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A FELICIDADE É... ESTRADA
	               roteiro de Jorge Furtado
	               versão de maio de 1995
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - BANHEIRO / INTERIOR, DIA
	A água morna de uma banheira que se enche cobre lentamente o
	corpo de MARIA.
	               LUIS (OFF)
	               Você acredita no destino? Ah, o destino, sequência
	               imprevisível de fatos que fazem a vida do homem,
	               independentes de sua vontade. Alguns o chamam de
	               sorte, fado, fortuna, sina. Seja com que nome for,
	               destino é aquilo que acontecerá com você, no
	               futuro.
	Maria tem os olhos cobertos por uma pequena toalha branca e
	parece dormir enquanto a água morna envolve seu corpo. LUIS está
	ao seu lado, sentado no chão sobre uma grande almofada, costas
	apoiadas na parede. Ele veste uma velha camiseta de dormir e lê
	um jornal, seção "Horóscopo". É uma edição de domingo, com seus
	muitos cadernos espalhados pelo chão. O sol invade o banheiro
	através de um pequeno vitral, jogando tons de azul e verde nos
	azulejos brancos que cobrem as paredes.
	               LUIS
	               (lendo) Gêmeos. Negócios: domingo é um bom dia
	               para fazer planos, mas tenha cuidado com pessoa
	               invejosa. Saúde: boa em geral. Apenas sua vista
	               está um pouco frágil. Pessoal: organize um
	               encontro amigável que será muito animado.
	               LUIS
	               Amor: sentimentalmente, você se sentirá relaxada e
	               cheia de confiança.
Maria sorri.
	               MARIA
	               Humm... relaxada...
	               LUIS
	               Vamos ver o seu. Capricórnio.
	Luis pára de ler, pega um frasco de espuma para banho e começa a
	derramar um fio líquido sobre o corpo de Maria.
	               LUIS
	               Negócios. Não esqueça de dividir seus inesperados
	               lucros financeiros com companheiro fiel.
Maria sorri.
	               LUIS
	               Saúde. Pare de fumar. Amor: garota, você tem
	               sorte.
	Maria agora ri alto. Luis fecha e larga o frasco. Luis mexe na
	água, formando um monte de espumas e fazendo cócegas na barriga
	de Maria. Ela se contorce na banheira, derramando água e molhando
	o jornal.
	               LUIS
	               Maria!
	               MARIA
	               Bem feito.
	               LUIS
	               Você não queria levar o jornal? Eu já li, o azar
	               foi seu.
	               MARIA
	               Liga para Sandra, vê se ela já está pronta.
Luis recolhe os restos do jornal e sai do banheiro.
	               MARIA
	               Pede para ela levar o jornal.
CENA 2 - QUARTO DE SANDRA / INTERIOR, DIA
	Um quarto quase às escuras, com pequenas frestas de sol na
	janela. O telefone toca. EDUARDO ergue a cabeça do travesseiro e
	procura um relógio ao lado da cama. Vê a hora, larga o relógio e
	volta a deitar. SANDRA, ao seu lado, dorme profundamente. A
	secretária eletrônica atende o telefone.
	               VOZ DE SANDRA
	               Oi, aqui é a Sandra. Deixe o seu recado depois do
	               sinal.
	               LUIS
	               Sandra? É o Luis. (pausa) Alô Sandra... (pausa)
	               Sandra...
	Sandra ergue a cabeça com dificuldade, tateia a mesa de cabeceira
	em busca do telefone.
	               SANDRA
	               Humrg. (pausa) Hum-hum. (pausa) Já são nove?
	               (pausa) Vocês já estão prontos? (pausa) Levo.
	               Pergunta para a Maria se precisa levar cobertor.
CENA 3 - BANHEIRO / QUARTO
	Maria continua na banheira, mas já não tem os olhos cobertos.
	Luis está parado na porta, de pé, com o telefone na mão.
	               LUIS
	               Precisa levar cobertor?
	               MARIA
	               Não. Diz para ela vir de carro e deixar o carro
	               aqui.
	               LUIS
	               (no telefone) Não precisa levar cobertor.
	               SANDRA
	               Eu estava pensando em ir de carro até aí e deixar
	               o carro na garagem de vocês.
	               LUIS
	               Ótimo.
	Sandra passa a mão na cabeça de Eduardo. Eduardo vira-se na cama,
	com dificuldade.
	               EDUARDO
	               Como é que está o tempo?
	               LUIS
	               Tá ótimo.
Maria sai da banheira e começa a secar-se.
	               MARIA
	               Pergunta como é que foi ontem.
	               LUIS
	               Como é que foi ontem?
	               SANDRA
	               Foi legal.
	               MARIA
	               Legal?
	               SANDRA
	               Muito legal.
	               MARIA
	               Muito legal?
	               SANDRA
	               MUITO legal...
	               MARIA
	               Mas... MUITO legal como?
	               LUIS
	               Só um pouquinho, só um pouquinho.
	Luis entrega o telefone para Maria e sai. Maria, de roupão, fala
	ao telefone enquanto cuida das unhas dos pés e das mãos.
	               MARIA
	               E aí? (...) Não consegui acordar mais cedo. (...)
	               Não, a gente chegou em casa eram quase três horas.
	               (...) Estava ótimo. (...) É. (...) Um pouco, eu
	               sempre fico. Tem muita gente, uma pessoas
	               estranhas. (...) Quase todos. Um dos que eu mais
	               gosto não vendeu, achei ótimo. Em compensação
	               aquele Cândido nojento comprou um que eu adoro.
	               Ele me disse que tinha tudo a ver com o "loft"
	               dele. Quando ele disse "loft" soltou perdigoto que
	               caiu bem no meu braço. Que nojo! (...) É., azar,
	               era um dos mais caros, também. Tudo bem. (...) E
	               vocês? (...) Achei ele ótimo. (...) Eu vi, vocês
	               saíram cedo. (...) E aí, foi legal?
Sandra fala ao telefone e arruma roupas sobre a cama.
	               SANDRA
	               Hum-hum. (...) Sim. (...) Sim.
Eduardo levanta com dificuldade e fica sentado na cama.
	               SANDRA
	               Sim. (...) Sim.
Eduardo sai.
	               SANDRA
	               (falando baixo) Foi. Totalmente, completamente,
	               inteiramente... legal. (...) Não, nunca tinha sido
	               tão legal. (...) É exatamente o que eu estou
	               querendo dizer. (...) Pois é. Legal, né? (...)
	               Claro. (...) Sim. (...) Sim!
Eduardo volta.
	               SANDRA
	               É. (...) Sim. (...) Sim.
CENA 4 - QUARTO DE MARIA
Maria está terminando de se vestir.
	               MARIA
	               Tá bom, depois a gente fala. Tomem café aqui.
	               (...) Claro. (...) Nenhum, só descansar, por quê?
	               Vocês estão levando trabalho? Ah... (...) O Luis
	               me jurou que não disse nem para onde ia.
	               LUIS
	               Namorar, comer, dormir e ler gibi.
	               MARIA
	               Uma semana nesse ritmo e a gente vai descer a
	               serra rolando.
	               LUIS
	               Não, a gente vai caminhar muito. Vamos acordar
	               cedo todos os dias e caminhar até a cachoeira,
	               fazer exercício...
	               MARIA
	               Ha! Tá bom.
	               SANDRA
	               Levo travesseiro? (...) Tudo bem. (...) Até.
	Sandra desliga o telefone. Eduardo a abraça e começa a beijar o
	seu pescoço. Ela se aconchega no corpo dele. Ele mergulha para
	baixo das cobertas e passa a beijá-la por todo corpo. Ela se
	espreguiça, movimenta a cabeça de um lado para o outro e também
	mergulha para baixo das cobertas.
	CENA 5 - GARAGEM, COZINHA, QUARTO
	(Esta cena é intercalada com momentos da transa de Sandra e
	Eduardo)
	Maria e Luis preparam o carro para a viagem e escutam música.
	Maria coloca coisas no porta-malas. É um carro conversível e Luis
	tem alguma dificuldade em abaixar a capota.
	Eduardo passa os dedos pela nuca e pelos cabelos de Sandra.
	Maria vai enchendo uma caixa de papelão com delícias de comer e
	beber: vinho do Porto, champanhe, chocolate, licores, frutas.
Sandra beija as costas de Eduardo.
	Luis agora separa revistas em quadrinhos antigas: Asterix,
	Superboy, Fantasma, Ken Parker. Vai colocando tudo numa valise.
	Maria escolhe alguns CDs: Billie Hollyday, Caetano, Glenn Miller,
	Chico, Nei Lisboa.
Eduardo beija os pés de Sandra.
	Maria coloca alguns jogos na caixa das revistas: baralho, War,
	bloquinho de Batalha Naval, lápis e canetas.
	Sandra está com a cabeça reclinada no travesseiro. Eduardo
	movimenta-se sobre ela.
	Luis está cuidando o leite no fogo. Maria o abraça por trás. Ele
	se vira.
Beijam-se. Ela espia o leite e avisa.
	Ele volta a cuidar do leite que está subindo. Ele desliga
	rapidamente o fogo.
Os dois ficam torcendo que o leite não derrame.
O leite não derrama.
	Sandra sorri. Aparentemente, ela está gostando muito da transa.
	Aos poucos, o sorriso vai se transformando numa expressão de
	surpresa, como se algo inesperado estivesse começando acontecer.
	Sandra agora parece um pouco tensa, assustada. Aos poucos ela
	relaxa, o sorriso começa a voltar, primeiro sutilmente, depois
	aberto, um sorriso maravilhoso. O rosto de Sandra se ilumina,
	seus olhos brilham e ela se entrega num prazer profundo, intenso
	e inteiramente novo.
CENA 6 - COZINHA
Maria dá uma mordida numa goiaba madura.
	Maria, Luis, Eduardo e Sandra numa mesa de cozinha, tomam café. É
	um café da manhã completamente íntimo, as embalagens de leite e
	manteiga sobre a mesa. Luis cata e come as passas de um bolo de
	passas semi-devorado. Maria come goiaba. Eduardo lê o jornal.
	               EDUARDO
	               Olha essa aqui:
	               EDUARDO
	               Um estudo vienense concluiu que a ativação do lado
	               direito do cérebro através da respiração só pelo
	               orifício esquerdo no nariz, retarda o orgasmo e
	               aumenta o prazer do casal.
	               LUIS
	               Como é?
	               EDUARDO
	               Segundo o estudo, 85 por cento dos problemas
	               sexuais se devem a má manipulação do cérebro.
	               LUIS
	               Respirar só pelo orifício esquerdo do nariz? Isso
	               não será erro de tradução?
	               MARIA
	               Luis, a primeira coisa que a gente vai fazer
	               quando chegar em Canela é experimentar essa teoria
	               vienense.
	               LUIS
	               A primeira coisa que eu vou fazer quando chegar...
CENA 7 - JARDIM DA CASA NA SERRA
Luis, sem sapatos, toma água de uma torneira na rua.
	               LUIS (OFF)
	               ... é tirar os sapatos e tomar água da bica, com
	               aquele barrinho entrando entre os dedos do pé.
CENA 8 - BALANÇO
	Maria, num balanço de madeira, come pitanga e observa o movimento
	das árvores
	               MARIA (OFF)
	               Eu vou ler e comer pitanga no balanço.
CENA 9 - QUINTAL DA CASA
Eduardo deitado sobre um lençol, na grama, Sandra ao seu lado.
	               EDUARDO (OFF)
	               Eu vou fazer um piquenique. Tomar um vinho,
	               dormir, ficar namorando...
Sandra levanta e puxa Eduardo pela mão.
CENA 10 - CASSINO
	Sandra caminha pelas ruínas do cassino, Eduardo ao seu lado.
	Sobem as escadarias da entrada.
	               SANDRA (OFF)
	               Vou levar você para conhecer as ruínas do cassino.
	               
	               EDUARDO (OFF)
	               Que cassino é esse?
	               LUIS (OFF)
	               Os caras estavam construindo um enorme cassino,
	               quando proibiram o jogo.
	               MARIA (OFF)
	               O mato tomou conta de quase tudo. É lindo.
	Sandra e Eduardo descem as escadas que levam ao salão principal,
	uma caverna de concreto tomada por gigantescas samambaias.
	A luz entra no salão pelas estreitas aberturas das janelas. Ouve-
	se apenas o som das gotas que pingam do teto no lago formado
	sobre o chão.
CENA 11 - ESTRADINHA
Luis caminha por uma estrada aberta no meio do mato.
	               LUIS (OFF)
	               Depois de tomar água na bica, eu vou caminhar e me
	               deprimir. Eu estou louco pra ficar triste, nunca
	               posso, tem sempre alguém perto de mim que merece
	               ficar triste mais do que eu. Agora que está todo
	               mundo bem, eu vou aproveitar e me deprimir.
	Luis olha para
	a copa das árvores.
CENA 12 - REDE
Luis na rede, deprimido.
	               LUIS (OFF)
	               Mas não se preocupem, é coisa de uma hora, no
	               máximo. Eu caminho, me deprimo, deito na rede,
	               durmo, acordo morto de fome...
CENA 13 - BALANÇO
	Luis senta ao lado de Maria, no balanço.
	Luis come uma pitanga e logo começa a beijar e agarrar Maria.
	               LUIS (OFF)
	               ... aí vou pro balanço comer pitanga e te agarrar.
CENA 14 - COZINHA
Termina de passar uma água na louça.
	               MARIA
	               Acontece que a esta altura eu já terminei de comer
	               as pitangas. Vamos embora?
Luis fecha o gás do fogão.
CENA 15 - FRENTE DA CASA DE LUIS
	O carro de Luis está na frente da casa.
	Sandra põe o carro na garagem. Eduardo ajuda a fechar a garagem.
	Maria tranca a porta da frente. Sandra e Eduardo passam as malas
	para ao carro de Luis.
	Os quatro se reunem em torno do carro de Luis, já pronto para a
	viagem. Maria e Sandra percebem que cada uma trouxe um escorredor
	de massa. Luis revela a intenção de abrir a casa para deixar um
	escorredor. Todos o convencem rapidamente que não é necessário,
	que um escorredor de massa não ocupa tanto espaço assim, que
	Sandra aproveitou seu escorredor para trazer, dentro dele, quatro
	taças de cristal, e que o sol já está alto e que eles estão
	loucos para pegar finalmente a estrada.
	Os quatro entram no carro, Luis ao volante, Maria ao seu lado,
	Eduardo atrás de Maria, Sandra atrás de Luis. O carro parte.
	Sandra, que ficou com o escorredor de massa com quatro taças na
	mão, põe o escorredor no banco, ao seu lado, delicadamente.
CENA 16 - FERRO VELHO
	Um enorme, sujo, velho e pesado motor, carregado por um guindaste
	velho e barulhento cai, com um estrondo, na carroceria de um
	grande, velho e sujo caminhão.
	               MUTUCA
	               (indignado) Puta que o pariu, caralho, que buceta,
	               Gaúcho! Puta que o pariu! É foda!
	MUTUCA, dono do caminhão, um sujeito sujo e suado, acompanha a
	operação. GAÚCHO, o dono do ferro velho, opera o guindaste.
	               GAÚCHO
	               (descendo do guindaste) Não fode, Mutuca! Se essa
	               bosta desse teu caminhão não aguentar uma porrinha
	               de merda dessas então tu tem que te fuder.
	Gaúcho entra numa casinha de madeira, uma espécie de escritório,
	pega alguns papéis. Mutuca se aproxima da porta aberta.
	               MUTUCA
	               Porra, Gaúcho, tu também é um cu mesmo, puta que o
	               pariu! Se eu tiver que deixar essa porra lá em
	               Santa Terezinha eu tô fudido, Gaúcho! Tu sabe que
	               horas eu vou conseguir voltar daquele cu de mundo,
	               Gaúcho? Santa Terezinha fica na casa do caralho!
	               Porra, Gaúcho, hoje é aniversário daquela puta da
	               irmã da minha mulher, a festa é lá em casa, sogra,
	               sogro, o caralho. Sou eu que vou fazer o
	               churrasco, Gaúcho, se eu não chegar até às sete a
	               minha mulher jurou que dava pro vizinho, Gaúcho.
	               Eu levo essa merda amanhã cedo.
	Gaúcho terminou de conferir os papéis, uns recibos sujos de graxa
	que dobra e entrega para Mutuca.
	               GAÚCHO
	               No cu.
	               MUTUCA
	               Porra, Gaúcho, não fode!
Gaúcho sai, dá as costas para Mutuca, que o segue.
	               GAÚCHO
	               No cu, Mutuca, no cu. Aquele corno disse que se eu
	               não entregar essa merda em Santa Terezinha até às
	               oito, hoje, que eu podia socar no cu. E vai ser no
	               teu.
	               MUTUCA
	               E pra acabar de fuder com tudo o freio do caminhão
	               tá uma bosta, Gaúcho. Amanhã cedo eu levo esta
	               merda. Porra Gaúcho, eu...
	               GAÚCHO
	               Porra é o caralho, Mutuca. Não fode. Se tu não
	               fizer a entrega até às oito, daqui tu não tira
	               mais nem um peido de anão.
	Gaúcho continua a caminhar, sem nem olhar para Mutuca. Mutuca
	pára, confere a nota. Sai em direção ao caminhão, furioso.
	               GAÚCHO
	               Puta que o pariu! Puta que o pariu! Que caralho,
	               buceta. Me fudi, caralho. Que merda!
	Gaúcho entra no caminhão, bate a porta e dá o arranque.
	O caminhão, velho e sujo, carregado de ferro velho, movimenta-se
	pela estrada esburacada.
CENA 17 - CARRO
	O carro de nossos amigos flutua pelo asfalto perfeito da estrada,
	por entre alamedas floridas de hortênsias azuis e rosas.
	Os quatro, sol e vento no rosto, escutam um som maravilhoso.
	O carro se aproxima de um ônibus escolar. Luis começa a
	ultrapassar o ônibus.
	A saia de Maria levanta, com o vento, deixando suas calcinhas
	brancas à mostra por alguns segundos.
	Os meninos e meninas do ônibus apontam para o carro e gritam
	muito, batem na lataria do ônibus.
CENA 18 - ESTRADA DE TERRA
	O caminhão está parando, com um pneu furado. Mutuca bombeia o
	freio, mas o caminhão pára só depois de muitos metros.
Mutuca desce do caminhão e olha para o pneu furado.
	               MUTUCA
	               Puta que me pariu. Puta que me pariu, caralho!
	               Caralho, caralho, caralho, caralho! Que buceta!
Mutuca abre uma caixa de ferramentas e pega uma chave de roda.
CENA 19 - ESTRADA / CENA 20 - ESTRADA DE TERRA
	O carro sobe uma colina, onde sol ilumina uma igrejinha. Casas
	antigas de madeira denunciam a colonização alemã de uma pequena
	vila.
O carro pára em frente a uma barraca.
Um dos parafusos da roda não quer soltar. Mutuca faz força.
	Os quatro estão numa barraca de beira de estrada.
	Brinquedos coloridos de madeira e bonecos coloridos de gesso
	ocupam todas as prateleiras.
Mutuca faz força no macaco do caminhão.
Luis quer comprar um anão, o Dunga.
Mutuca machuca a mão ao tentar apertar o último parafuso da roda.
O carro flutua pela estrada e agora é Maria quem dirige.
O carro vence mais uma colina.
	Mutuca põe outra vez o caminhão em marcha. Ele tem a mão
	enfaixada com um curativo improvisado, muito sujo.
	CENA 21 - CARRO / CENA 22 - CAMINHÃO
	(A partir daqui, imagem e som das duas cenas se alternam)
Maria e Luis examinam um mapa rodoviário.
Mutuca examina um mapa rodoviário.
	O dedo de Luis percorre uma estrada (vermelha) no mapa, de baixo
	para cima.
	               LUIS (OFF)
	               A gente está aqui.
	A mão enfaixada de Mutuca percorre uma estrada (preta) no mapa,
	da direita para a esquerda.
	               MUTUCA (OFF)
	               Que caralho, que caralho...
O dedo de Luis percorre a estrada vermelha.
	               MARIA (OFF)
	               Vamos pela 116 ou pela 112?
	               SANDRA (OFF)
	               Vamos pela 112. É mais bonita.
O dedo de Mutuca percorre a estrada preta.
	O dedo de Luis percorre a estrada vermelha, que cruza com a
	preta.
	               LUIS (OFF)
	               Aqui a gente pega a 112.
	O dedo de Mutuca percorre a estrada preta, que cruza com a
	vermelha.
	               MUTUCA (OFF)
	               Aqui eu cruzo a 112.
Eduardo olha o relógio.
Mutuca olha o relógio.
	               MUTUCA
	               Puta que pariu, caralho!
O carro segue pela estrada ladeada de flores.
	O caminhão de Mutuca segue aos solavancos pela estrada
	esburacada. Mutuca liga o rádio. É um programa policial mundo-
	cão. Uma MULHER chora enquanto um APRESENTADOR conduz a
	entrevista.
	               APRESENTADOR (OFF)
	               ... e o rapaz, sem saber que o Velhinho era o seu
	               próprio pai, imobilizou o coitado e o estuprou,
	               ali mesmo na enfermaria do hospital. Uma
	               barbaridade! O cafajeste estuprou o próprio pai
	               numa cama da enfermaria do setor de queimados do
	               Hospital São Judas Tadeu, minha gente! O velho
	               todo esfolado e o covardão ali, pimba no velho!
	O caminhão passa por uma horrível cidadezinha de beira de
	estrada.
	Igreja evangélica. Bares. Parada de ônibus lotada. Comércio
	popular.
Luis põe a mão sobre a coxa ensolarada de Maria.
	Um dos parafusos do pára-choque dianteiro do caminhão parece um
	pouco solto.
	Sandra faz cafuné em Eduardo que, de olhos fechados, repousa em
	seu colo.
	Sob o barro que cobre o sacolejante pára-lamas traseiro do
	caminhão pode se ler a frase: "Mulher boa é a dos outros".
O pneu do carro desliza no asfalto. Os copos de cristal tilintam.
O pneu do caminhão trepida nos buracos.
Luis olha a paisagem.
	               LUIS (OFF)
	               Você acredita no destino? Eu não. Eu acredito que
	               o ser humano tem poder e totais condições para
	               estragar sua própria vida sem a ajuda de ninguém,
	               tomando as decisões erradas nas horas impróprias,
	               aliando-se a canalhas diversos, acreditando em
	               heróis, crentes e outros farsantes, apaixonando-se
	               por pessoas doentes ou de péssimo caráter e,
	               principalmente, acreditando cegamente em sua
	               própria inteligência, bondade, charme, sanidade e
	               senso de justiça. Um grave erro.
	Da cabine do caminhão já se pode ver, ao longe, a estrada e o
	carro de Luis. No rádio, a Mulher chora muito.
	               APRESENTADOR
	               ... e o Velhinho estava com o corpo praticamente
	               todo em carne viva, é isso?
	               MULHER
	               (chorando) É, ele perdeu a pele na explosão de um
	               fogareiro à querosene no barraco onde morava, ele
	               e mais nove pessoas lá na vila...
Mutuca muda de estação. Mutuca olha pela janela lateral.
O caminhão passa por outra vila de beira de estrada.
	               PREGADOR
	               ... nas estradas do senhor! Aleluia! E este homem,
	               que estava mergulhado em pecado, nas drogas, na
	               bebida e na pederastia, este homem foi salvo pela
	               luz do senhor, aleluia! E você também pode ser
	               salvo. Escreva para a caixa postal um cinco
	               nove...
Do carro já se pode ver, ao longe, o caminhão de Mutuca.
	               LUIS (OFF)
	               O ser humano tem tudo para dar errado, mas eu não
	               consigo me envolver emocionalmente com vegetais ou
	               minerais. Uma vez eu tive um cachorro e o cheiro
	               dele era muito estranho. Normal.
O caminhão agora já está bastante próximo da estrada.
Os cristais tilintam.
Do carro já se pode ver claramente o caminhão que se aproxima.
	               LUIS (OFF)
	               As leis da probabilidade, no entanto, permitem que
	               você possa contar com alguns momentos bastante
	               bons. Que podem ser ampliados, se você tiver
	               alguém para dividir ou lembrar deles. Que podem
	               ser em maior número, se você tiver a capacidade de
	               planejá-los.
	O caminhão está muito perto de cruzar a estrada por onde o carro
	de Luis se aproxima. O pára-choque dianteiro do caminhão trepida
	tanto que parece que vai se soltar.
As quatro taças de cristal tilintam no banco traseiro do carro.
Mutuca tira os olhos da estrada para olhar o mapa.
Maria tira os olhos da estrada para olhar a paisagem.
	               LUIS (OFF)
	               Acho que é isso: alguns amores recíprocos, algum
	               dinheiro, trabalho, muitos planos...
	O caminhão cruza a estrada, por cima de um viaduto. Por baixo
	passa o carro com Maria, Luis, Eduardo e Sandra.
	               LUIS (OFF)
	               E alguma sorte.
O carro segue em direção ao horizonte.
FIM
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	(c) Jorge Furtado, 1995
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
01/05/1995
| Anexo | Tamanho | 
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| estrada.txt | 24.39 KB |