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HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES
roteiro de Jorge Furtado
versão de 15 de Março de 2001
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Uma praia se perde no horizonte, quase vazia. O vento surge e
some em linhas de areia branca, o céu é branco e o mar quase
marrom. Muito ao longe, um HOMEM se aproxima. CHICO e JUCA, 16
anos, estão sentados numa duna quase na beira da praia, olhando
para o mar. Chico está de boné. Juca tem uma tala no pescoço.
Chico dá uma olhada na direção do Homem que se aproxima: quarenta
anos, copo de cerveja na mão, relógio.
CHICO (OFF)
Esta é a maior praia do mundo, trezentos e
cinqüenta e três quilômetros, está no livro dos
recordes. Talvez seja também a pior praia do
mundo, principalmente em março. Em janeiro e
fevereiro pode até ser divertido, mas em março é
um saco. A gente tem que inventar coisas para
fazer todo tempo. Não é fácil.
O homem se aproxima e, quando chega exatamente na frente dos
dois, pisa num buraco. O Homem quase cai, derramando um pouco de
cerveja.
Chico e Juca ficam imóveis. O homem examina o buraco, tapado por
jornais e areia, uma evidente armadilha.
O homem, furioso, olha para os lados, olha para os dois, volta a
olhar para os lados.
Juca e Chico não movem um músculo do rosto. O homem olha
fixamente para os dois. Uma lágrima escorre pelo rosto de Juca.
CHICO (OFF)
Quando eu estou louco para rir mas não posso,
penso em coisas muito tristes. Minha mãe
reclamando da casa. Meu pai tentando nos convencer
que esta é a melhor praia do mundo. Meu pai
fazendo contas para pagar nossas férias. Um filho
que eu posso ter um dia me olhando fazer contas
para pagar as férias dele. Eu tentando convencer
um filho que eu posso ter um dia que esta é a
melhor praia do mundo. Quase sempre funciona.
O homem recua, de olho fixo em Chico e Juca, pisa no buraco e cai
para trás. O homem se estatela na areia, derrama toda a cerveja
na própria cara.
Juca dá uma gargalhada.
CHICO (OFF)
Quase sempre.
Os dois se levantam e saem correndo, rindo. O homem grita, tenta
se levantar. Juca e Chico correm pelas dunas.
Créditos Iniciais.
CENA 2 - PLAYLAND - INTERIOR/NOITE
Um flíper (uma casa de diversões eletrônicas). Chico e Juca estão
jogando fla-flu (pebolim). Duas meninas entram. Juca olha para as
duas. Uma é MORENA, cabelo curto e nariz fino. A outra é RUIVA,
sardas, olhos claros. Pedem duas cocas. Juca olha para Chico.
Juca pega a bolinha do fla-flu e, disfarçando, joga na direção
delas. Vai atrás.
JUCA
Com licença?
Juca se abaixa e pega a bolinha junto aos pés das duas. As
meninas ficam olhando para ele, de tala no pescoço.
JUCA
Obrigado.
MORENA
O que aconteceu?
JUCA
A bolinha caiu.
MORENA
No pescoço.
JUCA
Ah. Desloquei a terceira vértebra cervical. Eu
estava pegando onda, fui dar um drop, meu parceiro
estava no tubo, pranchou. Mas tudo bem, já estou
pronto para outra. Vocês estão aqui?
MORENA
Estamos, né?
JUCA
Quero dizer, estão passando o verão aqui?
MORENA
Não. Meu namorado está botando gasolina, estamos
indo para o Rosa. Sabe a praia do Rosa? Fica em
Santa Catarina depois do...
JUCA
Então tchau.
Ele se vira, dá as costas, deixa ela falando sozinha. Volta para
o jogo.
CHICO
E aí?
JUCA
Namorado de carro, não dá para meter. Ainda mais
com cachumba.
CHICO
Tu disse que estava com cachumba?
JUCA
Claro que não. Eu estou na fase de maior contágio.
Se eu cuspir em ti tu tá frito.
CHICO
Eu já tive cachumba. Todo mundo já teve cachumba.
O centroavante segura a bola, toca sutilmente de lado para o
ponteiro esquerdo que, numa roleta precisa, acerta o canto
direito do gol, sem chances para o arqueiro. Gol de Chico.
Termina o jogo.
CHICO
Cinco a três. (vão saindo) Vamos pro outro?
JUCA
Não, vou dormir. O médico disse que a cachumba
pode descer pro saco, já pensou? Eu de sunga, na
praia, caminhando de perna aberta.
CHICO
Não, não pensei.
Os namorados das meninas entram.
MENINA
(para Juca) Esse é o meu namorado.
Juca fica olhando para o cara algum tempo. Sorri, abraça o
sujeito, fica abraçado nele.
JUCA
Aí, brother. Tudo certo? Firmeza. (tosse sobre o
cara, tosse, tosse) É isso aí. Boas ondas.
Vão saindo. Juca pára.
JUCA
(para o cara) Tu já teve cachumba?
O cara faz que não. Juca sorri e sai. O cara fica se apalpando no
pescoço, preocupado.
CENA 3 - PLAYWORLD - INTERIOR/NOITE
Chico entra em outro flíper, este com mais brinquedos eletrônicos
e menos jogos de mesa. Chico compra duas fichas. Vai para um
brinquedo de tiro ao pato.
CHICO (OFF)
Meu recorde nos patos é setenta e dois. Meu vice-
recorde é cinqüenta e quatro. Quase sempre eu faço
entre quarenta e cinco e cinqüenta, cinqüenta e
dois. O dia dos setenta e dois patos foi um
acontecimento, eu estava em estado de graça,
atirava nos patos antes deles aparecerem. Eu
estava integrado em alguma força cósmica, sabia
que o pato ia subir, o anjo da guarda do flíper
estava pousado no meu ombro e dizia: lá vem um
pato. No dia em que eu conheci a Roza o anjo da
guarda do flíper não estava me dizendo nada sobre
os patos. Sorte dos patos e também sorte minha. No
game-over a luz da máquina se apagou e ela
apareceu no reflexo.
Chico vê o reflexo de Roza na máquina. Vira-se. (Cena em câmera
lenta.)
ROZA, 18 anos, vestido de alcinha e cabelo preso, tenta colocar
uma ficha no pimbal. Chico fica admirando a beleza da moça, só
comparável a sua inaptidão para lidar com a máquina. Roza põe a
ficha no lugar errado, não entra. Põe a ficha no lugar certo mas
aperta o botão errado e a máquina devolve a ficha.
Chico se aproxima.
CHICO
É no outro buraco.
ROZA
Já tentei, não deu.
CHICO
Tu apertou no botão errado. Põe de novo.
Ela põe a ficha no buraco certo.
CHICO
Agora aperte o botão "play".
ROZA
Qual é?
CHICO
O grande, com a luz vermelha, escrito "play".
Ela aperta e a máquina se acende.
ROZA
Deu! Obrigado.
Ela joga. Ele põe outra ficha na sua máquina e finge atirar nos
patos. Uma CRIANÇA se aproxima e fica olhando Chico atirar. Chico
nem olha para os patos, não tira os olhos de Roza.
Ela é péssima, mal consegue botar a bola em jogo. Quando
consegue, perde a bola sem tocar nela nenhuma vez. Joga outra
bola e perde. Chico erra nos patos. Roza perde mais uma bola.
Chico erra nos patos. Roza perde mais uma bola, e mais uma.
As duas máquinas informam game-over quase ao mesmo tempo. A
criança olha para Chico.
CRIANÇA
Tu é horrível.
Chico sorri. Vai comprar mais fichas, encontra-se com Roza no
caixa.
ROZA
Vou eu botar mais dinheiro fora.
CHICO
Quer churros?
ROZA
O quê?
CHICO
Tu... quer comer um churros? Eu pago.
ROZA
Já comprei uma ficha.
CHICO
Depois a gente volta.
Roza observa Chico alguns segundos.
ROZA
Tudo bem.
CENA 4 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE
Chico e Roza observam o vendedor de churros preparando a massa.
CHICO
Meu nome é Chico. Francisco.
ROZA
O meu é Roza. Roza com z.
CHICO
Por que com z?
ROZA
O cara do cartório era meio analfabeto. Só
descobri que era com z há três anos. Achei legal.
Rosa com "s" tem muitas. Com z, só eu.
CHICO
O meu Chico é com "x" e com "q".
ROZA
É?
CHICO
Mentira, é Chico mesmo. Tu quer doce de leite ou
creme?
ROZA
Doce de leite.
CHICO
Os dois com doce de leite.
ROZA
Eu nem sei porque existe churros com creme, nunca
vi ninguém pedir com creme, doce de leite é muito
melhor.
CHICO
É bom que exista o de creme. É mais legal comer
pensando "eu estou comendo o melhor" do que comer
pensando "eu estou comendo o único que tinha para
comer".
ROZA
Isso é.
CHICO
Sua casa é por aqui?
ROZA
Não. Lá perto não tem flíper. Vamos comer na
praia?
CENA 5 - PRAIA - EXTERIOR/NOITE
Chico e Roza caminham pela praia, comendo churros.
ROZA
Por que tu tira férias em março?
CHICO
É mais barato.
ROZA
Tá perdendo aula?
CHICO
Só uma semana. Na primeira semana nunca acontece
muita coisa. E tu?
ROZA
Eu gosto de praia em março. Tem menos gente.
CHICO
Tu vai à praia que horas?
ROZA
De tarde. Acordo para almoçar. Teve uns dias que
eu não fui, mas essa última semana eu vou
aproveitar. Em janeiro e fevereiro tu fica em
Porto Alegre?
CHICO
Fico. E tu?
ROZA
As vezes eu viajo. Tu viu como as tatuíras brilham
com a lua? São fluorescentes.
CHICO
Fosforescentes.
ROZA
Qual a diferença?
CHICO
Fluorescentes é de flúor, fosforescentes é de
fósforo. As lâmpadas são fluorescentes, as
tatuíras são fosforescentes.
ROZA
Tu tá com doce de leite no queixo.
Ela passa o dedo no queixo dele, tirando o doce de leite. Ele
fica olhando para ela, recortada contra a lua cheia. Ela oferece
o dedo para ele. Ele chupa o dedo dela.
CHICO
Tu tá cheia de açúcar.
Ela limpa o açúcar com a mão, ele segura o braço dela.
Beijam-se, um beijo longo e silencioso, iluminado pela lua e
pontilhado por tatuíras fosforescentes.
CENA 6 - CASINHA DO SALVA-VIDAS - EXTERIOR/NOITE
Chico e Roza estão sentados na casinha do salva-vidas olhando
para o mar.
ROZA
Tu vai fazer vestibular?
CHICO
Ano que vem.
ROZA
Para quê?
CHICO
Não sei ainda. Comunicação ou letras. Ou desenho
industrial. Se bem que eu gosto de computação
também.
ROZA
Eu fiz para arquitetura mas não passei. Este ano
nem me inscrevi. Quero viajar, tô guardando
dinheiro. Acho que vou para a Austrália.
CHICO
Por que para Austrália?
ROZA
Tenho uma amiga que foi para lá. Austrália é bom
que é bem longe. Tu fica lá, na Austrália, bem
longe, todo mundo pensando que tu deve estar muito
feliz.
CHICO
Tu fala inglês?
ROZA
More or less. E tu?
CHICO
Estou no cultural.
ROZA
Tu é virgem?
CHICO
Não. Quer dizer, mais ou menos.
ROZA
Como assim?
CHICO
Acho que sou.
ROZA
Acha?
CHICO
É que eu tive umas histórias, mas nada muito,
assim, profundo.
ROZA
Sei como é. Quer deixar de ser?
CHICO
Quero, claro.
Pausa. Roza fica olhando para Chico.
CHICO
Tu quer dizer, agora?
ROZA
Pode ser. Quer?
CHICO
Bom... acho que sim.
ROZA
Acha?
CHICO
Claro que sim.
Beijam-se. A lua reflete no mar, as tatuíras passeiam pela areia.
CENA 7 - CASINHA DO SALVA-VIDA - EXTERIOR/DIA
Chico acorda, sol na cara suja de areia. Roza não está. Ele
encontra a ficha do flíper. Olha para a praia, quase deserta.
Chico desce da casinha e vê as pegadas de Roza se afastando.
CENA 8 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Chico segue as pegadas.
As pegadas de Roza se dirigem para a grama na beira da praia.
Chico ainda consegue seguir um pouco as pegadas de areia na grama
mas logo elas desaparecem, misturadas com outras.
CENA 9 - PRAÇA - EXTERIOR/DIA
Chico procura Roza pela praça vazia. Guarda a ficha de flíper.
CENA 10 - EDIFÍCIO QUEBRA-MAR - EXTERIOR/DIA
Juca e Chico saem do apartamento e caminham pelos corredores do
prédio. Juca carrega uma sacola com pão e leite.
JUCA
Tu comeu?
CHICO
Comi.
JUCA
Mentira.
CHICO
Juro.
JUCA
Jura por Deus?
CHICO
Juro.
JUCA
Pela alma da tua mãe?
CHICO
Juro.
JUCA
Pela bunda da Silmara?
CHICO
Juro.
JUCA
Não acredito.
CHICO
Comi. Juro. Na verdade, ela é que me comeu.
JUCA
Tá brincando? Que rabo! Será que ela dá para mim?
CHICO
Tá louco?
JUCA
O que que tem? Vocês tão namorando?
CHICO
Não. Não sei. Não falei com ela ainda.
JUCA
Mas tu tá a fim?
CHICO
Tô.
JUCA
Que rabo! Será que ela não tem uma amiga?
CHICO
Não sei.
JUCA
Deve ter. E a amiga deve dar também. Se uma dá, as
outras também dão.
CHICO
Por quê? Eu já transei e tu não.
JUCA
Transou ontem. Se tu tivesse transado há tempo eu
também já tinha. É melhor que punheta?
CHICO
É totalmente diferente.
JUCA
Como assim?
CHICO
É diferente.
JUCA
Diferente como?
CHICO
Muito melhor. É outra coisa.
JUCA
Não sei. Acho que vou morrer de vergonha de me
acabar na frente de alguém. Fico ridículo, já me
vi no espelho. (faz a careta) A guria vai me ver
me acabando é vai ter um ataque de riso, tenho
certeza.
CHICO
Não vai. É muito bom.
Juca pega um pão na sacola e come um pedaço.
JUCA
Bom como?
CHICO
Tu pára de pensar, isso é o melhor. Parece que...
tu tá explodindo e ficando inteiro ao mesmo tempo.
É quente, molhado.
Juca come mais um pedaço de pão.
JUCA
Continua.
CHICO
Não enche o saco.
JUCA
Que cor era a calcinha?
CHICO
Juca, não enche o saco.
CENA 10A - EDIFÍCIO QUEBRA-MAR - EXTERIOR/DIA
Chico e Juca saem do prédio, caminham na direção da praia.
CHICO
Não sei onde ela mora.
JUCA
A gente acha. Não tem ninguém nessa praia. Vamos
procurar. Tenho que passar em casa, deixar o pão e
trocar de camisa.
CHICO
Por quê?
JUCA
Não sei o que está escrito nessa camisa. E se a
guria pergunta o que está escrito? Elas adoram
perguntar essas coisas. Se ela pergunta o que está
escrito na minha camisa e eu não sei, não dá para
trepar.
CHICO
Quem vai trepar? A gente só vai procurar por ela
na praia.
JUCA
Nunca se sabe. Vou botar a branca da zoomp. Ou
então a listada da forum. Não, a listada da forum
é meio gay. A branca da zoomp. Merda, por que eu
não cortei meu cabelo ontem! Se soubesse que hoje
eu ia trepar...
CHICO
Tu nem sabe se ela tem alguma amiga. E se tiver,
pode ser um trubufu.
JUCA
Hoje eu como até gorda.
Chico e Juca fazem a curva da esquina e se afastam.
CENA 11 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Chico e Juca caminham pela praia, agora mais cheia que das outras
vezes. Juca está vestindo uma camisa com a cara do Shakespeare e
um texto escrito: ...But love is blind and lovers cannot see the
pretty follies that
themselves commit. Shakespeare
Crianças brincam, alguns homens jogam futebol. Passa um
sorveteiro.
CHICO
Vamos voltar?
JUCA
Outra vez?
CHICO
Ela pode ter chegado agora.
JUCA
Vamos perguntar.
CHICO
Perguntar como?
JUCA
Se alguém conhece a Roza. Roza com z.
CHICO
Para todo mundo?
JUCA
Não, só para as gurias. Deixa que eu pergunto.
Juca se aproxima de VIOLETA, 16 anos. Ela está sentada sob o
guarda-sol, lendo uma revista, de camiseta e biquini.
JUCA
Oi. Tudo bem? Por acaso, tu não conhece uma menina
chamada Roza? Roza com z. Ela está numa casa por
aqui.
VIOLETA
Conheço.
JUCA
Conhece?
VIOLETA
Conheço.
Chico se aproxima.
JUCA
(para Chico) Ela conhece.
CHICO
Ó.
VIOLETA
Oi.
CHICO
Tu sabe onde ela mora?
VIOLETA
Não, só encontro na praia.
CHICO
Sabe de alguém que conhece ela?
VIOLETA
Não. Acho que ela vem sempre sozinha.
JUCA
Meu nome é Juca. Esse é o Chico.
VIOLETA
Oi.
JUCA
Seu nome como é?
VIOLETA
Violeta.
JUCA
Posso te chamar de Vi?
VIOLETA
Não.
JUCA
Desculpe.
VIOLETA
Tudo bem.
CHICO
E tu... não viu ela hoje?
VIOLETA
Não.
CHICO
Bom... então tá, obrigado. A gente vai dar mais
uma procurada.
Violeta larga a revista, levanta-se, tira a camisa.
VIOLETA
Eu vou com vocês.
JUCA
Vai? Boa, vamos.
Os três caminham pela praia. Juca no meio, caminha sem tirar os
olhos de Violeta.
VIOLETA
Legal essa camisa.
JUCA
Ah, brigado.
VIOLETA
O que está escrito?
JUCA
O amor é cego e os amantes não podem ver as
bonitas folias que eles mesmo cometem.
VIOLETA
Bonitas folias?
JUCA
É. É do Shakespeare.
VIOLETA
Faz tempo que tu não corta o cabelo?
JUCA
É, tava deixando. Mas vou cortar.
VIOLETA
Achei legal.
JUCA
Vou cortar um dia. Não sei quando. Talvez eu
deixe.
CHICO
A Roza te disse onde mora em Porto Alegre?
VIOLETA
Não. Vocês moram onde?
CHICO
Tristeza.
JUCA
Floresta.
VIOLETA
Onde na Floresta?
JUCA
Perto da Cristóvão.
VIOLETA
Eu moro na Cristóvão.
JUCA
Tá brincando? Perto dos bombeiros?
VIOLETA
Não, mais para cima. Sabe o Hospital Militar?
Juca e Violeta param de caminhar. Chico pára também.
CHICO
A Roza te disse se ia a algum lugar?
VIOLETA
(para Chico) Eu só vi a Roza uma vez. (para Juca)
O que aconteceu no teu pescoço?
JUCA
Tu já teve cachumba?
VIOLETA
Já. Tu tá com cachumba?
JUCA
Não, não, é que eu tô fazendo uma pesquisa.
Desloquei a terceira vértebra cervical. Eu estava
pegando onda, fui dar um drop, meu parceiro estava
no tubo, pranchou. Mas tudo bem, já estou pronto
para outra.
VIOLETA
Tu surfa?
JUCA
Surfo. E tu?
Chico vai saindo.
CHICO
Eu vou procurar mais um pouco.
JUCA
Isso aí.
VIOLETA
Tchau.
Chico caminha pela praia. Ao fundo, Juca e Violeta seguem
conversando.
CENA 12 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Passagem de tempo, Chico caminha entre as árvores na beira da
praia, procurando Roza. Vê uma MENINA DE COSTAS, parecida com
ela, namorando com um RAPAZ, sentados no chão. Chico faz a volta
para tentar ver o rosto da menina. Ela o vê, se assusta e fecha o
zíper da calça.
CHICO (OFF)
Procurei Roza todos os dias. Na praia e no flíper.
Ela sumiu.
Chico desce para a praia e passa por Juca, já sem tala no
pescoço, e Violeta, que estão se agarrando sob um guarda-sol.
Abana. Eles abanam.
CHICO (OFF)
Juca passou três dias chamando a Violeta de Vi,
Vivinha, Viviquinha, essas coisas. E ainda não
comeu.
CENA 13 - BAR DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Juca dá um beijinho em Violeta e sai da mesa, arrastando Chico,
que estava entrando no bar, pelo braço. Juca está de jaqueta,
boné e echarpe.
CHICO
Que roupa é essa?
JUCA
Depois te explico. Ela tá sozinha em casa, a mãe
só volta no fim-de-semana. Tu tem que me ajudar.
CHICO
Quer que eu segure ela pra ti?
JUCA
Tu tem que ir junto, com outra guria. A gente come
uma pizza aqui, depois vai para casa dela. Aí a
gente joga carta, toma um vinho. O resto deixa
comigo. Gravei uma fita só com umas baladas, não
tem erro. Tu tem que ir. Com outra guria.
CHICO
Que guria?
JUCA
Qualquer uma. Convida alguém.
CHICO
Quem?
JUCA
Sei lá. Te vira. Pelo amor de deus, Chico.
CHICO
Eu não tenho grana, tô duro.
JUCA
Eu pago o jantar e o vinho.
CHICO
Não. Eu não estou a fim de arrumar uma guria
assim.
JUCA
Assim como?
CHICO
Eu vou procurar a Roza. Acho que ela tá em outra
praia.
JUCA
A Roza sumiu, Chico, deve ter voltado para Porto
Alegre.
CHICO
Ela disse que ia aproveitar essa última semana na
praia. Deve ser outra praia.
JUCA
E como é que tu vai procurar ela em outra praia se
tu não tem dinheiro nem pra jantar? Te dou cem
reais.
CHICO
Cem reais? Tá louco?
JUCA
Cem reais. (mostra duas notas de cinqüenta) Olha
aqui. Por favor, Chico. Amanhã tu procura a Roza.
Chico pega as duas notas, põe no bolso.
CHICO
Tá, vou ver.
JUCA
Se tu não for quero o dinheiro de volta.
CHICO
Vai para lá.
Juca volta para a mesa com Violeta. Chico dá uma olhada pelo bar.
Vê uma guria sozinha. Se aproxima. O namorado dela chega, beijam-
se. Chico desvia, disfarça.
Chico vê CARMEM, 18 anos, saia curta, mini-blusa, conferindo o
cardápio numa mesa da calçada. Chico se aproxima.
CHICO
Oi.
Carmem olha para ele desconfiada.
CARMEM
Oi.
CHICO
Tá sozinha?
CARMEM
Por quê?
CHICO
Eu estou. Quer jantar comigo?
CARMEM
Não, obrigado.
Chico dá outra olhada pelo bar, mas só vê meninas acompanhadas.
CHICO
Olha, é o seguinte. Está a fim de ganhar cinqüenta
reais?
CARMEM
(mais desconfiada) A troco?
CHICO
O meu amigo ali está com uma namorada. Ele quer
comer uma pizza e depois jogar carta na casa dela.
E quer que eu vá junto. Me pagou cem reais. Te dou
cinqüenta para tu ir comigo.
CARMEM
Cinqüenta reais para comer uma pizza, tomar vinho
e jogar carta com vocês?
CHICO
É.
CARMEM
Até que horas?
CHICO
Meia-noite, no máximo.
CARMEM
Só isso?
CHICO
Só. Prometo. Comer e jogar carta. Depois a gente
vai embora e deixa os dois.
Ela abre a bolsa e mostra um tubo de spray.
CARMEM
Sabe o que é isso aqui?
CHICO
Não. O que é?
CARMEM
Spray repelente para urso. É feito de pimenta. Se
eu jogar isso na tua cara tu fica sem enxergar uns
dois dias.
CHICO
Não te preocupa. É só para comer e jogar carta
mesmo. Eu prometo.
CARMEM
E quem paga a conta aqui?
CHICO
Ele paga.
CARMEM
Tudo bem. Cadê o dinheiro?
CENA 14 - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE
Juca abre o vinho sempre olhando de forma romântica para Violeta.
Ela, um pouco bêbada, gostando. Carmem, achando ridículo,
observa. Chico olha pra ela meio que se desculpando pelo amigo.
Juca serve o vinho no copo com a boca virada para baixo.
CENA 14A - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE
Chico e Carmem estão na mesa. Carmem está com a bolsa na mão,
desconfiada. Violeta pega copos e Juca abre a segunda garrafa de
vinho.
JUCA
Vocês sabem jogar dorminhoco?
CARMEM
Dorminhoco? Não. Sei jogar pôquer, escova, buraco.
Violeta, que evidentemente já bebeu mais do que devia, arruma as
cartas.
VIOLETA
É fácil. Dezessete cartas, às, rei, dama e valete
dos quatro naipes.
JUCA
E um coringa.
VIOLETA
E um coringa.
JUCA
Quatro cartas para cada um e um recebe cinco.
VIOLETA
Tem que formar os quartetos, cada um passa uma
carta por vez.
JUCA
Quem pega o coringa tem que ficar uma rodada, não
pode passar de primeira.
VIOLETA
É fácil.
JUCA
Quem formar primeiro baixa as cartas na mesa. O
último a baixar é o dorminhoco.
VIOLETA
(para Juca) Queima a rolha pra marcar.
Carmem põe a mão na bolsa.
CARMEM
Rolha? Que rolha? (para Chico) Tu não falou em
rolha.
VIOLETA
A gente queima uma rolha e marca o dorminhoco de
preto. Sai com água.
JUCA
Melhor! Vamos fazer assim: quem perder tem que
tirar uma peça de roupa.
VIOLETA
Isso! Melhor que rolha!
JUCA
Combinado?
CARMEM
(larga a bolsa) Pode ser. É melhor que rolha.
JUCA
Ótimo!
Violeta põe as cartas na mesa. Juca serve o vinho.
VIOLETA
(para Carmem) Corta.
Carmem corta o baralho, Violeta dá as cartas.
CENA 15 - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE
Passagem de tempo. Chico, só com um pé do tênis, está sem camisa,
de calça. Violeta, quase dormindo, está de sutiã e saia. Carmem
está completamente vestida. Juca está só de cueca e meias.
CHICO (OFF)
Com cinqüenta reais dá para comer quatro dias,
dormindo na barraca. Posso ir de ônibus e voltar
de carona, parando em cada praia. Ela diz que vai
a praia de tarde, eu viajo de manhã e procuro na
praia de tarde.
Carmem baixa as cartas. Chico baixa as cartas. Juca baixa as
cartas. Violeta continua de cartas na mão, fecha os olhos,
cabeceia de sono.
JUCA
Violeta!
VIOLETA
O quê?
Ela acorda e baixa as cartas.
JUCA
Violeta! A saia!
VIOLETA
Ainda tenho as meias.
JUCA
Duas?
VIOLETA
Duas. Com licença.
Violeta levanta. Cambaleia, quase cai. Chico levanta para segurá-
la. Ela caminha para o sofá. Deita. Tenta tirar a meia mas não
consegue. Deita a cabeça no sofá, fica com a meia pela canela.
CHICO
E agora?
JUCA
Deixa que eu tiro.
Juca levanta e puxa a meia-calça de Violeta. Ela adormeceu
profundamente.
JUCA
(tentando acordá-la) Violeta! Violeta!
CARMEM
Deixa ela dormir. (olha o relógio) Acabou o jogo.
Meia-noite. Obrigado pelo jantar e pelo vinho.
Chico veste a camisa.
CHICO
Eu vou contigo.
CARMEM
(para Juca) Tu não é colega do Gustavo?
JUCA
Que Gustavo?
CARMEM
O Cabeça, da Praça da Matriz.
JUCA
Sou. Por quê?
CHICO
Eu vou levar ela para a cama.
Chico ergue Violeta e a arrasta para o quarto.
CARMEM
Eu sabia que te conhecia. Eu sou prima do Gustavo.
JUCA
Prima? Do Cabeça?
CARMEM
É, prima.
JUCA
Olha só. Legal. E o Cabeça vai bem?
CARMEM
Faz tempo que eu não vejo.
JUCA
Pois é.
CARMEM
Bom, a gente se vê por aí. Obrigado pela pizza. E
pelo vinho.
JUCA
Ainda é cedo.
CARMEM
O combinado foi meia-noite.
JUCA
Que combinado?
CARMEM
Ele me pagou cinqüenta reais para eu ficar até a
meia-noite.
JUCA
Ah, é?
CARMEM
É.
JUCA
Quanto tu quer para ficar mais um pouco?
CARMEM
(ela sorri) Se for para jogar esta bobagem,
quinhentos. (insinuando-se) Agora, se tu quiser
fazer alguma coisa mais interessante... cento e
cinqüenta.
CENA 16 - QUARTO DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE
Chico larga Violeta na cama mas um botão da gola de sua camisa
fica preso no sutiã, um daqueles que prende pela frente. Chico
fica debruçado sobre Violeta na cama e tenta soltar o botão da
camisa. Não consegue. Puxa o botão mas ele não se solta. Chico
tira a camisa. Tenta soltar o botão mas ele está muito preso.
Chico tenta arrancar o botão e ele fica preso por um fio de linha
no sutiã. Chico resolve partir o fio de linha com os dentes.
Quando ele está mergulhado entre os seios de Violeta ela acorda,
sem entender muito o que está acontecendo.
VIOLETA
Chico?
Chico consegue soltar o botão.
CHICO
Oi?
VIOLETA
Chico, eu acho que eu bebi demais.
CHICO
Acho que sim. A gente já vai.
VIOLETA
Tá. Eu vou dormir. Pede desculpas pra eles. Diz
pra eles que eu acho que bebi demais.
CHICO
Tá bom. Dorme.
Violeta vira de lado e dorme. Chico veste a camisa. Juca entra.
JUCA
Cadê aquele dinheiro que eu te dei?
CHICO
Só tenho cinqüenta. Por quê?
JUCA
Me empresta.
CHICO
Para quê?
JUCA
Para dar para a Carmem. Fim de semana meu pai
chega e eu te pago.
CHICO
Vou precisar do dinheiro amanhã.
JUCA
Chico, tu não tinha dinheiro nenhum, esse dinheiro
eu te dei para tu me fazer um favor que tu devia
fazer de graça. Eu preciso do dinheiro agora e tu
não quer me emprestar?
CHICO
Tá bom.
Chico entrega o dinheiro a Juca.
JUCA
Fica aí.
Juca sai. Chico olha Violenta dormir. Senta e pega uma revista.
CENA 17 - SALA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE
Juca entra na sala. Carmem está sentada no braço do sofá. Juca se
aproxima, mostra a nota.
JUCA
O resto eu te dou depois.
Carmem sorri, pega o dinheiro, guarda. Põe a mão no ombro de
Juca. Ele sorri. Ela se aproxima e beija-lhe a boca. Afasta-se.
Ele abre os olhos.
CARMEM
O resto eu te dou depois. Tchau.
Ela sai. Juca fica parado no meio da sala. Chico aparece na porta
do quarto.
CHICO
Ela já foi?
JUCA
Já.
CHICO
E o dinheiro?
JUCA
Eu gastei.
CENA 18 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Chico e Juca caminham pela praia. Vêem o Surfista, de camisa e
pescoço enrolado numa echarpe, sentado numa cadeira na beira da
praia. A Morena está sentada no chão, ao lado dele. Juca esconde
o rosto. Vêem Carmem com um SUJEITO. Ela abana para eles. Chico
abana, Juca vira a cara.
CHICO (OFF)
Passei os últimos dias de praia procurando a Roza.
Não encontrei. Voltei para Porto Alegre.
CENA 18A - PORTO ALEGRE - EXTERIOR/DIA
Imagens de Porto Alegre, muitos edifícios, muita gente na rua,
muitas garotas da idade de Roza.
CENA 19 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/DIA
Chico em seu quarto, observa a tabela periódica de elementos
químicos. Fecha o livro, vira-se para um pequeno teclado
(Cassio). Sobre uma das teclas está a ficha de flíper. Ele toca
alguma coisa sem usar a tecla com a ficha. Pára. Examina a ficha.
CHICO (OFF)
Eu podia descobrir as impressões digitais dela na
ficha, se eu já não tivesse segurado e esfregado
esta ficha mil vezes. E se não tivesse que estudar
para a prova de química orgânica. Ligações
covalentes, pra que eu vou usar isso na vida?
Talvez ela já esteja na Austrália.
Toca o telefone. Ele atende.
CHICO
Alô?
CHICO
É.
CHICO
Claro.
CHICO
Tudo.
CHICO
Como é que tu conseguiu meu telefone?
CHICO
Sei.
CHICO
Não, estava estudando.
CHICO
Química orgânica.
CHICO
Quero, claro.
CHICO
Sei. Que horas?
CHICO
Tudo bem.
CHICO
Tá.
CHICO
Outro.
Chico desliga o telefone, fica parado alguns segundos e dá um
grito.
CENA 20 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Chico fala olhando para si mesmo no espelho enquanto experimenta
várias camisetas. Juca vai alcançando camisetas e jogando as já
experimentadas na gaveta.
CHICO
Ela disse alô, eu disse alô, já achando que era
ela mas não podia ser ela. Ela disse é o Chico? e
eu disse é, aí já achando que era ela mesmo. Aí
ela disse é a Roza. Com z, lembra? Eu disse,
claro. Ela disse, tudo bom?, eu disse tudo. Aí ela
disse que queria me ligar mas não tinha o meu
número. Eu perguntei como ela conseguiu. Ela disse
que encontrou uma amiga da praia que tinha, deve
ser a Violeta.
JUCA
Argh.
CHICO
Eu disse sei e ela perguntou se estava
interrompendo alguma coisa, eu disse não, eu
estava estudando química orgânica. Aí ela
perguntou se eu queria encontrar com ela, eu disse
que sim, claro, é lógico. Não, eu acho que eu só
disse quero, claro. Aí ela perguntou se eu sabia
de um bar na Nilópolis, um que tem umas mesinhas
brancas e um toldo amarelo, perto do posto.
JUCA
O Coquinho.
Camiseta azul, gola redonda.
CHICO
O Coquinho. Eu disse sei e perguntei que horas.
Ela disse oito, oito e meia. Eu disse tudo bem,
ela disse então a gente se vê lá. Eu disse tá. Ela
disse um beijo. Eu disse outro.
JUCA
Vai com a azul. No Coquinho só tem moinhos, a azul
é mais moinhos. O que tu vai dizer? Tem camisinha?
Camiseta preta, gola vê.
CHICO
A gente não vai trepar no Coquinho.
JUCA
(dá uma camisinha para Chico) Leva camisinha.
CHICO
Uma só?
JUCA
Ué? Não ia trepar e agora quer duas?
CHICO
Só se der algum problema. Tudo bem, uma chega, a
gente não vai trepar.
JUCA
Tu sabe o que vai dizer para ela?
CHICO
Sei.
CENA 21 - MESA - INTERIOR/NOITE
Chico, de camiseta vermelha, toma um gole de guaraná.
CHICO
Eu pensei muito naquela noite. Claro que eu nunca
vou esquecer, tu sabe disso. Talvez tenha sido
mais importante para mim do que para ti, deve ter
sido. Mas eu queria que fosse importante para ti
também. Queria não, eu quero. Eu não quero que
aquela seja nossa única noite. Quero que seja a
primeira.
Juca olha para Chico.
JUCA
Tá legal. Esse "queria não, quero", parece que tu
errou e corrigiu na hora. Mas a camiseta azul é
melhor.
CENA 22 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/NOITE
Chico, de camisa azul, está sentado numa mesa de rua no Coquinho.
Bebe um guaraná, de canudo. O guaraná tem aquele gelos furados,
Chico espeta um gelo e larga o canudo sobre o copo, com o gelo
pendurado como um anel.
Chico fica olhando o gelo derreter pendurado no canudo. O gelo
pinga magicamente no exato ritmo da música.
O anel de gelo está quase se partindo. Chico passa os olhos pelo
bar, nada de Roza. O anel de gelo se movimenta, vai cair. O gelo
cai no copo.
ROZA
Oi.
CHICO
Oi.
Chico se levanta. Beijam-se de maneira meio atrapalhada. Sentam.
Chico sorri, Roza também.
CHICO
Bom te ver.
ROZA
Também queria te ver.
CHICO
Legal. Eu pensei muito naquela noite.
ROZA
Eu não pensei nada, acho que estava louca. A gente
nem usou camisinha.
CHICO
Não, eu quero dizer que eu pensei muito sobre
aquela noite. Claro que eu nunca vou esquecer, tu
sabe disso.
ROZA
Nem eu vou esquecer. Eu estou grávida.
Chico fica olhando para Roza. Ela sorri.
CENA 23 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE
Roza mostra a Chico uma tabela de cores de um teste de gravidez.
ROZA
Olha aqui. Se ficar vermelho, ou cor de rosa, é
porque tu não tá. Se der verde, ou azul, é porque
tu tá. Quanto mais azul, mais é certo que tu tá
grávida.
CHICO
E aí?
Ela mostra, numa agenda, uma tirinha de papel, metade branca,
metade verde, bem clarinho. Chico examina a tirinha na luz.
CHICO
É meio verde mesmo.
ROZA
Essa foi a primeira que eu fiz, semana passada.
Esta eu fiz ontem.
Ela mostra uma tirinha metade branca e metade muito azul.
CHICO
E tu fez mais de uma vez?
Ela mostra a ele um folha da agenda com várias tirinhas, todas
muito azuis.
Uma PAI e uma MÃE com seus DOIS FILHOS estão comprando pipocas.
Chico olha para as crianças enquanto fala com Roza.
ROZA
Eu vou tirar.
CHICO
Como?
ROZA
Vou abortar.
CHICO
Mas como?
ROZA
Numa clínica. Uma amiga minha conhece.
CHICO
Não é perigoso?
ROZA
Sempre é, um pouco. Ela disse que é um lugar
chique, sala de espera, cheio de gente. Na zona
sul.
CHICO
Como é que faz?
ROZA
É uma máquina, um tubo, tipo um aspirador. O cara
enfia o tubo, liga a máquina e pronto.
CHICO
Pode ser perigoso.
ROZA
Se eu fizer logo, não é tanto. Quanto mais cedo,
menos perigoso.
CHICO
Eu posso te ajudar?
ROZA
Não sei. Tu tem mil reais?
CHICO
Mil reais? Custa mil reais?
ROZA
Custa dois mil reais. Eu acho que consigo mil, já
tenho seiscentos. Se tu não tiver, tudo bem.
CHICO
Mil reais?
ROZA
Mil reais. Eu posso conseguir mais um pouco se
vender o celular.
CHICO
Tu tem celular?
ROZA
Tenho, mas é de cartão. (anota o número, dá o
papel a ele) Me liga. Se eu conseguir mais que
mil, te aviso. Se tu me ligar e outra pessoa
atender é porque eu vendi o celular.
CHICO
Tá.
CHICO
Eu acho que ia ser legal ter um filho contigo.
ROZA
É. Quem sabe, mais tarde.
CHICO
É.
CENA 24 - BRIC - INTERIOR/DIA
Objetos variados expostos num bric: um carrinho de bebê, um
cavalinho, uma cadeirinha de bebê. Chico entrega um amplificador
para um VENDEDOR. O cara testa o amplificador. Chico examina
sapatinhos cor-de-rosa. Chico fica olhando para os objetos à
venda.
CHICO (OFF)
O filho que eu não vou ter com Roza nunca vai
mentir para a mãe que o amplificador estragou para
poder vender por seiscentos um amplificador que
vale mil e juntar com o dinheiro da poupança para
pagar um aborto.
CENA 25 - PRAÇA - EXTERIOR/DIA
Chico e Roza num banco de praça. Ela chora, ele conta o dinheiro.
Termina de contar, põe o dinheiro na agenda dela.
CHICO
Falta duzentos. Vou pedir para o Juca, talvez ele
tenha.
ROZA
Melhor não dizer para ninguém. Eu consigo.
CHICO
Quer que eu vá contigo?
ROZA
Não precisa. A minha amiga vai, ela tem carro.
CHICO
Quando tu vai?
ROZA
Logo que der. Acho que amanhã. Eu te ligo.
CHICO
Liga?
ROZA
Ligo.
Ela dá um beijo nele, enxuga as lágrimas e sai.
CENA 26 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/DIA
Chico em sua casa, sentado, olha o telefone. Ele pega o telefone
e confere o botão que regula a altura do toque, põe no volume
máximo. Larga o telefone.
Levanta-se, caminha pelo quarto. Vai até o teclado e toca a mesma
música, agora com um som fraquinho. Vai até o telefone. Confere o
fio do telefone, verifica se está bem conectado na parede. Pega o
fone e escuta rapidamente. Desliga e fica olhando para o
telefone.
Pega o telefone e disca.
CHICO
Roza?
CHICO
Tu tá com a Roza?
CHICO
Ah, é? Quando?
CHICO
E... tu conhece a Roza de onde?
CHICO
Ah, é?
CHICO
Não, ela me falou que ia vender o celular, mas não
pensei que fosse tão rápido. Ela não te deixou
nenhum número?
CHICO
Bom, se ela ligar tu podia dar um recado?
CHICO
Tudo bem, eu sei que ela não vai ligar, mas SE ela
ligar, tu pode dizer que o Chico telefonou?
CHICO
Tá bom, obrigado.
CENA 27 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Juca está jogando tetris no computador. Chico está na cama.
JUCA
Quem disse que o filho era teu?
CHICO
Não enche o saco.
JUCA
Tô falando sério. Quem disse que era teu?
Juca tem um espaço certinho para uma pedra comprida de quatro,
vermelha. Mas ela não vem.
CHICO
Eu sei que era meu. Ela sabia.
JUCA
Sabia que precisava de mil reais, isso é que ela
sabia. Pode ter pedido pro outro cara, ele não
deu, ela te procurou.
CHICO
Era meu. Eu sei que era.
O espaço da pedra de quatro continua vago, Juca empilha as outras
pedras nos cantos.
JUCA
Ela vendeu o celular.
CHICO
Ela disse que ia vender.
Surge uma pedra vermelha. Cai e se encaixa na buraco.
JUCA
Ela não te ligou, não te deu endereço. Tu não acha
estranho?
Quatro fileiras desaparecem.
CENA 28 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/NOITE
Chico no bar, sozinho. Olha entre as mesas.
CHICO (OFF)
Achei estranho. Passou uma semana e eu achei muito
estranho. Passou um mês e eu tive certeza que ela
estava na Austrália, rindo da cara do idiota que
pagou o aborto para ela.
CENA 29 - PLAYWORLD - INTERIOR/NOITE
Chico joga pimbal.
CHICO (OFF)
Passou um ano e eu estava no mesmo flíper, jogando
na mesma máquina, na mesma praia, a maior e pior
do mundo. Felizmente era dezembro, o meu pai
juntou uma grana este ano. Prometeu que no ano que
vem nós vamos tirar férias em janeiro. Meu recorde
no pimbal era quarenta e oito mil e eu já estava
com cinqüenta e seis. Sessenta! Sessenta e dois
mil. Sessenta e quatro!
CHICO
Setenta mil!
Juca se aproxima.
JUCA
Setenta mil?
CHICO
Setenta e dois!
A bola passa. Game over.
CHICO
Merda!
Acende-se o placar: record!
JUCA
Recorde da máquina!
O cursor do placar dos recordes está piscando no décimo lugar. O
primeiro, segundo, terceiro, quinto e sétimo lugares estão
ocupados por Roza, com z. O placar também indica as datas dos
recordes.
Chico e Juca ficam olhando para o placar.
CENA 30 - RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA
Chico, de mochila, na fila para comprar passagens da rodoviária.
Confere o dinheiro na carteira, olha para o quadro de avisos.
CHICO
Ela sabia jogar, sabia jogar muito bem. Ela fingiu
que não sabia para eu ajudar.
JUCA
Talvez o filho fosse teu.
CHICO
Que filho? Ela nem tava grávida.
Chico chega no balcão.
CHICO
(ao vendedor) Noiva do Mar. Só ida.
JUCA
Tu disse que viu o exame.
Chico pega a passagem e sai.
CHICO
Vi umas tirinhas de papel, podia ser qualquer
coisa. Ela me fez vender meu pioneer. Eu vou matar
aquela guria.
Chico está entrando no ônibus.
JUCA
Esquece.
CHICO
Esquece um cacete. Ela deve estar numa praia,
procurando idiotas como eu.
Chico embarca no ônibus interpraias. Senta e abre a janela.
JUCA
Ela pode estar na Austrália.
CHICO
Eu encontro.
CENA 31 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA
O ônibus passa pela estrada entre dunas e lagoas. Chico, com a
cara grudada o vidro, olha os fios que correm ao lado da estrada.
Parece que é o fio que se move, descendo e subindo, uma linha
preta embarrigando sobre um céu azul e nuvens ralas.
CENA 32 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA
Chico, de mochila nas costas, caminha perto de um parque de
diversões, vazio. Vê um HOMEM, arrumando a máquina de um
carrossel. Chico se aproxima para falar com o homem mas ele
desaparece.
CENA 33 - BAR - EXTERIOR/NOITE
Chico caminha por uma calçada cheia de gente, mesas nas calçadas.
Uma guria está chorando, outra guria consola. Um gordo ri alto.
Um garçom traz dois chopes.
CENA 34 - CHAFARIZ - EXTERIOR/DIA
Chico lava os pés na fonte de uma praça.
CENA 35 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA
Chico passa de ônibus e vê Carmem num treiler. Ela está comendo
um chesseburger.
CENA 36 - FLÍPER - INTERIOR/NOITE
Chico caminha entre as máquinas de um flíper.
CENA 37 - CALÇADA - EXTERIOR/NOITE
Chico está sentado sobre o capô de um carro. Um HOMEM chega e
entra no carro. Chico levanta, faz menção de falar com o homem
mas ele liga o carro e parte.
CENA 38 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Chico caminha pela praia, observando as meninas. Uma MENINA se
parece com Roza, de costas. Ele se aproxima e vê que é outra
menina.
CENA 39 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA
Chico está sentado num muro. Um VELHO, carregando um cão fila
pela coleira, fica parado, encarando Chico.
Chico levanta e vai saindo de fininho.
CENA 40 - ESTRADA - EXTERIOR/DIA
Chico pede carona. Uma kombi, dirigida pára. Ele embarca na
kombi.
CENA 41 - KOMBI - EXTERIOR/DIA
Chico, com uma cara de enjôo, tenta sorrir para seus companheiros
de viagem, QUATRO PESCADORES. Chico olha um balaio cheio de
peixes.
Um pescador oferece a Chico uma garafa de cachaça com ervas e uma
cobra dentro. Chico bebe um gole.
A kombi balança. Chico olha o balaio. Um Pescador fuma. Chico
vomita no balaio de peixes.
CENA 42 - ESTRADA - EXTERIOR/DIA
Chico desce da kombi no meio da estrada. Os pescadores partem,
xingando.
Chico, enjoado, sai caminhando pela estrada.
CENA 42A - LOJA DE BUJIGANGAS - INTERIOR/DIA
Chico, viajandão, passa entre as bujigangas das lojas.
CENA 43 - BAR DE CALÇADA - EXTERIOR/NOITE
Chico, no bar, come um sanduíche. Ouve o barulho de um pimbal,
alguém jogando muito bem. Chico interrompe a mordida no meio.
Entra no flíper.
CENA 44 - FLÍPER - INTERIOR/NOITE
Chico se aproxima por trás da máquina onde há alguém marcando
muitos pontos. Chico, de longe, espia quem está jogando.
É uma criança. Chico morde o sanduíche. Chico pára de mastigar,
parece ter reconhecido a criança. Aproxima-se.
CHICO
Oi.
CRIANÇA
Não atrapalha.
CHICO
Eu te conheço.
CRIANÇA
Sorte tua.
CHICO
A gente não se viu no ano passado?
CRIANÇA
Game-over! Tu me atrapalhou. Tu me fez perder uma
ficha!
CHICO
Eu te compro outra.
Chico vai até o caixa. Pede uma ficha a moça do caixa. É Roza.
ROZA
Ó.
CHICO
Ó.
CENA 45 - HOTEL - INTERIOR/NOITE
A Criança está dormindo no sofá de um pequeno apartamento de
hotel. Roza tira o som de uma televisão portátil. Chico está na
sala, Roza vai até o quarto, pega a carteira, tira o talão de
cheques. Chico pára na porta do quarto.
ROZA
Quer os juros da poupança?
CHICO
Quero. Quanto dá?
ROZA
Tu me deu oitocentos, faz um ano. Acho que dá uns
mil.
CHICO
Tá bom.
Ela faz o cheque. Ele entra no quarto, tira a ficha do flíper do
bolso.
CHICO
Essa ficha é tua. Lembra?
ROZA
Pode deixar aí.
Ela estende a mão com o cheque.
CHICO
Esse cheque tem fundo?
ROZA
Vou botar o telefone atrás. Tá bom assim?
Ela escreve o telefone e entrega o cheque a ele.
CHICO
(ele pega o cheque e confere) Outro celular. É teu
mesmo?
ROZA
(mostra o celular) Quer conferir?
CHICO
Quero.
Chico senta na cama, pega o telefone do quarto olha o número no
cheque e disca. O celular dela toca.
ROZA
Quer que eu atenda?
Ele desliga o telefone. Ela guarda o celular.
CHICO
O que tu ganhou com isso?
ROZA
No verão passado? Catorze mil reais. Vinte e dois
caras, quinze caíram. Estou devolvendo mil. Ganhei
catorze mil.
CHICO
Vinte e dois caras?
ROZA
Vinte e três, na verdade. Mas um eu nem procurei,
ele trabalha de office-boy, sustenta a mãe e o
irmão, só descobri depois. Deixei para lá. Eu
preciso dormir.
Roza pega um vidro de mertiolate, abre. Roza senta numa cadeira e
apoia o pé sobre a cama. Começa a passar mertiolate entre os
dedos do pé.
CHICO
Tu não ficou com medo de engravidar de verdade?
ROZA
Eu tomo pílula.
CHICO
E a aids? Se o cara usa camisinha, não funciona.
ROZA
É, eu sei. Mas eu só escolho caras de pouca
experiência. Ou nenhuma, como tu.
CHICO
Dava para ver assim, de longe?
ROZA
Quase sempre dá. Mais alguma coisa?
Ela troca o pé.
CHICO
Ele é teu filho?
ROZA
Meu irmão.
CHICO
E a tua mãe?
ROZA
Não sei onde anda.
CHICO
Teu pai?
ROZA
Morreu.
CHICO
Não tem mais ninguém?
ROZA
Onde?
CHICO
Tua família.
ROZA
Tenho um tio. Um idiota, casado com uma imbecil.
Ela abaixa o pé e fecha o vidro de mertiolate.
CHICO
Isso tudo não dá muito trabalho? Porque tu não
cobra para transar? É mais prático.
ROZA
E tu acha que alguém ia pagar mil reais para
transar comigo?
Chico olha para ela. Pega o cheque e rasga e pedacinhos. Joga os
pedacinhos do cheque sobre cama. Ela fecha e larga o vidro de
mertiolate.
Chico tira os tênis e joga no chão.
Roza vai até a porta do quarto e se certifica que a criança está
dormindo na sala. Fecha a porta do quarto.
Roza, tirando a blusa, olha para Chico e sorri. Chico também
sorri.
A blusa de Roza cai no chão, junto aos tênis de Chico. A colcha
da cama cai e provoca uma revoada de pedacinhos de cheque pelo
quarto.
CENA 45A - FACHADA DO HOTEL - EXTERIOR, DIA
Fachada do hotel - A luz de um quarto se apaga.
CENA 46 - MINIGOLFE - EXTERIOR/DIA
Manhã/quase ninguém na rua. Chico caminha por um campo de
minigolfe. Entra numa das pistas. A pista, de cimento, tem como
obstáculo um grande calombo. Chico chuta uma tampinha, posiciona
a tampinha no centro da pista. Chico observa o trajeto que a
tampinha deverá fazer para chegar no buraco, além do calombo.
Chico olha para a tampinha e dá um chute, seco.
A tampinha sobe e desce o calombo e cai exatamente no buraco.
Chico sorri.
CENA 45B - QUARTO DE HOTEL - INTERIOR/AMANHECER
Roza faz as malas. A Criança dorme. Roza guarda suas roupas e as
roupas da criança. Junta tralhas variadas, pega a televisão
portátil. Acorda a Criança.
Roza, cheia de bagagem e carregando a Criança (ou arrastando pela
mão), sai do quarto.
CENA 47 - FLÍPER - INTERIOR/DIA
Chico entra no flíper. INÁCIO, 30 anos, está no balcão conferindo
um livro caixa. Chico se aproxima.
CHICO
Oi. A Roza tá aí?
INÁCIO
Tu conhece ela?
CHICO
Conheço.
Inácio marca o livro e fecha.
INÁCIO
Sabe onde ela mora?
CHICO
Aqui na praia sei. Num hotel. Por quê?
INÁCIO
Não mora mais.
CHICO
Eu estive lá ontem.
INÁCIO
Ela se mandou, hoje. Sem pagar a conta. Eu estive
lá, procurei no quarto. Tu não tem um telefone, um
endereço dela em outro lugar?
CHICO
Não. Acho que ela mora em Porto Alegre. Ela não
deu o endereço no hotel?
Inácio volta para o balcão e abre o livro caixa.
INÁCIO
Deu, deve ser falso, claro. O telefone que ela deu
é de uma gráfica. Ela te deu um cano também?
CHICO
Deu.
INÁCIO
Quanto?
CHICO
Mil reais.
INÁCIO
Vagabunda. Daqui ela tirou seiscentos e cinqüenta,
do caixa. Mais duzentos que eu emprestei. E mais
uma televisão portátil. Colorida. Se tu encontrar
com ela, dá um recado para mim?
CHICO
Dou.
INÁCIO
Diz que eu confiei nela. Ajudei quando ela estava
precisando, dei pra ela um dinheiro que eu não
podia dar. Eu vi que ela não valia nada mas mesmo
assim ajudei. Eu gostava dela. E ela me sacaneou.
Diz pra ela que ela é uma vagabunda. Que o Inácio
mandou dizer que ela é uma vagabunda.
CHICO
Pode deixar. Eu digo.
CENA 47A - PIER - EXTERIOR/FIM DE TARDE
Chico come churros sozinho. Limpa a boca e sai.
CENA 48 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Chico em seu quarto, larga a mochila. Pensa. Tira os tênis. Fica
olhando para os tênis no chão, pensativo. Dentro do tênis tem um
pedacinho do cheque.
Chico pega o pedacinho do cheque, vira. No lado de trás, com a
letra de Roza, estão anotados os seis primeiros números de um
telefone celular. Chico fica olhando para aqueles números.
(Montagem de cenas muito curtas, pessoas dos mais variados tipos,
nos mais diferentes lugares, atendendo telefones celulares. Todas
atendem e dizem "alô". Sobre as cenas, OFF de Chico e Juca).
CENA 49 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA
Homem de terno e gravata atende o celular.
JUCA (OFF)
Faltavam dois números?
CENA 50 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA
Mulher fazendo compras atende o celular.
CHICO (OFF)
Dois números. Os últimos. Não consegui lembrar.
CENA 51 - CARRO - EXTERIOR/DIA
Mulher dirigindo atende o celular.
JUCA (OFF)
Noventa e nove possibilidades.
CENA 52 - ESCRITÓRIO - INTERIOR/DIA
Homem atende o celular.
CHICO (OFF)
Cem.
CENA 53 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
Professor, no quadro negro, atende o celular.
JUCA (OFF)
Cem?
CENA 54 - CONSULTÓRIO DENTÁRIO - INTERIOR/DIA
Dentista atende o celular.
CHICO (OFF)
Claro. O zero-zero também conta.
CENA 55 - SALA - INTERIOR/NOITE
Mulher atende o celular.
JUCA (OFF)
Cem. Tu ligou pra cem celulares?
CENA 56 - PÁTIO DE ESCOLA - EXTERIOR/DIA
Menina atende o celular.
CHICO (OFF)
Quarenta e oito. Tive sorte.
CENA 57 - LOJA DE ROUPAS - INTERIOR/DIA
Homem atende o celular.
JUCA (OFF)
E o que foi que ela disse?
CENA 58 - LOJA DE DISCOS - INTERIOR/DIA
Roza atende o celular.
CHICO (OFF)
Ela disse alô.
ROZA
Alô.
CENA 59 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/FIM DE TARDE
Chico e Juca numa mesa.
JUCA
Chico, eu acho que eu não conheço ninguém mais
idiota do que tu. Tu gastou uns cinqüenta reais em
telefone pra achar uma guria que roubou teu
amplificador e cobra mil reais pra transar! A
prima do Cabeça cobra cento e cinqüenta!
CHICO
Eu não estou a fim da prima do Cabeça.
JUCA
Vai dizer que tu tá a fim dessa guria?
CHICO
Não sei. É diferente.
JUCA
Pode ser diferente, mas não pode ser oitocentos e
cinqüenta reais de diferença. Tu pagou mil reais
por uma trepada.
CHICO
Quinhentos. Mil por duas.
JUCA
É. Mesmo assim é trezentos e cinqüenta reais mais
caro que a prima do Cabeça. O que que ela faz?
CHICO
Como assim?
JUCA
O que ela faz por quinhentos reais?
CHICO
Não enche o saco.
JUCA
Sabe o que a prima do Cabeça faz por cento e
cinqüenta?
CHICO
Sei, tu já me contou mil vezes.
JUCA
Tu acha que ela vem?
CHICO
Não sei. Disse que vinha.
JUCA
Será que ela não tem uma amiga mais em conta?
CHICO
Pode ser. Pergunta para ela.
Roza chega.
ROZA
Ó.
CHICO
Ó.
JUCA
Oi.
CHICO
Esse é o Juca.
ROZA
Oi.
JUCA
Posso te fazer uma pergunta?
ROZA
O quê?
JUCA
Tu aceita vale refeição?
ROZA
Gracinha.
Juca levanta e vai saindo.
JUCA
(para Roza) De repente, te ligo.
ROZA
(para Juca) Isso. Vai guardando tua mesada e me
liga no ano que vem. (para Chico) O que tu quer?
CHICO
Queria te ver.
ROZA
Já viu. O que mais?
CHICO
O que que foi?
ROZA
Não posso demorar, meu irmão tá sozinho.
CHICO
Eu te levo.
ROZA
Tá de carro?
CHICO
Te levo de táxi.
ROZA
E como tu volta? Eu moro longe, na zona sul.
CHICO
Volto de ônibus. Vamos.
CENA 60 - TÁXI - EXTERIOR/NOITE
Chico e Roza no banco traseiro de um táxi.
CHICO
Tu tá trabalhando onde agora?
ROZA
Numa loja.
CHICO
E o dinheiro?
ROZA
Que dinheiro?
CHICO
O dinheiro que tu tem guardado? Por que não usa?
ROZA
Não posso, tenho que guardar.
CHICO
Para ir pra Austrália?
ROZA
É, isso, para ir para a Austrália. (ao motorista)
A próxima o senhor entra à direita.
CHICO
Quanto custa duas passagens para a Austrália?
ROZA
Porque duas?
CHICO
O teu irmão.
ROZA
Não vou levar o meu irmão para a Austrália. (ao
motorista) O senhor cuide que a próxima é
preferencial.
CHICO
Ele vai ficar com quem?
ROZA
Com o meu tio.
CHICO
Tu disse que ele era um idiota, casado com uma
imbecil.
ROZA
Disse. Ele é um idiota casado com uma imbecil. Vou
fazer o quê? Também, nem sei se eu estou a fim de
ir para a Austrália. (ao motorista) Atrás daquela
Brasília o senhor pára.
O táxi. Pára.
ROZA
Ele vai continuar.
CHICO
Não, eu pego um ônibus.
ROZA
Não tem ônibus aqui esta hora, só lá embaixo. Vai
com o táxi, eu pago até aqui.
CHICO
Eu caminho até lá embaixo. (ao motorista) Quanto
foi?
CENA 61 - CALÇADA - EXTERIOR/NOITE
O táxi vai embora, Chico fica com Roza na calçada. Ela abre a
porta do prédio, acende a luz do corredor.
ROZA
É melhor tu não subir, o meu irmão tá dormindo.
CHICO
O que que tem? A gente não faz barulho.
ROZA
Chico, olha. Vai embora. Eu gosto de ti, tu é
legal, legal mesmo. Mas vai embora.
CHICO
Eu não quero ir embora.
ROZA
Eu não quero complicar tua vida. Esquece. Já foi.
CHICO
Eu não tô a fim de esquecer. Complicar minha vida
por quê?
ROZA
Chico. Eu estou grávida.
A luz do corredor se apaga.
CENA 62 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/NOITE
Roza lava a louça. Chico seca.
CHICO
Tu acha que pode ser meu?
ROZA
Chico, por favor. Acho que não.
CHICO
Acha ou não?
ROZA
Não sei, não importa. Eu não estou te pedindo
nada.
CHICO
Não sabe? E se for?
ROZA
Se for, é. Eu não quero nada. É meu.
CHICO
Tu vai tirar?
ROZA
Não sei. E melhor tu ir embora.
CHICO
Eu não quero ir embora. E não sei se quero que tu
tire. Tu tem dinheiro guardado.
ROZA
Que dinheiro, uma merreca.
CHICO
Eu posso trabalhar.
ROZA
Não viaja, Chico.
CHICO
Estou falando sério.
ROZA
Não, não tá, tu tá viajando. Tu quer trabalhar,
casar e criar dois filhos que não são teus?
CHICO
Um pode ser meu.
ROZA
Não interessa, pode não ser. Acho que não é.
CHICO
Não interessa mesmo. Mas eu não quero ir embora.
Eu gosto de ti. Gosto muito de ti.
ROZA
Eu também gosto de ti.
CHICO
Pois então?
ROZA
Pois então o quê?
CHICO
Eu gosto de ti, tu gosta de mim. Por que que eu
tenho que ir embora? Tá esperando alguém?
ROZA
Não, não estou.
Roza desliga a luz da cozinha.
ROZA
Vamos pro meu quarto.
CENA 63 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/NOITE
Chico, na janela, observa a rua.
CHICO (OFF)
Se eu tivesse batido o recorde no tiro ao pato no
dia em que eu conheci a Roza talvez eu não tivesse
conhecido a Roza e a gente não teria um filho.
Chico observa Roza dormir.
CHICO (OFF)
Eu posso ter um filho por ter errado num pato. Eu
não sei o que isso significa, mas deve significar
alguma coisa.
Chico vai para a cama.
CENA 64 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA
Amanhece. Chico acorda, a cama vazia. Senta-se na cama. Levanta.
Vê a bolsa de Roza na mesinha de cabeceira, ao lado de uma
televisão portátil.
CENA 65 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico entra na cozinha. Vê um bilhete.
"Fui levar o guri no colégio. Esquenta o leite. Já volto."
Chico vê a leiteira no fogo, com leite. Na mesa da cozinha há
duas xícaras limpas e um copo plástico, com um resto de
chocolate. Farelos de pão sobre a toalha. Chico, movendo-se no
ritmo da música, pega o copo plástico e lava.
Limpa o farelo de pão da mesa, junta o farelo na mão. No meio do
farelo há um pequeno pedaço de alumínio. Chico examina o alumínio
e lê: TER.
Chico joga o farelo e o pedacinho de alumínio no lixo. Tenta
acender o fogão, mas não consegue. Procura fósforos. Não
encontra.
CENA 66 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico vai até o quarto e vê a bolsa de Roza. Despeja a bolsa
sobre a cama: carteira, algum dinheiro solto, cigarro, presilha
de cabelo, caixa de remédio, óculos escuros, um isqueiro cor de
rosa, a ficha do flíper. Chico pega a ficha do flíper, sorri.
Começa a dançar mais animadamente. Pega o isqueiro.
CENA 67 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico, na cozinha, acende o fogo sob a leiteira. Volta ao quarto.
CENA 68 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico guarda o isqueiro na bolsa. Guarda o cigarro, a ficha do
flíper, a carteira, os óculos, examina a caixa de remédio. Pára
de dançar. Chico abre a caixa de remédio e vê a bula. Lê. Examina
uma cartela de pílulas, parcialmente vazia. As pílulas tem os
dias marcados: QUA, QUI, SEX.
CENA 69 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico volta a cozinha, procura o pedacinho de alumínio no lixo.
Encontra. Compara o pedacinho de alumínio onde está escrito TER
com a cartela de pílulas. O pedaço de alumínio se encaixa
perfeitamente. Toca o telefone.
Chico fica parado no meio da cozinha, com as pílulas na mão. A
secretária eletrônica atente o telefone.
ROZA (OFF)
(gritando) Chico! Chico acorda! Atende Chico!
Chico! Tu tem que sair daí agora! O dono do
apartamento tá chegando. Chico! Sai daí, rápido!
CENA 70 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico vai até o quarto e atende o telefone.
CHICO
Alô.
CENA 71 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA
(em paralelo com cena 70)
Roza, num orelhão em frente ao prédio, do outro lado da rua. Ao
fundo, na calçada do prédio, Inácio e uma MULHER de casaco
vermelho, 25, descarregam malas de um táxi.
ROZA
(ao telefone) Chico, sai daí. Rápido.
CHICO
(ao telefone) Tu tá tomando pílula.
O Homem paga o táxi.
ROZA
O quê? Chico, tu tem que sair daí agora.
CHICO
Responde. Tu tá tomando pílula? Pílula
anticoncepcional?
ROZA
E aí? Pega a minha bolsa e sai daí, Chico.
CHICO
Tu tomou uma hoje de manhã, terça. Por que tu tá
tomando pílula? Tu tá grávida.
Pausa.
CHICO
Tu não tá grávida?
O táxi parte. Inácio, na porta do prédio, procura as chaves.
ROZA
Pode ser. Pára com essa conversa e me escuta. Pega
a minha bolsa e sai daí, correndo. Agora.
CHICO
Como, pode ser? Tá ou não tá?
ROZA
Acho que não estou.
CHICO
Não está ou pode ser?
ROZA
Não estou. Me escuta...
CHICO
Não está?
ROZA
Eu descobri que não estava, agora de manhã.
CHICO
E já está tomando pílula?
ROZA
É. Não.
CHICO
Fala a verdade, uma vez na vida.
Inácio abre a porta do prédio, tem alguma dificuldade com as
malas.
ROZA
Eu menti. Menti que estava grávida. Não quero mais
mentir pra ti, mas ontem eu menti. Eu não estou
grávida.
CHICO
Por quê?
ROZA
Não estou porque não estou.
CHICO
Por que tu mentiu?
Inácio e a Mulher entram no prédio.
ROZA
Eu queria que tu fosse embora. Agora cala a boca e
me escuta! Essa casa não é minha. Era emprestada.
Eu estou aqui na frente, o dono está chegando, já
entrou no prédio, deve estar entrando em casa.
Pega a minha bolsa e te manda daí agora!
A porta do prédio se fecha.
CHICO
Tu é louca! Tu não tinha outro jeito de me mandar
embora? Tinha que dizer que estava grávida e que o
filho podia ser meu?
ROZA
Eu disse para tu ir embora, tu não foi. E disse
que o filho não era teu.
CHICO
Disse que achava que não era.
ROZA
Pois então?
CHICO
Se achava que não era, podia ser.
ROZA
Não interessa. Eu não estou grávida. O Inácio vai
te pegar aí, tu não tá entendendo? Pega a minha
bolsa e sai!
CHICO
Tu é louca. Tu é completamente louca. Tu acha que
pode fazer isso com as pessoas, dizer que elas vão
ter um filho, depois dizer que não, depois dizer
que sim e dizer que não outra vez?
ROZA
Eu gosto de ti. Eu gosto muito de ti, Chico. Gosto
de verdade, Chico. Eu juro! Eu não vou mais mentir
para ti. Mas sai daí agora! O dono do apartamento
tá entrando. Ele não sabia que eu estava usando o
apartamento, nem sabe que eu tenho a chave. Ele
vai te matar. Sai daí agora!
CHICO
O leite.
ROZA
Chico, eu te amo.
CHICO
Vai te fuder!
Chico bate o telefone.
CENA 72 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
O leite está subindo, vai derramar.
CENA 73 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
Na sala, gira o trinco da porta.
CENA 74 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico, na cozinha, desliga o leite.
CENA 75 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
A porta se abre. Inácio e a Mulher entram na sala. Largam as
malas. Inácio fecha a porta, tranca a correntinha. A Mulher tira
o casaco.
CENA 76 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA
No quarto, Chico, pega a bolsa de Rosa. Enfia as meias e os
tênis. Escuta as vozes.
MULHER (OFF)
Tu deixou leite no fogão?
INÁCIO (OFF)
Deixei? Pode ser.
MULHER (OFF)
Ai!
INÁCIO (OFF)
O que foi?
MULHER (OFF)
Tá quente.
INÁCIO (OFF)
O quê?
MULHER (OFF)
A leiteira. Tá fervendo.
CENA 77 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
Mulher olha para dentro da casa.
MULHER
Tem alguém aí?
INÁCIO
Não, claro que não.
MULHER
Mas alguém saiu daqui faz pouco.
INÁCIO
Que estranho.
Inácio caminha para o quarto.
CENA 78 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA
Inácio entra no quarto. Vazio. A cama está desarrumada. Ele corre
e arruma rapidamente a cama. A mulher entra no quarto.
MULHER
Quem mais tem a chave?
INÁCIO
Minha mãe. Mas ela quase nunca vem aqui. Só se
veio limpar.
Mulher vê um celular sobre a cômoda. Pega.
MULHER
De quem é esse celular?
INÁCIO
Deixa eu ver.
Inácio pega o celular.
INÁCIO
É o meu. Onde estava?
MULHER
Estava aqui. Tu não disse que tinha perdido?
INÁCIO
Tinha. Procurei pela casa toda.
MULHER
Sei.
INÁCIO
Que estranho.
MULHER
Muito estranho. Eu te liguei várias vezes, tu não
atendeu e depois me disse que tinha perdido o
celular. E ele estava bem aqui.
INÁCIO
Não sei como. Será que estava com a minha mãe?
Mulher tira os sapatos e joga para baixo da cama, quase acertando
Chico que, com a bolsa na mão, está de olhos fechados.
INÁCIO (OFF)
Quer tomar alguma coisa?
MULHER (OFF)
Um banho.
Inácio se aproxima dela. Chico abre os olhos.
INÁCIO (OFF)
Depois.
MULHER (OFF)
Não, estou suada.
Inácio puxa a Mulher para a cama.
INÁCIO (OFF)
Melhor.
MULHER (OFF)
Ai...
INÁCIO (OFF)
Tira isso.
As roupas dos dois vão caindo no chão. Camisas, saia, calça.
MULHER (OFF)
Calma.
INÁCIO (OFF)
Vem aqui...
MULHER (OFF)
Ai...
INÁCIO (OFF)
Olha só como eu estou.
MULHER (OFF)
Hummm.
INÁCIO (OFF)
Vem.
MULHER (OFF)
O que é isso?
INÁCIO (OFF)
O quê?
MULHER (OFF)
De quem é esse sutiã, Inácio?
INÁCIO (OFF)
Não é o seu?
Chico fecha os olhos.
MULHER (OFF)
Claro que não. Vai dizer que é da sua mãe.
INÁCIO (OFF)
Não. Não sei.
MULHER (OFF)
Tem uma mulher dormindo aqui?
INÁCIO (OFF)
Claro que não. Imagina.
MULHER (OFF)
Imaginar o quê? Leite quente no fogão, o celular
que tu disse que tinha perdido, um sutiã na cama.
INÁCIO (OFF)
Eu não sei. Não sei mesmo.
MULHER (OFF)
Tá bom.
INÁCIO (OFF)
Onde é que tu vai?
MULHER (OFF)
Vou tomar um banho.
A mulher joga o sutiã no chão e sai. Chico abre os olhos.
INÁCIO (OFF)
Vem cá.
MULHER (OFF)
Me deixa.
Inácio, de cueca e camiseta, senta na cama. Pega o sutiã e joga
para baixo da cama. Som do chuveiro sendo ligado. Inácio vai até
o banheiro, entreabre a porta.
INÁCIO
Talvez eu tenha esquecido o telefone na minha mãe,
ela veio trazer, esquentou o leite. Talvez ela
tenha dormido aqui.
MULHER (OFF)
Sei. E tua mãe usa aquele sutiã.
INÁCIO
Pode ser de uma amiga.
MULHER (OFF)
Claro. Tua mãe é sapata, por acaso? Quer fazer o
favor de fechar a porta? Tá frio.
Ele fecha a porta. Aciona a secretária eletrônica e veste as
calças. Inácio vai até a sala. A secretária transmite os recados.
Recado 1:
(voz da Mulher) Inácio. Ináaacio. Sou eu. Oi? Já
saiu? Estou na porta do prédio já faz quinze
minutos. Alô? Que saco!
Recado 2:
(voz de Roza) Inácio, sou eu, a Roza, com Z.
Lembrou? Da praia. Alô? Alô...
Inácio, com uma faca de pão na mão, surge na porta, escuta o
recado.
Recado 3:
(voz de Roza) Alô. Inácio, sou eu de novo, a Roza,
da praia. Oi? Quero devolver a televisão. Tu
esqueceu o seu celular comigo, quero devolver
também. Alô?
Inácio corre e baixa o volume da secretária. Olha para a porta do
banheiro, senta na cama e ouve os recados.
Recado 4:
(voz de mulher) Sou eu meu filho. Tu já voltou? Me
liga quando chegar.
Recado 5:
(voz de Roza) Chico! Chico acorda! Atende Chico!
Chico! Tu tem que sair daí agora! O dono do
apartamento tá chegando. Chico! Sai daí, rápido!
Inácio se ergue, assustado, faca do pão na mão em posição de
ataque. Dá uma olhada em torno e fixa-se no armário. Aproxima-se
do armário. Aproxima o ouvido do armário. Escuta. Afasta-se um
pouco. Abre a porta do armário. Nada, só roupas.
Inácio examina o quarto, olha para a cama. Vai se abaixando, faca
em punho. Ajoelha-se. A mulher, secando-se, sai do banheiro.
MULHER
O que foi?
INÁCIO
Nada. Uma barata.
MULHER
E tu vai matar a barata com a faca do pão.
INÁCIO
Não. Só estou olhando.
Ela acende um cigarro, larga a toalha e sai. Inácio se abaixa
perto da cama, faca em punho.
Ele dá um grito e olha sob a cama.
INÁCIO
Há!
Não há ninguém embaixo da cama. Inácio vê um bilhete amassado no
chão.
CENA 79 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
A mulher, nua, fumando, entra na sala. Dá de cara com Chico, com
a bolsa e sutiã na mão, perto da porta.
CHICO
Bom dia.
MULHER
Aaaaah!
CENA 80 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA
Inácio, que estava tentando pegar o bilhete ergue-se rapidamente
e bate a cabeça na cama.
CENA 81 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA
Chico tenta abrir a porta, mas ela está trancada com a
correntinha. A mulher grita.
MULHER
Aaaaaaah!
Chico fecha a porta, tira a correntinha, abre a porta e sai
correndo.
Inácio surge na sala, de faca na mão. Mulher aponta para a porta.
MULHER
Aaaaaaaaah!
INÁCIO
Aaaaaaah!
CENA 82 - CORREDOR - INTERIOR/DIA
Inácio sai para o corredor, a Mulher o segue. Chico desce as
escadas, voando. A Mulher sai ao corredor para acender a luz.
Inácio vê Chico descendo as escadas e chama o elevador. A porta
do apartamento bate. A Mulher tenta abrir, mas a porta não abre
por fora.
MULHER
Cadê a chave?
INÁCIO
Lá dentro.
MULHER
Aaaaaaaah!
INÁCIO
Calma. Eu te dou minha roupa!
Ele tira a calça.
MULHER
Aaaah!
INÁCIO
Fica quieta!
A luz do corredor se apaga. TRÊS GAROTAS abrem a porta do
elevador e vêem Inácio sem calça, de faca na mão, e a Mulher nua.
TRÊS GAROTAS
Aaaaahhh!
MULHER
Aaaaaah!
INÁCIO
Aaaaaaah!
CENA 83 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA
Chico, de bolsinha e sutiã na mão, sai do prédio correndo. Ouve
uma sirene. Chico diminui o passo, enfia o sutiã na bolsinha e a
bolsinha no braço, disfarça. Um camburão chega. DOIS POLICIAIS
descem correndo e entram no prédio.
Chico vê o orelhão. Olha em volta. Ninguém. Chico se afasta
caminhando.
CENA 84 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA
O ônibus Tristeza se aproxima e pára. Chico sobe no ônibus.
JUCA (OFF)
Quando foi isso?
CHICO (OFF)
Faz mais de um mês.
CENA 85 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/DIA
Juca come batatinhas fritas. Há dois copos vazios sobre a mesa.
JUCA
E ela te ligou a troco de quê?
CHICO
Quer conversar. E quer a bolsa.
JUCA
Tem dinheiro na bolsa?
CHICO
Tem um pouco.
JUCA
Então ela vem. Ela disse "eu te amo"?
CHICO
Disse.
JUCA
E tu disse "vai te fuder".
CHICO
Disse.
JUCA
Legal. Tu não é tão idiota como eu pensava.
CHICO
Sou mais idiota do que eu pensava. Sabe o que eu
devia ter dito?
JUCA
O quê?
O GARÇOM (o HOMEM da cena 1) chega, põe dois copos de suco na
mesa. Chico se aproxima de Juca.
CHICO
Eu também te amo.
O Garçom fica olhando para Juca.
JUCA
(para o Garçom) O senhor podia trazer a nossa
continha?
O Garçom sai, levando os copos vazios.
JUCA
Tu acha que ela vem?
CHICO
Foi ela que ligou. Disse que vinha.
JUCA
Pelo menos dois sucos ela vai nos pagar. Dá aqui
esta bolsa.
Juca pega a bolsa.
O Garçom chega com a nota.
Juca abre a bolsinha, tira a presilha de cabelo, o sutiã, o
isqueiro cor-de-rosa, pega o dinheiro. O Garçom fica olhando para
a bolsinha de Juca. Juca mantém a pose e paga.
JUCA
Pode ficar com o troco.
O Garçom pega o dinheiro e sai.
JUCA
Chico, essa guria tem um irmão para criar, dá para
qualquer um por quinhentos reais, roubou o teu
amplificador e fica grávida toda quarta-feira.
CHICO
Eu sei. Mas eu te juro que se ela disser que me
ama eu caso com ela.
JUCA
Por quê?
CHICO
Ela guardou a ficha do flíper.
ROZA (OFF)
Chico.
CHICO
Oi.
ROZA
Oi.
CHICO
Esse é o Juca.
ROZA
Eu sei.
JUCA
Já sei. Tu tá grávida!
CHICO
Juca, não enche o saco.
JUCA
Olha, eu vou ao banheiro, rapidinho, se ela ficar
grávida nesse meio tempo vocês não digam nada pro
garçom, que aqui a consumação é cinco por pessoa
ele pode querer cobrar da criança.
Juca sai. Roza senta.
ROZA
Chico, eu...
CHICO
Desculpa.
ROZA
Desculpa por quê?
CHICO
Por aquele dia. Eu fiquei louco, desculpa. Uma
hora eu ia ter um filho, meia hora depois não ia
mais, fiquei louco. É estranho, mas eu estava
achando legal ter um filho. Mesmo que isso fosse
abagunçar completamente a minha vida, eu estava
achando legal ter um filho. Um filho contigo.
ROZA
Chico...
CHICO
Desculpa.
ROZA
Eu estou grávida.
Roza fica olhando para ele e sorri.
CENA 85A - ECOGRAFIA
Um bebê se mexe na barriga da mãe.
CENA 85B - TABLE-TOP
Notícia de jornal: "Pílulas Falsas Geram Processo". Foto de Roza
e Chico.
CENA 85C - PORTA DE QUARTO DE HOSPITAL - INTERIOR/DIA
Mão de Chico pendura na porta os sapatinhos cor-de-rosa que
encontrou no bric.
CENA 85D - TABLE-TOP
Notícia de jornal: "Laboratório vai pagar indenização". Foto de
Roza, Chico e Bebê.
CENA 86 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
Chico abre um sorriso. Ergue uma máquina fotográfica e bate um
flash.
Roza, com uma Menina no colo, posa para a foto.
CHICO (OFF)
Desta vez era verdade. Eu errei nos patos e
conheci a Roza.
O irmão de Roza com a Menina no colo. Juca com a menina no colo
mostra uma manchete de jornal
CHICO (OFF)
O laboratório vendeu pílulas de farinha e a Roza
ficou grávida.
Juca e Roza com a menina no colo.
CHICO (OFF)
A gente processou o laboratório e eles vão pagar
uma mesada para a Margarida até ela completar
dezoito anos.
A menina sozinha.
Chico e Roza fazem caretas para provocar o riso do bebê. HOMEM
(da cena 1, GARÇON da cena 85) passa ao fundo caminhando pela
praia.
CHICO (OFF)
Acho que até lá eu arrumo um emprego.
Homem cai num buraco, uma armadilha igual a da cena 1.
Chico e Roza ajudam o Homem a se erguer. O Homem resmunga e vê
Juca. Juca fica duro, tentando não rir. Garçon reconhece Juca.
Brigam. O bebê assiste a briga.
FIM
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(c) Jorge Furtado, 2001-2002
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
15/03/2001
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