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DECAMERÃO, A COMÉDIA DO SEXO
Episódio 1:
COMER, AMAR E MORRER
roteiro de
Jorge Furtado, Guel Arraes e Carlos Gerbase
roteiro final de
Jorge Furtado
e Guel Arraes
versão de 29/08/2008
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CENA 1 – CAMPO – AMANHECER
Amanhece. Masetto colhe macela.
CENA 2 – RUA FEIRA – EXT/DIA
Uma feira de rua. Câmera 1/4, seguindo um ramalhete de macela nas
mãos de MASETTO. Músicos, animais, barulho. Masetto oferece
ramalhetes de macela.
MASETTO
Macela! Macela!
MASETTO
Macela. Macela.
MASETTO
Macela... Macela...
Masetto passa por um PADRE GORDO corta, com uma faquinha de cabo
branco, um pedaço de salame, come um pedaço do salame e põe o
salame no alforje de um burro, junto com a faquinha. O Padre
termina de tomar copo de vinho oferecido pelo feirante.
Masetto aproxima-se do Padre.
PADRE
Tem quantos dias que colheu?
Masetto estende o ramalhete, dá para o Padre.
MASETTO
No amanhecer da Sexta-Feira Santa, antes do sol.
Padre pega a macela, cheira, guarda no alforje do burro.
PADRE
Deus lhe pague, meu filho.
O Padre vai saindo.
MASETTO
Deus me pague, Padre, obrigado, mas e o senhor?
Não vai me pagar?
PADRE
É sua contribuição para a Páscoa da igreja.
MASETTO
Então... pelo menos me dê um pedaço de salame. Eu
não como desde ontem.
PADRE
É da igreja, não posso dar.
MASETTO
Não pode dar, mas pode comer.
PADRE
Claro! Eu não sou da igreja?
MASETTO
E eu? Como é que fico? Também preciso comer.
PADRE
Vai trabalhar.
MASETTO
Estou trabalhando, vendendo macela.
PADRE
(rindo) E isso é trabalho, vender macela? Macela
dá no campo, é só pegar. Trabalho idiota!
Dois soldados passam.
MASETTO
Melhor que roubar dos pobres!
Padre pára, encara Masetto. Os soldados observam.
PADRE
Tá me chamando de ladrão?
Soldados param, se aproximam. Outras pessoas observam.
MASETTO
O senhor não pagou a macela que eu lhe dei.
PADRE
Você deu na minha mão! Estou mentindo?
MASETTO
Não.
PADRE
Então peça desculpa.
MASETTO
Desculpa.
Os soldados se afastam. O Padre ri.
PADRE
Você não é tão bobo quanto parece.
Masetto tira do dedo um anel, esconde na mão, se aproxima do
Padre.
MASETTO
Padre!
O Padre pára. Masetto, sem que o Padre veja, põe o anel dentro do
alforje do burro.
MASETTO
Já que vou morrer de fome... dê ao menos uma
benção...
PADRE
(saindo, rindo) Vai trabalhar, rapaz...
O Padre, que se afasta, deixando a feira. Masetto sorri.
CENA 3 – ESTRADAS – EXT/DIA
Masetto segue o Padre, corta caminho subindo um morro. Vê que um
grupo de soldados se aproxima à frente.
Masetto desce o morro e vai tirando a roupa. Passa por um riacho,
molha o cabelo e sai correndo, quase nu, atrás dos Padre,
gritando.
MASETTO
(gritando) Ladrão! Socorro!
Masetto alcança o Padre que, um pouco embriagado, não entende o
que está acontecendo. O soldados chegam.
MASETTO
Ladrão!
PADRE
O que é isso? Está louco?
Um TENENTE de aproxima, se destaca do grupo de soldados.
MASETTO
(ao Tenente) Tenente! Deus seja louvado! Chegaram
na hora exata, foram mandados pelo Senhor! Esse
homem roubou meu burro, minhas roupas, tudo! Eu
estava me banhando no riacho...
PADRE
Este homem está louco!
MASETTO
Louco? Vejais no alforje, o salame que eu comprei
na feira, só comi um pedaço, vejais!
O Tenente olha para o Padre, para Masetto.
PADRE
Vejais!? Vejais é presente do subjuntivo, o
imperativo afirmativo é vede!
O tenente fica olhando para o Padre, sem entender o que se passa.
TENENTE
Verde?
PADRE
Vocês são dois ignorantes.
O Tenente se irrita e abre o alforje do Padre, encontra o salame
cortado. Masetto faz cara de "eu não disse?".
PADRE
Ele me viu comer o salame na feira, é um farsante!
(ao tenente) Não seja burro!
MASETTO
Vede se aí está a minha faca...
O Tenente encontra a faquinha, esconde o cabo, olha para Masetto.
TENENTE
Verde?
MASETTO
Não, branca!
O Tenente confirma que a faca tem o cabo branco.
PADRE
(ao tenente) Ele também reparou na faca. É um
pilantra nunca visto!
MASETTO
Além de ladrão, blasfema, agride um servo de
Cristo! É um louco, um psicopata! Tenente, procure
bem, um pequeno anel de prata com a Cruz de Jerusalém.
PADRE
Que cruz de jerusuquê!
MASETTO
O tenente pode ver! Tem quatro cruzinhas brancas e
uma maior no centro.
Tenente verifica a bolsa, acha o anel, examina.
MASETTO
Representa os Evangelhos e o Antigo Testamento.
Vede, confirais.
O Tenente olhou para o anel, para o Padre e para Masetto.
PADRE (Possesso)
Que "confirais"! É "conferi"! Estou cercado de
jumentos.
TENENTE
(ao Padre) Silêncio! Imóvel! Calado! Conferi é
pretérito perfeito, eu conferi, tu conferiste, ele
conferiu. E você feche essa boca e vá pra...
Tenente se controla e faz um sinal aos soldados que cercam o
padre.
Corta.
O Padre esbraveja, é amarrado, só com a roupa de baixo. Masetto,
já vestido de padre, no lombo do burro, abençoa a patrulha.
MASETTO
(abençoa) Vão com Deus, meus filhos! Vão com Deus!
PADRE
(grita) Calhorda, filho de um jegue! Por Cristo,
te busco onde for!
MASETTO
Vão deixar que em vão empregue o santo nome do
Senhor?
O Tenente faz sinal para os soldados, que amordaçam o Padre, que
continua esbravejando. A patrulha parte, levando o Padre de
arrasto, a pé.
CENA 4 – ESTRADAS – EXT/DIA
Masetto se afasta no burro. Abre o alforje, pega o salame e a
faquinha de cabo branco quando vê em frente, parada na estrada,
uma MULHER (30) e DOIS MENINOS (8 e 6), em estado lastimável.
MULHER
A benção, seu Padre.
MASETTO
Benção minha filha.
A Mulher e os Meninos ficam parados, olhando para o salame.
Masetto olha para o salame, para as crianças, corta o salame em
quatro partes, dá três partes para a Mulher, fica com uma.
MULHER
Muito obrigado, seu Padre!
Os meninos comem avidamente. Nisso, outra criança, uma MENINA, 5
anos, sai de trás de uma moita, amarrando as calças. A Menina
fica olhando para Masetto enquanto seus irmãos mastigam. Masetto
olha para o seu pedaço de salame, entrega para a menina.
MULHER
Deus lhe pague!
MASETTO
Eu estou anotando, ele já me deve duas. Isso só
hoje!
Masetto se afasta com o burro. Olha o alforje, não tem mais
comida, só a faquinha e uns livros. Ele lambe os dedos, sentindo
o gosto do salame.
CENA 5 – ESTRADA – EXT/DIA
Masetto vê uma árvore carregada de frutas. Masetto olha para os
lados, não vê ninguém. Ele tenta se equilibrar de pé, sobre a
mula, para alcançar uma fruta, quando ouve um grito.
CALANDRINO
(esbaforido) Padre! Padre!
Masetto desce da mula, disfarça. Calandrino se aproxima,
ofegante.
CALANDRINO
Graças a Deus, que eu lhe encontrei! Santa Marta,
padroeira, me indicou o caminho certo! Comprido,
mas certo! Vamos!
Calandrino puxa a mula.
CALANDRINO
Deixa que eu ajudo com a mula.
MASETTO
Vamos onde?
CALANDRINO
O senhor precisa vir comigo! Agora!
MASETTO
Desculpe, mas eu...
CALANDRINO
O Velho está morrendo, coitado! (emocionado) Ele
falou comigo, acho que pela última vez... Me
disse: Calandrino, seu imbecil inútil, ache um
Padre! Calandrino sou eu. E o Padre é o senhor.
Vamos!
MASETTO
Eu não posso, eu tenho que...
CALANDRINO
Não pode? Como, não pode? Que espécie de padre é o
senhor? Isso não é batismo que pode esperar, nem
casamento que pode até suspender! O Velho está
morrendo! É o seu serviço. Vamos!
MASETTO
Que velho é esse?
CALANDRINO
Como, que velho? O Velho, o dono disso tudo, de
todo este vinhedo, até da fruta que o senhor
estava tentando roubar! O Velho Spinellochio!
CENA 6 – CASA DOS SPINELLOCHIO/QUARTO – INT/DIA
O VELHO SPINELLOCHIO, 80, com aparência doentia, está gemendo,
olhos fechados, de camisola, na sua grande cama. MONNA, 35, está
sentada numa cama pequena, num canto do quarto, fazendo tricô. O
seu vestido tem um decote generoso. O Velho acorda e olha para
Monna. Sorri, meio sacana.
VELHO
Monna, minha querida, tenho frio.
Monna pega um cobertor da sua cama, fecha a janela e aproxima-se
da cama do Velho.
MONNA
É a brisa que vem do rio.
Monna coloca o cobertor sobre o Velho.
VELHO
É a morte, está me chamando.
O velho tosse. Monna sorri e faz um carinho no rosto do Velho.
MONNA
Se a hora sempre chega, melhor demorando. Vou
pedir uma sopa bem quente, e o frio vai embora.
VELHO
Sopa não adianta, quando chega a hora.
Monna ri. O Velho ergue o cobertor.
VELHO
Eu preciso me esquentar. Deita aqui, bem junto.
Monna percebe que o Velho já está pronto para a ação.
MONNA
O senhor está brincando... Em plena luz do dia!
VELHO
Não há o que temer. Sou quase um defunto.
MONNA
Mas eu temo, e muito. Seu filho, o que diria?
O velho força uma tosse e faz cara de doente.
VELHO
É meu último desejo! Um pouco de calor, um
beijo...
MONNA
Um beijo? Só um? (sorri) Quem se importa?
VELHO
Só um, mas é melhor trancar a porta.
Monna tranca a porta, e começa a tirar a roupa, aproximando-se do
Velho, que abre espaço na cama para ela.
CENA 7 - FRENTE DA CASA
Calandrino e Masetto chegam na casa, Calandrino amarra o burro.
CENA 8 – QUARTO DA CASA SPINELLOCHIO – INT/DIA
Calandrino bate na porta, insiste, Monna abre, ajeitando o
vestido. Masetto entra no quarto, empurrado por Calandrino,
seguido por TOFANO, Tessa, que pára na porta. No quarto, Monna
termina de ajeitar a cama, O Velho está de olhos fechados,
ofegante.
MASETTO
(animado) Boa noite! Tudo bem?
MONNA
(triste) Podia ser melhor, padre.
MASETTO
(rapidamente triste) Morreu?
TOFANO
Ainda não, está dormindo.
MONNA
Está calmo...
TOFANO
É a calmaria final.
Tofano examina um vaso sobre a cabeceira, guarda na gaveta.
TESSA
Parece não estar mesmo muito bem.
MONNA
Precisa se alimentar...
CALANDRINO
Eu também. Acho. Que ele devia se alimentar.
Sai arrastando Tessa.
MONNA
Talvez ele melhore.
TOFANO
Pouco provável... Está com uma cor horrível.
MASETTO
(para Tofano) O senhor é médico?
TOFANO
Não, sou o filho.
Monna tira o vaso da gaveta, põe de volta no lugar.
MASETTO
(para Monna) A senhora é filha?
TOFANO
(rindo) Filha? Imagina. É uma das empregadas. Eu
sou o único filho.
Tofano deita um porta-retratos sobre a estante.
MONNA
Eu cuido dele há dez anos, desde que a esposa o
deixou.
Monna ergue o porta-retrato, volta pro lugar.
TOFANO
Coincide com o período que a saúde piorou. Tem uma
obstrução na aorta. Tosse seca, reumatismo,
suores, senilidade...
MONNA
Viveu, trabalhou, amou. É o que importa. A tosse,
suores, dores, são conseqüências da idade.
MASETTO
Vai morrer, pelo que vejo. Passou assim todo o
dia?
Ela ajeita o vestido, a cama.
MONNA
Foi o gasto de energia, em seu último desejo.
MASETTO
Morte boa, vida boa. Bom é o que bem acaba.
MONNA
Morte é sempre justa paga. Foi uma boa pessoa.
Masetto se aproxima de Monna.
MASETTO
(baixinho) Para ter um anjo por perto, é certo.
CENA 9 – COZINHA – INT – DIA
Tessa prepara uma sopa, Calandrino chega por trás, agarrando.
CALANDRINO
Tessa, meu bem querer, chegue um pouquinho pra cá
TESSA
Cê deixe de me atentar. O homem tá lá pra morrer!
CALANDRINO (Agarrando ela)
E eu tô doido pra viver!
TESSA (Se soltando)
Não, Calandrino, qué o que!
CALANDRINO
Tessa, minha querida, esse é o natural da vida:
comer, amar e morrer
Tessa começa a ceder, Calandrino a agarra.
TOFANO (OFF)
Aaaaiii... Aaaiii...
CENA 10 – QUARTO DA CASA SPINELLOCHIO – INT/DIA
O Velho acorda, num acesso de tosse. Monna se aproxima.
TOFANO
Aaaaiii... Aaaiii...
MONNA
Acordou...
TOFANO
Agora vai...
MONNA
Padre, por favor... É a sua hora.
Todos olhando para Masetto, esperando que ele faça algo. Ele olha
para Monna. Masetto pega o livro na bolsa.
MASETTO
Claro, minha hora.
Masetto abre o livro, folheia, procura algo.
MASETTO
Hoje é dia...
MONNA
De Páscoa.
MASETTO
Claro... Eu digo... da semana?
MONNA
Domingo?
MASETTO
Domingo de Páscoa, é claro. Neste caso...
Masetto pára numa página, lê.
MASETTO
Esse é bom... Praecisa est velut a texénte, vita
mea... Enrolam como um tecelão o tecido da minha
vida... Bonito. É do ofício dos defuntos.
O Velho voltou a dormir.
MONNA
Ele ainda não morreu.
TOFANO
Mas já pode ir enrolando o tecido, para ganhar
tempo. Vamos deixar o Padre trabalhar?
MASETTO
Nom vidébo Dóminum Deum in terra vivéntium... Não
mais verei o senhor na terra dos vivos...
MONNA
Será?
VELHO
Aaaai...
TOFANO
Agora vai.
VELHO
(grita) Aaaaaiii...
CALANDRINO
A hora chega para todos.
TESSA
Coitado...
Velho abre os olhos.
VELHO
(grita) Aaaaa... Silêncio!
Todos ficam quietos.
VELHO
Calem a boca! Eu não chamei Padre para ouvir
latinório! Fiquem todos quietos e me escutem!
Tragam papel e tinta! Papel e tinta! Papel e
tinta! Papel e tinta!
TOFANO
(vira-se para Monna) Papel e tinta!
MONNA
(vira-se para a porta) Papel e tinta!
Tessa e Calandrino entram com papel e tinta.
TESSA
(Entrando) Papel...
CALANDRINO
... e tinta.
VELHO
Padre!
Masetto se aproxima.
VELHO
Escreva!
O Padre pega o papel e a pena, Calandrino segura o tinteiro.
VELHO
Meu testamento!
TOFANO
O quê? Mas como? Isso agora? (para Monna) Quem
sabe a cabeça ferve? (para Masetto) Já existe um
testamento, registrado no cartório! (... com
assento na justiça!)
VELHO
(furioso) Silêncio! Aquele não serve, use de
supositório! (... justiça de pau é piça!)
Tofano, muito irritado, dá as costas ao pai, vai para o canto do
quarto.
TOFANO
(para Calandrino) A cabeça está virada! Ficou
maluco de vez!
VELHO
É decisão tomada em completa lucidez!
O Velho afasta as cobertas, ergue-se na cama, fica de pé.
VELHO
É meu último desejo, e Deus permita que eu fale.
E que assim seja cumprido em seu mínimo detalhe.
Masetto pega o papel e a tinta, escreve. O Velho respira fundo,
caminha até a janela, abre a janela.
VELHO
Tudo que tive em vida, tudo o que tenho e vale,
As terras até o rio, as vinhas por todo o vale.
O Velho olha para dentro da casa.
VELHO
Minha casa, meu pecúlio, minha imagem da Madona
Minhas vacas, espingardas, o dinheiro na poltrona
O Velho volta para a cama, lentamente, senta na cama.
VELHO
Os meus livros, as gravuras, a gaita, a
acordeona...
O Velho volta ao seu lugar na cama, se recosta nos travesseiros.
VELHO
Deixo a Tofano, meu filho!...
Tofano olha para o Velho, pasmo.
VELHO
... se ele se casar com Monna.
Monna olha para o Velho e para Tofano. Tofano olha para Monna,
pasmo, e para o Velho.
VELHO
Se não... vai tudo para a igreja! Está escrito!
Assim seja!
O Velho sorri. E morre, rindo.
Monna fecha os olhos do Velho e faz o sinal da cruz. Masetto faz
o sinal da cruz com a mão esquerda, troca no meio. Tofano morde a
mão fechada. Calandrino e Tessa se olham, olhos arregalados, e
fazem o sinal da cruz.
MASETTO (OFF)
Mors omni aetate communis est.
CENA 11 - CEMITÉRIO DA VILA (AO LADO DA IGREJINHA) – EXT/DIA
Os habitantes da vila, de luto, assistem ao enterro. Masetto está
à beira da cova, ladeado por Tofano e Monna, Filipinho e sua bela
esposa ISABEL, 25. Um pouco mais longe, Calandrino e Tessa. O
caixão, fechado, sobre a grama, dois COVEIROS ao fundo. Masetto,
lê seu livro de rezas.
MASETTO
A morte não poupa ninguém. O senhor Spinellochio
deixa um filho saudoso...
Masetto fecha o livro, faz sinal aos Coveiros, que amarram o
caixão, preparam para descê-lo na cova aberta. Calandrino chora.
TESSA
Para que tanto choro, Calandrino... Você nem é
parente!
CALANDRINO
Por isso mesmo...
Tofano sorri para Isabel. Monna e Tessa choram. Calandrino tira
umas casquinhas de Tessa, baixa a mão do seu ombro para sua
cintura e daí para o quadril. Tessa dá uma cotovelada em
Calandrino, e ele sente o golpe, reprime a expressão de dor,
transforma em luto, chora.
MASETTO
E empregados... a quem sempre tratou da forma...
carinhosa que eles bem mereciam.
Masetto olha para Monna, ela percebe, retribui. Tofano continua
tentando flertar com Isabel, que o evita. Os Coveiros estão
prontos para descer o caixão, olham para o Padre, esperando a
ordem.
MASETTO
Antes que esta alma vá, ao encontro do Bom Deus,
um breve verso de adeus seu filho irá recitar.
Tofano leva um tempo para perceber que deve falar.
TOFANO
Pai... (pausa) Adeus. (para os coveiros) Pode
baixar.
Os coveiros começam a baixar o caixão. Tofano dá as costas e se
afasta. Monna está indignada com Tofano.
MASETTO
Verso breve, como a vida. Convido para o casamento
que acontece já em seguida.
Masetto acelera o passo na direção da igrejinha da vila, ao lado
do cemitério. Masetto ultrapassa Tofano, que é seguido por todos.
Enquanto caminham, todos trocam de roupas, os trajes escuros e
tristes de enterro são substituídos por trajes festivos de
casamento. Monna, com a ajuda de Tessa, tira a capa preta que
cobre seu vestido de noiva. Tofano permanece de luto.
MASETTO (OFF)
Eu os declaro marido e mulher.
CENA 12 - IGREJINHA DA VILA – EXT/DIA
Masetto celebrando o casamento, numa mesa armada na frente da
igrejinha. Tofano (de luto) e Monna (com vestido de noiva) estão
à sua frente. Os dois não se olham.
MASETTO
(para Tofano) Pode beijar a noiva.
TOFANO
(baixinho) O beijo é fundamental? Se for, pode ser
na testa?
MASETTO
(indeciso) Beijar é opcional.
TOFANO
Ótimo!
Tofano abandona Monna no altar e vai saindo, sorridente.
TOFANO
Vamos pra festa!
Tofano sai cumprimentando os presentes. Monna, furiosa, enxuga
uma lágrima, ainda virada para o altar. Olha para Masetto e tenta
sorrir. Ele sorri de volta.
CENA 13 – JARDIM DA IGREJINHA DA VILA – EXT/DIA
Uma banda toca uma música italiana. Tofano circula entre os
convidados, fala com duas senhoras.
TOFANO
Bom que vieram... Muito obrigado... Então?
Souberam? É tudo meu, de papel passado.
Tofano fala com dois amigos.
TOFANO
Eu fiz aquilo que o meu pai queria, mas vou viver
como eu já vivia.
Olha pra Isabel ali perto com Filipinho.
TOFANO
E Deus, na sua imensa bondade, há de me dar mulher
de verdade.
Filipinho nota o olhar de Toffano.
FILIPINHO
Não pára de olhar pra cá, o carcamano.
ISABEL
Mas ele acabou de casar, Filipinho! Só pode ser um
engano.
Tofano sai atrás de Isabel. Monna, distante, observa, ao lado de
Calandrino e Tessa, que comem. Masetto sai da igrejinha, fecha a
porta, vê Monna, se aproxima dela.
MASETTO
A senhora... fica muito bem de noiva.
MONNA
E o senhor fica muito bem... de Padre.
MASETTO
No meu caso, não é uma escolha.
MONNA
Nem no meu. Era noiva... ou nada. Me tornei no
mesmo dia, viúva, noiva e esposa rejeitada.
MASETTO
É muito, para uma jornada. Também sou Padre faz
pouco, inda nem me acostumei.
MONNA
O hábito faz o monge...
MASETTO
Foi sempre o que eu escutei.
Calandrino e Tessa se aproximam.
CALANDRINO
Padre, desculpe um momento. Sem querer interromper
enquanto o senhor descansa...
Calandrino puxa o Padre para um canto, Tessa e Monna ficam
conversando ao fundo.
CALANDRINO
Quanto custa um casamento? O vestido, a festa a
dança, igreja, papel, aliança... Padre, por favor,
me ajuda!
MASETTO
Igreja e papel, o preço não muda. Depende das
alianças, se quem dá é a madrinha, qual o quilate
do ouro...
CALANDRINO
Eu mesmo providencio e por mim pode ser fininha.
Quilate pra mim é o cachorro.
Tofano dança com Isabel. (Filipinho dança com Tessa) A música
termina. Isabel faz menção de se afastar, mas Tofano a segura,
discretamente.
TOFANO
O que foi? Quer sentar? Eu conduzo assim tão mal?
ISABEL
(constrangida) O noivo dança com a noiva, é o
natural.
A música recomeça. Tofano pega Isabel pela cintura.
TOFANO
Natural é a natureza, com essa não se discute.
Tofano aperta o corpo de Isabel contra o seu.
TOFANO
Contra o sol, o vento, o amor, não é luta que se
lute. Eu nunca nada implorei, a amigo ou inimigo,
e palavra não diria que lembrasse coisa doce, se a
sua beleza não fosse essa agonia e aflição, que
obriga meu coração, para não morrer de míngua, a
fazer da minha língua o arauto dessa paixão.
Isabel olha para ele com desdém.
TOFANO
Não deixe tão belos lábios desdenharem meu desejo,
nessa boca delicada ficava melhor um beijo.
ISABEL
A sua noiva já nos viu. E eu sou uma mulher
casada.
TOFANO
O seu marido saiu, e a noiva para mim é nada. Não
passa de uma mucama, nem sei seu nome de cor.
ISABEL
Hoje à noite, em sua cama, há de conhecer melhor.
TOFANO
Engano seu. Durmo só. Não é noiva que eu mereça.
Isabel se desvencilha.
ISABEL
Tampouco eu sou, tenha dó! Eu lhe peço que me
esqueça.
Ela se afasta. Tofano fica, olha em torno. Monna observa, longe
da vista de Tofano. Masetto de aproxima.
MONNA
Além de viúva, noiva e esposa desprezada, sou
também mulher traída, agora não falta nada.
MASETTO
Falta a noiva ser beijada.
Masetto tasca-lhe um beijo. Monna resiste bem pouquinho, logo
cede e afasta Masetto. Ela se afasta, assustada. Ao fundo Tessa
observa.
CENA 14 – QUARTO DAS CRIADAS – INT/DIA
Calandrino olha-se no espelho, triste, põe a mão na testa.
CALANDRINO
Meu corpo quer, mas reluto: estou febril, testa
quente... São doze horas de luto...
Pelo espelho, Calandrino ve Tessa saindo do banho, enrolando-se
em toalhas. Ela passa. Calandrino começa a tirar as calças, fica
só de camisa.
CALANDRINO
Prum patrão, é o suficiente!
Calandrino agarra Tessa.
TESSA
O que é isso, Calandrino? Vem gente descendo a
escada!
Calandrino joga Tessa sobre a cama, parte para cima, ela se
protege com a toalha.
CALANDRINO
Um quarto só para nós dois, não preciso mais de
nada! Tessa, meu desatino... Eu sei que você vai
gostar, vai...
TESSA
Agora não, Calandrino! O Patrão pode chegar! Sai!
CALANDRINO
E se chegar? O que importa?
Ele finalmente consegue arrancar a toalha dela, Tessa protege a
nudez com um lençol.
CALANDRINO
Não me envergonha o desejo que o teu corpo me
provoca.
Ele vai se aproximando, por cima dela, puxando o lençol.
CALANDRINO
Teus cabelos, olhos, beijos, teus seios, coxas,
tua boca...
Ela vai cedendo.
CALANDRINO
Te adoro... e pelo que vejo... tu já tá ficando
louca!
Ele parte para cima com tudo, a porta se abre, entra Monna. Tessa
rola na cama, cai no chão, ergue-se por trás da cama, se
enrolando no lençol. Calandrino, sobre a cama só de camisa,
improvisa uma saia para esconder sua ereção.
MONNA
Desculpe. Interrompo alguma coisa?
CALANDRINO
Coisa pequena. Um tiquinho. Há pouco marcava as
onze, mas não é feito de bronze: é coisa que se
derrete...
TESSA
Agora já marca sete. Pode ficar para mais tarde.
Monna entra, carregando uma sacola e um travesseiro.
MONNA
Volto ao meu antigo quarto.
TESSA
Aqui? Entre os criados?
Monna tira a capa, pendura na cabeceira da cama.
CALANDRINO
Por quê?
MONNA
Tofano me mandou descer. Quer anular o casamento,
e se nega a consumá-lo.
Monna vai guardando suas coisas num velho baú.
CALANDRINO
A consumá-lo, no caso... de fato?
TESSA
Que rato!
MONNA
Por mim até prefiro! Ele é nojento!
CALANDRINO
Mas o Velho, o testamento...
MONNA
Diz que vai ao tribunal.
CALANDRINO
Mas que boçal!
Calandrino veste as calças sob a saia. Tessa também se veste.
MONNA
Diz que para isso é importante, apesar de estar
casado, que afinal o casamento não seja...
finalizado.
TESSA
Mas que tratante!
CALANDRINO
Viver é coisa importante, surpreende a cada
momento, nada é o que foi planejado. Pois se o pai
foi um jumento, até o último instante... o filho,
para mim, é veado!
MONNA
Diz que o desejo do Velho, o casamento e a
herança, pode ser tudo anulado!
TESSA
Essa não! Mas que sacana!
CALANDRINO
E a senhora, como fica?
MONNA
A essa hora? Sem cama, sem pão, sem... nada.
TESSA
A senhora me perdoe, mas não se pode aceitar. É um
escracho!
CALANDRINO
Eu também acho.
TESSA
O Velho, isso todos viram, em sua última hora...
CALANDRINO
Em desejo manisfesto!
TESSA
... quis deixar para a senhora, metade de tudo.
CALANDRINO
E o resto. Desejo de morto é lei!
MONNA
Eu sei! Mas e o vivo sabe?
TESSA
É preciso dar um jeito de ser esposa de fato,
levar para cama esse rato que arranjou como
marido.
MONNA
Se me ajudam, prometido: o quarto só para vocês!
Um fim-de-semana por mês! Uma folga por semana e
um aumento de salário.
TESSA
Uma hora mais na cama?
MONNA
Podemos pensar no horário.
TESSA
Por mim, o trato está feito.
CALANDRINO
Aceito.
Tessa se afasta para terminar de se vestir. Calandrino se oferece
a Monna.
CALANDRINO
Sem bancar o oferecido, querendo somente ajudar...
Pode lhe faltar marido: homem não vai lhe faltar.
Prometo não comentar, prometo não ser metido, e
deixo já prometido: eu meto só se deixar.
Tessa chega já batendo em Calandrino.
TESSA
Pois meta-se em seu serviço! Sai já daqui! Fora,
peste!
Calandrino sai, sob os tapas de Tessa, que fecha a porta do
quarto. Monna deita-se.
TESSA
Na minha cara! Cafajeste! Homem é bicho sacana, e
pior se for casado! Levar Tofano para cama não há
de ser complicado.
MONNA
Porém se for eu quem chama, não deita nem
amarrado.
TESSA
(pensando) Que falta de sorte! Mas para tudo
existe um jeito. Já dei nó em pingo d'água, enfiei
beijo em cordão. Já sequei o mar com a mão, já fiz
o sul virar norte. Só não dei jeito pra morte. Mas
não desisti 'inda não.
CENA 15 – PÁTIO – EXT/DIA
Calandrino ajuda Tessa a recolher cobertores que estão quarando
ao sol.
CALANDRINO
Eu durmo embaixo da escada, durmo no chão, estou
farto! Seria melhor casar e dormir no mesmo
quarto.
TESSA
É melhor deixar assim: à noite você me visita. Eu
lhe espero bem bonita, um quarto todo para mim...
E se você me aborrece, corre demais ou demora, a
sua cama nem aquece: eu boto você para fora!
Calandrino agarra Tessa e a joga sobre os cobertores.
CALANDRINHO
Primeiro bote para dentro...
TESSA
E isso é lugar e hora?
CALANDRINO
Agora! Já! Não agüento!
Ela começa a ceder.
TESSA
Mas... e se alguém aparece?
CALANDRINO
Esquece! Aqui não passa gente.
TESSA
Se agüente! Hoje o quarto é nosso.
CALANDRINO
Vou ter um troço... A hora é essa!
Parece que finalmente eles vão começar a transar.
TOFANO (OFF)
Tessa!
Ela empurra Calandrino, levanta, se recompõe.
TESSA
E o pior é que é o patrão! Olha! Lá vem! Não
disse?
Tessa sai correndo.
CALANDRINO
Fiquei outra vez na mão.
CENA 16 - COZINHA DOS SPINELLOCHIO – INT/DIA
Tessa entra, esbaforida, carregando roupas, Tofano a espera.
TOFANO
Por onde a senhora andava? Eu grito como um
demente!
TESSA
Busco a roupa que quarava, antes que a chuva
aumente.
Tofano olha pela janela.
TOFANO
Não há uma nuvem no céu.
TESSA
Sempre é melhor ser prudente.
Tofano baixa o tom de voz, puxa Tessa a um canto.
TOFANO
Nisso tens bem razão. Conheces Dona Isabel?
TESSA
E não? Sempre encontro no caminho. Parece moça
direita, é doida pelo marido.
TOFANO
Não passa de um presumido, o tal senhor Filipinho,
uma vaidade enorme! E mal com ela se deita, vira
de lado e dorme. Não está a sua altura.
TESSA
Para cada mal, uma cura. Desses detalhes, não sei,
se ronca, se usa pijama. Ela bem há de saber com
quem dividir a cama.
TOFANO
Pois quero que seja comigo. Quero hoje! Quero já!
Prometo que, se eu consigo, sua vida vai mudar.
TESSA
É preciso mais que sorte para levar alguém ao
leito.
Tofano dá a ela um dinheiro.
TESSA
Mas, com exceção da morte, para tudo existe um
jeito.
TOFANO
Pois encontre! E nada tema! Não deixe ponto sem
nó!
Tofano sai. Tessa fica, pensativa, Calandrino entra, carregando
roupas.
TESSA
Às vezes mais de um problema resolve de um jeito
só.
Tessa guarda as roupas, pega o casaco de Calandrino, entrega a
ele. Pega sua capa, veste. Passa batom, bem vermelho.
TESSA
Pro careca tem peruca, pro pecado, confissão. Pro
corno existe a ilusão. Pro pobre, o dia de sorte.
Só não vi jeito pra morte, mas não desisti 'inda
não.
CALANDRINO
Onde cê vai, hora dessas, nesse batom tão
vermelho?
TESSA
A hora não interessa. Eu preciso de um conselho.
Arrasta Calandrino para fora, ele a segue sem entender.
CENA 17 - CASA DE FILIPINHO E ISABEL/SALA - INT/DIA
Tessa conversa com Isabel, conversam enquanto cozinham,
preparando compotas de doces.
ISABEL
Conselho, Tessa, de quê?
TESSA
De amor, Dona Isabel. Que mais que podia ser?
ISABEL
Beleza, dinheiro e amor: não há quem não queira
ter.
TESSA
Já não é mais como antes, viver de amor não me
basta.
ISABEL
Beleza, dinheiro e amor: com o tempo tudo se
gasta.
TESSA
Mas você com seu marido...
ISABEL
Estou igualzinha a você: não vejo mais graça na
coisa.
TESSA
Ah! Então deve ser por isso...
ISABEL
(desconfiada) "Deve ser por isso" o quê?
TESSA
O Senhor é testemunha que eu não queria dizer.
ISABEL
Agora eu quero saber, já fiquei desconfiada.
TESSA
Seu Filipinho... ele anda... pisando na minha
calçada.
ISABEL
Você tá dando a entender...?
TESSA
Tô. Mas eu quis ser educada.
ISABEL
Não acredito!
TESSA
Eu juro. Se a senhora quer ver...
CENA 18 – CAMPO – EXT/DIA
Calandrino com Filipinho já no meio da conversa, falam enquanto
preparam armadilhas de passarinhos.
CALANDRINO
Rapaz, mulher quando esfria: cuidado, é chifre na
certa.
FILIPINHO
Cê acha?
CALANDRINO
Me dê um dia e meio e ela tá com as perna aberta.
FILIPINHO
Pra quem? Pr' ocê?
CALANDRINO
Hum-hum.
FILIPINHO
Só sendo!
CALANDRINO
Pois olhe, fique sabendo que eu sou o rei da
conquista. A mulher na minha vista, geme, pede,
cai tremendo.
FILIPINHO
Não se meta com Isabel.
CALANDRINO
Vou provar que ela é infiel e aceita encontrar
comigo.
Filipinho segura Calandrino pelo colarinho.
CALANDRINO
Mas como sou seu amigo você vai em meu lugar. Sete
e cinco esteja lá, o lugar depois eu digo.
(sacaneando) A sua testa hoje está correndo sério
perigo.
Calandrino vai saindo, Filipinho fica grilado.
CENA 19 - CASA DE FILIPINHO E ISABEL/ EXT NOITE
Isabel vem saindo de casa. Tessa chega, apressada, encontra
Isabel, vão andando.
TESSA
Ligeiro, Dona Isabel. Eu marquei às sete lá. A
senhora chega antes e fica no meu lugar. Quando
ele vir a senhora não vai ter o que falar.
CENA 20 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE
Tofano e Calandrino olham Tessa e Isabel vindo pelo quintal e
entrando no quarto dos criados. Calandrino abre uma garrafa de
vinho e serve um copo para Tofano.
CALANDRINO
Primeiro ela disse "não". Quando eu disse "é seu
Tofano", respondeu "eu vou correndo, por esse
homem eu me dano".
TOFANO
Não há mulher que resista ao charme napolitano.
Tofano bebe, Calandrino vai tomar um gole de vinho no gargalo mas
Tofano tira-lhe a garrafa da mão.
CALANDRINO
E agora preste atenção. Segunda parte do plano:
Monna vai sair de casa, só volta de madrugada.
(vai conduzindo Tofano pro quarto) Você vai se
recolher fingindo que não quer nada e espera Dona
Isabel, mas com a luz apagada. Foi ela que me
pediu, pois é muito recatada.
Calandrino empurra Tofano no quarto e fechou a porta.
Imediatamente Monna aparece de camisola e caminha até a porta de
entrada falando.
MONNA
(alto) Já estou indo, Calandrino. Não me esperem
pra jantar. Vou em busca do destino...
Monna abre e fecha a porta da frente, fica dentro de casa.
MONNA
(baixinho) ... sem sair do meu lugar.
CENA 21 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE
Dentro do quarto Tofano escuta a porta bater e se deita na cama.
CALANDRINO (OFF)
Tá certo, pode deixar.
Tofano vê a porta do quarto se abrir revelando a silhueta de
Monna que caminha pra ele.
TOFANO
Isso sim é que é mulher. A minha é uma desgraçada.
Monna despe-se, entra na cama, provoca.
MONNA
(mudando a voz) É que a mulher do vizinho é sempre
mais desejada. A sua esposa, eu conheço, é muito
bem apanhada.
TOFANO
A senhora é carne fresca, a Monna já está passada.
CENA 22 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE
Filipinho chega no quarto dos fundos e encontra Isabel.
FILIPINHO
Surpresa!
ISABEL
Surpresa o que?! Eu vim aqui lhe esperar.
FILIPINHO (Irônico)
Eu também: era você que esperava encontrar.
ISABEL (Idem)
É mesmo? Então foi você que marcou comigo!
FILIPINHO (Sempre irônico)
Foi não.
ISABEL
Coincidência, então?
FILIPINHO
Era justamente isso que eu vim lhe perguntar.
ISABEL
Eu soube por um amiga.
FILIPINHO
Não terá sido um "amigo?
ISABEL
(Ainda contida) Passemos logo pra briga. (Começa a
gritar) Você pensa que eu sou boba! Pare já de
disfarçar.
FILIPINHO
Você que está disfarçando pra poder me despistar.
CENA 23 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE
O barulho da briga chega ao quarto abafado, sem que reconheçamos
as vozes. Tofano diz pra "Isabel" que os criados vivem brigando.
TOFANO
Não ligue, o Calandrino vive apanhando, coitado.
CENA 24 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE
Isabel e Filipinho seguem brigando.
ISABEL/FILIPINHO
Eu sei de tudo, safado (a), não adianta enrolar.
Você namora a (o) criada(o) .
Entram Tessa e Calandrino.
TESSA/CALANDRINO
Calma. A gente vai explicar.
Tessa e Calandrino viram-se um para o outro.
TESSA/CALANDRINO
Deixa eu falar!...Tá bom, fala... Faço questão...
Por favor... Não, fala você... Acho melhor, então,
tirar "uni-duni-tê".
Eles falam juntos mas cada um começa indicando a si próprio.
TESSA/CALANDRINO
Uni-duni... (Desistem) Assim ninguém vai vencer.
Tessa tapa a boca de Calandrino e começa a explicar.
TESSA
Ninguém aqui traiu ninguém. Foi tudo só invenção.
FILIPINHO
Mentira, você quer dizer!
TESSA
Mas foi com boa intenção.
ISABEL
E vocês não têm piedade? Vocês não têm compaixão?
Calandrino que esteve querendo falar este tempo todo solta a mão.
CALANDRINO
Pior se fosse verdade.
FILIPINHO
Que horror! Mas com que objetivo?
ISABEL
Pra que tamanha maldade?
TESSA
Pra esquentar vosso amor.
CALANDRINO
Deixar o fogo mais vivo!
ISABEL
Assim? Fazendo sofrer?
TESSA
A gente só dá o valor se tem medo de perder.
FILIPINHO (Pra Isabel)
Pensei que ia morrer.
ISABEL (Pra Filipinho)
E eu botei pra chorar.
Os dois começam a namorar. Calandrino e Tessa vão saindo.
CALANDRINO
Agora vocês se perdoam sem ter o que perdoar.
CENA 25 – FRENTE DA CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE
Calandrino agarra Tessa embaixo da árvore, encostado no tronco,
ela resiste.
TESSA
Se aquiete! Ficou maluco? Aí vem chegando o monge.
CALANDRINO
São sete e cinco, tá longe. Mal agora ouvi o cuco.
Combinado é sete e meia.
TESSA
Dá tempo o quê, Calandrino? Eu sou mulher de hora
cheia! Dez minutos só de beijo, mais quinze pra me
esquentar. É meia hora no mínimo pro relógio
despertar.
Ele insiste, ela vai amolecendo.
CALANDRINO
Aproveita que eu sou moço e a gente apressa o
ponteiro.
Ele passa o dedo indicador pelo decote dela.
CALANDRINO
O dos segundos é fino e caminha bem ligeiro...
Ele passa o dedo médio pelos lábios dela.
CALANDRINO
O dos minutos, comprido, e faz a volta primeiro...
Ele dá um güenta, prensa o corpo dela contra o tronco da árvore.
CALANDRINO
O das horas é bem grosso, é pequeno mas certeiro.
Ela acaba cedendo.
CENA 26 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE
Tofano abraça Monna, transam.
TOFANO
Que a beleza maior fique no escuro, configura
crime contra a natureza, pois o belo, visto, e
lembrado no futuro, provoca no homem o amor mais
(p)duro, revisitado, gera mais beleza.
MONNA
Engano seu. O amor nasce das sombras. Do que se
imagina entre o escuro e a luz. Se queres o meu
corpo e aos meus pés tu tombas, é só porque não
podes ver quem te seduz.
CENA 27 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE
Isabel e Filipinho transam.
ISABEL
Ardor em firme coração nascido...
FILIPINHO
Pranto por belos olhos derramado...
ISABEL
Incêndio em mares de água disfarçado...
FILIPINHO
Rio de neve em fogo convertido...
CENA 28 – FRENTE DA CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE
Calandrino e Tessa transam.
CALANDRINO
Quando te vejo, Tessa, a minha vergonha cessa, o
sangue na veia apressa, meu corpo todo se entesa,
e mal a coisa começa...
Masetto chega, eles interrompem a transa, sem jeito.
TESSA
Seu Padre...
CALANDRINO
Aqui? Mas já? Ora essa... Sete e um quarto... Não
chegou antes da hora?
MASETTO
Depende. Se lá no quarto houve o mesmo que aqui
fora...
TESSA
Acho que não... São casados... Por lá a coisa
demora.
MASETTO
Ou não acontece nada. A luz continua apagada.
CALANDRINO
No escuro, não há o que ver. Entramos quando
acender.
CENA 29 - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE
Beijam-se. Tofano está em êxtase.
TOFANO
Te amo... Te quero... És tudo... Por favor, quero
te ver...
MONNA
Desejarás ter ficado mudo, no momento exato em que
me conhecer.
TOFANO
Socorro!
MONNA
Vai...
TOFANO
Aaaaiii... Aaaiii...
Monna acende a luz. Calandrino, Tessa e Masseto entram. Tofano vê
que a mulher em sua cama é Monna. Não entende nada.
TOFANO
Você? Como? Mas de que jeito?
MONNA
Eu mesma, Monna, prazer. Sua esposa de direito,
agora também de fato.
TOFANO
Como foi que entrou no quarto?
Isabel e Filipinho chegam, param na porta.
MONNA
Pela porta, e por que não? (aponta) Meu marido,
minha casa, minha cama, meu colchão... Quem
esperava chegar?
TOFANO
Esperava... Esperava... (para Monna) Esperava não
lhe amar. Esperava morrer triste, sem nunca o amor
achar. Da vida esperava pouco, queria nem
esperar... Tudo mudou no momento em que eu
descobri lhe amar.
MONNA
Mesmo? (sorri amarelo) Que coisa boa... Parece uma
outra pessoa...
TOFANO
Sou mesmo! Outro, por completo! A morte não foi em
vão: a vontade de meu pai finalmente vem à tona.
(animado) Casei com a senhora Monna, lhe dei um
chão e um teto. Agora: filhos e netos!
Monna olha para Masetto, para Tessa, surpresa.
MONNA
Que bom... Vindo de um marido... Isso hoje em dia
é tão raro...
Tofano a segura pelos ombros, decidido.
TOFANO
Seu amor me dá sentido, só agora vejo claro.
FILIPINHO
Paixão não é planta de roça, só cresce no natural.
ISABEL
Tantas voltas para encontrar o que tinha no
quintal.
MASETTO
(abençoando) Que a paz, a concórdia e a alegria,
brotem nos três casamentos.
Masetto abençoa os casais Monna e Tofano, Isabel e Filipinho,
Calandrino e Tessa. Monna bate três vezes na madeira da cama.
CALANDRINO
São bons ventos...
MONNA
Quem diria...
Tessa vai empurrando Filipinho, Isabel e Masetto para fora do
quarto.
TESSA
Diria que o amor é arte de ficar quando se parte e
ver inteiro o que é parte. Que primeiro não é
quinto, que parte do ovo é pinto e o pinto é parte
do galo. Falo somente o que sinto, se falo é o
mesmo que pinto e, se eu não sinto, me calo.
Calandrino pega a garrafa de vinho, quase vazia, sobre a cômoda,
arrasta Tessa para fora, vão todos saindo da casa. Monna faz
menção de sair também mas Tofano a segura, a envolve pela
cintura. Massetto vai saindo.
CALANDRINO
Do vinho restou um quinto, para nós sobrou um
quarto, depois de rezar um terço, vai cada um pro
seu berço, que nessa noite eu me farto! Eu muito
falo e não minto, só digo o que é verdadeiro: a
metade do que sinto já faz um amor inteiro.
Masetto se afasta da casa e, do jardim, vê Monna na janela.
Tofano fecha a janela. Filipinho e Isabel partem, abraçados,
apaixonados. Calandrino e Tessa correm para o seu quarto.
MASETTO
Metade de zero é nada. Espero a mulher amada, que
já de mim nada espera. Se o amor é uma quimera,
melhor é ganhar a estrada, que o dobro de zero é
nada e nada é o dobro de zero. Já não tendo o que
mais quero, vale tratar de viver de forma mais
reduzida: comer, amar e morrer, é bom resumo da
vida.
Masetto se afasta pela estrada, sozinho.
FIM
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(c) TV Globo e Casa de Cinema de Porto Alegre, 2009
http://www.casacinepoa.com.br
02/01/2009
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