A FOME E A VONTADE DE COMER

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               A FOME E A VONTADE DE COMER
               episódio da série
               CONTOS DE INVERNO 2002

               roteiro de Tomás Creus
               Versão 27/03/2002

               argumento de Cíntia Moscovich,
               baseado em seu conto homônimo

               coordenação de texto da série
               Jorge Furtado
               e Giba Assis Brasil

               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
               para RBS TV

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CENA 1 - EXT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA

Na rua, vemos um cartaz meio dilapidado: "ARMARINHO A PREFERIDA".
Uma porta aberta. Pessoas passam pela frente, mas ninguém entra
ou mesmo se detém.

CENA 2 - INT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA

SARA, uma senhora de uns 60 anos, e sua filha, RAQUEL, de 25, uma
moça magra, olham com expressão aborrecida para as pessoas que
passam e passam sem entrar.

               SARA
               Ninguém em toda a manhã...

               RAQUEL
               Nem pra pedir informação.

Sara suspira, pega um baralho de cartas.

               SARA
               Quem deu a última?

               RAQUEL
               Eu.

Sara dá as cartas. As duas começam a jogar. Raquel olha a sua
mão, abaixa alguma carta, escolhe outra do monte. Nisso entra
alguém, mas elas não notam, seguem jogando. Depois de ficar
alguns segundos esperando que elas o notem, o jovem, VASCO, bate
no balcão come se fosse à porta.

               VASCO
               Com... com licença?

As duas, apressadas, escondem o baralho e se levantam.

               SARA
               Sim, em que posso ajudar?

               VASCO
               Bom... Eu... Eu estava procurando uma peruca.

               SARA e RAQUEL
               Uma peruca?!?

               RAQUEL
               Seria pro senhor mesmo?

Sara censura Raquel com o olhar, como dizendo "Isto é pergunta
que se faça?" Depois sorri para Vasco, enquanto Sara vai dar uma
olhada nos fundos.

               SARA
               A gente vai dar uma procurada.

Raquel volta com uma longa barba postiça nas mãos.

               RAQUEL
               Olha, tem esta barba aqui. Será que não serve?

Sara pega alguma outra coisa de baixo do balcão. A apresenta a
Vasco: é um óculos com nariz e bigode, daquele tipo "Groucho
Marx".

               SARA
               Tem isto aqui também. É pra festa a fantasia?

Vasco sacode a cabeça negativamente.

               VASCO
               Não... Teria que ser uma peruca mesmo... É pro meu
               pai... Tudo bem, obrigado.

Ele sai. As duas se entreolham desanimadas, uma segurando a barba
postiça, a outra o óculos do Groucho Marx. Suspiram.

CENA 3 - EXT. RUA NO BOM FIM - FIM DE TARDE

Sara e Raquel caminham pela rua. Passam por um par de jovens, um
cabeludo e um de cabelo curto. Eles cumprimentam Sara e Raquel
mas passam reto sem se deter a falar.

               JOVEM CABELUDO
               Ué, porque não falou com ela? Não era tu que
               estava a fim da Raquel?

               JOVEM DE CABELO CURTO
               Eu não. Muito magra...

Sara e Raquel chegam em casa. Uma casinha ou apartamento com a
pintura desbotada. Na porta, uma "mezuzá" [objeto cilíndrico com
rolinho do Talmud dentro, por vezes usado por seguidores da
religião judaica]. Elas beijam os dedos e passam a mão na mezuzá.
Entram, fecham a porta.

CENA 4 - INT. CASA - QUARTO DE RAQUEL - NOITE

Raquel senta na sua cama, exausta. Na parede, um poster do Woody
Allen. No porta-retrato da mesa, foto dela criança, também
magrinha.

               SARA (VS)
               Raqueel! O jantar tá na mesa!

               RAQUEL
               Eu não tou com fome.

Silêncio. Raquel pega o porta-retrato com sua fotografia.

               SARA
               Raquel, vem logo, vai esfriar!

Raquel suspira, levanta e sai.

CENA 5 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - DIA

Sara e Raquel moram num pequeno apartamento de dois quartos,
velho e gasto, que já viu dias melhores. A geladeira e o fogão
são velhos, os móveis carcomidos. Sara coloca um prato sobre a
mesa.

               RAQUEL
               Mãe, eu disse que não estou com fome.

               SARA
               Você disse a mesma coisa no almoço. Alguma coisa
               tem que comer, minha filha, senão vai desaparecer!

               RAQUEL
               Mas eu comi no almoço.

               SARA
               Comeu uma salada, salada não é comida. Senta aí.

               RAQUEL
               Não... Talvez depois. Eu não estou com fome mesmo.
               Tou meio com dor de cabeça, acho que vou me deitar
               um pouco.

Ela se dirige para o quarto. Sara pega um pedaço de pão, um dos
pratos da mesa, estendendo-os em direção à filha.

               SARA
               Mas minha filha! Come um pão que seja! Um ovinho!

Pega um outro prato, com uma espécie de bolinhos de peixe.

               SARA
               Um ghefilte fish!

Mas a filha já foi, ouvimos a porta do quarto fechando. Sara
ergue as mãos para o céu.

               SARA
               Ai meu Deus do céu... O que eu vou fazer com esta
               menina... Óióiói...

Ela resmunga algo incompreensível em ídiche.

CENA 6 - INT. COZINHA MARAVILHOSA - DIA

Uma cozinha de luxo, de comercial de margarina, com fogão e
móveis novos. Vemos o rosto de Raquel, com lágrimas nos olhos.
Ela limpa a lágrima, depois vemos que está picando cebolas. Há um
alho picado num pratinho, junto a outros ingredientes. Depois ela
pica uma linguiça e coloca tudo numa enorme caçarola de ferro que
está no fogo, com uma feijoada borbulhante.

Pronta a feijoada, Raquel apaga o fogo.

Coloca a panela na mesa da própria cozinha, e serve-se uma
generosa porção no prato. Começa a comer desesperadamente. Logo o
prato parece ser insuficiente, ela começa a comer vorazmente a
colheradas da própria panela.

CENA 7 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE

Raquel acorda repentinamente na cama, debaixo das cobertas.
Ergue-se na cama, acende a luz. Leva à mão à barriga, sentindo-se
mal. Arrota. Faz uma careta, sai da cama de camisola, abre a
gaveta e retira um pacotinho de sal de frutas. Sai de quadro,
ouvimos o som da torneira, ela volta com um copo de água. Mistura
o sal de frutas e bebe. Fica sentada na cama, expressão
pensativa.

CENA 8 - INT. ARMARINHO - DIA

Raquel está sozinha na loja, lendo uma revista de moda. Entra uma
moça, FAUSTINA, 25 anos. Ela usa roupas formais.

               FAUSTINA
               Oi. Eu estou procurando um sutiã.

               RAQUEL
               Que tipo?

Faustina deixa a revista de moda sobre o balcão. Pega uma caixa
com sutiãs, põe sobre o balcão.

               FAUSTINA
               Um tipo que me faça parecer um pudim de leite
               condensado.

As duas ficam algo desanimadas, olhando os sutiãs, muito caretas.

               RAQUEL
               Pode ser diet?

               FAUSTINA
               Melhor não. Estou precisando engordar meu salário.

               RAQUEL
               Desculpe. Acho que não posso te ajudar. Não quer
               ver uma camisola?

               FAUSTINA
               Não, obrigado.

Faustina sai, apressada. Raquel acena, depois volta a se
concentrar na revista.

CENA 9 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE

Raquel, de camisola, prestes a se deitar. Olha para a cama, algo
hesitante. Coloca um copo de água sobre a mesinha e um pacotinho
de sal de frutas ao lado. Depois se deita, apaga a luz.

CENA 10 - INT. COZINHA MARAVILHOSA - DIA

Raquel prepara um molho de tomate: tomate picado, cebola, alho,
tudo frita na frigideira. Ao lado, uma panela com água fervente:
ela coloca um pacote de espaguete, que lentamente amolece no
contato com a água quente. Com agilidade, ela mexe o molho
enquanto a massa cozinha.

À mesa, ela se serve um enorme prato de espaguete e, mais uma
vez, come como uma condenada, sugando os fios de espaguete que
caem pela boca e respingando molho.

CENA 11 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE

Raquel acorda sobressaltada. Leva à mão ao estômago. Curva-se
sobre a cama, quase a ponto de vomitar, mas sem chegar a tal
ponto. Prepara o sal de frutas rápido e bebe tudo de um gole.
Exala longamente.

CENA 12 - INT. ARMARINHO - DIA

Raquel e Sara no armarinho. Raquel com cara triste.

               SARA
               Que desânimo é esse? Tá certo que as coisas vão
               mal, mas...

               RAQUEL
               Não é isso. É que eu... Eu... Ando tendo uns
               sonhos estranhos.

               SARA
               Sonhos estranhos?

               RAQUEL
               É. Com comida.

               SARA
               Ora, não tem nada de estranho. Nunca come nada,
               tem mais é que sonhar com comida mesmo.

               RAQUEL
               Mas não é só isso... É que... Bom, eu sonho que eu
               cozinho um prato, mas bem mesmo, como uma
               cozinheira profissional. Reúno todos os
               ingredientes, preparo certinho, o prato fica
               perfeito... Imagina, no outro dia até chrein
               preparei.

               SARA
               Chrein?

               RAQUEL
               É. Beterrabas raladas, raiz forte, mostarda, um
               beliscão de sal e gotas de vinagre de vinho
               branco. É isso, não é?

               SARA
               É, isso mesmo... Mas desde quando você sabe
               preparar o chrein?

               RAQUEL
               Aí é que tá. Não sei, nunca aprendi. Mas no sonho
               foi como se soubesse. Como se tivesse nascido
               sabendo...

               SARA
               Chrein... Mas que coisa. E ghefilte fish?

               SARA
               Piava fresca moída, ovos, pão amolecido em água,
               cebola miúda frita em azeite, molho encorpado com
               cenoura, tomates? Claro, fiz também... Mas isso
               não é o problema. O pior do sonho é que depois de
               preparar, eu mesma como tudo sozinha, como uma
               desaforada. Ontem mesmo foi spaghetti, comi uma
               panela cheia. Semana passada então? Foi uma
               feijoada completa. Com todos os ingredientes:
               toucinho, linguiça, paio...

               SARA
               Você comeu carne de porco?!?

               RAQUEL
               Bom, era sonho, né? Não posso controlar os
               próprios sonhos...

               SARA
               Lá isso é...

Ela olha para a filha agora com mais atenção.

               SARA
               Mas... Peraí... Vem cá...

Ela segura o queixo da filha, aproximando e examinando o seu
rosto.

               SARA
               Olha, eu estou te achando menos pálida, mais
               saudável... Se não te conhecesse, diria até que
               engordou.

               RAQUEL
               Pois é, acho que são os sonhos também... Eu acordo
               me sentindo cheia, estufada. Como se tivesse
               comido mesmo, sabe? É horrível...

A mãe sorri, como se não tivesse ouvido o último comentário.

               SARA
               É, você tá melhor mesmo. Muito melhor. Espera aí.

A mãe vai aos fundos da loja, volta com uma balança daquelas de
banheiro. Faz Raquel se pesar. A balança indica 55 quilos.

               SARA
               Não é sonho não. Você tá pesando mais mesmo!

A mãe sorri, feliz.

               RAQUEL
               Mas mãe... Você não acha muito estranho isso tudo?
               Essa coisa dos sonhos...

               SARA
               Ora, sonhos, sonhos... E o que é a vida senão um
               sonho? Foi o modo como Deus encontrou de fazer
               você comer, porque de outro jeito... Seu pai
               sempre dizia, de um modo ou de outro, Deus sempre
               há de prover.

Ela olha para cima.

               SARA
               É, isto só pode ser um sinal divino... Um anúncio
               dos céus...

Ela ergue os braços ao céu, em agradecimento. Mas Raquel não
parece nada feliz.

CENA 13 - EXT. RUA - FRENTE DO ARMARINHO - DIA

Vemos a entrada de "A Preferida", com a placa. Caem alguns flocos
de neve: está começando a nevar sobre Porto Alegre.

CENA 14 - INT. CASA DE RAQUEL E SARA - NOITE

Sara faz contas com a calculadora. Ao seu lado, a filha a ajuda.

               SARA
               Ai ai... Já estamos com dois meses de atraso no
               aluguel. E ó...

Ela mostra uma carta impressa.

               SARA
               Tão dizendo que se não pagarmos a conta da luz,
               eles vão cortar. Eu não sei mais o que fazer... Se
               os negócios não melhorarem logo...

Raquel coloca a mão sobre o ombro da mãe, confortando-a. Sara
segura a sua mão.

               SARA
               Tá, não te preocupa. Algum jeito vai surgir. Você
               vai dormir, vai. Amanhã a gente pensa.

               RAQUEL
               Não, eu... Eu não estou com sono.

Seu rosto com olheiras, entretanto, desmente a informação. Ela
reprime um bocejo.

               SARA
               Que é isso, minha filha. Vai, que amanhã tem que
               acordar cedo. Eu também já vou dormir daqui a
               pouco.

Ela beija a testa de Raquel. Depois a filha vai para a porta.

               RAQUEL
               Tá bom. Boa noite, mãe...

CENA 15 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE

Raquel olha para a cama. A cama "olha" para Raquel. É um
confronto de inimigos, como naqueles duelos de olhares nos filmes
do Sérgio Leone. Raquel coloca uma termolar de café sobre a
mesinha. Também vários livros. Uma pilha de livros.

CENA 16 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - NOITE

A mãe abre um gabinete fechado a chave. Sobre o gabinete, a foto
do finado marido de Sara, pai de Raquel. Raquel abre uma
caixinha. Há uma pulseira de prata com diamantes. Ela a pega.
Também um colar de jóias, rubis. Ela olha para a foto no retrato,
que parece observá-la.

               SARA
               Pois é... Eu sei que prometi nunca tocar nessas
               coisas. Eu sei que são coisas que você me deu de
               presente, e que você ficaria triste se eu
               vendesse. Mas... Os tempos são difíceis, entende?
               É preciso fazer sacrifícios. E depois, eu só vou
               penhorar, não vender. Quando a situação melhorar,
               eu recupero...

CENA 17 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE

Raquel lendo, começa a se adormentar: seus olhos se fecham
sozinhos. Irritada, ela pega um pouco de fita adesiva e cola as
pálpebras puxando-as para cima, de modo a que os olhos fiquem
permanentemente abertos.

Ela lê, lê, lê.

Começa a ficar com sono, boceja. Os olhos começam a tentar se
fechar, mas são impedidos pela fita adesiva, e ela retorna à
leitura.

Mais uma vez a cena se repete, ela resiste. Na terceira vez as
pálpebras são mais fortes e se fecham desgrudando a fita adesiva.
O pescoço despenca, o corpo amolece, Raquel cai no sono.

CENA 18 - INT. COZINHA MARAVILHOSA DE RAQUEL - DIA

Sequência de cenas rápidas:

Raquel cortando um pepino em várias rodelas.

Raquel colocando no forno um peixe assado.

Raquel batendo ovos.

Raquel servindo-se ensopado.

Raquel comendo um frango inteiro com as mãos.

Raquel tragando uma enorme fatia de bolo de chocolate.

CENA 19 - INT. QUARTO DE RAQUEL - MANHÃ

Raquel acorda com uma cara terrível, tenta se levantar, rola e
cai da cama com um baque surdo.

CENA 20 - INT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA

Agora Raquel está visivelmente mais gorda e mais desanimada.
Sentada no balcão do armarinho, suspira.

               SARA
               Não fica assim, filha. Tua saúde nunca esteve
               melhor, meinmeidale. Eu já disse, foi o modo que
               Deus achou de te ajudar neste período difícil para
               a gente...

               RAQUEL
               Pois podia ter achado outro modo, porque eu não me
               sinto nada bem.

Ela arruma um pouco as coisas sobre o balcão. Vira-se novamente
para a mãe.

               RAQUEL
               Eu... Estou pensando em ir no psiquiatra. A
               Faustina me recomendou um, o Dr. Finkelstein. Diz
               que ele faz milagres.

Sara sacode a cabeça, não parece convencida.

               SARA
               Dr. Finkelstein?!? Mischigas! Dizem que ele passa
               o tempo inteiro só querendo saber histórias sobre
               a mãe do paciente. E depois, sabe o quanto custa
               uma consulta? Não, que nada... Você precisa é ver
               um profissional competente, de eficiência
               comprovada e ampla cultura e saber. Alguém de
               conhecimento milenar e habilidades suficientes
               para ajudar você com o seu problema.

               RAQUEL
               Ué, mas quem?

CENA 21 - EXT. CÉU DE PORTO ALEGRE - DIA

O rabino Malevich voa, planando, sobre os céus de Porto Alegre.
Ele sorri, feliz. Ouvem-se batidas a uma porta: seu sorriso se
desfaz. As batidas continuam, ele cai do céu. Ouve-se um baque.

CENA 22 - INT. APTO DO RABINO MALEVICH - DIA

Batidas à porta. Recostado sobre o sofá, o rabino abre lentamente
os olhos.

               RABINO
               Já vai, já vai...

Ele abre a porta. Vemos Raquel que entra, meio sem jeito.

               RAQUEL
               Bom dia, rabino...

O rabino a cumprimenta com um gesto da cabeça (não apertam as
mãos, aparentemente não se faz) e com um gesto oferece um sofá.

               RABINO
               Bom dia, minha jovem. Sente, por favor. O que a
               traz aqui?

               RAQUEL
               Bem, eu...

Ela senta, enrola as mãos, sem saber por onde começar. Cobre os
joelhos com o vestido, vemos suas coxas já mais roliças. Depois
ergue os olhos, dirige-se ao rabino.

               RAQUEL
               Eu vim porque preciso de um conselho... Estou
               tendo uns sonhos muito estranhos ultimamente.
               Sonho que cozinho um praro e como, cozinho outro
               prato e como... Toda noite, e cada vez um prato
               diferente.

               RABINO
               Cozinha, é? Mas... Que tipo de comida?

               RAQUEL
               Tudo que é tipo! A primeira vez foi feijoada.
               Depois teve spaghetti al sugo, pizza, frango ao
               molho pardo, quiche Loraine...

               RABINO (algo chocado)
               Mas peraí? E da nossa milenar culinária, nada?

               RAQUEL
               Claro que sim, também! Preparei ghefilte fish,
               conhece a receita? Peixe fresco moído, ovos, pão
               amolecido em água...

               RABINO
               ...cebola miúda frita em azeite, molho encorpado
               com cenoura, tomates... Ora, e como não vou
               conhecer! Um dos meus pratos preferidos, hummm...
               Delícia! E beigales de batata, não me diga que
               você também sonhou com beigales de batata?

               RAQUEL
               Sim, claro. A massa se faz com três ovos, farinha,
               fermento e água morna. Aí para o recheio pega dois
               quilos de batatas, quatro cebolas grandes. Pica
               tudo bem picado, condimenta com pimenta do
               reino... Muito fácil. Também fiz os beigales de
               queijo.

               RABINO (surpreso)
               Queijo?

               RAQUEL
               É. No recheio, em vez de batata, você pega
               duzentas gramas de queijo, mistura com...

O Rabino pega um bloco de papel e uma caneta.

               RABINO
               Peraí, peraí. Esse eu quero anotar. Como é que é?
               Duzentas gramas de queijo...

CENA 23 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - DIA

Sara sentada na mesa da sala, cercada de envelopes abertos, todos
contas impressas, pagamentos a ser feitos, etc. Ela tira todas as
moedas de centavos de um pote, começa a contar. Suspira, olha
para cima. Agora a foto de seu marido, Benjamim, está num pequeno
móvel, algo espremida entre dois vasos de flores. Sara olha para
a foto com pena.

               SARA
               Pois é, Benjamim, meu querido. Eu sei que você
               preferia ficar sobre a mesinha da cômoda. Mas
               levaram embora por causa do atraso no aluguel, por
               enquanto você tem que ficar aí. Eu sei que não tem
               muito espaço, mas fazer o quê? É. Até os móveis já
               começaram a levar... E o pior é que nem assim está
               dando. Olha só, o gelt que tem aqui, dá pra pagar
               só uma das contas qua a gente está devendo. Tem
               que escolher qual pagar, a luz ou telefone.

Ela ergue as duas contas em direção à fotografia em preto e
branco.

               SARA
               O que você acha, meu amor? Qual eu pago? A luz ou
               o telefone?

Nesse momento, a luz apaga. O quarto fica na penumbra. Ela olha
para cima, depois de novo para a fotografia.

               RAQUEL
               É, você tem razão... Luz.

CENA 24 - INT. APTO DO RABINO - DIA

Raquel e o rabino continuam a sua conversa. O Rabino circula pela
sala, depois senta de novo.

               RABINO
               Olha... Não é por nada não, mas eu pessoalmente
               não vejo nada de mal nesses sonhos. Não vejo por
               que a preocupação. Se eu soubesse cozinhar assim,
               ainda que fosse em sonhos...

               RAQUEL
               Mas não é esse o problema. O que acontece é que
               com tantos sonhos com comida eu estou realmente
               engordando... Olha como eu estou ficando! E eu
               praticamente só como em sonhos, não entendo como
               isso pode acontecer...

O rabino fica pensativo. Olha para a moça, depois sorri
benevolamente.

               RABINO
               "Senhor do Universo: eu sou Teu e meus sonhos são
               Teus. Um sonho eu tive mas não sei o que seja."

Ele sorri. Raquel o olha com atenção.

               RABINO
               Você não é única a ter problemas desse tipo. A
               preocupação com os sonhos e seu significado é
               muito antiga. De acordo com o Talmud, os sonhos
               podem ser mensagens divinas. Disse Deus: "Ainda
               que eu tenha escondido Minha face de Israel, eu me
               comunicarei através de sonhos."

               RAQUEL
               Mas então qual a mensagem de Deus? Que eu devo me
               transformar em uma gorda asquerosa?

O rabino pigarreia constrangido.

               RABINO
               Bom... Nem sempre é fácil descobrir o que as
               mensagens divinas significam... Nem todos possuem
               o dom de José. Você conhece a história de José do
               Egito, não conhece?

               RAQUEL
               Lembro vagamente... Alguma coisa a ver com vacas,
               né?

               RABINO
               Exato. Certa noite, o Faraó do Egito sonhou com
               sete vacas gordas que pastavam à beira do rio.
               Chegaram sete outras vacas, magras e feias, que
               engoliram as sete primeiras, mas continuaram tão
               magras como antes. Como o Faraó não soubesse o que
               aquilo queria dizer, mandou chamar José. Ele
               explicou que as sete vacas gordas representavam
               sete anos de fartura que viriam, e as vacas magras
               que as engoliam, os sete anos de fome e escassez
               que se seguiriam. Uma fome tão terrível que faria
               o povo esquecer que alguma vez houve fartura.

Raquel olha atenta para o Rabino, assentindo com a cabeça.

               RABINO
               José, então, aconselhou que se guardasse um quinto
               dos produtos da terra para sobreviver ao período
               de fome. A interpretação do sonho revelou-se
               correta, e o Faraó ficou tão satisfeito que
               transformou José no seu segundo em comando.

O Rabino faz uma pausa de efeito. Olha para Raquel.

               RABINO
               Também o seu sonho pode ter um significado bom,
               que só será revelado no devido tempo.

Eles ficam em silêncio alguns momentos. Se entreolham. De
repente, Raquel deixa escapar um arroto. Leva a mão à boca,
constrangida.

               RAQUEL
               Desculpa...

O rabino sorri, faz um gesto para deixá-la a vontade.
Raquel levanta, já mais calma.

               RAQUEL
               Bom... Obrigado pela ajuda. E pela história.

Aperta a mão do rabino, dirige-se até a porta. Quando ela está do
outro lado da porta, ele se dirige novamente a ela.

               RABINO
               Ah, e não esquente tanto a cabeça tentando achar
               significados. Nem todos os sonhos são mensagens.
               Alguns são... apenas sonhos. Certo? Shalom, minha
               filha. Vá em paz.

Ele fecha a porta. Senta novamente sobre o sofá, fecha os olhos.
Em poucos minutos está dormindo de novo, e sorrindo, feliz.
Sonhando, de olhos fechados, move as mãos como se conduzisse um
carro de corrida, imitando o som com um murmúrio.

CENA 25 - INT. CASA DE RAQUEL - NOITE

A mãe de Raquel está na mesa da cozinha, iluminada apenas pela
luz de uma vela. Espalhadas pela mesa, seguem várias conta e
papéis. Ela desesperada com a calculadora e a caneta. Som de
porta batendo, ela nem se mexe. Vemos Raquel que entra.

               SARA
               Cento e vinte, cento e trinta, cento e
               cinquenta...

Ela levanta o olhar, vê Raquel.

               SARA
               Ah, oi minha filha. Sua mãe continua aqui com os
               cálculos... Como foi com o rabino?

               RAQUEL
               Bem... Ele disse para eu não me preocupar. Disse
               que os sonhos podem ser mensagens divinas, e
               contou a história de José do Egito.

               SARA
               Aquela história das vacas?

               RAQUEL
               É, o sonho das vacas gordas e magras, os sete anos
               de fartura e os sete de fome...

De repente o rosto de Sara se ilumina, como se estivesse tendo
uma idéia brilhante.

               SARA
               Peraí... Vacas... Vacas...

Ela ri e bate palmas, ergue as mãos para o céu, dramaticamente. A
filha olha estranhada.

               SARA
               Vacas!!

CENA 26 - EXT. RUA DO BOM FIM - DIA

O Rabino caminha pelo Bom Fim. Passa por uma fila que dá a volta
à quadra e chega até o armarinho, que não é mais armarinho. Agora
está tudo renovado, bonito, e há um enorme letreiro:

VACA'S - RESTAURANTE
COZINHA KOSHER E INTERNACIONAL

O Rabino sacode a cabeça, aprovando.

CENA 27 - INT. RESTAURANTE "VACA'S" (COZINHA) - DIA

Na cozinha, Raquel, agora gorda como uma pipa, gira o conteúdo de
uma panela com a colher de pau. Experimenta um pouquinho. Sorri
feliz, lambe os lábios. Apaga o fogão e serve alguns pratos.

CENA 28 - INT. RESTAURANTE "VACA'S" (MESAS) - DIA

Raquel serve os pratos aos dois jovens do começo. Sorri, depois
sai. Um jovem cutuca o outro.

               JOVEM CABELUDO
               Por que não falou com ela? Tu tava a fim da
               Raquel, não tava não?

               JOVEM DE CABELO CURTO
               Eu não. Muito gorda...

Enquanto isso, no caixa, Sara contabiliza os pedidos. Ao lado da
caixa, um cartaz:

INTERPRETA-SE SONHOS - TRATAR COM SARA

O movimento no caixa sossega um pouco. Sara tira uma parte do
dinheiro do caixa e se abaixa para pegar algo de baixo do balcão.
Tira a caixinha de madeira, a abre: lá estão, novamente, as
jóias. Há também, na mesma caixa, um envelope: ela coloca o
dinheiro dentro deste.

Ao colocá-lo novamente na caixinha, vemos que no envelope está
escrito "Vacas Magras", e tem o desenho de uma vaca magérrima.
Sara fecha a caixinha com um sorriso.

CENA 29 - EXT. RUA DO BOM FIM - DIA

Vemos num plano aberto o Restaurante Vaca's e a fila que
praticamente dobra a esquina. O rabino entra no restaurante,
ouvimos em som baixo a sua voz.

               RABINO (VS)
               Tem ghefilte fish?

               RAQUEL (VS)
               Tem, claro.

               RABINO (VS)
               Então me vê uma porção aí. Não, duas...

A música toma o lugar das falas. Créditos finais.

FIM

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(c) Tomás Creus, 2002
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

13/07/2002

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