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               A FOME E A VONTADE DE COMER
	               episódio da série
	               CONTOS DE INVERNO 2002
	               roteiro de Tomás Creus
	               Versão 27/03/2002
	               argumento de Cíntia Moscovich,
	               baseado em seu conto homônimo
	               coordenação de texto da série
	               Jorge Furtado
	               e Giba Assis Brasil
	               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
	               para RBS TV
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CENA 1 - EXT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA
	Na rua, vemos um cartaz meio dilapidado: "ARMARINHO A PREFERIDA".
	Uma porta aberta. Pessoas passam pela frente, mas ninguém entra
	ou mesmo se detém.
CENA 2 - INT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA
	SARA, uma senhora de uns 60 anos, e sua filha, RAQUEL, de 25, uma
	moça magra, olham com expressão aborrecida para as pessoas que
	passam e passam sem entrar.
	               SARA
	               Ninguém em toda a manhã...
	               RAQUEL
	               Nem pra pedir informação.
Sara suspira, pega um baralho de cartas.
	               SARA
	               Quem deu a última?
	               RAQUEL
	               Eu.
	Sara dá as cartas. As duas começam a jogar. Raquel olha a sua
	mão, abaixa alguma carta, escolhe outra do monte. Nisso entra
	alguém, mas elas não notam, seguem jogando. Depois de ficar
	alguns segundos esperando que elas o notem, o jovem, VASCO, bate
	no balcão come se fosse à porta.
	               VASCO
	               Com... com licença?
As duas, apressadas, escondem o baralho e se levantam.
	               SARA
	               Sim, em que posso ajudar?
	               VASCO
	               Bom... Eu... Eu estava procurando uma peruca.
	               SARA e RAQUEL
	               Uma peruca?!?
	               RAQUEL
	               Seria pro senhor mesmo?
	Sara censura Raquel com o olhar, como dizendo "Isto é pergunta
	que se faça?" Depois sorri para Vasco, enquanto Sara vai dar uma
	olhada nos fundos.
	               SARA
	               A gente vai dar uma procurada.
Raquel volta com uma longa barba postiça nas mãos.
	               RAQUEL
	               Olha, tem esta barba aqui. Será que não serve?
	Sara pega alguma outra coisa de baixo do balcão. A apresenta a
	Vasco: é um óculos com nariz e bigode, daquele tipo "Groucho
	Marx".
	               SARA
	               Tem isto aqui também. É pra festa a fantasia?
Vasco sacode a cabeça negativamente.
	               VASCO
	               Não... Teria que ser uma peruca mesmo... É pro meu
	               pai... Tudo bem, obrigado.
	Ele sai. As duas se entreolham desanimadas, uma segurando a barba
	postiça, a outra o óculos do Groucho Marx. Suspiram.
CENA 3 - EXT. RUA NO BOM FIM - FIM DE TARDE
	Sara e Raquel caminham pela rua. Passam por um par de jovens, um
	cabeludo e um de cabelo curto. Eles cumprimentam Sara e Raquel
	mas passam reto sem se deter a falar.
	               JOVEM CABELUDO
	               Ué, porque não falou com ela? Não era tu que
	               estava a fim da Raquel?
	               JOVEM DE CABELO CURTO
	               Eu não. Muito magra...
	Sara e Raquel chegam em casa. Uma casinha ou apartamento com a
	pintura desbotada. Na porta, uma "mezuzá" [objeto cilíndrico com
	rolinho do Talmud dentro, por vezes usado por seguidores da
	religião judaica]. Elas beijam os dedos e passam a mão na mezuzá.
	Entram, fecham a porta.
CENA 4 - INT. CASA - QUARTO DE RAQUEL - NOITE
	Raquel senta na sua cama, exausta. Na parede, um poster do Woody
	Allen. No porta-retrato da mesa, foto dela criança, também
	magrinha.
	               SARA (VS)
	               Raqueel! O jantar tá na mesa!
	               RAQUEL
	               Eu não tou com fome.
Silêncio. Raquel pega o porta-retrato com sua fotografia.
	               SARA
	               Raquel, vem logo, vai esfriar!
Raquel suspira, levanta e sai.
CENA 5 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - DIA
	Sara e Raquel moram num pequeno apartamento de dois quartos,
	velho e gasto, que já viu dias melhores. A geladeira e o fogão
	são velhos, os móveis carcomidos. Sara coloca um prato sobre a
	mesa.
	               RAQUEL
	               Mãe, eu disse que não estou com fome.
	               SARA
	               Você disse a mesma coisa no almoço. Alguma coisa
	               tem que comer, minha filha, senão vai desaparecer!
	               RAQUEL
	               Mas eu comi no almoço.
	               SARA
	               Comeu uma salada, salada não é comida. Senta aí.
	               RAQUEL
	               Não... Talvez depois. Eu não estou com fome mesmo.
	               Tou meio com dor de cabeça, acho que vou me deitar
	               um pouco.
	Ela se dirige para o quarto. Sara pega um pedaço de pão, um dos
	pratos da mesa, estendendo-os em direção à filha.
	               SARA
	               Mas minha filha! Come um pão que seja! Um ovinho!
Pega um outro prato, com uma espécie de bolinhos de peixe.
	               SARA
	               Um ghefilte fish!
	Mas a filha já foi, ouvimos a porta do quarto fechando. Sara
	ergue as mãos para o céu.
	               SARA
	               Ai meu Deus do céu... O que eu vou fazer com esta
	               menina... Óióiói...
Ela resmunga algo incompreensível em ídiche.
CENA 6 - INT. COZINHA MARAVILHOSA - DIA
	Uma cozinha de luxo, de comercial de margarina, com fogão e
	móveis novos. Vemos o rosto de Raquel, com lágrimas nos olhos.
	Ela limpa a lágrima, depois vemos que está picando cebolas. Há um
	alho picado num pratinho, junto a outros ingredientes. Depois ela
	pica uma linguiça e coloca tudo numa enorme caçarola de ferro que
	está no fogo, com uma feijoada borbulhante.
Pronta a feijoada, Raquel apaga o fogo.
	Coloca a panela na mesa da própria cozinha, e serve-se uma
	generosa porção no prato. Começa a comer desesperadamente. Logo o
	prato parece ser insuficiente, ela começa a comer vorazmente a
	colheradas da própria panela.
CENA 7 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE
	Raquel acorda repentinamente na cama, debaixo das cobertas.
	Ergue-se na cama, acende a luz. Leva à mão à barriga, sentindo-se
	mal. Arrota. Faz uma careta, sai da cama de camisola, abre a
	gaveta e retira um pacotinho de sal de frutas. Sai de quadro,
	ouvimos o som da torneira, ela volta com um copo de água. Mistura
	o sal de frutas e bebe. Fica sentada na cama, expressão
	pensativa.
CENA 8 - INT. ARMARINHO - DIA
	Raquel está sozinha na loja, lendo uma revista de moda. Entra uma
	moça, FAUSTINA, 25 anos. Ela usa roupas formais.
	               FAUSTINA
	               Oi. Eu estou procurando um sutiã.
	               RAQUEL
	               Que tipo?
	Faustina deixa a revista de moda sobre o balcão. Pega uma caixa
	com sutiãs, põe sobre o balcão.
	               FAUSTINA
	               Um tipo que me faça parecer um pudim de leite
	               condensado.
As duas ficam algo desanimadas, olhando os sutiãs, muito caretas.
	               RAQUEL
	               Pode ser diet?
	               FAUSTINA
	               Melhor não. Estou precisando engordar meu salário.
	               RAQUEL
	               Desculpe. Acho que não posso te ajudar. Não quer
	               ver uma camisola?
	               FAUSTINA
	               Não, obrigado.
	Faustina sai, apressada. Raquel acena, depois volta a se
	concentrar na revista.
CENA 9 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE
	Raquel, de camisola, prestes a se deitar. Olha para a cama, algo
	hesitante. Coloca um copo de água sobre a mesinha e um pacotinho
	de sal de frutas ao lado. Depois se deita, apaga a luz.
CENA 10 - INT. COZINHA MARAVILHOSA - DIA
	Raquel prepara um molho de tomate: tomate picado, cebola, alho,
	tudo frita na frigideira. Ao lado, uma panela com água fervente:
	ela coloca um pacote de espaguete, que lentamente amolece no
	contato com a água quente. Com agilidade, ela mexe o molho
	enquanto a massa cozinha.
	À mesa, ela se serve um enorme prato de espaguete e, mais uma
	vez, come como uma condenada, sugando os fios de espaguete que
	caem pela boca e respingando molho.
CENA 11 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE
	Raquel acorda sobressaltada. Leva à mão ao estômago. Curva-se
	sobre a cama, quase a ponto de vomitar, mas sem chegar a tal
	ponto. Prepara o sal de frutas rápido e bebe tudo de um gole.
	Exala longamente.
CENA 12 - INT. ARMARINHO - DIA
Raquel e Sara no armarinho. Raquel com cara triste.
	               SARA
	               Que desânimo é esse? Tá certo que as coisas vão
	               mal, mas...
	               RAQUEL
	               Não é isso. É que eu... Eu... Ando tendo uns
	               sonhos estranhos.
	               SARA
	               Sonhos estranhos?
	               RAQUEL
	               É. Com comida.
	               SARA
	               Ora, não tem nada de estranho. Nunca come nada,
	               tem mais é que sonhar com comida mesmo.
	               RAQUEL
	               Mas não é só isso... É que... Bom, eu sonho que eu
	               cozinho um prato, mas bem mesmo, como uma
	               cozinheira profissional. Reúno todos os
	               ingredientes, preparo certinho, o prato fica
	               perfeito... Imagina, no outro dia até chrein
	               preparei.
	               SARA
	               Chrein?
	               RAQUEL
	               É. Beterrabas raladas, raiz forte, mostarda, um
	               beliscão de sal e gotas de vinagre de vinho
	               branco. É isso, não é?
	               SARA
	               É, isso mesmo... Mas desde quando você sabe
	               preparar o chrein?
	               RAQUEL
	               Aí é que tá. Não sei, nunca aprendi. Mas no sonho
	               foi como se soubesse. Como se tivesse nascido
	               sabendo...
	               SARA
	               Chrein... Mas que coisa. E ghefilte fish?
	               SARA
	               Piava fresca moída, ovos, pão amolecido em água,
	               cebola miúda frita em azeite, molho encorpado com
	               cenoura, tomates? Claro, fiz também... Mas isso
	               não é o problema. O pior do sonho é que depois de
	               preparar, eu mesma como tudo sozinha, como uma
	               desaforada. Ontem mesmo foi spaghetti, comi uma
	               panela cheia. Semana passada então? Foi uma
	               feijoada completa. Com todos os ingredientes:
	               toucinho, linguiça, paio...
	               SARA
	               Você comeu carne de porco?!?
	               RAQUEL
	               Bom, era sonho, né? Não posso controlar os
	               próprios sonhos...
	               SARA
	               Lá isso é...
Ela olha para a filha agora com mais atenção.
	               SARA
	               Mas... Peraí... Vem cá...
	Ela segura o queixo da filha, aproximando e examinando o seu
	rosto.
	               SARA
	               Olha, eu estou te achando menos pálida, mais
	               saudável... Se não te conhecesse, diria até que
	               engordou.
	               RAQUEL
	               Pois é, acho que são os sonhos também... Eu acordo
	               me sentindo cheia, estufada. Como se tivesse
	               comido mesmo, sabe? É horrível...
A mãe sorri, como se não tivesse ouvido o último comentário.
	               SARA
	               É, você tá melhor mesmo. Muito melhor. Espera aí.
	A mãe vai aos fundos da loja, volta com uma balança daquelas de
	banheiro. Faz Raquel se pesar. A balança indica 55 quilos.
	               SARA
	               Não é sonho não. Você tá pesando mais mesmo!
A mãe sorri, feliz.
	               RAQUEL
	               Mas mãe... Você não acha muito estranho isso tudo?
	               Essa coisa dos sonhos...
	               SARA
	               Ora, sonhos, sonhos... E o que é a vida senão um
	               sonho? Foi o modo como Deus encontrou de fazer
	               você comer, porque de outro jeito... Seu pai
	               sempre dizia, de um modo ou de outro, Deus sempre
	               há de prover.
Ela olha para cima.
	               SARA
	               É, isto só pode ser um sinal divino... Um anúncio
	               dos céus...
	Ela ergue os braços ao céu, em agradecimento. Mas Raquel não
	parece nada feliz.
CENA 13 - EXT. RUA - FRENTE DO ARMARINHO - DIA
	Vemos a entrada de "A Preferida", com a placa. Caem alguns flocos
	de neve: está começando a nevar sobre Porto Alegre.
CENA 14 - INT. CASA DE RAQUEL E SARA - NOITE
Sara faz contas com a calculadora. Ao seu lado, a filha a ajuda.
	               SARA
	               Ai ai... Já estamos com dois meses de atraso no
	               aluguel. E ó...
Ela mostra uma carta impressa.
	               SARA
	               Tão dizendo que se não pagarmos a conta da luz,
	               eles vão cortar. Eu não sei mais o que fazer... Se
	               os negócios não melhorarem logo...
	Raquel coloca a mão sobre o ombro da mãe, confortando-a. Sara
	segura a sua mão.
	               SARA
	               Tá, não te preocupa. Algum jeito vai surgir. Você
	               vai dormir, vai. Amanhã a gente pensa.
	               RAQUEL
	               Não, eu... Eu não estou com sono.
	Seu rosto com olheiras, entretanto, desmente a informação. Ela
	reprime um bocejo.
	               SARA
	               Que é isso, minha filha. Vai, que amanhã tem que
	               acordar cedo. Eu também já vou dormir daqui a
	               pouco.
Ela beija a testa de Raquel. Depois a filha vai para a porta.
	               RAQUEL
	               Tá bom. Boa noite, mãe...
CENA 15 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE
	Raquel olha para a cama. A cama "olha" para Raquel. É um
	confronto de inimigos, como naqueles duelos de olhares nos filmes
	do Sérgio Leone. Raquel coloca uma termolar de café sobre a
	mesinha. Também vários livros. Uma pilha de livros.
CENA 16 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - NOITE
	A mãe abre um gabinete fechado a chave. Sobre o gabinete, a foto
	do finado marido de Sara, pai de Raquel. Raquel abre uma
	caixinha. Há uma pulseira de prata com diamantes. Ela a pega.
	Também um colar de jóias, rubis. Ela olha para a foto no retrato,
	que parece observá-la.
	               SARA
	               Pois é... Eu sei que prometi nunca tocar nessas
	               coisas. Eu sei que são coisas que você me deu de
	               presente, e que você ficaria triste se eu
	               vendesse. Mas... Os tempos são difíceis, entende?
	               É preciso fazer sacrifícios. E depois, eu só vou
	               penhorar, não vender. Quando a situação melhorar,
	               eu recupero...
CENA 17 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE
	Raquel lendo, começa a se adormentar: seus olhos se fecham
	sozinhos. Irritada, ela pega um pouco de fita adesiva e cola as
	pálpebras puxando-as para cima, de modo a que os olhos fiquem
	permanentemente abertos.
Ela lê, lê, lê.
	Começa a ficar com sono, boceja. Os olhos começam a tentar se
	fechar, mas são impedidos pela fita adesiva, e ela retorna à
	leitura.
	Mais uma vez a cena se repete, ela resiste. Na terceira vez as
	pálpebras são mais fortes e se fecham desgrudando a fita adesiva.
	O pescoço despenca, o corpo amolece, Raquel cai no sono.
CENA 18 - INT. COZINHA MARAVILHOSA DE RAQUEL - DIA
Sequência de cenas rápidas:
Raquel cortando um pepino em várias rodelas.
Raquel colocando no forno um peixe assado.
Raquel batendo ovos.
Raquel servindo-se ensopado.
Raquel comendo um frango inteiro com as mãos.
Raquel tragando uma enorme fatia de bolo de chocolate.
CENA 19 - INT. QUARTO DE RAQUEL - MANHÃ
	Raquel acorda com uma cara terrível, tenta se levantar, rola e
	cai da cama com um baque surdo.
CENA 20 - INT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA
	Agora Raquel está visivelmente mais gorda e mais desanimada.
	Sentada no balcão do armarinho, suspira.
	               SARA
	               Não fica assim, filha. Tua saúde nunca esteve
	               melhor, meinmeidale. Eu já disse, foi o modo que
	               Deus achou de te ajudar neste período difícil para
	               a gente...
	               RAQUEL
	               Pois podia ter achado outro modo, porque eu não me
	               sinto nada bem.
	Ela arruma um pouco as coisas sobre o balcão. Vira-se novamente
	para a mãe.
	               RAQUEL
	               Eu... Estou pensando em ir no psiquiatra. A
	               Faustina me recomendou um, o Dr. Finkelstein. Diz
	               que ele faz milagres.
Sara sacode a cabeça, não parece convencida.
	               SARA
	               Dr. Finkelstein?!? Mischigas! Dizem que ele passa
	               o tempo inteiro só querendo saber histórias sobre
	               a mãe do paciente. E depois, sabe o quanto custa
	               uma consulta? Não, que nada... Você precisa é ver
	               um profissional competente, de eficiência
	               comprovada e ampla cultura e saber. Alguém de
	               conhecimento milenar e habilidades suficientes
	               para ajudar você com o seu problema.
	               RAQUEL
	               Ué, mas quem?
CENA 21 - EXT. CÉU DE PORTO ALEGRE - DIA
	O rabino Malevich voa, planando, sobre os céus de Porto Alegre.
	Ele sorri, feliz. Ouvem-se batidas a uma porta: seu sorriso se
	desfaz. As batidas continuam, ele cai do céu. Ouve-se um baque.
CENA 22 - INT. APTO DO RABINO MALEVICH - DIA
	Batidas à porta. Recostado sobre o sofá, o rabino abre lentamente
	os olhos.
	               RABINO
	               Já vai, já vai...
Ele abre a porta. Vemos Raquel que entra, meio sem jeito.
	               RAQUEL
	               Bom dia, rabino...
	O rabino a cumprimenta com um gesto da cabeça (não apertam as
	mãos, aparentemente não se faz) e com um gesto oferece um sofá.
	               RABINO
	               Bom dia, minha jovem. Sente, por favor. O que a
	               traz aqui?
	               RAQUEL
	               Bem, eu...
	Ela senta, enrola as mãos, sem saber por onde começar. Cobre os
	joelhos com o vestido, vemos suas coxas já mais roliças. Depois
	ergue os olhos, dirige-se ao rabino.
	               RAQUEL
	               Eu vim porque preciso de um conselho... Estou
	               tendo uns sonhos muito estranhos ultimamente.
	               Sonho que cozinho um praro e como, cozinho outro
	               prato e como... Toda noite, e cada vez um prato
	               diferente.
	               RABINO
	               Cozinha, é? Mas... Que tipo de comida?
	               RAQUEL
	               Tudo que é tipo! A primeira vez foi feijoada.
	               Depois teve spaghetti al sugo, pizza, frango ao
	               molho pardo, quiche Loraine...
	               RABINO (algo chocado)
	               Mas peraí? E da nossa milenar culinária, nada?
	               RAQUEL
	               Claro que sim, também! Preparei ghefilte fish,
	               conhece a receita? Peixe fresco moído, ovos, pão
	               amolecido em água...
	               RABINO
	               ...cebola miúda frita em azeite, molho encorpado
	               com cenoura, tomates... Ora, e como não vou
	               conhecer! Um dos meus pratos preferidos, hummm...
	               Delícia! E beigales de batata, não me diga que
	               você também sonhou com beigales de batata?
	               RAQUEL
	               Sim, claro. A massa se faz com três ovos, farinha,
	               fermento e água morna. Aí para o recheio pega dois
	               quilos de batatas, quatro cebolas grandes. Pica
	               tudo bem picado, condimenta com pimenta do
	               reino... Muito fácil. Também fiz os beigales de
	               queijo.
	               RABINO (surpreso)
	               Queijo?
	               RAQUEL
	               É. No recheio, em vez de batata, você pega
	               duzentas gramas de queijo, mistura com...
O Rabino pega um bloco de papel e uma caneta.
	               RABINO
	               Peraí, peraí. Esse eu quero anotar. Como é que é?
	               Duzentas gramas de queijo...
CENA 23 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - DIA
	Sara sentada na mesa da sala, cercada de envelopes abertos, todos
	contas impressas, pagamentos a ser feitos, etc. Ela tira todas as
	moedas de centavos de um pote, começa a contar. Suspira, olha
	para cima. Agora a foto de seu marido, Benjamim, está num pequeno
	móvel, algo espremida entre dois vasos de flores. Sara olha para
	a foto com pena.
	               SARA
	               Pois é, Benjamim, meu querido. Eu sei que você
	               preferia ficar sobre a mesinha da cômoda. Mas
	               levaram embora por causa do atraso no aluguel, por
	               enquanto você tem que ficar aí. Eu sei que não tem
	               muito espaço, mas fazer o quê? É. Até os móveis já
	               começaram a levar... E o pior é que nem assim está
	               dando. Olha só, o gelt que tem aqui, dá pra pagar
	               só uma das contas qua a gente está devendo. Tem
	               que escolher qual pagar, a luz ou telefone.
	Ela ergue as duas contas em direção à fotografia em preto e
	branco.
	               SARA
	               O que você acha, meu amor? Qual eu pago? A luz ou
	               o telefone?
	Nesse momento, a luz apaga. O quarto fica na penumbra. Ela olha
	para cima, depois de novo para a fotografia.
	               RAQUEL
	               É, você tem razão... Luz.
CENA 24 - INT. APTO DO RABINO - DIA
	Raquel e o rabino continuam a sua conversa. O Rabino circula pela
	sala, depois senta de novo.
	               RABINO
	               Olha... Não é por nada não, mas eu pessoalmente
	               não vejo nada de mal nesses sonhos. Não vejo por
	               que a preocupação. Se eu soubesse cozinhar assim,
	               ainda que fosse em sonhos...
	               RAQUEL
	               Mas não é esse o problema. O que acontece é que
	               com tantos sonhos com comida eu estou realmente
	               engordando... Olha como eu estou ficando! E eu
	               praticamente só como em sonhos, não entendo como
	               isso pode acontecer...
	O rabino fica pensativo. Olha para a moça, depois sorri
	benevolamente.
	               RABINO
	               "Senhor do Universo: eu sou Teu e meus sonhos são
	               Teus. Um sonho eu tive mas não sei o que seja."
Ele sorri. Raquel o olha com atenção.
	               RABINO
	               Você não é única a ter problemas desse tipo. A
	               preocupação com os sonhos e seu significado é
	               muito antiga. De acordo com o Talmud, os sonhos
	               podem ser mensagens divinas. Disse Deus: "Ainda
	               que eu tenha escondido Minha face de Israel, eu me
	               comunicarei através de sonhos."
	               RAQUEL
	               Mas então qual a mensagem de Deus? Que eu devo me
	               transformar em uma gorda asquerosa?
O rabino pigarreia constrangido.
	               RABINO
	               Bom... Nem sempre é fácil descobrir o que as
	               mensagens divinas significam... Nem todos possuem
	               o dom de José. Você conhece a história de José do
	               Egito, não conhece?
	               RAQUEL
	               Lembro vagamente... Alguma coisa a ver com vacas,
	               né?
	               RABINO
	               Exato. Certa noite, o Faraó do Egito sonhou com
	               sete vacas gordas que pastavam à beira do rio.
	               Chegaram sete outras vacas, magras e feias, que
	               engoliram as sete primeiras, mas continuaram tão
	               magras como antes. Como o Faraó não soubesse o que
	               aquilo queria dizer, mandou chamar José. Ele
	               explicou que as sete vacas gordas representavam
	               sete anos de fartura que viriam, e as vacas magras
	               que as engoliam, os sete anos de fome e escassez
	               que se seguiriam. Uma fome tão terrível que faria
	               o povo esquecer que alguma vez houve fartura.
Raquel olha atenta para o Rabino, assentindo com a cabeça.
	               RABINO
	               José, então, aconselhou que se guardasse um quinto
	               dos produtos da terra para sobreviver ao período
	               de fome. A interpretação do sonho revelou-se
	               correta, e o Faraó ficou tão satisfeito que
	               transformou José no seu segundo em comando.
O Rabino faz uma pausa de efeito. Olha para Raquel.
	               RABINO
	               Também o seu sonho pode ter um significado bom,
	               que só será revelado no devido tempo.
	Eles ficam em silêncio alguns momentos. Se entreolham. De
	repente, Raquel deixa escapar um arroto. Leva a mão à boca,
	constrangida.
	               RAQUEL
	               Desculpa...
	O rabino sorri, faz um gesto para deixá-la a vontade.
	Raquel levanta, já mais calma.
	               RAQUEL
	               Bom... Obrigado pela ajuda. E pela história.
	Aperta a mão do rabino, dirige-se até a porta. Quando ela está do
	outro lado da porta, ele se dirige novamente a ela.
	               RABINO
	               Ah, e não esquente tanto a cabeça tentando achar
	               significados. Nem todos os sonhos são mensagens.
	               Alguns são... apenas sonhos. Certo? Shalom, minha
	               filha. Vá em paz.
	Ele fecha a porta. Senta novamente sobre o sofá, fecha os olhos.
	Em poucos minutos está dormindo de novo, e sorrindo, feliz.
	Sonhando, de olhos fechados, move as mãos como se conduzisse um
	carro de corrida, imitando o som com um murmúrio.
CENA 25 - INT. CASA DE RAQUEL - NOITE
	A mãe de Raquel está na mesa da cozinha, iluminada apenas pela
	luz de uma vela. Espalhadas pela mesa, seguem várias conta e
	papéis. Ela desesperada com a calculadora e a caneta. Som de
	porta batendo, ela nem se mexe. Vemos Raquel que entra.
	               SARA
	               Cento e vinte, cento e trinta, cento e
	               cinquenta...
Ela levanta o olhar, vê Raquel.
	               SARA
	               Ah, oi minha filha. Sua mãe continua aqui com os
	               cálculos... Como foi com o rabino?
	               RAQUEL
	               Bem... Ele disse para eu não me preocupar. Disse
	               que os sonhos podem ser mensagens divinas, e
	               contou a história de José do Egito.
	               SARA
	               Aquela história das vacas?
	               RAQUEL
	               É, o sonho das vacas gordas e magras, os sete anos
	               de fartura e os sete de fome...
	De repente o rosto de Sara se ilumina, como se estivesse tendo
	uma idéia brilhante.
	               SARA
	               Peraí... Vacas... Vacas...
	Ela ri e bate palmas, ergue as mãos para o céu, dramaticamente. A
	filha olha estranhada.
	               SARA
	               Vacas!!
CENA 26 - EXT. RUA DO BOM FIM - DIA
	O Rabino caminha pelo Bom Fim. Passa por uma fila que dá a volta
	à quadra e chega até o armarinho, que não é mais armarinho. Agora
	está tudo renovado, bonito, e há um enorme letreiro:
	VACA'S - RESTAURANTE
	COZINHA KOSHER E INTERNACIONAL
O Rabino sacode a cabeça, aprovando.
CENA 27 - INT. RESTAURANTE "VACA'S" (COZINHA) - DIA
	Na cozinha, Raquel, agora gorda como uma pipa, gira o conteúdo de
	uma panela com a colher de pau. Experimenta um pouquinho. Sorri
	feliz, lambe os lábios. Apaga o fogão e serve alguns pratos.
CENA 28 - INT. RESTAURANTE "VACA'S" (MESAS) - DIA
	Raquel serve os pratos aos dois jovens do começo. Sorri, depois
	sai. Um jovem cutuca o outro.
	               JOVEM CABELUDO
	               Por que não falou com ela? Tu tava a fim da
	               Raquel, não tava não?
	               JOVEM DE CABELO CURTO
	               Eu não. Muito gorda...
	Enquanto isso, no caixa, Sara contabiliza os pedidos. Ao lado da
	caixa, um cartaz:
INTERPRETA-SE SONHOS - TRATAR COM SARA
	O movimento no caixa sossega um pouco. Sara tira uma parte do
	dinheiro do caixa e se abaixa para pegar algo de baixo do balcão.
	Tira a caixinha de madeira, a abre: lá estão, novamente, as
	jóias. Há também, na mesma caixa, um envelope: ela coloca o
	dinheiro dentro deste.
	Ao colocá-lo novamente na caixinha, vemos que no envelope está
	escrito "Vacas Magras", e tem o desenho de uma vaca magérrima.
	Sara fecha a caixinha com um sorriso.
CENA 29 - EXT. RUA DO BOM FIM - DIA
	Vemos num plano aberto o Restaurante Vaca's e a fila que
	praticamente dobra a esquina. O rabino entra no restaurante,
	ouvimos em som baixo a sua voz.
	               RABINO (VS)
	               Tem ghefilte fish?
	               RAQUEL (VS)
	               Tem, claro.
	               RABINO (VS)
	               Então me vê uma porção aí. Não, duas...
A música toma o lugar das falas. Créditos finais.
FIM
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	(c) Tomás Creus, 2002
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
13/07/2002
| Anexo | Tamanho | 
|---|---|
| fomevont.txt | 28.76 KB |