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DIA DE VISITA
episódio da série
BRAVA GENTE
roteiro de Jorge Furtado
e Giba Assis Brasil
4º tratamento - 29/05/2001
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
para TV Globo
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CENA 1 - EXT/NOITE - ESTRADA
Uma estrada de terra pouco iluminada, à noite. Em volta, árvores,
zona rural. Ao longe vem vindo um carro, que se aproxima e passa
em alta velocidade.
CENA 2 - INT/NOITE - CARRO
Dentro do carro estão FREDERICO, o motorista, 25 anos, nervoso,
olhos atentos na estrada; ao seu lado, ISIDORO, 35 anos, revólver
na mão, olhando o tempo todo para trás; no banco de trás, PAULO,
17 anos, examinando algo dentro de uma sacola de couro.
FREDERICO
(sorrindo) Enganamos eles de novo.
ISIDORO
Muita sorte. Aquela patrulhinha não veio
atrás de nós.
PAULO
Isidoro, tem muita grana aqui.
FREDERICO
(para trás) Não mexe nesse dinheiro, garoto.
ISIDORO
Deixa ele.
O carro faz uma curva arriscada e entra numa estrada lateral.
ISIDORO
Por que você entrou aqui?
PAULO
Acho que tem mais de quinhentos mil.
FREDERICO
Fica na tua, Mané. Eu que sabia da boate, eu
que sei pra onde a gente vai.
ISIDORO
(mostrando a arma) Ninguém é Mané aqui, meu.
O Paulo quer saber, e eu também. Que boate é
essa que tem quinhentos mil no caixa?
FREDERICO
(sorrindo) Carnaval... (tom) Isidoro.
CENA 3 - EXT/NOITE - LOCAL DA EMBOSCADA
O carro pára numa clareira bastante iluminada. Frederico e
Isidoro descem, armas na mão. Isidoro olha em volta, Frederico
sai andando.
ISIDORO
Não tou gostando disso, Fred. Isso não é
mocó. Quem tá armando?
FREDERICO
Calma. É o combinado. Eu que sei.
Paulo também desce, com a sacola. Os dois vão atrás de Frederico.
ISIDORO
Sabe nada! Por que não falou que a boate era
ponto de droga?
FREDERICO
Quem falou em droga?
ISIDORO
Ninguém falou. Aqui é tudo Mané. E eles
venderam quinhentos mil de confete. Grande
noite!
FREDERICO
Cala a boca e ajuda o garoto com a sacola.
Tem um mocó ali adiante.
Isidoro, ainda contrariado, vira-se para Paulo, que ainda está ao
lado do carro. Neste momento, um tiro, vindo não se sabe de onde,
atinge Paulo no peito.
ISIDORO
Que é isso?
Isidoro vira-se e vê, em cima de uma espécie de torre, alguém com
um rifle, atirando neles. Vira-se para Frederico, que agora está
com a arma apontada para ele.
ISIDORO
Desgraçado!
Isidoro não chega a atirar em Frederico, mas este é atingido
pelas costas e cai. Isidoro volta a olhar para a torre. Em
seguida, joga-se no chão, num salto acrobático, fugindo da mira
do atirador.
Isidoro atira em direção à torre. Olha para Frederico, no chão,
agonizante, com cara de quem não está entendendo nada.
ISIDORO
Você que sabe, né?
PAULO (OFF)
(com dificuldade) Isidoro...
Isidoro corre para Paulo, que está ajoelhado ao lado do carro,
segura-o.
ISIDORO
Paulo. Tá bem?
Um segundo tiro atinge Paulo no ombro. Isidoro responde fogo e
empurra Paulo para dentro do carro. Fecha a porta e corre para o
outro lado. Um tiro atinge o vidro da frente do carro.
Paulo consegue contornar o carro e entrar pela outra porta.
Começa a manobrar, apressado, enquanto fala com Paulo.
ISIDORO
Paulo, tá inteiro?
PAULO
Quase...
Isidoro volta a olhar para a torre e percebe que o atirador
desceu, e se aproxima correndo, rifle na mão.
ISIDORO
Nós vamos escapar dessa, Paulinho. Vamos
enganar eles de novo.
O carro já está terminando a manobra. Isidoro olha para o espelho
retrovisor lateral, exatamente quando este é estraçalhado por um
tiro.
Na clareira, o carro foge em velocidade, enquanto o atirador
continua, com o rifle na mão, a atirar em sua direção.
FADE OUT
FADE IN
CENA 4 - INT/NOITE - APARTAMENTO: SALA, COZINHA, QUARTO
Sala de um apartamento. Um sofá, mesa de centro, duas poltronas,
um aparelho de televisão, um armário com copos e pratos, uma
mesa, quatro cadeiras. Uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes na
parede. Ao fundo, uma janela com grades, cortina de voile aberta.
Na rua, a copa de uma árvore, a luz acesa de um poste e os
prédios do outro lado da rua. Na direita, a porta que dá para a
rua. Ao lado da porta da cozinha, a porta que dá para o interior
do apartamento.
DELOURDES, saia e casaco, entra da rua carregando a bolsa, um
saco de supermercado e um abajur enrolado em papel. Ela acende a
luz junto à porta, fecha a porta. Larga a bolsa e o embrulho do
abajur na mesa e, enquanto tira do saco uma garrafa de leite,
caminha até a cozinha.
Delourdes acende a luz da cozinha, abre a geladeira, guarda o
leite, apaga a luz da cozinha e volta para a sala com uma lâmpada
e uma caixa de sabonete. Liga a televisão, larga o sabonete junto
à televisão, tira o som da TV.
Na TV, está passando o Fantástico, sem som.
Delourdes larga a lâmpada sobre a mesa e abre o embrulho do
abajur, de latão antigo, com uma bola de vidro fosco. Ela retira
cuidadosamente a bola de vidro do abajur e coloca a lâmpada.
Na televisão, notícia sobre fuga do presídio: apresentador
falando sem som, a palavra FUGA em destaque, imagens do presídio,
um policial mostrando por onde o prisioneiro fugiu.
Delourdes põe a lâmpada no abajur e, com o cotovelo, derruba a
bola de vidro da mesa. A bola rola pelo chão e se revela de
plástico.
Delourdes pega a bola no chão e põe no abajur. Procura pela sala
o melhor lugar para colocar o abajur. Experimenta ao lado da TV.
Não gosta. Experimenta numa mesinha ao lado do sofá, perto da
janela. Gosta.
Delourdes tira da mesinha uma revista, coloca ao lado da TV. Liga
o abajur na tomada, acende e fica apreciando o resultado da luz
na sala. Apaga a luz junto à porta da rua. Parada, ao lado da
porta, Delourdes observa a sala.
Na televisão surge a foto de um homem. (ISIDORO). Delourdes corre
para a televisão, aumenta o som.
LOCUTOR
... duzentos mil reais de uma boate em
noventa e oito. A polícia federal está
realizando buscas em todo o estado. (tom)
Virada de mesa no campeonato brasileiro...
Delourdes, perturbada com o que acabou de assistir, desliga a
televisão. Corre até a porta, acende a luz e passa a correntinha
na porta.
Vai até a porta do quarto, abre a porta e acende a luz do quarto,
sem entrar. Olha para dentro do quarto.
O telefone toca.
Delourdes caminha para o telefone, deixa tocar duas vezes. Atende
mas não diz nada. Respira aliviada. Caminha até a janela com o
telefone. Olha para fora, para os dois lados da rua, para baixo,
tanto quanto lhe permite a grade.
DELOURDES
Oi, é você. (...) É, eu vi na tevê. (...) Vi
só o final, mas achei que era isso. Fugiu
quando? (...) Não, ele vai tentar sair do
país. Eu acho. (...) Cheguei há pouco, tava
trabalhando. (...) Tranquei. Tranquei. (...)
Tá bom, mas não vem muito tarde, tenho que
acordar cedo amanhã. (...) Não vou sair, sair
para onde? (...) Tá bom. (...) Eu também.
(...) Beijo.
Delourdes desliga o telefone. Olha outra vez pela janela. Fecha a
cortina. Vai até a porta outra vez, confere a chave e a
correntinha. Apaga a luz junto à porta. Vem até a porta do
quarto, acende a luz do quarto. Vai até o abajur e dá uma última
olhada na sala antes de apagá-lo.
Do lado de fora da janela, agarrado às grades, revelado pela
súbita transparência da cortina, em silhueta, está ISIDORO.
Delourdes, agora de costas para a janela, não o vê.
Ela começa a tirar a roupa enquanto caminha na direção do quarto.
Ela entra no quarto e encosta a porta. Som de rádio vindo do
quarto, uma música romântica.
Isidoro, pendurado na grade, tenta abrir a janela com um pedaço
de lata. Consegue. Corre lentamente o vidro da janela, abrindo
uma fresta.
Isidoro puxa uma corda de nylon vermelha amarrada em sua cintura
e, na ponta da corda, surge a ponta de um galho. Desamarra o
galho. Com cuidado, Isidoro mete o galho pela janela, na direção
da correntinha da porta.
Isidoro leva algum tempo para conseguir tocar na correntinha.
Depois de algumas tentativas, consegue empurrar a correntinha,
que se solta, fazendo algum barulho. O som do rádio desaparece. A
corrente fica balançando. Isidoro fica imóvel, segurando o galho
pela janela da sala.
A música do rádio recomeça. Isidoro recolhe lentamente o galho.
Amarra outra vez o galho na corda. Fecha cuidadosamente o vidro.
Delourdes, agora de camisola, entra na sala, acendendo a luz.
(Iluminada por dentro, a cortina perde a transparência e Isidoro
desaparece).
Delourdes procura algo pela sala. Chega junto à porta, bem perto
da correntinha. Vê o que procura do outro lado da sala. Atravessa
a sala, pega a caixa de sabonete. Vai até a janela e abre a
cortina.
Na rua, a copa de uma árvore, a luz acesa de um poste e os
prédios do outro lado da rua. Delourdes olha para a rua, para os
dois lados. Fecha a cortina e volta para o quarto.
Delourdes passa pelo quarto, onde há uma cama de casal com dois
travesseiros do mesmo lado, e entra no banheiro. Abre a caixa de
sabonete. Pára. Volta para a sala.
Delourdes fica paralisada olhando para a correntinha da porta,
agora aberta.
Delourdes atravessa a sala lentamente, aproximando-se da porta.
Delourdes corre e fecha a correntinha. Olha para a sala.
Vai até a janela, olha para a rua, vê se a janela está bem
fechada. Apaga a luz junto à porta, atravessa a sala e entra no
quarto.
Isidoro está sentado na cama. Tem uma arma na mão. Delourdes fica
parada, olhando-o, sem reação.
ISIDORO
Por que a surpresa? Hoje não é dia de visita?
Isidoro recosta-se, põe os pés sobre a cama.
DELOURDES
Tira os pés da minha colcha.
Isidoro sorri e tira os pés da colcha. Levanta, aproxima-se de
Delourdes apontando a arma.
DELOURDES
Tu é muito otário de aparecer aqui.
ISIDORO
Por quê? Tá esperando alguém?
DELOURDES
Estou. E ele é da polícia.
ISIDORO
Velho ou moço?
DELOURDES
Mais moço que você. E mais bonito.
Isidoro ri, abaixa a arma, abraça Delourdes
ISIDORO
Você não sabe mentir, Delourdes.
Beijam-se. Delourdes empurra Isidoro.
ISIDORO
Por que você não foi me visitar?
DELOURDES
Eu trabalhei hoje, Isidoro.
ISIDORO
E na semana passada? E na outra?
DELOURDES
A loja tá abrindo domingo. Eles pagam hora
extra. Eu preciso arrumar a minha vida.
ISIDORO
Duas semanas. Três, contando hoje.
DELOURDES
Cansei de ir lá pra brigar.
ISIDORO
Você tá com alguém.
DELOURDES
Estou. Já te disse. E ele é da polícia. Tá
chegando daqui a pouco.
ISIDORO
É mentira. Olha no meu olho e diz que não
quer mais saber de mim. Diz e eu vou embora e
nunca mais te procuro.
Delourdes dá as costas para Isidoro.
DELOURDES
Vai embora. Não quero tiro aqui em casa.
Isidoro sorri, larga a arma sobre a mesa de cabeceira. Levanta os
braços, como se estivesse ameaçado por uma arma.
ISIDORO
Tou desarmado.
Delourdes, já próxima à parede, volta a olhar para Isidoro,
séria. Ele se aproxima dela, mãos levantadas, mas também sério.
Ela fecha os olhos e fala baixo, quase sussurrando.
DELOURDES
Vai embora, Isidoro.
Ele continua se aproximando. O rosto dele já está quase colado ao
dela. Ela continua de olhos fechados. Lentamente, ele baixa os
braços e, com a mão, toca de leve no rosto dela.
Ela reage soqueando as costas dele, depois abraçando-o, em
seguida soqueando-o de novo, agarrando com força o tecido da
camisa dele.
Os dois estão de pé, ela encostada na parede e abraçada nele, ele
inclinado sobre ela, num beijo apaixonado, com tesão e urgência.
Ela volta a soquear as costas dele, sem parar de beijá-lo, e
enlaça as pernas em torno da cintura dele.
Então, sem interromper o beijo, ele a conduz em direção à cama.
Atrás deles, na parede, o quadro de Nossa Senhora de Lourdes
observa.
CENA 5 - INT/NOITE - APARTAMENTO: QUARTO, BANHEIRO
A porta do armário se abre. Isidoro, agora sem camisa, olha para
dentro do armário, procurando.
ISIDORO
Onde é que tá a minha roupa?
Delourdes, recostada na cama, termina de vestir sua blusa.
DELOURDES
Tem uma calça na gaveta de baixo.
Isidoro encontra uma calça na gaveta, pega-a.
ISIDORO
Camisa não?
DELOURDES
Não. Pega uma camiseta minha. E te manda
logo.
Isidoro escolhe camisetas, deixa duas sobre a cama. Delourdes
pega a arma na mesinha de cabeceira.
DELOURDES
Você não ia esperar o natal? Não falou que
podia sair este ano, se tivesse bom
comportamento?
ISIDORO
Eu não sou comportado. E eu precisava te ver.
Delourdes olha para Isidoro, que está olhando para ela, com
sinceridade. Mas ela em seguida desvia o olhar.
DELOURDES
Como você conseguiu fugir?
ISIDORO
Lá dentro se consegue tudo.
DELOURDES
Se tiver dinheiro.
Isidoro sorri. Sai, com a camiseta na mão, em direção ao
banheiro.
DELOURDES
E esta arma?
Ele entra no banheiro, liga o chuveiro.
ISIDORO
Foi um presente. Vou deixar com você. Agora
eu tenho outra.
Ela larga a arma na cama.
DELOURDES
Não quero arma na minha casa. Nunca mais.
Isidoro pega a arma, põe em cima do armário.
ISIDORO
Eu deixo em cima do armário. Você pode
precisar.
Ele entra no chuveiro. Ela fica parada na porta do banheiro.
DELOURDES
Onde é que você vai?
ISIDORO
Buscar o dinheiro.
DELOURDES
Você sabe onde está o Paulo?
ISIDORO
Sei.
DELOURDES
Onde?
ISIDORO
Para que você quer saber?
DELOURDES
Para que eu quero saber? O Paulo é meu irmão.
É uma criança.
ISIDORO
Não é mais.
DELOURDES
Ele nunca tinha feito assalto, nada.
ISIDORO
Sempre tem uma primeira vez.
DELOURDES
Há três anos eu não vejo ele. Quero saber se
ele está bem. Você falou com ele?
ISIDORO
Não. O dinheiro não tá com ele. Tá comigo.
DELOURDES
Como assim?
Isidoro desliga o chuveiro, pega uma toalha, começa a se secar.
ISIDORO
Tá comigo. Eu escondi.
DELOURDES
O dinheiro tá com você? O dinheiro do
assalto?
ISIDORO
Tá.
DELOURDES
Onde?
ISIDORO
Para que você quer saber?
DELOURDES
Isidoro, você passou três anos dizendo que o
Paulo tinha fugido com o dinheiro e agora diz
que o dinheiro tá com você. Onde? Cadê o
Paulo?
Isidoro termina de se secar, vai indo em direção ao quarto.
Delourdes vai atrás.
ISIDORO
Você não vai comigo?
DELOURDES
Para onde?
ISIDORO
Qualquer lugar. Com oitocentos mil você pode
escolher. Você não sempre quis conhecer a
Bahia?
DELOURDES
Oitocentos mil? Você nunca me falou que era
tanto.
Isidoro, já no quarto, começa a se vestir. Escolhe uma camiseta,
deixa outra sobre a cama.
ISIDORO
É. Não falei.
DELOURDES
E o Paulo? Já pegou a parte dele?
ISIDORO
Não.
DELOURDES
Não quero viver fugindo.
Isidoro sai em direção à cozinha, Delourdes sempre atrás.
ISIDORO
Ninguém vai nos procurar lá. A gente some.
Compra uma casa numa praia, uma cidade
pequena. Eu posso trabalhar, abrir um
negócio. Uma churrascaria.
DELOURDES
E o Paulo?
ISIDORO
Esquece o Paulo.
Isidoro chega na cozinha, abre a geladeira. Delourdes, atrás
dele, insiste.
DELOURDES
Como assim?
ISIDORO
Esquece.
DELOURDES
O que aconteceu, Isidoro? Por que você tá
falando isso agora?
Isidoro pega uma panela na geladeira, abre a tampa, examina.
ISIDORO
Tem outras coisas que eu nunca te contei.
DELOURDES
Do assalto?
Isidoro prova o feijão da panela com uma colher.
DELOURDES
O que você não me contou, Isidoro?
ISIDORO
Do assalto. Da fuga.
DELOURDES
O que aconteceu?
Isidoro volta para a sala, com a panela na mão. Delourdes o
segue.
ISIDORO
Era uma cilada, o cara que planejou o assalto
armou uma cilada.
DELOURDES
Que cara? O segurança da boate?
ISIDORO
Não, o Frederico morreu na fuga. O chefe
dele. O cara que planejou o assalto. Nos
recebeu à bala. Acertou o Paulo. Mas a gente
fugiu. Com o dinheiro.
DELOURDES
Fugiu? E o Paulo?
ISIDORO
A gente se escondeu.
DELOURDES
Onde?
ISIDORO
Lembra onde o teu pai trabalhou um tempo,
perto de Viamão?
DELOURDES
Lembro.
ISIDORO
O lugar tá abandonado há anos. Ficamos lá
dois dias e os otários não nos acharam.
DELOURDES
Terminaram achando.
ISIDORO
Me acharam quando eu quis. Em outro lugar. E
sem o dinheiro.
DELOURDES
E o Paulo?
Toca a campainha. Isidoro rapidamente larga a panela de feijão
sobre a mesa e vai para o quarto pegar sua arma. Delourdes o
segue. Falam baixo.
ISIDORO
Quem é?
DELOURDES
É o João. Da polícia.
ISIDORO
Diz para ele entrar.
DELOURDES
Tá louco? Você tem que fugir.
ISIDORO
Diz para ele entrar. Eu mato esse cara. Mato
vocês dois.
Ela liga o chuveiro e começa a tirar a roupa. Solta o cabelo.
DELOURDES
Sai daqui. Pela porta da cozinha. Depois você
volta.
ISIDORO
Diz para ele entrar.
DELOURDES
Ele anda armado.
ISIDORO
Eu também.
DELOURDES
Você vai matar um policial e ser preso de
novo? Quer morrer? Mando ele embora, você
volta depois.
Delourdes pega a panela de feijão sobre a mesa e empurra Isidoro
de volta até a cozinha.
DELOURDES
Espera ele entrar e sai. Ele não vai demorar.
Não faz barulho.
Delourdes deixa a panela na cozinha, fecha a porta, corre no
quarto e busca uma toalha. Isidoro abre a porta da cozinha.
ISIDORO
Quanto tempo?
DELOURDES
Sai!
Delourdes fecha a porta da cozinha.
DELOURDES
Já vou!
Delourdes enrola-se na toalha, abre a porta.
JOÃO, 30 anos, sorridente, pacote na mão, entra. Beijam-se.
DELOURDES
Desculpe, estava entrando no banho.
JOÃO
Ele não ligou?
DELOURDES
Não.
João fecha a correntinha.
JOÃO
Acho que você tem razão. Ele não vai ser
louco de aparecer aqui. Você já jantou?
João vai na direção da cozinha.
DELOURDES
Já.
João abre a porta da cozinha. Entra. Delourdes vai atrás.
DELOURDES
Quer que eu esquente a comida?
JOÃO
Não, estou sem fome. Eu trouxe ambrosia.
Quer?
DELOURDES
Depois.
João abre a geladeira, guarda o pacote.
JOÃO
Vai tomar teu banho. Eu espero.
DELOURDES
Tá bom.
Delourdes sai. João pega um pedaço de pão sobre a mesa da
cozinha. Vai até a sala, olha pela janela, para os dois lados.
Fala alto, na direção do banheiro.
JOÃO
Como foi o dia? Valeu a pena trabalhar
domingo?
No banheiro, Delourdes, sentada no vaso, chora com o rosto
escondido na toalha. O chuveiro está ligado. Ela disfarça e
responde, alto, em direção à sala.
DELOURDES
Normal.
João entra no quarto, a porta do banheiro está fechada. João pega
uma camiseta de Delourdes sobre a cama. Com a camiseta na mão,
procura algo sobre o armário. Pega a arma, examina. Tira as
balas.
CENA 6 - EXT-INT/NOITE - OBRA / APARTAMENTO
Isidoro, atrás do tapume de uma obra, observa a janela do
apartamento. Vê João guardando a arma sobre o armário.
João acende um cigarro e fica observando a janela.
CENA 7 - INT/NOITE - APARTAMENTO: QUARTO
João larga a camiseta na cama. O som do chuveiro pára. João tira
o casaco.
A porta do banheiro se abre, Delourdes surge enrolada numa
toalha. João se aproxima dela. Abraça-a. Delourdes abaixa a
cabeça. João segura e ergue o rosto dela. Ele sorri. Ela sorri.
Beijam-se.
DELOURDES
É melhor você ir embora.
JOÃO
Por quê? Tá esperando alguém?
DELOURDES
Tenho que acordar cedo, você também.
JOÃO
Eu não quero que você fique sozinha hoje.
DELOURDES
Mas eu quero ficar sozinha.
JOÃO
Eu durmo na sala.
DELOURDES
Ele não vai aparecer aqui.
JOÃO
Não é só isso. Eu tenho que te contar uma
coisa.
DELOURDES
Que coisa?
João senta ao lado dela.
JOÃO
A gente descobriu o cara que facilitou a fuga
do Isidoro. Ele contou uma história, pode ser
mentira.
DELOURDES
Que história?
JOÃO
Sobre o Paulo. Teu irmão.
Delourdes levanta, João a segue.
DELOURDES
O que foi?
JOÃO
Calma. Pode ser mentira.
DELOURDES
Fala.
JOÃO
O Isidoro ofereceu pro cara a parte do Paulo.
Do dinheiro do assalto. Disse que era muito
mais do que saiu no jornal. Oitocentos mil.
DELOURDES
E aí?
JOÃO
Ele disse que o Paulo está morto.
DELOURDES
Quem disse?
JOÃO
O Isidoro. Disse pro cara que o teu irmão
está morto. Pode ser mentira. O Isidoro disse
pro cara que ele matou o Paulo. Matou e
enterrou. Pode ser mentira do cara, e também
pode ser mentira do Isidoro.
DELOURDES
Ele disse onde?
JOÃO
Não. Disse que matou, enterrou e escondeu o
dinheiro. Deve ser no lugar onde ele ficou
escondido antes de ser preso.
Delourdes começa a calçar os sapatos.
DELOURDES
Ele matou o Paulo.
JOÃO
Pode ser mentira.
DELOURDES
Eu sei que é verdade.
JOÃO
Calma.
DELOURDES
Eu sei onde é.
JOÃO
O quê?
DELOURDES
Eu sei onde o Isidoro ficou escondido.
JOÃO
Você disse que não sabia.
DELOURDES
Mas agora eu sei.
JOÃO
Como?
DELOURDES
O Isidoro me disse.
JOÃO
Quando?
DELOURDES
Ele esteve aqui. Hoje.
JOÃO
Aqui? E onde ele foi?
DELOURDES
Deve estar aí fora.
João pega a sua arma.
DELOURDES
Ele não vai entrar. Tá esperando você sair
pra voltar.
JOÃO
Como é que você sabe?
DELOURDES
Eu combinei com ele. Disse que ia te mandar
embora.
João pega o telefone.
DELOURDES
O que você vai fazer?
JOÃO
Ligar pra central. Mandar reforço.
DELOURDES
Não. Ele está armado. Se a polícia chega aqui
ele vai entrar atirando.
João desliga o telefone.
JOÃO
E a gente vai esperar ele entrar?
DELOURDES
Não. Você sai. Pega o carro e me espera no
posto ali da esquina.
JOÃO
Como você vai sair?
DELOURDES
Eu dou um jeito. Vai.
João pega o casaco, confere sua arma.
João, arma na mão, abre a porta do apartamento. Espia o corredor.
CENA 8 - INT/NOITE - CORREDOR DO PRÉDIO
João desce as escadas, arma na mão. Delourdes pára na porta.
JOÃO
Se você não aparecer em dez minutos eu ligo
para a central e volto.
DELOURDES
Tá bom. Guarda a arma.
João guarda a arma, caminha pelo corredor, desce a escada.
Delourdes espera ele se afastar e fecha a porta.
CENA 9 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO
João sai do prédio de Delourdes, caminha pela calçada. Dá uma
olhada rápida para a obra em frente. Chega até um carro
estacionado, pega no bolso a chave para abri-lo.
CENA 10 - INT/NOITE - APARTAMENTO: QUARTO
Delourdes, de volta ao seu quarto, sobe em uma banqueta, pega a
arma sobre o armário. Desce da banqueta e coloca a arma na bolsa,
com cuidado.
CENA 11 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO
João, já dentro do carro, liga-o. O carro parte e se afasta. Por
trás do tapume da obra em frente, surge Isidoro, atento,
silencioso.
CENA 12 - INT/NOITE - CORREDOR DO EDIFÍCIO
Isidoro, arma na mão, sobe as escadas do edifício. Pára em frente
à porta do apartamento. Escuta. Pega a chave e abre a porta.
Entra e fecha a porta. A luz do corredor se apaga.
Delourdes está na escada, sentada, arma e sapatos na mão.
Levanta-se e sai caminhando lentamente até a escada. Ao chegar à
escada, acelera o passo, desce correndo.
CENA 13 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO
Delourdes, já na calçada, pára. Rapidamente, calça os sapatos.
Então corre, na mesma direção por onde saiu o carro de João.
CENA 14 - INT/NOITE - APARTAMENTO
Isidoro, ainda com a arma na mão, entra no quarto, devagar,
desconfiado. Abre a porta do banheiro. Vazio. Isidoro guarda a
arma. Pára. Vai até o quarto.
No quarto, passa a mão sobre o armário, no canto onde havia
deixado a arma para Delourdes. Não encontra nada.
CENA 15 - EXT/NOITE - CARRO
Delourdes entra no carro de João. Bate a porta.
DELOURDES
Vamos embora!
JOÃO
Ele te viu?
DELOURDES
Não. Vai!
João parte com o carro. Sem parar de dirigir, pega o rádio.
JOÃO
Alô, central. Três-zero-oito chamando.
RÁDIO (OFF)
Pode falar, Três-zero-oito.
JOÃO
Tem um cento e cinqüenta aqui. O elemento
está armado, parece perigoso. Vou passar o
endereço.
CENA 16 - INT/NOITE - APARTAMENTO
Isidoro revira o quarto: arreda a cama, levanta o colchão, vira a
mesinha de cabeceira, procura algo.
CENA 17 - EXT/NOITE - CARRO
João dirige, Delourdes ao seu lado.
DELOURDES
Ele matou o Paulo.
JOÃO
Pode ser mentira.
DELOURDES
Eu quero ver o meu irmão.
JOÃO
Amanhã a gente vai lá, dá uma busca.
DELOURDES
Eu quero ver agora. Tenho que ter certeza. Se
você não me levar, eu vou sozinha.
João dirige, olha para ela.
JOÃO
Onde é?
CENA 18 - INT/NOITE - APARTAMENTO
Isidoro pára, vai até o telefone da sala. Examina o telefone. Não
encontra nada. Olha para a santa. Isidoro examina a santa.
Encontra algo escondido entre as flores de plástico: um pequeno
microfone. Isidoro examina o microfone. Sai correndo.
CENA 19 - INT/NOITE - OLARIA ABANDONADA
Delourdes e João entram numa olaria abandonada. João tem uma
lanterna e está de arma na mão.
João ilumina as paredes, encontra um interruptor de luz. Acende.
Uma única lâmpada amarelada ilumina parcialmente o lugar. João
faz uma busca por câmaras vazias.
Delourdes examina o chão.
João entra numa das câmaras e, com a lanterna, ilumina o chão.
Ali dentro há um fogão de pedra, latas vazias, tocos de vela,
resto de duas camas improvisadas. A um canto, a lanterna de João
ilumina algumas tábuas que obstruem um nicho na parede.
João vai até o canto, afasta as tábuas. Ao contrário dos outros
já vistos, este nicho está fechado por tijolos, colocados a mão,
sem argamassa.
João e Delourdes se olham. João entrega a lanterna para
Delourdes. Ela segura a lanterna e ilumina o nicho. João vai até
ali e começa a retirar os tijolos, um por um.
CENA 20 - EXT/NOITE - RUAS
Na rua, Isidoro olha em volta, chega próximo a um carro
estacionado, encosta-se nele. Sirene de polícia ao longe. Isidoro
rapidamente força a janela do carro, abre a porta.
CENA 21 - INT/NOITE - OLARIA ABANDONADA
Delourdes ilumina o interior do nicho, agora desobstruído. Lá
dentro há um volume que não conseguimos identificar, envolto em
pano e semicoberto por terra.
João olha para Delourdes, abraça-a. Ela se desvencilha dele,
ajoelha-se em frente ao buraco. Vira o rosto.
João pega um pedaço de pau no chão, aproxima-se, inclina-se sobre
o nicho. Mexe no volume lá dentro com seu pedaço de pau, observa.
João pega alguma coisa no buraco.
Na mão de João, sujo de terra, um escapulário com a imagem de
Nossa Senhora de Lourdes. João olha para Delourdes.
JOÃO
Era do Paulo?
Delourdes faz que sim com a cabeça. Seu rosto se contrai, num
choro sem lágrimas. João a abraça.
ISIDORO (OFF)
Você tá dormindo com este cara?
João afasta-se rapidamente de Delourdes. Isidoro está de pé,
parado, a poucos metros de distância, apontando uma arma para
eles. A expressão de Delourdes é de ódio.
DELOURDES
Eu vou te matar, Isidoro. Você matou o Paulo.
Eu vou te matar.
ISIDORO
É com esse cara que você tá dormindo?
DELOURDES
É. E ele é muito melhor do que você.
ISIDORO
Mentira. Você não sabe mentir. Nunca soube.
(para João) Cadê sua arma?
João olha para o seu casaco, no chão entre os dois, onde se pode
ver a arma. Isidoro se aproxima e pega a arma de João.
JOÃO
Imagino que o dinheiro esteja ali dentro
também.
ISIDORO
Tá curioso?
Isidoro, com a arma, faz um sinal para João em direção ao nicho.
ISIDORO
Pega.
João se vira e volta a se inclinar sobre o nicho. Delourdes olha
para Isidoro, sem dizer nada. Isidoro, sempre apontando a arma
para João, olha para ela.
João retira do nicho a grande sacola de couro. Isidoro sorri.
Delourdes olha para a sacola e de novo para Isidoro. João
deposita a sacola no chão, em frente a Isidoro.
JOÃO
Você já tem o dinheiro. Não precisa matar
mais ninguém.
Isidoro se aproxima de João, sempre apontando-lhe a arma.
ISIDORO
Eu não matei ninguém. Eu nunca matei ninguém.
Mas pra tudo tem uma primeira vez.
JOÃO
Vai me matar? Tem que ser rápido, porque a
patrulha vai chegar aqui em cinco minutos.
ISIDORO
(sorrindo) Chega, nada! Você não chamou
patrulha nenhuma, pra poder ficar com o
dinheiro.
DELOURDES
Você acha que todo mundo é que nem você?
Mentiroso, assassino.
Isidoro mexe com a mão esquerda no seu bolso, tira de dentro
deste o pequeno microfone.
ISIDORO
Quer saber o que o teu namoradinho deixou na
tua casa? Encontrei esse microfone na sala.
Ele ouvia tudo que a gente conversava, sabia
da arma em cima do armário.
Delourdes, desconfiada, olha para João.
JOÃO
Mentira, eu não sei de onde ele tirou isso.
Ele passou três anos dizendo que o teu irmão
tinha fugido com o dinheiro.
DELOURDES
Por que você nunca me contou, Isidoro?
ISIDORO
Eu não podia.
JOÃO
Claro que não. A polícia tinha que acreditar
que o Paulo tava vivo. Assim ele podia
cumprir a pena e depois pegar o dinheiro e se
mandar.
ISIDORO
Foda-se o dinheiro! (para Delourdes) Eu achei
que assim você ia esperar por mim.
DELOURDES
Ele era meu irmão.
JOÃO
Ele matou o teu irmão, Delourdes. Pelo
dinheiro.
ISIDORO
Foda-se o dinheiro! Eu só tinha mais seis
meses de pena e você me largou. Me trocou por
esse cara.
Delourdes tira o revólver de dentro da bolsa e aponta para
Isidoro, agora em posição defensiva. A expressão de Delourdes é
de dúvida, de quem não sabe em que acreditar.
DELOURDES
Você matou o Paulo, Isidoro?
ISIDORO
Não!
Rápido flash-back da cena 3: Paulo recebe o primeiro tiro e cai.
ISIDORO
Eu te falei: foi uma emboscada. A gente ia
dividir o dinheiro em quatro, mas o cara nos
recebeu a bala.
JOÃO
É mentira. Foram três que assaltaram a boate.
Ele matou os dois pra ficar com todo o
dinheiro.
Delourdes continua apontando a arma para Isidoro, com as duas
mãos. Isidoro está com a sua arma abaixada.
DELOURDES
Larga essa arma.
ISIDORO
Você não tem coragem de atirar. Não em mim.
DELOURDES
Você matou o meu irmão. Larga essa arma!
ISIDORO
Não fui eu!
Rápido flash-back da cena 3: Frederico recebe um tiro e cai.
Isidoro atira e segura Paulo.
ISIDORO
Eu tentei salvar o Paulo. Carreguei ele pra
dentro do carro e consegui fugir.
JOÃO
Não foi essa história que ele contou na
prisão. Não foi essa história que ele contou
pra você.
DELOURDES
Por que o Paulo morreu? Por que você não me
contou isso antes?
Rápido flash-back da cena 3: Isidoro manobrando o carro para
fugir, em meio a uma saraivada de tiros.
ISIDORO
Fiquei com o Paulo dois dias aqui. Ele não
podia caminhar, tava perdendo muito sangue.
JOÃO
A prova é o dinheiro, Delourdes. Só ele sabia
onde estava o dinheiro este tempo todo.
Isidoro olha para a sacola de dinheiro à sua frente, empurra-a
com o pé, na direção de João.
ISIDORO
Foda-se o dinheiro! Quem tá interessado no
dinheiro é ele. Deixa o dinheiro com ele e
vamos embora, nós dois.
Delourdes abaixa a arma, vencida. Isidoro e Delourdes se olham,
ofegantes, apaixonados.
João leva a mão às costas e pega o revólver que tem escondido na
parte de trás da cintura. Rapidamente, aponta para Isidoro e
atira. Isidoro é atingido.
ISIDORO
Era ele.
Rápido flash-back da cena 3: Isidoro, na fuga, olha pelo espelho
retrovisor. Quem ele vê apontando o rifle é João. O espelho
explode com um tiro.
Delourdes aponta a sua arma para João e dispara: som seco, sem
bala. Delourdes dispara outra vez. E outra. A arma está sem
balas.
Isidoro cai, ferido na barriga.
João se aproxima de Delourdes, que está atônita, ainda com a arma
na mão, sem entender direito o que aconteceu.
JOÃO
Calma, meu amor. Você tá nervosa. É normal.
João vai até a sacola de dinheiro, abre-a. Tira de dentro dela um
maço de notas, dá uma conferida, joga-o de novo na sacola.
JOÃO
Aqui tem quase um milhão. Dá pra fazer uma
vida. A gente pode sumir. Você não quis
sempre ir pra Bahia?
DELOURDES
Como é que você sabe?
João fica olhando para ela um segundo. Delourdes pega a faca
quebrada e crava na barriga de João.
João larga a arma e cai.
Delourdes se ajoelha ao lado de Isidoro. Ele se ergue com
dificuldade.
ISIDORO
Você tem que fugir. Esconde o dinheiro.
Isidoro arranca a faca do peito de João.
DELOURDES
Vou chamar uma ambulância.
Isidoro limpa o cabo da faca com a camisa.
ISIDORO
Não. Esconde o dinheiro. Liga para a polícia
e diz que eu estou aqui.
DELOURDES
Eu não vou te deixar sozinho.
ISIDORO
Você tem que chamar a polícia, eu vou morrer
aqui. Vai, rápido. Esconde o dinheiro.
Delourdes olha para João.
DELOURDES
E ele?
ISIDORO
Para tudo tem uma primeira vez.
Isidoro segura o cabo da faca e crava em João. Isidoro cai.
ISIDORO
Vai, rápido.
Delourdes vai saindo, carregando a sacola.
ISIDORO
Espera.
Delourdes volta. Isidoro estende a ela o escapulário de Paulo.
ISIDORO
Leva isso.
Delourdes pega o escapulário, coloca-o em Isidoro e sai. Isidoro
fica no chão, ao lado do corpo de João e do nicho onde está o
corpo de Paulo.
CENA 22 - INT/DIA - CELA
Delourdes, de pé atrás das grades de uma cela, abotoa a camisa.
Pega uma escova na bolsa e penteia os cabelos. De repente, ela
parece se lembrar de algo.
DELOURDES
Comprei uma coisa pra você.
Isidoro, recostado na cama da cela, sem camisa, com o escapulário
de Paulo no peito e um curativo na barriga, sorri.
ISIDORO
Não tá gastando da nossa poupança?
DELOURDES
Claro que não.
Delourdes abre a bolsa e tira de dentro dela uma caixinha.
Entrega para Isidoro, que está terminando de acender um cigarro.
Isidoro senta na cama, pega a caixinha, abre, divertido.
Dentro da caixinha tem um daqueles motos-perpétuos de brinquedo.
Isidoro olha para aquilo por um instante sem entender. Olha para
Delourdes.
Ela, divertida, pega o objeto e coloca em movimento as bolinhas,
que a partir de então não param mais de ir e vir. Isidoro fuma e
sorri para ela.
ISIDORO
O que é isso?
DELOURDES
Tem lá na loja. Quando não tem cliente eu
fico olhando. Não pára nunca.
Os dois acompanham um pouco as bolinhas indo e vindo e depois se
olham, apaixonados, serenos. Delourdes volta a olhar para o
brinquedo.
DELOURDES
Dá uma sensação de paz.
ISIDORO
É...
Uma batida tripla do lado de fora da cela. Delourdes e Isidoro
imediatamente reconhecem o sinal e preparam.
Um agente carcerário abre a cela. Delourdes dá um beijo em
Isidoro.
ISIDORO
Domingo você vem?
DELOURDES
Venho, claro.
Delourdes sai. O agente fecha a cela. Isidoro fica olhando para o
brinquedo, as bolinhas que vêm e vão.
Delourdes caminha pelas galerias do presídio.
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FIM
(c) Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, 2001
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
10/07/2001
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