalmar.

        JOSÉ
        Desculpe, mas é que eu fiquei preso aqui.

A Mulher abre a janela.

        HOMEM 3
        Que barulho é esse? Tem gente doente no prédio!

        MULHER 1
        Ele tá emaconhado! A polícia já vem vindo.

        JOSÉ
        Eu sou amigo do Ângelo, do quatrocentos e dois.

        HOMEM 2
        Quem mora no quatrocentos e dois é a dona Marilda
        Cantarelli!

        MULHER 1
        Eu não disse que ele tá emaconhado?
        
Um carro da polícia se aproxima e pára.

        MULHER 1
        Olha eles aí. (ao Homem 3) Eu sou tia do delegado Soares da
        décima primeira.

Um policial desce e se aproxima de José.

        POLICIAL
        Qual é o problema?

        MULHER 1
        Ele tá emaconhado!

        HOMEM 3
        Ele invadiu o prédio!

        JOSÉ
        (ao policial) Eu fiquei preso aqui. Estou tentando ir na
        casa de um amigo meu, o Ângelo, do quatrocentos e um.

        HOMEM 2
        Antes ele disse que era no quatrocentos e dois.

        MULHER 1
        Viu?

        HOMEM 3
        Ele tentou quebrar o portão.

        JOSÉ
        Eu fiquei preso, estava tentando sair. É só tocar no
        apartamento 401, chamar pelo Ângelo.

O policial olha José de baixo a alto. José sorri.

        POLICIAL
        (para a Mulher) A senhora podia tocar no 401, por favor?
        Como é o nome do seu amigo?

        JOSÉ
        Ângelo.

        POLICIAL
        Ângelo de que?

        JOSÉ
        Como?

        POLICIAL
        Qual o sobrenome nome dele?

        JOSÉ
        Não sei. Acho que é Ângelo Chaves. Todo mundo sempre chamou
        ele de Ângelo.

A Mulher sai da janela.
 
        HOMEM 3
        A gente não tem mais sossego nessa rua. Eu estou com a minha
        mulher doente numa cama com problema de rins. Um inferno.

A música pára. Ângelo aparece na janela.

        JOSÉ
        Porra, Ângelo!

        ÂNGELO
        O porteiro está estragado. Ele é meu amigo, pode subir.

        JOSÉ
        (ao policial) Eu não lhe disse?

Ângelo joga um grande molho de chaves.

        ÂNGELO
        (grita) Não pega que dói a mão!

José protege a cabeça. Um grande molho de chaves se aproxima do
chão. A chave cai, com um estrondo. José se abaixa e pega.

        JOSÉ
        Muito obrigado. (para os moradores, irônico) Obrigado para
        vocês também. Tudo de bom.

Ele tenta abrir a porta do prédio, testando as muitas chaves.

        ÂNGELO
        (grita) Na fechadura de cima é uma com o cabo preto, mais
        velha. A de baixo é uma doberman.

Os moradores, o policial e os mendigos ficam todos olhando para
José. Ele, nervosamente, tenta abrir a porta. Finalmente ele
consegue e sorri, aliviado. José abana para o policial e entra.
 

CENA 9 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO

As portas dos apartamentos do térreo têm sobreportas de grades de
ferro. José passa por uma porta onde, pela janelinha, dois olhos
o observam. José entra no elevador.

CENA 10 - INT/NOITE - ELEVADOR

José aperta o botão do quarto andar e se encosta na parede do
elevador, tentando relaxar.

        JOSÉ (OFF)
        Só lembrei da minha fome quando entrei no elevador. Minha
        última refeição quente tinha sido o almoço do dia anterior:
        lombinho de porco, daquele bem fininho, arroz, com o molho
        do lombinho assim, por cima, purê de maçã e uma saladinha de
        maionese.

José chega no quarto andar e descobre que a porta do elevador
também tem chave. Tenta descobrir no molho de chaves qual é a do
elevador. A porta pantográfica do elevador começa a se fechar.
José aperta o botão de "abrir" e tenta, só com uma mão, descobrir
qual é a chave certa. A porta pantográfica fica enlouquecida,
tentando se fechar. Finalmente ele abre a porta e sai do
elevador.

CENA 11 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, QUARTO ANDAR

No meio do corredor há uma grade de ferro que isola os
apartamentos do resto do prédio. Ele aperta na campainha do 401 e
os olhos de Ângelo aparecem na janelinha da porta. Ângelo põe a
boca na janelinha.

        ÂNGELO
        Você vai ter que abrir. Está no mesmo chaveiro, a outra
        cópia sumiu.

Procurando no chaveiro.

        JOSÉ
        Qual é?

        ÂNGELO
        Uma gold amarelinha, meio torta. Uma mais quadrada.

        JOSÉ
        Achei.

José abre a grade e se aproxima da porta do apartamento. Tenta
passar as chaves para o amigo pelo visor da porta mas o chaveiro
é muito grande.

        ÂNGELO
        Não passa.

        JOSÉ
        Ai meu Deus!

        ÂNGELO
        Abre você. A de cima é uma comprida, redonda, acho que é
        Jorajas, Jojoras, uma coisa assim. Prateada.

Experimenta a chave.

        JOSÉ
        Achei, mas não vira.

        ÂNGELO
        Tem um jeitinho. Empurra o miolo da fechadura com o polegar
        da mão esquerda e gira com a direita, ao mesmo tempo.

A chave gira.

        JOSÉ
        Deu.

        ÂNGELO
        A do meio está do lado, na mesma argola. Acho que é Papaiz.

Experimenta. A chave gira.

        JOSÉ
        Deu. Eu estou morrendo de fome.

Ângelo passa uma bolacha pela janelinha.

        ÂNGELO
        Quer uma bolacha?

        JOSÉ
        Quero. Qual é a de baixo?

José pega a bolacha e come.

        ÂNGELO
        A de baixo é fácil, uma vermelha.

José acha a chave, põe na fechadura, gira a chave. Experimenta o
trinco mas a porta não abre.

        ÂNGELO
        Acho que na de cima você só deu uma volta.

José procura a chave.

        JOSÉ
        Qual é a de cima mesmo?

        ÂNGELO
        Uma comprida.

José põe a chave, gira e tenta a maçaneta. A porta abre mas
tranca numa correntinha.

        ÂNGELO
        Deu. Fecha para eu abrir.

José fecha a porta. Som da correntinha sendo aberta. A porta se
abre. Ângelo, com duas bolachas na mão, sai do apartamento.

        ÂNGELO
        Nem entra, que a reserva no restaurante é para às dez. Tudo
        bem? Você emagreceu.

        JOSÉ
        Deve ser a fome. Estou morrendo de fome.

        ÂNGELO
        Quer outra bolacha?

José pega a bolacha e come. Ângelo pega as chaves e começa a
fechar a porta.

        ÂNGELO
        A gente não se via há...

        JOSÉ
        Sei lá. Um tempão.

        ÂNGELO
        Vem cá, você lembra da Jane?

        JOSÉ
        Jane?

        ÂNGELO
        Da escola. Uma baixinha, morena, cabelo liso, bonitinha.
        Namorava aquele cara do segundo ano, o... como era o nome
        dele? Um que tinha uma cinqüentinha, namorava todo mundo. A
        moto fazia mais sucesso que ele.

        JOSÉ
        Lembro. Um magrão.

Ângelo começa a fechar a grade do corredor.

        ÂNGELO
        Ele mesmo. Como era mesmo o nome dele?

        JOSÉ
        Não lembro.

Pausa.
        
        JOSÉ
        Afinal o que houve com ele?

        ÂNGELO
        Com ele? Não sei.

        JOSÉ
        Mas de quem nós estamos falando então?

        ÂNGELO
        Da Jane.

        JOSÉ
        Jane... Não lembro. O que houve com ela?

        ÂNGELO
        Também não sei. Sumiu.

Ele chama o elevador e põe a chave na porta.

        JOSÉ
        Mas porque você lembrou dela?

        ÂNGELO
        Não sei, achei que você talvez soubesse dela, ela era amiga
        da Cris.

        JOSÉ
        Cris?

        ÂNGELO
        Ué? A Cris. Vocês não eram namorados?

        JOSÉ
        Cris? Ah, lembrei. A Cris, claro.
 
O elevador chega.

CENA 12 - INT/NOITE - ELEVADOR

Eles entram.
 
        JOSÉ
        Encontrei ela uma vez no supermercado. Nunca mais vi. Sumiu
        também.

Pausa. Ficam sem assunto. José examina os detalhes do elevador.
Lê a plaquinha: "É proibido fumar ou conduzir aceso cigarros ou
assemelhados. Capacidade máxima permitida: seis pessoas ou
quatrocentos e noventa quilos. A utilização acima desta
capacidade é ilegal e perigosa".

        JOSÉ
        Quanto você pesa?

        ÂNGELO
        Sessenta e oito.

        JOSÉ
        Perfeito! Eu peso setenta e dois.

        ÂNGELO
        Antes da bolacha.

        JOSÉ
        Não deve fazer muita diferença. Uma bolacha...

        ÂNGELO
        Duas.

        JOSÉ
        Duas. Hoje eu nem almocei.

        ÂNGELO
        Você fuma?

        JOSÉ
        Não.

        ÂNGELO
        Eu também não. Estamos dentro da média e da lei. Isso não te
        dá assim... uma sensação de segurança?

O elevador chega no térreo e abre.

CENA 13 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO

Eles vão abrir a porta do prédio. A porta está chaveada.

        JOSÉ
        Eu deixei aberta.

        ÂNGELO
        Alguém já fechou. Olha o aviso.

Na parede, ao lado da porta, há um aviso: A PORTA DEVE PERMANECER
FECHADA A CHAVE DEPOIS DAS 20 HORAS. Ângelo abre a porta. Eles
saem.

CENA 14 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO

Eles atravessam o pátio do prédio. Ângelo procura a chave para
abrir o portão.

        ÂNGELO
        Você veio de carro?

        JOSÉ
        De táxi.

        ÂNGELO
        Vamos pegar um ali na praça Quinze, passa toda hora.

Ângelo abre o portão. Eles saem. Ângelo fecha o portão. José
começa a caminhar.

        ÂNGELO
        Não, vamos pelo outro lado.

        JOSÉ
        (apontando) Por aqui não é mais perto?

        ÂNGELO
        Nesta esquina tem uns mendigos que moram na calçada, eu
        prefiro passar pelo outro lado. A gente dá a volta...

Eles saem caminhando.

CENA 15 - TABLE-TOP - MAPAS

Animação do trajeto num mapa.

        Ângelo (OFF)
        ... pela Andradas e entra na Sete de Setembro. Não dá para
        ir sempre pela Sete porque ali tem uma boates meio barra
        pesada, mas a gente pega aquela travessinha, acho que é a
        Tiradentes, e depois vai reto pela Dom Pedro até a praça
        Quinze. Talvez a gente já consiga um táxi na Dom Pedro.

CENA 16 - EXT/NOITE - RUAS

Eles caminham pelas ruas. Ângelo estende a mão com o chaveiro
para José.

        ÂNGELO
        Posso por na tua mochila?

José guarda as chaves na mochila.

        ÂNGELO
        Vamos atravessar que ali na frente tem uma obra onde moram
        umas pessoas.

Atravessam a rua. Ao fundo, uma obra abandonada cercada por um
tapume. Mendigos na obra. Uma forte luz ilumina a cena. A luz vem
da máquina de um soldador que está colocando uma grade. Caminham
mais. Dobram uma esquina e se aproximam do fim da rua, onde uma
grade fecha a passagem.

        JOSÉ
        E agora?

        ÂNGELO
        Eu não sabia que tinham fechado isso aqui. Será que tem uma
        passagem?

        JOSÉ
        Parece que não.

        ÂNGELO
        E se a gente pulasse?

        JOSÉ
        Não. É muito alto.

Ângelo tenta subir na grade, mas não tem onde apoiar o pé.

        ÂNGELO
        Tem essa ponta aqui que não dá para por o pé. Que largura
        tem entre uma grade e outra?

        JOSÉ
        O suficiente para não passar a cabeça de uma criança.

José mede com a mão.

        ÂNGELO
        Vamos dar a volta.

Eles dão meia volta e procuram um novo caminho. Assustam-se com o
soldador mascarado armado de um maçarico.

        JOSÉ
        Ô! Desculpe...

Seguem caminhando, sempre cercados de grades. Vêem uns mendigos na
calçada, a frente.

        ÂNGELO
        É melhor a gente atravessar aqui.

Atravessam. Um mendigo caminha na direção deles.

        ÂNGELO
        (ao mendigo) Eu não tenho nada.

Afastam-se.

CENA 17 - EXT/NOITE - GUARITA

Continuam caminhando até encontrar uma guarita com um guarda. Ao
lado da guarita, um cachorro policial está deitado.

        GUARDA
        Boa noite.

        JOSÉ
        Boa noite.

        GUARDA
        Não pode passar por aqui.

        ÂNGELO
        Como não? A rua é pública.

        GUARDA
        Essa aqui não é mais. O pessoal aí comprou.

        ÂNGELO
        O senhor tá brincando...

        JOSÉ
        Mas a gente só quer passar para o outro lado.

        GUARDA
        Não dá. Vocês vão ter que dar a volta.

        JOSÉ
        Isso é um absurdo!

        ÂNGELO
        Quem é que vai ficar sabendo?

        GUARDA
        Eu. Vocês vão ter que dar a volta.

        ÂNGELO
        A gente atravessa bem rapidinho.

        GUARDA
        Não dá. Vocês vão ter que dar a volta.

Ângelo avança.

        ÂNGELO
        O senhor me desculpe, mas eu vou passar. A gente está morrendo
        de fome, aqui não passa táxi, eu vou passar.

O guarda sai da guarita. Ângelo pára.

        GUARDA
        Ao cruzar o limite da guarita o senhor estará cometendo o
        crime definido no artigo cento e cinquenta do código penal;
        violação de domicílio: entrar ou permanecer clandestina ou
        astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem
        de direito, em casa alheia OU EM SUAS DEPENDÊNCIAS.

Ângelo e José ficam alguns segundos parados, olhando para o
porteiro.

        JOSÉ
        (baixinho, para Ângelo) Esse cara é louco.

        GUARDA
        Louco? Não, não. Louco é o meu cachorro. (para o cachorro)
        Pega Louco!

Louco se ergue num salto, latindo, e parte em direção a José e
Ângelo. Eles saem correndo, Louco nos seus calcanhares.

        GUARDA
        (discursando) A casa é o asilo inviolável do indivíduo;
        ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do
        morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante
        o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer. Artigo
        cento e cinqüenta e três, parágrafo décimo da constituição
        federal de mil novecentos e sessenta e cinco!

José e Ângelo correm do cachorro.

CENA 18 - EXT/NOITE - RUAS

José corre pela rua, desesperado.
 
        JOSÉ
        Essa constituição nem vale mais!

José chega a uma cerca. Tenta pular. A mochila prende na grade.
Louco se aproxima. José se desfaz da mochila e pula. Louco mastiga
a mochila. José ergue-se e sai correndo. José dobra uma esquina.

CENA 19 - EXT/NOITE - RUAS

José corre mais um pouco e, sem fôlego, diminui o ritmo. Olha para
trás e para os lados. Pára. Respira fundo.

        JOSÉ
        Ângelo!

Ao longe, Louco late. José começa a caminhar.

        JOSÉ
        Ângelo!

José caminha mais um pouco.

        Ângelo (OFF)
        José!

        JOSÉ
        (gritando) Estou aqui!

        ÂNGELO (OFF)
        Aqui onde?

José dobra uma esquina. Dá de cara com Ângelo, só que do outro lado
de uma grade.

        ÂNGELO
        Que que é isso?

        JOSÉ
        Vamos sair daqui. Que loucura!

Os dois tentam recuperar o fôlego.

        JOSÉ
        Vamos para casa pedir uma pizza. Eu estou morrendo de fome.

        ÂNGELO
        Cadê a mochila?

        JOSÉ
        O Louco comeu. Tudo bem, não tinha nada. Minha conta da luz...
        Eu peço uma segunda via.

José tira dos bolsos a carteira, o cartão da Siamarrô e suas
chaves.

        JOSÉ
        Minhas coisas estão nos bolsos: carteira, chaves...

José olha para as chaves e para Ângelo. Ângelo olha para José.

        JOSÉ
        Não acredito!

        ÂNGELO
        Onde foi?

        JOSÉ
        Ali atrás. Eu vou voltar para buscar.

José vai saindo.

        JOSÉ
        Espere aqui.

        ÂNGELO
        Não, eu vou pela outra rua. Não quero ficar aqui parado.

Ângelo se afasta, dá uma olhadinha para trás e desaparece depois da
esquina. José caminha pelo meio da rua.

CENA 20 - EXT/NOITE - RUA

Dobra a esquina e vê a cerca que ele havia pulado. Nem sinal de
Louco. Ele se aproxima da cerca. A mochila não está ali. Ele fica
parado, olhando para o outro lado da rua, por trás da grade, para
o lugar onde Ângelo deve surgir. Ele espera. Muito ao longe, a luz
de uma solda. Mais ao longe, um latido.

        JOSÉ (OFF)
        Fiquei esperando uns... cinco minutos, não sei. Talvez mais.

José caminha no meio da rua.

        JOSÉ (OFF)
        Fiz todo o caminho de volta, até a casa do Ângelo. Em cada
        esquina eu olhava, chamei por ele.

José dobra uma esquina e se depara com outra grade fechando a rua.
Muda de direção. Cruza com um homem que solda uma grade. Cruza com
um mendigo.

        JOSÉ (OFF)
        Voltei para casa, esperei que ele me ligasse. Talvez ele
        tivesse encontrado a mochila. Liguei para casa dele várias
        vezes, naquela noite e no dia seguinte. Fiquei preocupado.

José dobra uma esquina.

CENA 21 - EXT/NOITE RUA

José entra numa grande e larga avenida onde há um carrinho de
cachorro-quente. José se aproxima e pede um. O homem prepara o
cachorro-quente. Detalhes.

        JOSÉ (OFF)
        Uns dias depois, passei na casa dele. Chamei, ninguém atendeu.
        Também não sei se já tinham arrumado o porteiro, achei melhor
        não falar com os vizinhos. Aí, eu viajei, fiquei um tempo
        fora.

O homem lhe entrega o cachorro quente. Ele paga, dá a primeira
mordida e sai caminhando.

        JOSÉ (OFF)
        Depois que eu voltei, ainda procurei por ele uma vez. O
        edifício tinha sido reformado, o porteiro estava funcionando.
        Falei com um cara no apartamento dele que era inquilino novo.
        Alugou de imobiliária e não sabia do antigo morador.

José se afasta pela avenida quase deserta. Ao longe, um soldador
trabalha colocando num prédio mais uma grade.

        JOSÉ (OFF)
        Nunca mais procurei nem ouvi falar do Ângelo. Já passou um
        ano, eu só lembrei por causa da páscoa. A última vez que a
        gente se viu foi naquela noite, atrás daquela grade. O Ângelo
        anda sumido. Eu também.

FADE OUT. SOBEM CRÉDITOS FINAIS.

FIM

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(c) Rosângela Cortinhas e Jorge Furtado, 1996.
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

01/04/1996

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