COMER, AMAR E MORRER

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               DECAMERÃO, A COMÉDIA DO SEXO
               Episódio 1:
               COMER, AMAR E MORRER

               roteiro de
               Jorge Furtado, Guel Arraes e Carlos Gerbase

               roteiro final de
               Jorge Furtado
               e Guel Arraes

               versão de 29/08/2008

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CENA 1 – CAMPO – AMANHECER

Amanhece. Masetto colhe macela.

CENA 2 – RUA FEIRA – EXT/DIA

Uma feira de rua. Câmera 1/4, seguindo um ramalhete de macela nas
mãos de MASETTO. Músicos, animais, barulho. Masetto oferece
ramalhetes de macela.

               MASETTO
               Macela! Macela!

               MASETTO
               Macela. Macela.

               MASETTO
               Macela... Macela...

Masetto passa por um PADRE GORDO corta, com uma faquinha de cabo
branco, um pedaço de salame, come um pedaço do salame e põe o
salame no alforje de um burro, junto com a faquinha. O Padre
termina de tomar copo de vinho oferecido pelo feirante.

Masetto aproxima-se do Padre.

               PADRE
               Tem quantos dias que colheu?

Masetto estende o ramalhete, dá para o Padre.

               MASETTO
               No amanhecer da Sexta-Feira Santa, antes do sol.

Padre pega a macela, cheira, guarda no alforje do burro.

               PADRE
               Deus lhe pague, meu filho.

O Padre vai saindo.

               MASETTO
               Deus me pague, Padre, obrigado, mas e o senhor?
               Não vai me pagar?

               PADRE
               É sua contribuição para a Páscoa da igreja.

               MASETTO
               Então... pelo menos me dê um pedaço de salame. Eu
               não como desde ontem.

               PADRE
               É da igreja, não posso dar.

               MASETTO
               Não pode dar, mas pode comer.

               PADRE
               Claro! Eu não sou da igreja?

               MASETTO
               E eu? Como é que fico? Também preciso comer.

               PADRE
               Vai trabalhar.

               MASETTO
               Estou trabalhando, vendendo macela.

               PADRE
               (rindo) E isso é trabalho, vender macela? Macela
               dá no campo, é só pegar. Trabalho idiota!

Dois soldados passam.

               MASETTO
               Melhor que roubar dos pobres!

Padre pára, encara Masetto. Os soldados observam.

               PADRE
               Tá me chamando de ladrão?

Soldados param, se aproximam. Outras pessoas observam.

               MASETTO
               O senhor não pagou a macela que eu lhe dei.

               PADRE
               Você deu na minha mão! Estou mentindo?

               MASETTO
               Não.

               PADRE
               Então peça desculpa.

               MASETTO
               Desculpa.

Os soldados se afastam. O Padre ri.

               PADRE
               Você não é tão bobo quanto parece.

Masetto tira do dedo um anel, esconde na mão, se aproxima do
Padre.

               MASETTO
               Padre!

O Padre pára. Masetto, sem que o Padre veja, põe o anel dentro do
alforje do burro.

               MASETTO
               Já que vou morrer de fome... dê ao menos uma
               benção...

               PADRE
               (saindo, rindo) Vai trabalhar, rapaz...

O Padre, que se afasta, deixando a feira. Masetto sorri.

CENA 3 – ESTRADAS – EXT/DIA

Masetto segue o Padre, corta caminho subindo um morro. Vê que um
grupo de soldados se aproxima à frente.

Masetto desce o morro e vai tirando a roupa. Passa por um riacho,
molha o cabelo e sai correndo, quase nu, atrás dos Padre,
gritando.

               MASETTO
               (gritando) Ladrão! Socorro!

Masetto alcança o Padre que, um pouco embriagado, não entende o
que está acontecendo. O soldados chegam.

               MASETTO
               Ladrão!

               PADRE
               O que é isso? Está louco?

Um TENENTE de aproxima, se destaca do grupo de soldados.

               MASETTO
               (ao Tenente) Tenente! Deus seja louvado! Chegaram
               na hora exata, foram mandados pelo Senhor! Esse
               homem roubou meu burro, minhas roupas, tudo! Eu
               estava me banhando no riacho...

               PADRE
               Este homem está louco!

               MASETTO
               Louco? Vejais no alforje, o salame que eu comprei
               na feira, só comi um pedaço, vejais!

O Tenente olha para o Padre, para Masetto.

               PADRE
               Vejais!? Vejais é presente do subjuntivo, o
               imperativo afirmativo é vede!

O tenente fica olhando para o Padre, sem entender o que se passa.

               TENENTE
               Verde?

               PADRE
               Vocês são dois ignorantes.

O Tenente se irrita e abre o alforje do Padre, encontra o salame
cortado. Masetto faz cara de "eu não disse?".

               PADRE
               Ele me viu comer o salame na feira, é um farsante!
               (ao tenente) Não seja burro!

               MASETTO
               Vede se aí está a minha faca...

O Tenente encontra a faquinha, esconde o cabo, olha para Masetto.

               TENENTE
               Verde?

               MASETTO
               Não, branca!

O Tenente confirma que a faca tem o cabo branco.

               PADRE
               (ao tenente) Ele também reparou na faca. É um
               pilantra nunca visto!

               MASETTO
               Além de ladrão, blasfema, agride um servo de
               Cristo! É um louco, um psicopata! Tenente, procure
               bem, um pequeno anel de prata com a Cruz de Jerusalém.

               PADRE
               Que cruz de jerusuquê!

               MASETTO
               O tenente pode ver! Tem quatro cruzinhas brancas e
               uma maior no centro.

Tenente verifica a bolsa, acha o anel, examina.

               MASETTO
               Representa os Evangelhos e o Antigo Testamento.
               Vede, confirais.

O Tenente olhou para o anel, para o Padre e para Masetto.

               PADRE (Possesso)
               Que "confirais"! É "conferi"! Estou cercado de
               jumentos.

               TENENTE
               (ao Padre) Silêncio! Imóvel! Calado! Conferi é
               pretérito perfeito, eu conferi, tu conferiste, ele
               conferiu. E você feche essa boca e vá pra...

Tenente se controla e faz um sinal aos soldados que cercam o
padre.

Corta.

O Padre esbraveja, é amarrado, só com a roupa de baixo. Masetto,
já vestido de padre, no lombo do burro, abençoa a patrulha.

               MASETTO
               (abençoa) Vão com Deus, meus filhos! Vão com Deus!

               PADRE
               (grita) Calhorda, filho de um jegue! Por Cristo,
               te busco onde for!

               MASETTO
               Vão deixar que em vão empregue o santo nome do
               Senhor?

O Tenente faz sinal para os soldados, que amordaçam o Padre, que
continua esbravejando. A patrulha parte, levando o Padre de
arrasto, a pé.

CENA 4 – ESTRADAS – EXT/DIA

Masetto se afasta no burro. Abre o alforje, pega o salame e a
faquinha de cabo branco quando vê em frente, parada na estrada,
uma MULHER (30) e DOIS MENINOS (8 e 6), em estado lastimável.

               MULHER
               A benção, seu Padre.

               MASETTO
               Benção minha filha.

A Mulher e os Meninos ficam parados, olhando para o salame.
Masetto olha para o salame, para as crianças, corta o salame em
quatro partes, dá três partes para a Mulher, fica com uma.

               MULHER
               Muito obrigado, seu Padre!

Os meninos comem avidamente. Nisso, outra criança, uma MENINA, 5
anos, sai de trás de uma moita, amarrando as calças. A Menina
fica olhando para Masetto enquanto seus irmãos mastigam. Masetto
olha para o seu pedaço de salame, entrega para a menina.

               MULHER
               Deus lhe pague!

               MASETTO
               Eu estou anotando, ele já me deve duas. Isso só
               hoje!

Masetto se afasta com o burro. Olha o alforje, não tem mais
comida, só a faquinha e uns livros. Ele lambe os dedos, sentindo
o gosto do salame.

CENA 5 – ESTRADA – EXT/DIA

Masetto vê uma árvore carregada de frutas. Masetto olha para os
lados, não vê ninguém. Ele tenta se equilibrar de pé, sobre a
mula, para alcançar uma fruta, quando ouve um grito.

               CALANDRINO
               (esbaforido) Padre! Padre!

Masetto desce da mula, disfarça. Calandrino se aproxima,
ofegante.

               CALANDRINO
               Graças a Deus, que eu lhe encontrei! Santa Marta,
               padroeira, me indicou o caminho certo! Comprido,
               mas certo! Vamos!

Calandrino puxa a mula.

               CALANDRINO
               Deixa que eu ajudo com a mula.

               MASETTO
               Vamos onde?

               CALANDRINO
               O senhor precisa vir comigo! Agora!

               MASETTO
               Desculpe, mas eu...

               CALANDRINO
               O Velho está morrendo, coitado! (emocionado) Ele
               falou comigo, acho que pela última vez... Me
               disse: Calandrino, seu imbecil inútil, ache um
               Padre! Calandrino sou eu. E o Padre é o senhor.
               Vamos!

               MASETTO
               Eu não posso, eu tenho que...

               CALANDRINO
               Não pode? Como, não pode? Que espécie de padre é o
               senhor? Isso não é batismo que pode esperar, nem
               casamento que pode até suspender! O Velho está
               morrendo! É o seu serviço. Vamos!

               MASETTO
               Que velho é esse?

               CALANDRINO
               Como, que velho? O Velho, o dono disso tudo, de
               todo este vinhedo, até da fruta que o senhor
               estava tentando roubar! O Velho Spinellochio!

CENA 6 – CASA DOS SPINELLOCHIO/QUARTO – INT/DIA

O VELHO SPINELLOCHIO, 80, com aparência doentia, está gemendo,
olhos fechados, de camisola, na sua grande cama. MONNA, 35, está
sentada numa cama pequena, num canto do quarto, fazendo tricô. O
seu vestido tem um decote generoso. O Velho acorda e olha para
Monna. Sorri, meio sacana.

               VELHO
               Monna, minha querida, tenho frio.

Monna pega um cobertor da sua cama, fecha a janela e aproxima-se
da cama do Velho.

               MONNA
               É a brisa que vem do rio.

Monna coloca o cobertor sobre o Velho.

               VELHO
               É a morte, está me chamando.

O velho tosse. Monna sorri e faz um carinho no rosto do Velho.

               MONNA
               Se a hora sempre chega, melhor demorando. Vou
               pedir uma sopa bem quente, e o frio vai embora.

               VELHO
               Sopa não adianta, quando chega a hora.

Monna ri. O Velho ergue o cobertor.

               VELHO
               Eu preciso me esquentar. Deita aqui, bem junto.

Monna percebe que o Velho já está pronto para a ação.

               MONNA
               O senhor está brincando... Em plena luz do dia!

               VELHO
               Não há o que temer. Sou quase um defunto.

               MONNA
               Mas eu temo, e muito. Seu filho, o que diria?

O velho força uma tosse e faz cara de doente.

               VELHO
               É meu último desejo! Um pouco de calor, um
               beijo...

               MONNA
               Um beijo? Só um? (sorri) Quem se importa?

               VELHO
               Só um, mas é melhor trancar a porta.

Monna tranca a porta, e começa a tirar a roupa, aproximando-se do
Velho, que abre espaço na cama para ela.

CENA 7 - FRENTE DA CASA

Calandrino e Masetto chegam na casa, Calandrino amarra o burro.

CENA 8 – QUARTO DA CASA SPINELLOCHIO – INT/DIA

Calandrino bate na porta, insiste, Monna abre, ajeitando o
vestido. Masetto entra no quarto, empurrado por Calandrino,
seguido por TOFANO, Tessa, que pára na porta. No quarto, Monna
termina de ajeitar a cama, O Velho está de olhos fechados,
ofegante.

               MASETTO
               (animado) Boa noite! Tudo bem?

               MONNA
               (triste) Podia ser melhor, padre.

               MASETTO
               (rapidamente triste) Morreu?

               TOFANO
               Ainda não, está dormindo.

               MONNA
               Está calmo...

               TOFANO
               É a calmaria final.

Tofano examina um vaso sobre a cabeceira, guarda na gaveta.

               TESSA
               Parece não estar mesmo muito bem.

               MONNA
               Precisa se alimentar...

               CALANDRINO
               Eu também. Acho. Que ele devia se alimentar.

Sai arrastando Tessa.

               MONNA
               Talvez ele melhore.

               TOFANO
               Pouco provável... Está com uma cor horrível.

               MASETTO
               (para Tofano) O senhor é médico?

               TOFANO
               Não, sou o filho.

Monna tira o vaso da gaveta, põe de volta no lugar.

               MASETTO
               (para Monna) A senhora é filha?

               TOFANO
               (rindo) Filha? Imagina. É uma das empregadas. Eu
               sou o único filho.

Tofano deita um porta-retratos sobre a estante.

               MONNA
               Eu cuido dele há dez anos, desde que a esposa o
               deixou.

Monna ergue o porta-retrato, volta pro lugar.

               TOFANO
               Coincide com o período que a saúde piorou. Tem uma
               obstrução na aorta. Tosse seca, reumatismo,
               suores, senilidade...

               MONNA
               Viveu, trabalhou, amou. É o que importa. A tosse,
               suores, dores, são conseqüências da idade.

               MASETTO
               Vai morrer, pelo que vejo. Passou assim todo o
               dia?

Ela ajeita o vestido, a cama.

               MONNA
               Foi o gasto de energia, em seu último desejo.

               MASETTO
               Morte boa, vida boa. Bom é o que bem acaba.

               MONNA
               Morte é sempre justa paga. Foi uma boa pessoa.

Masetto se aproxima de Monna.

               MASETTO
               (baixinho) Para ter um anjo por perto, é certo.

CENA 9 – COZINHA – INT – DIA

Tessa prepara uma sopa, Calandrino chega por trás, agarrando.

               CALANDRINO
               Tessa, meu bem querer, chegue um pouquinho pra cá

               TESSA
               Cê deixe de me atentar. O homem tá lá pra morrer!

               CALANDRINO (Agarrando ela)
               E eu tô doido pra viver!

               TESSA (Se soltando)
               Não, Calandrino, qué o que!

               CALANDRINO
               Tessa, minha querida, esse é o natural da vida:
               comer, amar e morrer

Tessa começa a ceder, Calandrino a agarra.

               TOFANO (OFF)
               Aaaaiii... Aaaiii...

CENA 10 – QUARTO DA CASA SPINELLOCHIO – INT/DIA

O Velho acorda, num acesso de tosse. Monna se aproxima.

               TOFANO
               Aaaaiii... Aaaiii...

               MONNA
               Acordou...

               TOFANO
               Agora vai...

               MONNA
               Padre, por favor... É a sua hora.

Todos olhando para Masetto, esperando que ele faça algo. Ele olha
para Monna. Masetto pega o livro na bolsa.

               MASETTO
               Claro, minha hora.

Masetto abre o livro, folheia, procura algo.

               MASETTO
               Hoje é dia...

               MONNA
               De Páscoa.

               MASETTO
               Claro... Eu digo... da semana?

               MONNA
               Domingo?

               MASETTO
               Domingo de Páscoa, é claro. Neste caso...

Masetto pára numa página, lê.

               MASETTO
               Esse é bom... Praecisa est velut a texénte, vita
               mea... Enrolam como um tecelão o tecido da minha
               vida... Bonito. É do ofício dos defuntos.

O Velho voltou a dormir.

               MONNA
               Ele ainda não morreu.

               TOFANO
               Mas já pode ir enrolando o tecido, para ganhar
               tempo. Vamos deixar o Padre trabalhar?

               MASETTO
               Nom vidébo Dóminum Deum in terra vivéntium... Não
               mais verei o senhor na terra dos vivos...

               MONNA
               Será?

               VELHO
               Aaaai...

               TOFANO
               Agora vai.

               VELHO
               (grita) Aaaaaiii...

               CALANDRINO
               A hora chega para todos.

               TESSA
               Coitado...

Velho abre os olhos.

               VELHO
               (grita) Aaaaa... Silêncio!

Todos ficam quietos.

               VELHO
               Calem a boca! Eu não chamei Padre para ouvir
               latinório! Fiquem todos quietos e me escutem!
               Tragam papel e tinta! Papel e tinta! Papel e
               tinta! Papel e tinta!

               TOFANO
               (vira-se para Monna) Papel e tinta!

               MONNA
               (vira-se para a porta) Papel e tinta!

Tessa e Calandrino entram com papel e tinta.

               TESSA
               (Entrando) Papel...

               CALANDRINO
               ... e tinta.

               VELHO
               Padre!

Masetto se aproxima.

               VELHO
               Escreva!

O Padre pega o papel e a pena, Calandrino segura o tinteiro.

               VELHO
               Meu testamento!

               TOFANO
               O quê? Mas como? Isso agora? (para Monna) Quem
               sabe a cabeça ferve? (para Masetto) Já existe um
               testamento, registrado no cartório! (... com
               assento na justiça!)

               VELHO
               (furioso) Silêncio! Aquele não serve, use de
               supositório! (... justiça de pau é piça!)

Tofano, muito irritado, dá as costas ao pai, vai para o canto do
quarto.

               TOFANO
               (para Calandrino) A cabeça está virada! Ficou
               maluco de vez!

               VELHO
               É decisão tomada em completa lucidez!

O Velho afasta as cobertas, ergue-se na cama, fica de pé.

               VELHO
               É meu último desejo, e Deus permita que eu fale.
E que assim seja cumprido em seu mínimo detalhe.

Masetto pega o papel e a tinta, escreve. O Velho respira fundo,
caminha até a janela, abre a janela.

               VELHO
               Tudo que tive em vida, tudo o que tenho e vale,
As terras até o rio, as vinhas por todo o vale.

O Velho olha para dentro da casa.

               VELHO
               Minha casa, meu pecúlio, minha imagem da Madona
Minhas vacas, espingardas, o dinheiro na poltrona

O Velho volta para a cama, lentamente, senta na cama.

               VELHO
               Os meus livros, as gravuras, a gaita, a
               acordeona...

O Velho volta ao seu lugar na cama, se recosta nos travesseiros.

               VELHO
               Deixo a Tofano, meu filho!...

Tofano olha para o Velho, pasmo.

               VELHO
               ... se ele se casar com Monna.

Monna olha para o Velho e para Tofano. Tofano olha para Monna,
pasmo, e para o Velho.

               VELHO
               Se não... vai tudo para a igreja! Está escrito!
               Assim seja!

O Velho sorri. E morre, rindo.

Monna fecha os olhos do Velho e faz o sinal da cruz. Masetto faz
o sinal da cruz com a mão esquerda, troca no meio. Tofano morde a
mão fechada. Calandrino e Tessa se olham, olhos arregalados, e
fazem o sinal da cruz.

               MASETTO (OFF)
               Mors omni aetate communis est.

CENA 11 - CEMITÉRIO DA VILA (AO LADO DA IGREJINHA) – EXT/DIA

Os habitantes da vila, de luto, assistem ao enterro. Masetto está
à beira da cova, ladeado por Tofano e Monna, Filipinho e sua bela
esposa ISABEL, 25. Um pouco mais longe, Calandrino e Tessa. O
caixão, fechado, sobre a grama, dois COVEIROS ao fundo. Masetto,
lê seu livro de rezas.

               MASETTO
               A morte não poupa ninguém. O senhor Spinellochio
               deixa um filho saudoso...

Masetto fecha o livro, faz sinal aos Coveiros, que amarram o
caixão, preparam para descê-lo na cova aberta. Calandrino chora.

               TESSA
               Para que tanto choro, Calandrino... Você nem é
               parente!

               CALANDRINO
               Por isso mesmo...

Tofano sorri para Isabel. Monna e Tessa choram. Calandrino tira
umas casquinhas de Tessa, baixa a mão do seu ombro para sua
cintura e daí para o quadril. Tessa dá uma cotovelada em
Calandrino, e ele sente o golpe, reprime a expressão de dor,
transforma em luto, chora.

               MASETTO
               E empregados... a quem sempre tratou da forma...
               carinhosa que eles bem mereciam.

Masetto olha para Monna, ela percebe, retribui. Tofano continua
tentando flertar com Isabel, que o evita. Os Coveiros estão
prontos para descer o caixão, olham para o Padre, esperando a
ordem.

               MASETTO
               Antes que esta alma vá, ao encontro do Bom Deus,
               um breve verso de adeus seu filho irá recitar.

Tofano leva um tempo para perceber que deve falar.

               TOFANO
               Pai... (pausa) Adeus. (para os coveiros) Pode
               baixar.

Os coveiros começam a baixar o caixão. Tofano dá as costas e se
afasta. Monna está indignada com Tofano.

               MASETTO
               Verso breve, como a vida. Convido para o casamento
               que acontece já em seguida.

Masetto acelera o passo na direção da igrejinha da vila, ao lado
do cemitério. Masetto ultrapassa Tofano, que é seguido por todos.
Enquanto caminham, todos trocam de roupas, os trajes escuros e
tristes de enterro são substituídos por trajes festivos de
casamento. Monna, com a ajuda de Tessa, tira a capa preta que
cobre seu vestido de noiva. Tofano permanece de luto.

               MASETTO (OFF)
               Eu os declaro marido e mulher.

CENA 12 - IGREJINHA DA VILA – EXT/DIA

Masetto celebrando o casamento, numa mesa armada na frente da
igrejinha. Tofano (de luto) e Monna (com vestido de noiva) estão
à sua frente. Os dois não se olham.

               MASETTO
               (para Tofano) Pode beijar a noiva.

               TOFANO
               (baixinho) O beijo é fundamental? Se for, pode ser
               na testa?

               MASETTO
               (indeciso) Beijar é opcional.

               TOFANO
               Ótimo!

Tofano abandona Monna no altar e vai saindo, sorridente.

               TOFANO
               Vamos pra festa!

Tofano sai cumprimentando os presentes. Monna, furiosa, enxuga
uma lágrima, ainda virada para o altar. Olha para Masetto e tenta
sorrir. Ele sorri de volta.

CENA 13 – JARDIM DA IGREJINHA DA VILA – EXT/DIA

Uma banda toca uma música italiana. Tofano circula entre os
convidados, fala com duas senhoras.

               TOFANO
               Bom que vieram... Muito obrigado... Então?
               Souberam? É tudo meu, de papel passado.

Tofano fala com dois amigos.

               TOFANO
               Eu fiz aquilo que o meu pai queria, mas vou viver
               como eu já vivia.

Olha pra Isabel ali perto com Filipinho.

               TOFANO
               E Deus, na sua imensa bondade, há de me dar mulher
               de verdade.

Filipinho nota o olhar de Toffano.

               FILIPINHO
               Não pára de olhar pra cá, o carcamano.

               ISABEL
               Mas ele acabou de casar, Filipinho! Só pode ser um
               engano.

Tofano sai atrás de Isabel. Monna, distante, observa, ao lado de
Calandrino e Tessa, que comem. Masetto sai da igrejinha, fecha a
porta, vê Monna, se aproxima dela.

               MASETTO
               A senhora... fica muito bem de noiva.

               MONNA
               E o senhor fica muito bem... de Padre.

               MASETTO
               No meu caso, não é uma escolha.

               MONNA
               Nem no meu. Era noiva... ou nada. Me tornei no
               mesmo dia, viúva, noiva e esposa rejeitada.

               MASETTO
               É muito, para uma jornada. Também sou Padre faz
               pouco, inda nem me acostumei.

               MONNA
               O hábito faz o monge...

               MASETTO
               Foi sempre o que eu escutei.

Calandrino e Tessa se aproximam.

               CALANDRINO
               Padre, desculpe um momento. Sem querer interromper
               enquanto o senhor descansa...

Calandrino puxa o Padre para um canto, Tessa e Monna ficam
conversando ao fundo.

               CALANDRINO
               Quanto custa um casamento? O vestido, a festa a
               dança, igreja, papel, aliança... Padre, por favor,
               me ajuda!

               MASETTO
               Igreja e papel, o preço não muda. Depende das
               alianças, se quem dá é a madrinha, qual o quilate
               do ouro...

               CALANDRINO
               Eu mesmo providencio e por mim pode ser fininha.
               Quilate pra mim é o cachorro.

Tofano dança com Isabel. (Filipinho dança com Tessa) A música
termina. Isabel faz menção de se afastar, mas Tofano a segura,
discretamente.

               TOFANO
               O que foi? Quer sentar? Eu conduzo assim tão mal?

               ISABEL
               (constrangida) O noivo dança com a noiva, é o
               natural.

A música recomeça. Tofano pega Isabel pela cintura.

               TOFANO
               Natural é a natureza, com essa não se discute.

Tofano aperta o corpo de Isabel contra o seu.

               TOFANO
               Contra o sol, o vento, o amor, não é luta que se
               lute. Eu nunca nada implorei, a amigo ou inimigo,
               e palavra não diria que lembrasse coisa doce, se a
               sua beleza não fosse essa agonia e aflição, que
               obriga meu coração, para não morrer de míngua, a
               fazer da minha língua o arauto dessa paixão.

Isabel olha para ele com desdém.

               TOFANO
               Não deixe tão belos lábios desdenharem meu desejo,
               nessa boca delicada ficava melhor um beijo.

               ISABEL
               A sua noiva já nos viu. E eu sou uma mulher
               casada.

               TOFANO
               O seu marido saiu, e a noiva para mim é nada. Não
               passa de uma mucama, nem sei seu nome de cor.

               ISABEL
               Hoje à noite, em sua cama, há de conhecer melhor.

               TOFANO
               Engano seu. Durmo só. Não é noiva que eu mereça.

Isabel se desvencilha.

               ISABEL
               Tampouco eu sou, tenha dó! Eu lhe peço que me
               esqueça.

Ela se afasta. Tofano fica, olha em torno. Monna observa, longe
da vista de Tofano. Masetto de aproxima.

               MONNA
               Além de viúva, noiva e esposa desprezada, sou
               também mulher traída, agora não falta nada.

               MASETTO
               Falta a noiva ser beijada.

Masetto tasca-lhe um beijo. Monna resiste bem pouquinho, logo
cede e afasta Masetto. Ela se afasta, assustada. Ao fundo Tessa
observa.

CENA 14 – QUARTO DAS CRIADAS – INT/DIA

Calandrino olha-se no espelho, triste, põe a mão na testa.

               CALANDRINO
               Meu corpo quer, mas reluto: estou febril, testa
               quente... São doze horas de luto...

Pelo espelho, Calandrino ve Tessa saindo do banho, enrolando-se
em toalhas. Ela passa. Calandrino começa a tirar as calças, fica
só de camisa.

               CALANDRINO
               Prum patrão, é o suficiente!

Calandrino agarra Tessa.

               TESSA
               O que é isso, Calandrino? Vem gente descendo a
               escada!

Calandrino joga Tessa sobre a cama, parte para cima, ela se
protege com a toalha.

               CALANDRINO
               Um quarto só para nós dois, não preciso mais de
               nada! Tessa, meu desatino... Eu sei que você vai
               gostar, vai...

               TESSA
               Agora não, Calandrino! O Patrão pode chegar! Sai!

               CALANDRINO
               E se chegar? O que importa?

Ele finalmente consegue arrancar a toalha dela, Tessa protege a
nudez com um lençol.

               CALANDRINO
               Não me envergonha o desejo que o teu corpo me
               provoca.

Ele vai se aproximando, por cima dela, puxando o lençol.

               CALANDRINO
               Teus cabelos, olhos, beijos, teus seios, coxas,
               tua boca...

Ela vai cedendo.

               CALANDRINO
               Te adoro... e pelo que vejo... tu já tá ficando
               louca!

Ele parte para cima com tudo, a porta se abre, entra Monna. Tessa
rola na cama, cai no chão, ergue-se por trás da cama, se
enrolando no lençol. Calandrino, sobre a cama só de camisa,
improvisa uma saia para esconder sua ereção.

               MONNA
               Desculpe. Interrompo alguma coisa?

               CALANDRINO
               Coisa pequena. Um tiquinho. Há pouco marcava as
               onze, mas não é feito de bronze: é coisa que se
               derrete...

               TESSA
               Agora já marca sete. Pode ficar para mais tarde.

Monna entra, carregando uma sacola e um travesseiro.

               MONNA
               Volto ao meu antigo quarto.

               TESSA
               Aqui? Entre os criados?

Monna tira a capa, pendura na cabeceira da cama.

               CALANDRINO
               Por quê?

               MONNA
               Tofano me mandou descer. Quer anular o casamento,
               e se nega a consumá-lo.

Monna vai guardando suas coisas num velho baú.

               CALANDRINO
               A consumá-lo, no caso... de fato?

               TESSA
               Que rato!

               MONNA
               Por mim até prefiro! Ele é nojento!

               CALANDRINO
               Mas o Velho, o testamento...

               MONNA
               Diz que vai ao tribunal.

               CALANDRINO
               Mas que boçal!

Calandrino veste as calças sob a saia. Tessa também se veste.

               MONNA
               Diz que para isso é importante, apesar de estar
               casado, que afinal o casamento não seja...
               finalizado.

               TESSA
               Mas que tratante!

               CALANDRINO
               Viver é coisa importante, surpreende a cada
               momento, nada é o que foi planejado. Pois se o pai
               foi um jumento, até o último instante... o filho,
               para mim, é veado!

               MONNA
               Diz que o desejo do Velho, o casamento e a
               herança, pode ser tudo anulado!

               TESSA
               Essa não! Mas que sacana!

               CALANDRINO
               E a senhora, como fica?

               MONNA
               A essa hora? Sem cama, sem pão, sem... nada.

               TESSA
               A senhora me perdoe, mas não se pode aceitar. É um
               escracho!

               CALANDRINO
               Eu também acho.

               TESSA
               O Velho, isso todos viram, em sua última hora...

               CALANDRINO
               Em desejo manisfesto!

               TESSA
               ... quis deixar para a senhora, metade de tudo.

               CALANDRINO
               E o resto. Desejo de morto é lei!

               MONNA
               Eu sei! Mas e o vivo sabe?

               TESSA
               É preciso dar um jeito de ser esposa de fato,
               levar para cama esse rato que arranjou como
               marido.

               MONNA
               Se me ajudam, prometido: o quarto só para vocês!
               Um fim-de-semana por mês! Uma folga por semana e
               um aumento de salário.

               TESSA
               Uma hora mais na cama?

               MONNA
               Podemos pensar no horário.

               TESSA
               Por mim, o trato está feito.

               CALANDRINO
               Aceito.

Tessa se afasta para terminar de se vestir. Calandrino se oferece
a Monna.

               CALANDRINO
               Sem bancar o oferecido, querendo somente ajudar...
               Pode lhe faltar marido: homem não vai lhe faltar.
               Prometo não comentar, prometo não ser metido, e
               deixo já prometido: eu meto só se deixar.

Tessa chega já batendo em Calandrino.

               TESSA
               Pois meta-se em seu serviço! Sai já daqui! Fora,
               peste!

Calandrino sai, sob os tapas de Tessa, que fecha a porta do
quarto. Monna deita-se.

               TESSA
               Na minha cara! Cafajeste! Homem é bicho sacana, e
               pior se for casado! Levar Tofano para cama não há
               de ser complicado.

               MONNA
               Porém se for eu quem chama, não deita nem
               amarrado.

               TESSA
               (pensando) Que falta de sorte! Mas para tudo
               existe um jeito. Já dei nó em pingo d'água, enfiei
               beijo em cordão. Já sequei o mar com a mão, já fiz
               o sul virar norte. Só não dei jeito pra morte. Mas
               não desisti 'inda não.

CENA 15 – PÁTIO – EXT/DIA

Calandrino ajuda Tessa a recolher cobertores que estão quarando
ao sol.

               CALANDRINO
               Eu durmo embaixo da escada, durmo no chão, estou
               farto! Seria melhor casar e dormir no mesmo
               quarto.

               TESSA
               É melhor deixar assim: à noite você me visita. Eu
               lhe espero bem bonita, um quarto todo para mim...
               E se você me aborrece, corre demais ou demora, a
               sua cama nem aquece: eu boto você para fora!

Calandrino agarra Tessa e a joga sobre os cobertores.

               CALANDRINHO
               Primeiro bote para dentro...

               TESSA
               E isso é lugar e hora?

               CALANDRINO
               Agora! Já! Não agüento!

Ela começa a ceder.

               TESSA
               Mas... e se alguém aparece?

               CALANDRINO
               Esquece! Aqui não passa gente.

               TESSA
               Se agüente! Hoje o quarto é nosso.

               CALANDRINO
               Vou ter um troço... A hora é essa!

Parece que finalmente eles vão começar a transar.

               TOFANO (OFF)
               Tessa!

Ela empurra Calandrino, levanta, se recompõe.

               TESSA
               E o pior é que é o patrão! Olha! Lá vem! Não
               disse?

Tessa sai correndo.

               CALANDRINO
               Fiquei outra vez na mão.

CENA 16 - COZINHA DOS SPINELLOCHIO – INT/DIA

Tessa entra, esbaforida, carregando roupas, Tofano a espera.

               TOFANO
               Por onde a senhora andava? Eu grito como um
               demente!

               TESSA
               Busco a roupa que quarava, antes que a chuva
               aumente.

Tofano olha pela janela.

               TOFANO
               Não há uma nuvem no céu.

               TESSA
               Sempre é melhor ser prudente.

Tofano baixa o tom de voz, puxa Tessa a um canto.

               TOFANO
               Nisso tens bem razão. Conheces Dona Isabel?

               TESSA
               E não? Sempre encontro no caminho. Parece moça
               direita, é doida pelo marido.

               TOFANO
               Não passa de um presumido, o tal senhor Filipinho,
               uma vaidade enorme! E mal com ela se deita, vira
               de lado e dorme. Não está a sua altura.

               TESSA
               Para cada mal, uma cura. Desses detalhes, não sei,
               se ronca, se usa pijama. Ela bem há de saber com
               quem dividir a cama.

               TOFANO
               Pois quero que seja comigo. Quero hoje! Quero já!
               Prometo que, se eu consigo, sua vida vai mudar.

               TESSA
               É preciso mais que sorte para levar alguém ao
               leito.

Tofano dá a ela um dinheiro.

               TESSA
               Mas, com exceção da morte, para tudo existe um
               jeito.

               TOFANO
               Pois encontre! E nada tema! Não deixe ponto sem
               nó!

Tofano sai. Tessa fica, pensativa, Calandrino entra, carregando
roupas.

               TESSA
               Às vezes mais de um problema resolve de um jeito
               só.

Tessa guarda as roupas, pega o casaco de Calandrino, entrega a
ele. Pega sua capa, veste. Passa batom, bem vermelho.

               TESSA
               Pro careca tem peruca, pro pecado, confissão. Pro
               corno existe a ilusão. Pro pobre, o dia de sorte.
               Só não vi jeito pra morte, mas não desisti 'inda
               não.

               CALANDRINO
               Onde cê vai, hora dessas, nesse batom tão
               vermelho?

               TESSA
               A hora não interessa. Eu preciso de um conselho.

Arrasta Calandrino para fora, ele a segue sem entender.

CENA 17 - CASA DE FILIPINHO E ISABEL/SALA - INT/DIA

Tessa conversa com Isabel, conversam enquanto cozinham,
preparando compotas de doces.

               ISABEL
               Conselho, Tessa, de quê?

               TESSA
               De amor, Dona Isabel. Que mais que podia ser?

               ISABEL
               Beleza, dinheiro e amor: não há quem não queira
               ter.

               TESSA
               Já não é mais como antes, viver de amor não me
               basta.

               ISABEL
               Beleza, dinheiro e amor: com o tempo tudo se
               gasta.

               TESSA
               Mas você com seu marido...

               ISABEL
               Estou igualzinha a você: não vejo mais graça na
               coisa.

               TESSA
               Ah! Então deve ser por isso...

               ISABEL
               (desconfiada) "Deve ser por isso" o quê?

               TESSA
               O Senhor é testemunha que eu não queria dizer.

               ISABEL
               Agora eu quero saber, já fiquei desconfiada.

               TESSA
               Seu Filipinho... ele anda... pisando na minha
               calçada.

               ISABEL
               Você tá dando a entender...?

               TESSA
               Tô. Mas eu quis ser educada.

               ISABEL
               Não acredito!

               TESSA
               Eu juro. Se a senhora quer ver...

CENA 18 – CAMPO – EXT/DIA

Calandrino com Filipinho já no meio da conversa, falam enquanto
preparam armadilhas de passarinhos.

               CALANDRINO
               Rapaz, mulher quando esfria: cuidado, é chifre na
               certa.

               FILIPINHO
               Cê acha?

               CALANDRINO
               Me dê um dia e meio e ela tá com as perna aberta.

               FILIPINHO
               Pra quem? Pr' ocê?

               CALANDRINO
               Hum-hum.

               FILIPINHO
               Só sendo!

               CALANDRINO
               Pois olhe, fique sabendo que eu sou o rei da
               conquista. A mulher na minha vista, geme, pede,
               cai tremendo.

               FILIPINHO
               Não se meta com Isabel.

               CALANDRINO
               Vou provar que ela é infiel e aceita encontrar
               comigo.

Filipinho segura Calandrino pelo colarinho.

               CALANDRINO
               Mas como sou seu amigo você vai em meu lugar. Sete
               e cinco esteja lá, o lugar depois eu digo.
               (sacaneando) A sua testa hoje está correndo sério
               perigo.

Calandrino vai saindo, Filipinho fica grilado.

CENA 19 - CASA DE FILIPINHO E ISABEL/ EXT NOITE

Isabel vem saindo de casa. Tessa chega, apressada, encontra
Isabel, vão andando.

               TESSA
               Ligeiro, Dona Isabel. Eu marquei às sete lá. A
               senhora chega antes e fica no meu lugar. Quando
               ele vir a senhora não vai ter o que falar.

CENA 20 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE

Tofano e Calandrino olham Tessa e Isabel vindo pelo quintal e
entrando no quarto dos criados. Calandrino abre uma garrafa de
vinho e serve um copo para Tofano.

               CALANDRINO
               Primeiro ela disse "não". Quando eu disse "é seu
               Tofano", respondeu "eu vou correndo, por esse
               homem eu me dano".

               TOFANO
               Não há mulher que resista ao charme napolitano.

Tofano bebe, Calandrino vai tomar um gole de vinho no gargalo mas
Tofano tira-lhe a garrafa da mão.

               CALANDRINO
               E agora preste atenção. Segunda parte do plano:
               Monna vai sair de casa, só volta de madrugada.
               (vai conduzindo Tofano pro quarto) Você vai se
               recolher fingindo que não quer nada e espera Dona
               Isabel, mas com a luz apagada. Foi ela que me
               pediu, pois é muito recatada.

Calandrino empurra Tofano no quarto e fechou a porta.
Imediatamente Monna aparece de camisola e caminha até a porta de
entrada falando.

               MONNA
               (alto) Já estou indo, Calandrino. Não me esperem
               pra jantar. Vou em busca do destino...

Monna abre e fecha a porta da frente, fica dentro de casa.

               MONNA
               (baixinho) ... sem sair do meu lugar.

CENA 21 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE

Dentro do quarto Tofano escuta a porta bater e se deita na cama.

               CALANDRINO (OFF)
               Tá certo, pode deixar.

Tofano vê a porta do quarto se abrir revelando a silhueta de
Monna que caminha pra ele.

               TOFANO
               Isso sim é que é mulher. A minha é uma desgraçada.

Monna despe-se, entra na cama, provoca.

               MONNA
               (mudando a voz) É que a mulher do vizinho é sempre
               mais desejada. A sua esposa, eu conheço, é muito
               bem apanhada.

               TOFANO
               A senhora é carne fresca, a Monna já está passada.

CENA 22 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE

Filipinho chega no quarto dos fundos e encontra Isabel.

               FILIPINHO
               Surpresa!

               ISABEL
               Surpresa o que?! Eu vim aqui lhe esperar.

               FILIPINHO (Irônico)
               Eu também: era você que esperava encontrar.

               ISABEL (Idem)
               É mesmo? Então foi você que marcou comigo!

               FILIPINHO (Sempre irônico)
               Foi não.

               ISABEL
               Coincidência, então?

               FILIPINHO
               Era justamente isso que eu vim lhe perguntar.

               ISABEL
               Eu soube por um amiga.

               FILIPINHO
               Não terá sido um "amigo?

               ISABEL
               (Ainda contida) Passemos logo pra briga. (Começa a
               gritar) Você pensa que eu sou boba! Pare já de
               disfarçar.

               FILIPINHO
               Você que está disfarçando pra poder me despistar.

CENA 23 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE

O barulho da briga chega ao quarto abafado, sem que reconheçamos
as vozes. Tofano diz pra "Isabel" que os criados vivem brigando.

               TOFANO
               Não ligue, o Calandrino vive apanhando, coitado.

CENA 24 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE

Isabel e Filipinho seguem brigando.

               ISABEL/FILIPINHO
               Eu sei de tudo, safado (a), não adianta enrolar.
               Você namora a (o) criada(o) .

Entram Tessa e Calandrino.

               TESSA/CALANDRINO
               Calma. A gente vai explicar.

Tessa e Calandrino viram-se um para o outro.

               TESSA/CALANDRINO
               Deixa eu falar!...Tá bom, fala... Faço questão...
               Por favor... Não, fala você... Acho melhor, então,
               tirar "uni-duni-tê".

Eles falam juntos mas cada um começa indicando a si próprio.

               TESSA/CALANDRINO
               Uni-duni... (Desistem) Assim ninguém vai vencer.

Tessa tapa a boca de Calandrino e começa a explicar.

               TESSA
               Ninguém aqui traiu ninguém. Foi tudo só invenção.

               FILIPINHO
               Mentira, você quer dizer!

               TESSA
               Mas foi com boa intenção.

               ISABEL
               E vocês não têm piedade? Vocês não têm compaixão?

Calandrino que esteve querendo falar este tempo todo solta a mão.

               CALANDRINO
               Pior se fosse verdade.

               FILIPINHO
               Que horror! Mas com que objetivo?

               ISABEL
               Pra que tamanha maldade?

               TESSA
               Pra esquentar vosso amor.

               CALANDRINO
               Deixar o fogo mais vivo!

               ISABEL
               Assim? Fazendo sofrer?

               TESSA
               A gente só dá o valor se tem medo de perder.

               FILIPINHO (Pra Isabel)
               Pensei que ia morrer.

               ISABEL (Pra Filipinho)
               E eu botei pra chorar.

Os dois começam a namorar. Calandrino e Tessa vão saindo.

               CALANDRINO
               Agora vocês se perdoam sem ter o que perdoar.

CENA 25 – FRENTE DA CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE

Calandrino agarra Tessa embaixo da árvore, encostado no tronco,
ela resiste.

               TESSA
               Se aquiete! Ficou maluco? Aí vem chegando o monge.

               CALANDRINO
               São sete e cinco, tá longe. Mal agora ouvi o cuco.
               Combinado é sete e meia.

               TESSA
               Dá tempo o quê, Calandrino? Eu sou mulher de hora
               cheia! Dez minutos só de beijo, mais quinze pra me
               esquentar. É meia hora no mínimo pro relógio
               despertar.

Ele insiste, ela vai amolecendo.

               CALANDRINO
               Aproveita que eu sou moço e a gente apressa o
               ponteiro.

Ele passa o dedo indicador pelo decote dela.

               CALANDRINO
               O dos segundos é fino e caminha bem ligeiro...

Ele passa o dedo médio pelos lábios dela.

               CALANDRINO
               O dos minutos, comprido, e faz a volta primeiro...

Ele dá um güenta, prensa o corpo dela contra o tronco da árvore.

               CALANDRINO
               O das horas é bem grosso, é pequeno mas certeiro.

Ela acaba cedendo.

CENA 26 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE

Tofano abraça Monna, transam.

               TOFANO
               Que a beleza maior fique no escuro, configura
               crime contra a natureza, pois o belo, visto, e
               lembrado no futuro, provoca no homem o amor mais
               (p)duro, revisitado, gera mais beleza.

               MONNA
               Engano seu. O amor nasce das sombras. Do que se
               imagina entre o escuro e a luz. Se queres o meu
               corpo e aos meus pés tu tombas, é só porque não
               podes ver quem te seduz.

CENA 27 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE

Isabel e Filipinho transam.

               ISABEL
               Ardor em firme coração nascido...

               FILIPINHO
               Pranto por belos olhos derramado...

               ISABEL
               Incêndio em mares de água disfarçado...

               FILIPINHO
               Rio de neve em fogo convertido...

CENA 28 – FRENTE DA CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE

Calandrino e Tessa transam.

               CALANDRINO
               Quando te vejo, Tessa, a minha vergonha cessa, o
               sangue na veia apressa, meu corpo todo se entesa,
               e mal a coisa começa...

Masetto chega, eles interrompem a transa, sem jeito.

               TESSA
               Seu Padre...

               CALANDRINO
               Aqui? Mas já? Ora essa... Sete e um quarto... Não
               chegou antes da hora?

               MASETTO
               Depende. Se lá no quarto houve o mesmo que aqui
               fora...

               TESSA
               Acho que não... São casados... Por lá a coisa
               demora.

               MASETTO
               Ou não acontece nada. A luz continua apagada.

               CALANDRINO
               No escuro, não há o que ver. Entramos quando
               acender.

CENA 29 - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE

Beijam-se. Tofano está em êxtase.

               TOFANO
               Te amo... Te quero... És tudo... Por favor, quero
               te ver...

               MONNA
               Desejarás ter ficado mudo, no momento exato em que
               me conhecer.

               TOFANO
               Socorro!

               MONNA
               Vai...

               TOFANO
               Aaaaiii... Aaaiii...

Monna acende a luz. Calandrino, Tessa e Masseto entram. Tofano vê
que a mulher em sua cama é Monna. Não entende nada.

               TOFANO
               Você? Como? Mas de que jeito?

               MONNA
               Eu mesma, Monna, prazer. Sua esposa de direito,
               agora também de fato.

               TOFANO
               Como foi que entrou no quarto?

Isabel e Filipinho chegam, param na porta.

               MONNA
               Pela porta, e por que não? (aponta) Meu marido,
               minha casa, minha cama, meu colchão... Quem
               esperava chegar?

               TOFANO
               Esperava... Esperava... (para Monna) Esperava não
               lhe amar. Esperava morrer triste, sem nunca o amor
               achar. Da vida esperava pouco, queria nem
               esperar... Tudo mudou no momento em que eu
               descobri lhe amar.

               MONNA
               Mesmo? (sorri amarelo) Que coisa boa... Parece uma
               outra pessoa...

               TOFANO
               Sou mesmo! Outro, por completo! A morte não foi em
               vão: a vontade de meu pai finalmente vem à tona.
               (animado) Casei com a senhora Monna, lhe dei um
               chão e um teto. Agora: filhos e netos!

Monna olha para Masetto, para Tessa, surpresa.

               MONNA
               Que bom... Vindo de um marido... Isso hoje em dia
               é tão raro...

Tofano a segura pelos ombros, decidido.

               TOFANO
               Seu amor me dá sentido, só agora vejo claro.

               FILIPINHO
               Paixão não é planta de roça, só cresce no natural.

               ISABEL
               Tantas voltas para encontrar o que tinha no
               quintal.

               MASETTO
               (abençoando) Que a paz, a concórdia e a alegria,
               brotem nos três casamentos.

Masetto abençoa os casais Monna e Tofano, Isabel e Filipinho,
Calandrino e Tessa. Monna bate três vezes na madeira da cama.

               CALANDRINO
               São bons ventos...

               MONNA
               Quem diria...

Tessa vai empurrando Filipinho, Isabel e Masetto para fora do
quarto.

               TESSA
               Diria que o amor é arte de ficar quando se parte e
               ver inteiro o que é parte. Que primeiro não é
               quinto, que parte do ovo é pinto e o pinto é parte
               do galo. Falo somente o que sinto, se falo é o
               mesmo que pinto e, se eu não sinto, me calo.

Calandrino pega a garrafa de vinho, quase vazia, sobre a cômoda,
arrasta Tessa para fora, vão todos saindo da casa. Monna faz
menção de sair também mas Tofano a segura, a envolve pela
cintura. Massetto vai saindo.

               CALANDRINO
               Do vinho restou um quinto, para nós sobrou um
               quarto, depois de rezar um terço, vai cada um pro
               seu berço, que nessa noite eu me farto! Eu muito
               falo e não minto, só digo o que é verdadeiro: a
               metade do que sinto já faz um amor inteiro.

Masetto se afasta da casa e, do jardim, vê Monna na janela.
Tofano fecha a janela. Filipinho e Isabel partem, abraçados,
apaixonados. Calandrino e Tessa correm para o seu quarto.

               MASETTO
               Metade de zero é nada. Espero a mulher amada, que
               já de mim nada espera. Se o amor é uma quimera,
               melhor é ganhar a estrada, que o dobro de zero é
               nada e nada é o dobro de zero. Já não tendo o que
               mais quero, vale tratar de viver de forma mais
               reduzida: comer, amar e morrer, é bom resumo da
               vida.

Masetto se afasta pela estrada, sozinho.

FIM

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(c) TV Globo e Casa de Cinema de Porto Alegre, 2009
http://www.casacinepoa.com.br

02/01/2009

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