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EM FRENTE DA LEI TEM UM GUARDA
roteiro de montagem
de Ana Luiza Azevedo
julho de 2000
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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Desenhos ilustram o texto como HQ.
LOCUTOR
Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda
do campo pede para entrar. O guarda diz que, de
momento, não pode lhe permitir a entrada. A mulher
pergunta se poderá entrar mais tarde. "É
possível", responde o guarda.
Rápido clip de fotos de guardas, portas imponentes com guardas na
frente, exército.
HQ continua contando a história.
LOCUTOR
A mulher inclina-se para olhar através da entrada.
"Não tente entrar sem a minha autorização", diz o
guarda. "Repare que sou muito forte, e a cada
sala, a cada porta encontrará um guarda mais
possante que o anterior." A mulher vinda do campo
não podia entender, devendo a lei, segundo ela,
ser acessível a todos em qualquer altura.
Fotos de filas, pessoas esperando sentadas na calçada, esperando
para entrar em algum lugar. HQ continua contando a história. No
final, em movimento, a porta se fecha.
LOCUTOR
O guarda dá-lhe um banco e deixa-a ficar sentada
ao lado da porta. Ali se conserva à espera durante
dias e anos. Finalmente, já quase sem enxergar,
percebe o brilho que jorra da porta da Lei. Antes
de morrer, chama o guarda com um gesto. O guarda
curva-se para ouvi-la. "Que é que deseja saber
agora", pergunta o guarda. "Todos procuram
alcançar a lei", responde a mulher; "como se
explica, portanto, que, durante todos estes anos,
ninguém, a não ser eu, tenha procurado o acesso a
ela? " O guarda lhe segreda ao ouvido: "Ninguém,
exceto você, pode entrar por esta porta, pois esta
porta foi-lhe destinada. Agora vou fechá-la."
Kafka - "O Processo"
TARCÍSIO TOLEDO DA SILVA
Se eu tivesse que procurar a justiça?
ELSON DA CRUZ
Eu não tenho nem idéia de como se faz.
TARCÍSIO TOLEDO DA SILVA
Não sei.
SILVANA
Eu tive que procurar, fui no Foro, no Foro me
mandaram em outro lugar, até achar, daí eu tive
que conseguir uma advogada pra me dar as
informações. Porque eu não sabia.
LUÍS EDUARDO FLORES
Pra pobre, a lei não existe.
SILVANA
Porque tu vai muitas vezes no mesmo lugar e eles
te falam "ah, traz isso", aí tu leva e falta mais
isso, falta mais aquilo, sempre falta alguma
coisa.
IARA
Porque a justiça realmente é muito demorada.
SILVANA
Demorou um ano pra sair a curatela, dois anos pra
me dar a resposta, daí eu vou ter que aguardar
mais dois meses pra pegar um documento, pra depois
então dar entrada de novo e esperar quanto tempo
mais eles me darem um OK?
ADILSON EUGÊNIO PINTO
A Justiça que funciona é só a justiça divina.
Câmara entrando numa vila.
Câmara se aproxima de uma mulher com chimarrão na mão.
PERGUNTA OFF
A senhora sabe onde mora a Jane?
Mulher aponta. Chicote para a direita.
Câmara se aproxima de Homem fazendo churrasco.
PERGUNTA OFF
O senhor sabe onde mora a Jane?
HOMEM
Lá no fim da rua.
Chicote.
SEU WALMOR
É a segunda quadra. Passando a avenida aqui, né,
que tem uma vila com a avenida principal que sai
no barro vermelho, né, que é asfaltada, é a
segunda quadra é a dela.
Chicote.
Gurizinho da rua da Jane.
PERGUNTA OFF
Tu nos leva na casa dela?
Gurizinho acena positivamente com a cabeça.
Tela dividida, à esquerda câmara seguindo gurizinho enquanto no
outro Ivone dá depoimento.
IVONE
Um dia ele confessou que tinha ciúme até da minha
sombra. Daí, bah, aquilo eu adorava, mas por outro
lado me sufocava. / Daí, agora por último ele
extrapolou comigo a ponto de dizer que ia me
matar, me jogou um prato no rosto, eu saí fora,
não chegou a pegar.
Câmara se aproxima de rapazes sentados.
PERGUNTA OFF
Vocês sabem onde mora a Maria Salete?
RAPAZES
Lá no final da rua onde tá aquela criança.
Chicote.
Tela dividida, à esquerda câmara seguindo gurizinho e seu Walmor,
enquanto no outro Jurema dá depoimento.
JUREMA
Então eu já sei que, eu mesmo indico. As vezes as
pessoas me perguntam: O que é que eu tenho que
fazer? " Eu digo: "Olha, vai lá na Lena, vai lá na
promotora que elas vão resolver prá ti. Lá elas
vão te ajudar".
Câmara seguindo Seu Walmor.
SEU WALMOR
Agora entramos à esquerda aqui e já logo em
seguida já é a casa da Carmem.
Gurizinho chega na frente da casa de Jane e grita.
GURIZINHO
Jane!
IONE
E eu insistia, a trouxa, né, pensando que filho ia
mudar. Não, quem sabe mais uma filha, né. Daí
resumo: eu tenho uma, que ele me conheceu eu já
tinha, e três dele. São quatro filhas no total.
Daí quando eu procurei a Salete eu coloquei tudo
pra ela, né,
Câmara chegando na casa da Salete
PERGUNTA OFF
Oi, tudo bom? A gente tá procurando a Salete?
LIZ ÂNGELA (FILHA DA SALETE)
Tu encontra ela lá no SIM ou na feira.
Ione chegando com a filha no SIM e falando com a Salete.
IONE (OFF)
"eu disse: "Olha, Salete, não dá, eu quero
separação, só que ele não sai de dentro de casa,
fica me ameaçando. " Daí a Salete: "Não Ione,
vamos providenciar. " Naquele mesmo dia, ela tava
quase encerrando aqui, ela disse, eu vim aqui no
SIM mulher, daí ela disse: "Ione, eu vou te dar um
papel, tu vai ali na delegacia, registra a
violência, daí com o registro dali, tu vai lá no
Fórum, fala com a doutora Maria da Graça e que ela
vai te atender ainda hoje. Se ela não te atender,
daí tu volta aqui. Porque ela faz atender, né. Daí
fui lá e fui muito bem atendida. Daí a doutora já
resolveu, já passou pro juiz. Não levou quatro
dias, já teve separação de corpos. Ele saiu de
dentro de casa, tudo.
Na frente da casa da Salete.
ANA
E ela não volta pra casa agora, então?
LIZ ÂNGELA (FILHA DA SALETE)
Não, provavelmente só de noite, porque elas vão
fazer uma passeata, vão passear na feira lá, eu
não sei te dizer o horário.
Câmara seguindo Seu Walmor.
SEU WALMOR
Psiu! (se dirigindo às promotoras que estão saindo
da casa da Carmem) Não precisa se enfeitar que
vocês são feia assim mesmo. Não precisa se
enfeitar. (Nós não tamo se enfeitando...) Não, tão
toda ó, ó... não precisa. (Ai, coitado...) (Pelo
menos um dia na semana a gente tem um direito de
passar um batom.) Não sei, a gente veio pegar
vocês tudo no fragrante! (risos) A Carmem já tava
preparada e se pintou toda.
CARMEM
Sim, pelo menos, né. Pena que eu não sabia que ia
ser aqui senão tinha mandado pintar a casa! (fala
enquanto dá beijinhos no Valmor)
Carmem entrando na casa.
CARMEM (OFF)
Essa é minha mansão, Alfredo.
Equipe chegando na casa da Jane Pinheiro. Jane convida para
entrar.
Na frente da Casa da Salete.
LIZ ÂNGELA (FILHA DA SALETE)
E tu é quem?
ANA (OFF)
Eu tô fazendo um trabalho sobre as promotoras
legais populares.
Promotoras sendo preparadas para dar entrevista. Making of: Alex
colocando microfone em Carmem, Alfredo preenchendo ficha do
marido da Salete, Lourdes saindo de casa e cumprimentando Ana...
CARMEM
Sou de uma família de pai, mãe, quator... nove
irmãos vivos, sou a décima quarta filha desse
casamento, tive uma boa educação com meus pais, me
casei e passei a ser esposa e logo em seguida mãe
e era isso, apenas isso.
D. ELVIRA
Eu sempre fui líder comunitária,
SALETE
Eu era faxineira, né, fazia faxina sete dias por
semana, né.
JANE
eu antes de fazer o curso eu era... era e ainda
sou, né, funcionária pública. Eu trabalhava aqui
no conselho tutelar.
Tela dividida de um lado Maria Helena, de outro ela em afazeres
domésticos.
MARIA HELENA
Eu era uma pessoa, assim, só dentro de casa, né,
pro marido, pros filhos, né, e depois eu separei,
né. Porque eu achava que eu tava muito, sendo
muito, como é que eu vou te dizer... escravizada
por ele, né, que tinha que ficar só dentro de casa
e tudo.
Câmara passando por fotos das promotoras em situações domésticas,
fotos de casamento, amamentando, festa de aniversário de criança,
primeira comunhão,...
SALETE
Aí... surgiu o convite, né. Pra que... Tinham
aberto, algumas mulheres, algumas advogadas tavam
fazendo um projeto pra formar Promotoras Legais
dentro das comunidades e que seriam mulheres que
tivessem algum trabalho com a comunidade, que
fossem lideranças, que tivessem...
IARA
Aí aonde a dona Elvira, ela tem uma creche
comunitária aqui na vila, aí ela falou sobre esse
curso, né. Que estava abrindo um curso de
Promotoras Legais Populares que era pra trabalhar
com mulheres vítimas de violência. Daí, eu digo:
"Ah, então essa é pra mim mesmo, porque eu sou
vítima de violência. "
Fotos de mulheres vítimas de violência com manchetes e notícias
de jornal, com dados sobre a violência sofrida pela mulher hoje.
SALETE
Como eu, naquela época, devido a quantidade de
filhos que eu tenho, né, que eu tenho oito filhos,
é... eu vivia muito dentro dos conselhos
escolares... E eu era muito lutadora né, nessa
questão da educação, aí fui convidada pra fazer o
curso de promotoras legais populares
Edição de fotos dos cursos da Restinga, Partenon, Norte,...
mostrando as coordenadoras e as promotoras.
LOURDES
O primeiro dia veio a Denise, a Márcia e a Lelê,
explicar como é que seria o curso, tá.
JANE
Como as gurias disseram assim que elas iam nos dar
o curso básico, né, os direitos básicos, não era
uma coisa assim de dizer que nós ia sermos
advogadas... Mas aí a gente começou a se empenhar,
se empenhar...
LOURDES
Era todos os sábados, a gente tinha, se reunia das
duas da tarde as cinco da tarde, na Escola Fátima.
Sobre uma foto de uma das aulas, imagens em vídeo que
documentaram os cursos, como juiz dando aula. Mão escrevendo num
quadro negro palavras e frases que dêem uma idéia do que é o
curso: VIOLÊNCIA,...
MARLI
Nós tínhamos oficina de auto-estima, nós tínhamos
oficina de planejamento familiar, nós tínhamos
diversas coisas, né.
MARIA FAVORINA BORGES
Olha eu fiquei sabendo de leis que eu não sabia,
eu aprendi a lidar com a minha comunidade, quando
eles vêm me procurar pra socorrer, pra dar alguma
orientação, eu aprendi a orientar elas.
JANAÍNA
A gente aprende direitos, né... tudo sobre o
código penal a gente aprende também um pouco, né.
Coisa que nem era do meu ramo de saber, eu fiquei
aprendendo.
LOURDES
... como encaminhar um Habeas Corpus, como
orientar as mulher sobre a pensão alimentícia,
caso de violência, que a gente tinha que orientar
elas, o que elas tinham que fazer.
MARLI
Uma mulher, por exemplo, que ia denunciar o
marido, algum tipo de violência, duas vezes na
semana, o próprio cara, não sei como a gente
chama, o cara da delegacia, o escrivão lá, que
dizia, ele já desrespeitava a mulher, dizia:
"olha, tu já esteve aqui e eu não vou ficar
gastando papel contigo, porque tu já vai vir de
novo, tu vive se queixando do fulano, mas tu tá
sempre lá, tu gosta mesmo, tu gosta, tu é sem-
vergonha, tu é vagabunda! "
HQ conta a mesma história com alguma diferença, guarda a atende e
manda de volta para casa.
LOCUTOR
Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda
do campo pede para entrar. O guarda diz que, de
momento, não pode lhe permitir a entrada. A mulher
pergunta se poderá entrar mais tarde. "É
possível", responde o guarda. A mulher inclina-se
para olhar através da entrada. "Não tente entrar
sem a minha autorização", diz o guarda.
LENA
E acabava ficando nisso mesmo, assim, quando a
gente descobriu que não, que a gente descobriu que
não, que eles tinham a obrigação de registrar, de
mandar pro IML, né, e tudo, e a gente começou a
apertar eles, eu acho que eles meio que se
assustaram um pouco, mas...
Tela divida em dois, enquanto Lourdes fala de como era quando
chegavam na delegacia, no outro Maria Favorina mostra o crachá.
LOURDES
Ah, a gente chegava na delegacia e tinha muita
resistência do pessoal: "Ah, que Promotoras Legais
populares. Quem são essas Promotoras Legais
Populares?
LENA
... eles começaram a descobrir que a gente
conhecia a lei e sabia, né. Porque, claro, teve
aquela coisa, "não tá no artigo tal, diz que vocês
tem que fazer", né. Mesmo que... "Ah, mas ela vai,
daqui a quinze dias ela vai voltar pro marido, tu
ainda vai te incomodar! " "Não, mas eu quero que
tu registre". Então essas coisas assim.
MARIA FAVORINA BORGES
Olha, antes a pessoa me procurava e eu digo vamos
dar parte, e eu ia numa delegacia com elas e
deixava elas lá e voltava, porque aí eu não
entendia nada, né. Porque eu ficava com medo de
falar e a polícia ainda vir contra mim, não é. E
agora não, agora eu sei que eu tenho o meu
direito, posso falar como cidadã brasileira eu
posso defender qualquer semelhante meu.
HQ continua contando a história. Mulher acompanhada pela
promotora.
LOCUTOR
Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda
do campo pede para entrar. O guarda diz que, de
momento, não pode lhe permitir a entrada. A mulher
pergunta se poderá entrar mais tarde. "É
possível", responde o guarda.
LENA
E uma coisa interessante, que a gente descobriu,
assim ó, dependendo do caso, eles nos ligam, né,
assim, todos eles tem, aqui da décima quinta, eles
tem o telefone da gente, e eles nos ligam: "Olha,
não dá pra encaminhar pra aí, não dá pra
encaminhar pro Partenon? ", que é mais perto pra
eles, né. "A gente tem uma mulher que sofreu um
caso de violência, tá precisando de assistência",
então, isso é muito bacana, assim, né.
Mutirão - Grupo de Promotoras entram em uma delegacia e se
apresentam para a delegada.
Tela dividida, de um lado Lourdes, do outro Lena e Lourdes
caminhando pela vila.
LOURDES
... Aí nós fomos pra... conversamos com a
coordenação do Themis e começamos: "Nós temos que
ter um lugar pra atender, nós precisamos atender
essas mulheres. " Aí foi, surgiu a idéia do SIM,
Serviço de Informação a Mulher.
Câmara acompanha Lena e Lourdes chegando no SIM
LENA
Esse é o SIM, só não tá mais organizado porque a
sala não é mais só nossa,
LOURDES
Aí, na época, o primeiro SIM foi a Restinga, o
Leste e o Partenon. Aí depois foram criados os
outros, outros três.
Maria Salete atende Ione no SIM e diz o que ela deve levar para o
Forum
LENA
Esse aqui é o nosso guia de atendimento.
(mostrando) Desde 96. Nós fazemos plantão todas as
segundas-feiras (?). O ano passado a gente
atendeu... (procura)... 537 mulheres foram
atendidas.
Detalhe do dedo de Lourdes procurando um caso no livro.
Imagem de atendimento no SIM.
Grupo de promotoras entram num posto de saúde, falam com o médico
e reagem quando o médico diz que "em POA não tem delegacia da
mulher".
MARLI NAVEGANTES
a promotora legal popular é aquela pessoa
qualificada pela Themis, que fez o curso e que se
recicla sempre, através de palestras, de aulas, de
seminários, que está sempre a par das novas leis,
CARMEM
O que as promotoras têm, é esse conhecimento da
constituição. É assim, ó, é saber pegar o artigo
lá da constituição, ler o artigo e entender em que
situação esse artigo está encaixado naquele
problema.
JANE do Partenon dá um exemplo mostrando um artigo da
constituição.
MARIDO SALETE
Elas tem que falar a linguagem da comunidade. Que
não adianta vir uma advogada lá do centro aqui na
Restinga, bem bonitinha, bem embecada, se não
falar a língua das mulheres daqui.
LENA
Nós já fazia um trabalho comunitário. A gente
sempre fez, eu sempre fiquei mais envolvida com os
adolescentes, a Lourdes com as mulher, a Clélia
com os idoso... e a... o que a Themis nos fez foi
nos lapidar, né. Nos ensinar mais, a como chegar
nos órgãos públicos, essas coisas assim.
IONE
e olha eu não sabia que existia um atendimento tão
bom aqui dentro da Restinga, porque vários lugares
eu procurei aqui, mas nenhum eu fui tão bem
atendida, assim tratada como um ser humano, sabe,
a pessoa dizer, "não eu to entendendo o teu
problema, eu to sentindo o teu problema".
MARIDO SALETE
Hoje não, elas tem essas promotoras legais que
conversam e se abrem e elas sabem como vão chegar
nas autoridades e levarem aqueles casos. Então a
função delas é essa. Essa é a função delas. E os
marido em casa ficam de mãe e pai.
MARLI NAVEGANTES
Então esta pessoa tem que estar pré-disposta a
doar um período do seu tempo em favor deste
trabalho
Câmara acompanha Maria Favorina entrado no Fórum.
Juiz dá uma sentença incompreensível, câmara corrige para Maria
Favorina que traduz a sentença do juiz.
CARMEM
Na verdade, o trabalho que as promotoras fazem é
uma ponte entre a mulher da comunidade e o Poder
Judiciário, né. E a única coisa que as promotoras
não tem é o curso de Direito.
MARIA GUANECI
Pergunta: E tu já falava assim, antes? Eu sempre
fui faladeira porque eu sou catequista, né, e eu
trabalho muito na liturgia das missas e tu sabe
que lá na frente lendo aquelas palavras difícil do
evangelho, com o microfone na mão, tu aprende a
falar, né.
MARLI
Hoje mesmo eu tava lá conversando com o advogado
da Justiça do Trabalho e eu comecei e ele foi lá a
perguntou assim: "Dona Marli, a senhora me
desculpa fazer uma pergunta, mas até que ano a
senhora estudou? " Aí eu disse: "Olha eu não tirei
o ginásio" na época era o ginásio "Eu não
completei o ginásio", aí ele disse: "Ah, mas a
senhora tem, a senhora fala como se a senhora
tivesse tido um grau superior, né. "
MARIA GUANECI
Agora eu tenho segurança no falar, né, agora eu
sei o que eu tô falando, né. E é interessante
porque quando a gente fez o curso e começou a se
apresentar nos lugares... quando a Themis nos
convidava pra ir nos seminários com juizes,
promotores... eu pensava assim: "Bah, mas ter que
falar no meio de juiz, promotor... " Aí montava a
mesa lá: "Doutor fulano, promotor fulano, juiz de
tal... Promotora Legal da Restinga... " Aí eu
pensei um dia assim: "Olha, tsc, eu vou falar do
meu jeito porque eles são formados, eles têm a
técnica. Eu não tenho estudo e eu tenho a
vivência, porque eu tô com o pé no barro, lá na
vila.
MARLI
Essas grandes conferencistas que vem e falam, né
eu tive o prazer de me encontrar com uma delas em
Caxias do Sul e ela começou a relatar a
estatística, só que na estatística de violência,
de estupro, darara, de não sei o que, tá lá,
esbarra num determinado ano que termina, e aí elas
lêem o livro, né, mas sô eu quem sei que foi a
minha vizinha que foi ontem a noite foi estuprada,
hoje de manhã eu tava correndo com ela pro IML,
então aquele número já não é mais o mesmo, se eu
demorar muito aqui falando contigo, os número tão
mudando a cada momento.
MARIA GUANECI
A gente fala aquilo que a gente vive, né, a nossa
realidade. Então, fica mais fácil. Aí eu não tenho
medo de falar perto do juiz, do promotor... Apesar
que o meu sonho ainda era Direito... é Direito,
né. Poder me formar, vestir uma toga, subir num
tribunal, aí, fazer justiça. (risos)
Sobre uma imagem de uma sala de júri, trechos do júri simulado
(curso da Cruzeiro). Angelina e Jane fazendo a defesa.
JANE
Quando eu tava fazendo o curso, ele dizia: "Ah,
agora tu tá metida a advogada... " E ficava
furioso quando eu me envolvia nessas situações...
"Tu não tem que se meter na vida das pessoas, não
sei o que... " Porque, nos traziam essa cultura da
família dele: "Ah, fulano tá batendo na fulana,
deixa, é marido dela, ninguém tem que se meter. "
E eu não admitia isso.
RUBEM PEÑA (Marido de Carmem)
... é uma lógica, né, que se acabou aquela de eu
te bato e vale tudo, né, hoje em dia ela me bate
e... Deus me livre, né?... A dificuldade tá é no
homem entender que a mulher tem seu direito,
MARLI
Era assim, eu era freqüentemente violentada nos
meus direitos, só que eu não sabia que eu tinha
direitos. Eu achava que o que o meu marido dizia
era o certo: "Lugar de mulher é em casa, tu tem
que ficar... que que é isso, tu vive só dentro das
reuniões, tu não tem mais hora pra chegar, não tem
hora pra sair,
RUBEM
Então quer dizer, só se ela tá, né. Antes não, eu
chegava às 11... do boteco, né. Eu chegava às 11,
e ela tava em casa. (Carmem: O boteco tinha forma
de mulher.) E ela tava em casa, né. Agora eu não
vou mais no boteco, então ela chega às 11 e eu
chego as 7, entendeu. (Carmem: O boteco tinha
forma de mulher.) Aí existe a mudança. Só que a
gente se adapta, a gente se... tem que se... se
evoluir. Entendeu?
CARMEM
A partir do curso das promotoras eu aprendi que,
como mulher, eu tenho o meu valor e que, se eu não
sirvo pra uma determinada pessoa, tem outras
pessoas que vão me valorizar e que vão me receber
muito bem.
MARLI
eu comecei a me enxergar, o meu 1m52cm passou a
ter 1m80cm, a minha pele escura passou a ter um
brilho que antes não tinha, né, a minha visão foi
ampliada e eu comecei a me enxergar como mulher,
como,... me separei, em seguida tive um namorado
maravilhoso, lindo assim.
JANE
Porque tu descobre que tu pode bancar algumas
coisas, entendeu? Claro, eu nunca tive medo de
dizer: "Olha, disso eu não gosto e aquilo eu não
quero... " Eu sempre disse, mas não funciona.
Porque tu não tem firmeza daquilo que tu tá
dizendo.
Tela dividida, de um lado Rubem, de outro Carmem saindo de casa,
Carmem no Mutirão.
RUBEM, MARIDO DE CARMEM
né, nunca fui um menina moça, sempre fui meio
bandido, mas é que não entendia o fator que agora
me prende a minha família o que não me prendia
antes. O que agora me faz lutar por ela, pensar
nela, entender as coisas como são realmente... eu
sempre tentei ajudar, sempre tentei ajudar mas não
entendia o motivo. E agora eu entendo o motivo, a
luta dela. Eu não entendia, eu ajudava, mas sempre
por fora. Entendeu?
Salete chegando numa casa de família.
MARIDO DA SALETE
... às vezes eu acho até que ela faz demais. Né,
que ela se ocupa demais em defesa da mulher, sabe.
Às vezes esquece a casa pra abranger outras
áreas... Às vez que "pá, tu esquece a nossa casa e
vai ajudar... ", tanto que a gente também às vezes
precisa, a gente... a gente acha falta dela aqui.
Nós temos cinco filha mulher e três homem, temo
quatro neto. Não é fácil, ontem, você vê, ontem
ela chegou meia noite. Ela oito hora da manhã ela
tava na escola, reunião de pais e mestres, né. E
agora foi lá pro SIM, lá em cima, fazer uma
campanha contra a violência da mulher. E amanhã de
novo, e segunda feira de novo, e assim vai.
SALETE
Às vezes eu sentava e, de noite assim, depois que
todas as crianças tinham ido dormir, eu dizia
assim: "Pô, essa é a vida que eu vou levar até o
final! " (risos) "É o futuro que me espera, né? "
Mas... hoje não. Hoje, uma coisa eu tenho certeza,
né?
Detalhes de Mulheres se pintando
JANE (pintada e fantasiada para o carnaval)
Ah, e depois do curso a gente mudou, abriu assim,
como é que eu vou te dizer, como se uma luz,
assim, no fundo do túnel.
MARLI (pintada e fantasiada para o carnaval)
Quando a gente descobre, né e passa a saber dos
nossos direitos, parece que o mundo todo se abre,
né.
D. ELVIRA (pintada e fantasiada para o carnaval)
... antes a gente era discriminado e ficava na
tua, né, deixava a pessoa passar por cima
LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval)
,... cada dia a gente fica mais, assim,
desinibida, cada vez a gente desinibe mais.
MARIA HELENA (pintada e fantasiada para o
carnaval)
Eu mudei, eu mudei o jeito de falar, o jeito de ser, o jeito de
tratar meus filhos, tudo eu mudei.
LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval)
Primeiro a gente começa, né, não tem coragem nem
de falar com ninguém, né, depois a gente vai
acostumando, vai indo, vai indo.
D. ELVIRA (pintada e fantasiada para o carnaval)
Hoje em dia eu bato perna e exijo meus direitos e
grito e não adianta. Enquanto eu não tiver os meus
direitos eu tô gritando sempre... protestando
sempre.
LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval)
Agora eu tô aqui na avenida.
Imagens do bloco. Imagens de carnaval.
D. ELVIRA (pintada e fantasiada para o carnaval)
Pergunta: A senhora já tinha saído no carnaval? Eu
saio há vinte anos no carnaval.
JANE (pintada e fantasiada para o carnaval)
Já, eu saí cinco anos na Imperador. Depois parei.
LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval)
Ai, é a primeira vez na minha vida! Adorei!
MARLI (pintada e fantasiada para o carnaval)
é a primeira vez. Eu saí porque eu sou outra
mulher, hoje, né. Porque antes eu era toda
fechada, toda tímida. Quando que eu ia sair assim,
toda pelada, né.
LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval)
Meu marido tá lá na arquibancada, puto da cara: "o
que que tu me inventa! " Digo: "agora meu filho,
já era, tô lá. (risos)
Música e imagens das promotoras no carnaval. Close das promotoras
no carnaval.
LOCUTOR
Lena, Carmem, Maria Salete, Angelina, Lourdes,
Marli, Jane, Dona Elvira, Maria Guanacy, Iara...
Em Porto Alegre são cento e cinqüenta Promotoras
Legais Populares. São cento e cinqüenta mulheres
tentando exigir que a justiça seja um direito de
todos.
HQ continua contando a história, Mulher com promotora na frente
do Juiz.
LOCUTOR
Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda
do campo pede para entrar.
FADE OUT
CARTÃO DE ENCERRAMENTO: O PROGRAMA FORMAÇÃO DE PROMOTORAS LEGAIS
POPULARES FOI CRIADO PELA THEMIS ASSESSORIA JURÍDICA EM 1993 E JÁ
ESTÁ SENDO IMPLANTADO EM ... CIDADES BRASILEIRAS.
PORTO ALEGRE, JUNHO DE 2000.
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(c) Ana Luiza Azevedo, 2000
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
01/07/2000
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