HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES - texto inicial

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               HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES

               roteiro de Jorge Furtado
               versão de 15 de Março de 2001

               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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CENA 1 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Uma praia se perde no horizonte, quase vazia. O vento surge e
some em linhas de areia branca, o céu é branco e o mar quase
marrom. Muito ao longe, um HOMEM se aproxima. CHICO e JUCA, 16
anos, estão sentados numa duna quase na beira da praia, olhando
para o mar. Chico está de boné. Juca tem uma tala no pescoço.
Chico dá uma olhada na direção do Homem que se aproxima: quarenta
anos, copo de cerveja na mão, relógio.

               CHICO (OFF)
               Esta é a maior praia do mundo, trezentos e
               cinqüenta e três quilômetros, está no livro dos
               recordes. Talvez seja também a pior praia do
               mundo, principalmente em março. Em janeiro e
               fevereiro pode até ser divertido, mas em março é
               um saco. A gente tem que inventar coisas para
               fazer todo tempo. Não é fácil.

O homem se aproxima e, quando chega exatamente na frente dos
dois, pisa num buraco. O Homem quase cai, derramando um pouco de
cerveja.

Chico e Juca ficam imóveis. O homem examina o buraco, tapado por
jornais e areia, uma evidente armadilha.

O homem, furioso, olha para os lados, olha para os dois, volta a
olhar para os lados.

Juca e Chico não movem um músculo do rosto. O homem olha
fixamente para os dois. Uma lágrima escorre pelo rosto de Juca.

               CHICO (OFF)
               Quando eu estou louco para rir mas não posso,
               penso em coisas muito tristes. Minha mãe
               reclamando da casa. Meu pai tentando nos convencer
               que esta é a melhor praia do mundo. Meu pai
               fazendo contas para pagar nossas férias. Um filho
               que eu posso ter um dia me olhando fazer contas
               para pagar as férias dele. Eu tentando convencer
               um filho que eu posso ter um dia que esta é a
               melhor praia do mundo. Quase sempre funciona.

O homem recua, de olho fixo em Chico e Juca, pisa no buraco e cai
para trás. O homem se estatela na areia, derrama toda a cerveja
na própria cara.

Juca dá uma gargalhada.

               CHICO (OFF)
               Quase sempre.

Os dois se levantam e saem correndo, rindo. O homem grita, tenta
se levantar. Juca e Chico correm pelas dunas.

Créditos Iniciais.

CENA 2 - PLAYLAND - INTERIOR/NOITE

Um flíper (uma casa de diversões eletrônicas). Chico e Juca estão
jogando fla-flu (pebolim). Duas meninas entram. Juca olha para as
duas. Uma é MORENA, cabelo curto e nariz fino. A outra é RUIVA,
sardas, olhos claros. Pedem duas cocas. Juca olha para Chico.
Juca pega a bolinha do fla-flu e, disfarçando, joga na direção
delas. Vai atrás.

               JUCA
               Com licença?

Juca se abaixa e pega a bolinha junto aos pés das duas. As
meninas ficam olhando para ele, de tala no pescoço.

               JUCA
               Obrigado.

               MORENA
               O que aconteceu?

               JUCA
               A bolinha caiu.

               MORENA
               No pescoço.

               JUCA
               Ah. Desloquei a terceira vértebra cervical. Eu
               estava pegando onda, fui dar um drop, meu parceiro
               estava no tubo, pranchou. Mas tudo bem, já estou
               pronto para outra. Vocês estão aqui?

               MORENA
               Estamos, né?

               JUCA
               Quero dizer, estão passando o verão aqui?

               MORENA
               Não. Meu namorado está botando gasolina, estamos
               indo para o Rosa. Sabe a praia do Rosa? Fica em
               Santa Catarina depois do...

               JUCA
               Então tchau.

Ele se vira, dá as costas, deixa ela falando sozinha. Volta para
o jogo.

               CHICO
               E aí?

               JUCA
               Namorado de carro, não dá para meter. Ainda mais
               com cachumba.

               CHICO
               Tu disse que estava com cachumba?

               JUCA
               Claro que não. Eu estou na fase de maior contágio.
               Se eu cuspir em ti tu tá frito.

               CHICO
               Eu já tive cachumba. Todo mundo já teve cachumba.

O centroavante segura a bola, toca sutilmente de lado para o
ponteiro esquerdo que, numa roleta precisa, acerta o canto
direito do gol, sem chances para o arqueiro. Gol de Chico.
Termina o jogo.

               CHICO
               Cinco a três. (vão saindo) Vamos pro outro?

               JUCA
               Não, vou dormir. O médico disse que a cachumba
               pode descer pro saco, já pensou? Eu de sunga, na
               praia, caminhando de perna aberta.

               CHICO
               Não, não pensei.

Os namorados das meninas entram.

               MENINA
               (para Juca) Esse é o meu namorado.

Juca fica olhando para o cara algum tempo. Sorri, abraça o
sujeito, fica abraçado nele.

               JUCA
               Aí, brother. Tudo certo? Firmeza. (tosse sobre o
               cara, tosse, tosse) É isso aí. Boas ondas.

Vão saindo. Juca pára.

               JUCA
               (para o cara) Tu já teve cachumba?

O cara faz que não. Juca sorri e sai. O cara fica se apalpando no
pescoço, preocupado.

CENA 3 - PLAYWORLD - INTERIOR/NOITE

Chico entra em outro flíper, este com mais brinquedos eletrônicos
e menos jogos de mesa. Chico compra duas fichas. Vai para um
brinquedo de tiro ao pato.

               CHICO (OFF)
               Meu recorde nos patos é setenta e dois. Meu vice-
               recorde é cinqüenta e quatro. Quase sempre eu faço
               entre quarenta e cinco e cinqüenta, cinqüenta e
               dois. O dia dos setenta e dois patos foi um
               acontecimento, eu estava em estado de graça,
               atirava nos patos antes deles aparecerem. Eu
               estava integrado em alguma força cósmica, sabia
               que o pato ia subir, o anjo da guarda do flíper
               estava pousado no meu ombro e dizia: lá vem um
               pato. No dia em que eu conheci a Roza o anjo da
               guarda do flíper não estava me dizendo nada sobre
               os patos. Sorte dos patos e também sorte minha. No
               game-over a luz da máquina se apagou e ela
               apareceu no reflexo.

Chico vê o reflexo de Roza na máquina. Vira-se. (Cena em câmera
lenta.)

ROZA, 18 anos, vestido de alcinha e cabelo preso, tenta colocar
uma ficha no pimbal. Chico fica admirando a beleza da moça, só
comparável a sua inaptidão para lidar com a máquina. Roza põe a
ficha no lugar errado, não entra. Põe a ficha no lugar certo mas
aperta o botão errado e a máquina devolve a ficha.

Chico se aproxima.

               CHICO
               É no outro buraco.

               ROZA
               Já tentei, não deu.

               CHICO
               Tu apertou no botão errado. Põe de novo.

Ela põe a ficha no buraco certo.

               CHICO
               Agora aperte o botão "play".

               ROZA
               Qual é?

               CHICO
               O grande, com a luz vermelha, escrito "play".

Ela aperta e a máquina se acende.

               ROZA
               Deu! Obrigado.

Ela joga. Ele põe outra ficha na sua máquina e finge atirar nos
patos. Uma CRIANÇA se aproxima e fica olhando Chico atirar. Chico
nem olha para os patos, não tira os olhos de Roza.

Ela é péssima, mal consegue botar a bola em jogo. Quando
consegue, perde a bola sem tocar nela nenhuma vez. Joga outra
bola e perde. Chico erra nos patos. Roza perde mais uma bola.
Chico erra nos patos. Roza perde mais uma bola, e mais uma.

As duas máquinas informam game-over quase ao mesmo tempo. A
criança olha para Chico.

               CRIANÇA
               Tu é horrível.

Chico sorri. Vai comprar mais fichas, encontra-se com Roza no
caixa.

               ROZA
               Vou eu botar mais dinheiro fora.

               CHICO
               Quer churros?

               ROZA
               O quê?

               CHICO
               Tu... quer comer um churros? Eu pago.

               ROZA
               Já comprei uma ficha.

               CHICO
               Depois a gente volta.

Roza observa Chico alguns segundos.

               ROZA
               Tudo bem.

CENA 4 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE

Chico e Roza observam o vendedor de churros preparando a massa.

               CHICO
               Meu nome é Chico. Francisco.

               ROZA
               O meu é Roza. Roza com z.

               CHICO
               Por que com z?

               ROZA
               O cara do cartório era meio analfabeto. Só
               descobri que era com z há três anos. Achei legal.
               Rosa com "s" tem muitas. Com z, só eu.

               CHICO
               O meu Chico é com "x" e com "q".

               ROZA
               É?

               CHICO
               Mentira, é Chico mesmo. Tu quer doce de leite ou
               creme?

               ROZA
               Doce de leite.

               CHICO
               Os dois com doce de leite.

               ROZA
               Eu nem sei porque existe churros com creme, nunca
               vi ninguém pedir com creme, doce de leite é muito
               melhor.

               CHICO
               É bom que exista o de creme. É mais legal comer
               pensando "eu estou comendo o melhor" do que comer
               pensando "eu estou comendo o único que tinha para
               comer".

               ROZA
               Isso é.

               CHICO
               Sua casa é por aqui?

               ROZA
               Não. Lá perto não tem flíper. Vamos comer na
               praia?

CENA 5 - PRAIA - EXTERIOR/NOITE

Chico e Roza caminham pela praia, comendo churros.

               ROZA
               Por que tu tira férias em março?

               CHICO
               É mais barato.

               ROZA
               Tá perdendo aula?

               CHICO
               Só uma semana. Na primeira semana nunca acontece
               muita coisa. E tu?

               ROZA
               Eu gosto de praia em março. Tem menos gente.

               CHICO
               Tu vai à praia que horas?

               ROZA
               De tarde. Acordo para almoçar. Teve uns dias que
               eu não fui, mas essa última semana eu vou
               aproveitar. Em janeiro e fevereiro tu fica em
               Porto Alegre?

               CHICO
               Fico. E tu?
               
               ROZA
               As vezes eu viajo. Tu viu como as tatuíras brilham
               com a lua? São fluorescentes.

               CHICO
               Fosforescentes.

               ROZA
               Qual a diferença?

               CHICO
               Fluorescentes é de flúor, fosforescentes é de
               fósforo. As lâmpadas são fluorescentes, as
               tatuíras são fosforescentes.

               ROZA
               Tu tá com doce de leite no queixo.

Ela passa o dedo no queixo dele, tirando o doce de leite. Ele
fica olhando para ela, recortada contra a lua cheia. Ela oferece
o dedo para ele. Ele chupa o dedo dela.

               CHICO
               Tu tá cheia de açúcar.

Ela limpa o açúcar com a mão, ele segura o braço dela.

Beijam-se, um beijo longo e silencioso, iluminado pela lua e
pontilhado por tatuíras fosforescentes.

CENA 6 - CASINHA DO SALVA-VIDAS - EXTERIOR/NOITE

Chico e Roza estão sentados na casinha do salva-vidas olhando
para o mar.

               ROZA
               Tu vai fazer vestibular?

               CHICO
               Ano que vem.

               ROZA
               Para quê?

               CHICO
               Não sei ainda. Comunicação ou letras. Ou desenho
               industrial. Se bem que eu gosto de computação
               também.

               ROZA
               Eu fiz para arquitetura mas não passei. Este ano
               nem me inscrevi. Quero viajar, tô guardando
               dinheiro. Acho que vou para a Austrália.

               CHICO
               Por que para Austrália?

               ROZA
               Tenho uma amiga que foi para lá. Austrália é bom
               que é bem longe. Tu fica lá, na Austrália, bem
               longe, todo mundo pensando que tu deve estar muito
               feliz.

               CHICO
               Tu fala inglês?

               ROZA
               More or less. E tu?

               CHICO
               Estou no cultural.

               ROZA
               Tu é virgem?

               CHICO
               Não. Quer dizer, mais ou menos.

               ROZA
               Como assim?

               CHICO
               Acho que sou.

               ROZA
               Acha?

               CHICO
               É que eu tive umas histórias, mas nada muito,
               assim, profundo.

               ROZA
               Sei como é. Quer deixar de ser?

               CHICO
               Quero, claro.

Pausa. Roza fica olhando para Chico.

               CHICO
               Tu quer dizer, agora?

               ROZA
               Pode ser. Quer?

               CHICO
               Bom... acho que sim.

               ROZA
               Acha?

               CHICO
               Claro que sim.

Beijam-se. A lua reflete no mar, as tatuíras passeiam pela areia.

CENA 7 - CASINHA DO SALVA-VIDA - EXTERIOR/DIA

Chico acorda, sol na cara suja de areia. Roza não está. Ele
encontra a ficha do flíper. Olha para a praia, quase deserta.

Chico desce da casinha e vê as pegadas de Roza se afastando.

CENA 8 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Chico segue as pegadas.

As pegadas de Roza se dirigem para a grama na beira da praia.
Chico ainda consegue seguir um pouco as pegadas de areia na grama
mas logo elas desaparecem, misturadas com outras.

CENA 9 - PRAÇA - EXTERIOR/DIA

Chico procura Roza pela praça vazia. Guarda a ficha de flíper.

CENA 10 - EDIFÍCIO QUEBRA-MAR - EXTERIOR/DIA

Juca e Chico saem do apartamento e caminham pelos corredores do
prédio. Juca carrega uma sacola com pão e leite.

               JUCA
               Tu comeu?

               CHICO
               Comi.

               JUCA
               Mentira.

               CHICO
               Juro.

               JUCA
               Jura por Deus?

               CHICO
               Juro.

               JUCA
               Pela alma da tua mãe?

               CHICO
               Juro.

               JUCA
               Pela bunda da Silmara?

               CHICO
               Juro.

               JUCA
               Não acredito.

               CHICO
               Comi. Juro. Na verdade, ela é que me comeu.

               JUCA
               Tá brincando? Que rabo! Será que ela dá para mim?

               CHICO
               Tá louco?

               JUCA
               O que que tem? Vocês tão namorando?

               CHICO
               Não. Não sei. Não falei com ela ainda.

               JUCA
               Mas tu tá a fim?

               CHICO
               Tô.

               JUCA
               Que rabo! Será que ela não tem uma amiga?

               CHICO
               Não sei.

               JUCA
               Deve ter. E a amiga deve dar também. Se uma dá, as
               outras também dão.

               CHICO
               Por quê? Eu já transei e tu não.

               JUCA
               Transou ontem. Se tu tivesse transado há tempo eu
               também já tinha. É melhor que punheta?

               CHICO
               É totalmente diferente.

               JUCA
               Como assim?

               CHICO
               É diferente.

               JUCA
               Diferente como?

               CHICO
               Muito melhor. É outra coisa.

               JUCA
               Não sei. Acho que vou morrer de vergonha de me
               acabar na frente de alguém. Fico ridículo, já me
               vi no espelho. (faz a careta) A guria vai me ver
               me acabando é vai ter um ataque de riso, tenho
               certeza.

               CHICO
               Não vai. É muito bom.

Juca pega um pão na sacola e come um pedaço.

               JUCA
               Bom como?

               CHICO
               Tu pára de pensar, isso é o melhor. Parece que...
               tu tá explodindo e ficando inteiro ao mesmo tempo.
               É quente, molhado.

Juca come mais um pedaço de pão.

               JUCA
               Continua.

               CHICO
               Não enche o saco.

               JUCA
               Que cor era a calcinha?

               CHICO
               Juca, não enche o saco.

CENA 10A - EDIFÍCIO QUEBRA-MAR - EXTERIOR/DIA

Chico e Juca saem do prédio, caminham na direção da praia.

               CHICO
               Não sei onde ela mora.

               JUCA
               A gente acha. Não tem ninguém nessa praia. Vamos
               procurar. Tenho que passar em casa, deixar o pão e
               trocar de camisa.

               CHICO
               Por quê?

               JUCA
               Não sei o que está escrito nessa camisa. E se a
               guria pergunta o que está escrito? Elas adoram
               perguntar essas coisas. Se ela pergunta o que está
               escrito na minha camisa e eu não sei, não dá para
               trepar.

               CHICO
               Quem vai trepar? A gente só vai procurar por ela
               na praia.

               JUCA
               Nunca se sabe. Vou botar a branca da zoomp. Ou
               então a listada da forum. Não, a listada da forum
               é meio gay. A branca da zoomp. Merda, por que eu
               não cortei meu cabelo ontem! Se soubesse que hoje
               eu ia trepar...

               CHICO
               Tu nem sabe se ela tem alguma amiga. E se tiver,
               pode ser um trubufu.

               JUCA
               Hoje eu como até gorda.

Chico e Juca fazem a curva da esquina e se afastam.

CENA 11 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Chico e Juca caminham pela praia, agora mais cheia que das outras
vezes. Juca está vestindo uma camisa com a cara do Shakespeare e
um texto escrito: ...But love is blind and lovers cannot see the
pretty follies that
themselves commit. Shakespeare

Crianças brincam, alguns homens jogam futebol. Passa um
sorveteiro.

               CHICO
               Vamos voltar?

               JUCA
               Outra vez?

               CHICO
               Ela pode ter chegado agora.

               JUCA
               Vamos perguntar.

               CHICO
               Perguntar como?

               JUCA
               Se alguém conhece a Roza. Roza com z.

               CHICO
               Para todo mundo?

               JUCA
               Não, só para as gurias. Deixa que eu pergunto.

Juca se aproxima de VIOLETA, 16 anos. Ela está sentada sob o
guarda-sol, lendo uma revista, de camiseta e biquini.

               JUCA
               Oi. Tudo bem? Por acaso, tu não conhece uma menina
               chamada Roza? Roza com z. Ela está numa casa por
               aqui.

               VIOLETA
               Conheço.

               JUCA
               Conhece?

               VIOLETA
               Conheço.

Chico se aproxima.

               JUCA
               (para Chico) Ela conhece.

               CHICO
               Ó.

               VIOLETA
               Oi.

               CHICO
               Tu sabe onde ela mora?

               VIOLETA
               Não, só encontro na praia.

               CHICO
               Sabe de alguém que conhece ela?

               VIOLETA
               Não. Acho que ela vem sempre sozinha.

               JUCA
               Meu nome é Juca. Esse é o Chico.

               VIOLETA
               Oi.

               JUCA
               Seu nome como é?

               VIOLETA
               Violeta.

               JUCA
               Posso te chamar de Vi?

               VIOLETA
               Não.

               JUCA
               Desculpe.

               VIOLETA
               Tudo bem.

               CHICO
               E tu... não viu ela hoje?

               VIOLETA
               Não.

               CHICO
               Bom... então tá, obrigado. A gente vai dar mais
               uma procurada.

Violeta larga a revista, levanta-se, tira a camisa.

               VIOLETA
               Eu vou com vocês.

               JUCA
               Vai? Boa, vamos.

Os três caminham pela praia. Juca no meio, caminha sem tirar os
olhos de Violeta.

               VIOLETA
               Legal essa camisa.

               JUCA
               Ah, brigado.

               VIOLETA
               O que está escrito?

               JUCA
               O amor é cego e os amantes não podem ver as
               bonitas folias que eles mesmo cometem.

               VIOLETA
               Bonitas folias?

               JUCA
               É. É do Shakespeare.

               VIOLETA
               Faz tempo que tu não corta o cabelo?

               JUCA
               É, tava deixando. Mas vou cortar.

               VIOLETA
               Achei legal.

               JUCA
               Vou cortar um dia. Não sei quando. Talvez eu
               deixe.

               CHICO
               A Roza te disse onde mora em Porto Alegre?

               VIOLETA
               Não. Vocês moram onde?

               CHICO
               Tristeza.

               JUCA
               Floresta.

               VIOLETA
               Onde na Floresta?

               JUCA
               Perto da Cristóvão.

               VIOLETA
               Eu moro na Cristóvão.

               JUCA
               Tá brincando? Perto dos bombeiros?

               VIOLETA
               Não, mais para cima. Sabe o Hospital Militar?

Juca e Violeta param de caminhar. Chico pára também.

               CHICO
               A Roza te disse se ia a algum lugar?

               VIOLETA
               (para Chico) Eu só vi a Roza uma vez. (para Juca)
               O que aconteceu no teu pescoço?

               JUCA
               Tu já teve cachumba?

               VIOLETA
               Já. Tu tá com cachumba?

               JUCA
               Não, não, é que eu tô fazendo uma pesquisa.
               Desloquei a terceira vértebra cervical. Eu estava
               pegando onda, fui dar um drop, meu parceiro estava
               no tubo, pranchou. Mas tudo bem, já estou pronto
               para outra.

               VIOLETA
               Tu surfa?

               JUCA
               Surfo. E tu?

Chico vai saindo.

               CHICO
               Eu vou procurar mais um pouco.

               JUCA
               Isso aí.

               VIOLETA
               Tchau.

Chico caminha pela praia. Ao fundo, Juca e Violeta seguem
conversando.

CENA 12 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Passagem de tempo, Chico caminha entre as árvores na beira da
praia, procurando Roza. Vê uma MENINA DE COSTAS, parecida com
ela, namorando com um RAPAZ, sentados no chão. Chico faz a volta
para tentar ver o rosto da menina. Ela o vê, se assusta e fecha o
zíper da calça.

               CHICO (OFF)
               Procurei Roza todos os dias. Na praia e no flíper.
               Ela sumiu.

Chico desce para a praia e passa por Juca, já sem tala no
pescoço, e Violeta, que estão se agarrando sob um guarda-sol.
Abana. Eles abanam.

               CHICO (OFF)
               Juca passou três dias chamando a Violeta de Vi,
               Vivinha, Viviquinha, essas coisas. E ainda não
               comeu.

CENA 13 - BAR DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Juca dá um beijinho em Violeta e sai da mesa, arrastando Chico,
que estava entrando no bar, pelo braço. Juca está de jaqueta,
boné e echarpe.

               CHICO
               Que roupa é essa?

               JUCA
               Depois te explico. Ela tá sozinha em casa, a mãe
               só volta no fim-de-semana. Tu tem que me ajudar.

               CHICO
               Quer que eu segure ela pra ti?

               JUCA
               Tu tem que ir junto, com outra guria. A gente come
               uma pizza aqui, depois vai para casa dela. Aí a
               gente joga carta, toma um vinho. O resto deixa
               comigo. Gravei uma fita só com umas baladas, não
               tem erro. Tu tem que ir. Com outra guria.

               CHICO
               Que guria?

               JUCA
               Qualquer uma. Convida alguém.

               CHICO
               Quem?

               JUCA
               Sei lá. Te vira. Pelo amor de deus, Chico.

               CHICO
               Eu não tenho grana, tô duro.

               JUCA
               Eu pago o jantar e o vinho.

               CHICO
               Não. Eu não estou a fim de arrumar uma guria
               assim.

               JUCA
               Assim como?

               CHICO
               Eu vou procurar a Roza. Acho que ela tá em outra
               praia.

               JUCA
               A Roza sumiu, Chico, deve ter voltado para Porto
               Alegre.

               CHICO
               Ela disse que ia aproveitar essa última semana na
               praia. Deve ser outra praia.

               JUCA
               E como é que tu vai procurar ela em outra praia se
               tu não tem dinheiro nem pra jantar? Te dou cem
               reais.

               CHICO
               Cem reais? Tá louco?

               JUCA
               Cem reais. (mostra duas notas de cinqüenta) Olha
               aqui. Por favor, Chico. Amanhã tu procura a Roza.

Chico pega as duas notas, põe no bolso.

               CHICO
               Tá, vou ver.

               JUCA
               Se tu não for quero o dinheiro de volta.

               CHICO
               Vai para lá.

Juca volta para a mesa com Violeta. Chico dá uma olhada pelo bar.
Vê uma guria sozinha. Se aproxima. O namorado dela chega, beijam-
se. Chico desvia, disfarça.

Chico vê CARMEM, 18 anos, saia curta, mini-blusa, conferindo o
cardápio numa mesa da calçada. Chico se aproxima.

               CHICO
               Oi.

Carmem olha para ele desconfiada.

               CARMEM
               Oi.

               CHICO
               Tá sozinha?

               CARMEM
               Por quê?

               CHICO
               Eu estou. Quer jantar comigo?

               CARMEM
               Não, obrigado.

Chico dá outra olhada pelo bar, mas só vê meninas acompanhadas.

               CHICO
               Olha, é o seguinte. Está a fim de ganhar cinqüenta
               reais?

               CARMEM
               (mais desconfiada) A troco?

               CHICO
               O meu amigo ali está com uma namorada. Ele quer
               comer uma pizza e depois jogar carta na casa dela.
               E quer que eu vá junto. Me pagou cem reais. Te dou
               cinqüenta para tu ir comigo.

               CARMEM
               Cinqüenta reais para comer uma pizza, tomar vinho
               e jogar carta com vocês?

               CHICO
               É.

               CARMEM
               Até que horas?

               CHICO
               Meia-noite, no máximo.

               CARMEM
               Só isso?

               CHICO
               Só. Prometo. Comer e jogar carta. Depois a gente
               vai embora e deixa os dois.

Ela abre a bolsa e mostra um tubo de spray.

               CARMEM
               Sabe o que é isso aqui?

               CHICO
               Não. O que é?

               CARMEM
               Spray repelente para urso. É feito de pimenta. Se
               eu jogar isso na tua cara tu fica sem enxergar uns
               dois dias.

               CHICO
               Não te preocupa. É só para comer e jogar carta
               mesmo. Eu prometo.

               CARMEM
               E quem paga a conta aqui?

               CHICO
               Ele paga.

               CARMEM
               Tudo bem. Cadê o dinheiro?

CENA 14 - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE

Juca abre o vinho sempre olhando de forma romântica para Violeta.
Ela, um pouco bêbada, gostando. Carmem, achando ridículo,
observa. Chico olha pra ela meio que se desculpando pelo amigo.
Juca serve o vinho no copo com a boca virada para baixo.

CENA 14A - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE

Chico e Carmem estão na mesa. Carmem está com a bolsa na mão,
desconfiada. Violeta pega copos e Juca abre a segunda garrafa de
vinho.

               JUCA
               Vocês sabem jogar dorminhoco?

               CARMEM
               Dorminhoco? Não. Sei jogar pôquer, escova, buraco.

Violeta, que evidentemente já bebeu mais do que devia, arruma as
cartas.

               VIOLETA
               É fácil. Dezessete cartas, às, rei, dama e valete
               dos quatro naipes.

               JUCA
               E um coringa.

               VIOLETA
               E um coringa.

               JUCA
               Quatro cartas para cada um e um recebe cinco.

               VIOLETA
               Tem que formar os quartetos, cada um passa uma
               carta por vez.

               JUCA
               Quem pega o coringa tem que ficar uma rodada, não
               pode passar de primeira.

               VIOLETA
               É fácil.

               JUCA
               Quem formar primeiro baixa as cartas na mesa. O
               último a baixar é o dorminhoco.

               VIOLETA
                (para Juca) Queima a rolha pra marcar.

Carmem põe a mão na bolsa.

               CARMEM
               Rolha? Que rolha? (para Chico) Tu não falou em
               rolha.

               VIOLETA
               A gente queima uma rolha e marca o dorminhoco de
               preto. Sai com água.

               JUCA
               Melhor! Vamos fazer assim: quem perder tem que
               tirar uma peça de roupa.

               VIOLETA
               Isso! Melhor que rolha!

               JUCA
               Combinado?

               CARMEM
               (larga a bolsa) Pode ser. É melhor que rolha.

               JUCA
               Ótimo!

Violeta põe as cartas na mesa. Juca serve o vinho.

               VIOLETA
               (para Carmem) Corta.

Carmem corta o baralho, Violeta dá as cartas.

CENA 15 - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE

Passagem de tempo. Chico, só com um pé do tênis, está sem camisa,
de calça. Violeta, quase dormindo, está de sutiã e saia. Carmem
está completamente vestida. Juca está só de cueca e meias.

               CHICO (OFF)
               Com cinqüenta reais dá para comer quatro dias,
               dormindo na barraca. Posso ir de ônibus e voltar
               de carona, parando em cada praia. Ela diz que vai
               a praia de tarde, eu viajo de manhã e procuro na
               praia de tarde.

Carmem baixa as cartas. Chico baixa as cartas. Juca baixa as
cartas. Violeta continua de cartas na mão, fecha os olhos,
cabeceia de sono.

               JUCA
               Violeta!

               VIOLETA
               O quê?

Ela acorda e baixa as cartas.

               JUCA
               Violeta! A saia!

               VIOLETA
               Ainda tenho as meias.

               JUCA
               Duas?

               VIOLETA
               Duas. Com licença.

Violeta levanta. Cambaleia, quase cai. Chico levanta para segurá-
la. Ela caminha para o sofá. Deita. Tenta tirar a meia mas não
consegue. Deita a cabeça no sofá, fica com a meia pela canela.

               CHICO
               E agora?

               JUCA
               Deixa que eu tiro.

Juca levanta e puxa a meia-calça de Violeta. Ela adormeceu
profundamente.

               JUCA
               (tentando acordá-la) Violeta! Violeta!

               CARMEM
               Deixa ela dormir. (olha o relógio) Acabou o jogo.
               Meia-noite. Obrigado pelo jantar e pelo vinho.

Chico veste a camisa.

               CHICO
               Eu vou contigo.

               CARMEM
               (para Juca) Tu não é colega do Gustavo?

               JUCA
               Que Gustavo?

               CARMEM
               O Cabeça, da Praça da Matriz.

               JUCA
               Sou. Por quê?

               CHICO
               Eu vou levar ela para a cama.

Chico ergue Violeta e a arrasta para o quarto.

               CARMEM
               Eu sabia que te conhecia. Eu sou prima do Gustavo.

               JUCA
               Prima? Do Cabeça?

               CARMEM
               É, prima.

               JUCA
               Olha só. Legal. E o Cabeça vai bem?

               CARMEM
               Faz tempo que eu não vejo.

               JUCA
               Pois é.

               CARMEM
               Bom, a gente se vê por aí. Obrigado pela pizza. E
               pelo vinho.

               JUCA
               Ainda é cedo.

               CARMEM
               O combinado foi meia-noite.

               JUCA
               Que combinado?

               CARMEM
               Ele me pagou cinqüenta reais para eu ficar até a
               meia-noite.

               JUCA
               Ah, é?

               CARMEM
               É.

               JUCA
               Quanto tu quer para ficar mais um pouco?

               CARMEM
               (ela sorri) Se for para jogar esta bobagem,
               quinhentos. (insinuando-se) Agora, se tu quiser
               fazer alguma coisa mais interessante... cento e
               cinqüenta.

CENA 16 - QUARTO DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE

Chico larga Violeta na cama mas um botão da gola de sua camisa
fica preso no sutiã, um daqueles que prende pela frente. Chico
fica debruçado sobre Violeta na cama e tenta soltar o botão da
camisa. Não consegue. Puxa o botão mas ele não se solta. Chico
tira a camisa. Tenta soltar o botão mas ele está muito preso.
Chico tenta arrancar o botão e ele fica preso por um fio de linha
no sutiã. Chico resolve partir o fio de linha com os dentes.
Quando ele está mergulhado entre os seios de Violeta ela acorda,
sem entender muito o que está acontecendo.

               VIOLETA
               Chico?

Chico consegue soltar o botão.

               CHICO
               Oi?

               VIOLETA
               Chico, eu acho que eu bebi demais.

               CHICO
               Acho que sim. A gente já vai.

               VIOLETA
               Tá. Eu vou dormir. Pede desculpas pra eles. Diz
               pra eles que eu acho que bebi demais.

               CHICO
               Tá bom. Dorme.

Violeta vira de lado e dorme. Chico veste a camisa. Juca entra.

               JUCA
               Cadê aquele dinheiro que eu te dei?

               CHICO
               Só tenho cinqüenta. Por quê?

               JUCA
               Me empresta.

               CHICO
               Para quê?

               JUCA
               Para dar para a Carmem. Fim de semana meu pai
               chega e eu te pago.

               CHICO
               Vou precisar do dinheiro amanhã.

               JUCA
               Chico, tu não tinha dinheiro nenhum, esse dinheiro
               eu te dei para tu me fazer um favor que tu devia
               fazer de graça. Eu preciso do dinheiro agora e tu
               não quer me emprestar?

               CHICO
               Tá bom.

Chico entrega o dinheiro a Juca.

               JUCA
               Fica aí.

Juca sai. Chico olha Violenta dormir. Senta e pega uma revista.

CENA 17 - SALA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE

Juca entra na sala. Carmem está sentada no braço do sofá. Juca se
aproxima, mostra a nota.

               JUCA
               O resto eu te dou depois.

Carmem sorri, pega o dinheiro, guarda. Põe a mão no ombro de
Juca. Ele sorri. Ela se aproxima e beija-lhe a boca. Afasta-se.
Ele abre os olhos.

               CARMEM
               O resto eu te dou depois. Tchau.

Ela sai. Juca fica parado no meio da sala. Chico aparece na porta
do quarto.

               CHICO
               Ela já foi?

               JUCA
               Já.

               CHICO
               E o dinheiro?

               JUCA
               Eu gastei.

CENA 18 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Chico e Juca caminham pela praia. Vêem o Surfista, de camisa e
pescoço enrolado numa echarpe, sentado numa cadeira na beira da
praia. A Morena está sentada no chão, ao lado dele. Juca esconde
o rosto. Vêem Carmem com um SUJEITO. Ela abana para eles. Chico
abana, Juca vira a cara.

               CHICO (OFF)
               Passei os últimos dias de praia procurando a Roza.
               Não encontrei. Voltei para Porto Alegre.

CENA 18A - PORTO ALEGRE - EXTERIOR/DIA

Imagens de Porto Alegre, muitos edifícios, muita gente na rua,
muitas garotas da idade de Roza.

CENA 19 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/DIA

Chico em seu quarto, observa a tabela periódica de elementos
químicos. Fecha o livro, vira-se para um pequeno teclado
(Cassio). Sobre uma das teclas está a ficha de flíper. Ele toca
alguma coisa sem usar a tecla com a ficha. Pára. Examina a ficha.

               CHICO (OFF)
               Eu podia descobrir as impressões digitais dela na
               ficha, se eu já não tivesse segurado e esfregado
               esta ficha mil vezes. E se não tivesse que estudar
               para a prova de química orgânica. Ligações
               covalentes, pra que eu vou usar isso na vida?
               Talvez ela já esteja na Austrália.

Toca o telefone. Ele atende.

               CHICO
               Alô?

               CHICO
               É.

               CHICO
               Claro.

               CHICO
               Tudo.

               CHICO
               Como é que tu conseguiu meu telefone?

               CHICO
               Sei.

               CHICO
               Não, estava estudando.

               CHICO
               Química orgânica.

               CHICO
               Quero, claro.

               CHICO
               Sei. Que horas?

               CHICO
               Tudo bem.

               CHICO
               Tá.

               CHICO
               Outro.

Chico desliga o telefone, fica parado alguns segundos e dá um
grito.

CENA 20 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico fala olhando para si mesmo no espelho enquanto experimenta
várias camisetas. Juca vai alcançando camisetas e jogando as já
experimentadas na gaveta.

               CHICO
               Ela disse alô, eu disse alô, já achando que era
               ela mas não podia ser ela. Ela disse é o Chico? e
               eu disse é, aí já achando que era ela mesmo. Aí
               ela disse é a Roza. Com z, lembra? Eu disse,
               claro. Ela disse, tudo bom?, eu disse tudo. Aí ela
               disse que queria me ligar mas não tinha o meu
               número. Eu perguntei como ela conseguiu. Ela disse
               que encontrou uma amiga da praia que tinha, deve
               ser a Violeta.

               JUCA
               Argh.

               CHICO
               Eu disse sei e ela perguntou se estava
               interrompendo alguma coisa, eu disse não, eu
               estava estudando química orgânica. Aí ela
               perguntou se eu queria encontrar com ela, eu disse
               que sim, claro, é lógico. Não, eu acho que eu só
               disse quero, claro. Aí ela perguntou se eu sabia
               de um bar na Nilópolis, um que tem umas mesinhas
               brancas e um toldo amarelo, perto do posto.

               JUCA
               O Coquinho.

Camiseta azul, gola redonda.

               CHICO
               O Coquinho. Eu disse sei e perguntei que horas.
               Ela disse oito, oito e meia. Eu disse tudo bem,
               ela disse então a gente se vê lá. Eu disse tá. Ela
               disse um beijo. Eu disse outro.

               JUCA
               Vai com a azul. No Coquinho só tem moinhos, a azul
               é mais moinhos. O que tu vai dizer? Tem camisinha?

Camiseta preta, gola vê.

               CHICO
               A gente não vai trepar no Coquinho.

               JUCA
                (dá uma camisinha para Chico) Leva camisinha.

               CHICO
               Uma só?

               JUCA
               Ué? Não ia trepar e agora quer duas?

               CHICO
               Só se der algum problema. Tudo bem, uma chega, a
               gente não vai trepar.

               JUCA
               Tu sabe o que vai dizer para ela?

               CHICO
               Sei.

CENA 21 - MESA - INTERIOR/NOITE

Chico, de camiseta vermelha, toma um gole de guaraná.

               CHICO
               Eu pensei muito naquela noite. Claro que eu nunca
               vou esquecer, tu sabe disso. Talvez tenha sido
               mais importante para mim do que para ti, deve ter
               sido. Mas eu queria que fosse importante para ti
               também. Queria não, eu quero. Eu não quero que
               aquela seja nossa única noite. Quero que seja a
               primeira.

Juca olha para Chico.

               JUCA
               Tá legal. Esse "queria não, quero", parece que tu
               errou e corrigiu na hora. Mas a camiseta azul é
               melhor.

CENA 22 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/NOITE

Chico, de camisa azul, está sentado numa mesa de rua no Coquinho.
Bebe um guaraná, de canudo. O guaraná tem aquele gelos furados,
Chico espeta um gelo e larga o canudo sobre o copo, com o gelo
pendurado como um anel.

Chico fica olhando o gelo derreter pendurado no canudo. O gelo
pinga magicamente no exato ritmo da música.

O anel de gelo está quase se partindo. Chico passa os olhos pelo
bar, nada de Roza. O anel de gelo se movimenta, vai cair. O gelo
cai no copo.

               ROZA
               Oi.

               CHICO
               Oi.

Chico se levanta. Beijam-se de maneira meio atrapalhada. Sentam.
Chico sorri, Roza também.

               CHICO
               Bom te ver.

               ROZA
               Também queria te ver.

               CHICO
               Legal. Eu pensei muito naquela noite.

               ROZA
               Eu não pensei nada, acho que estava louca. A gente
               nem usou camisinha.

               CHICO
               Não, eu quero dizer que eu pensei muito sobre
               aquela noite. Claro que eu nunca vou esquecer, tu
               sabe disso.

               ROZA
               Nem eu vou esquecer. Eu estou grávida.

Chico fica olhando para Roza. Ela sorri.

CENA 23 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE

Roza mostra a Chico uma tabela de cores de um teste de gravidez.

               ROZA
               Olha aqui. Se ficar vermelho, ou cor de rosa, é
               porque tu não tá. Se der verde, ou azul, é porque
               tu tá. Quanto mais azul, mais é certo que tu tá
               grávida.

               CHICO
               E aí?

Ela mostra, numa agenda, uma tirinha de papel, metade branca,
metade verde, bem clarinho. Chico examina a tirinha na luz.

               CHICO
               É meio verde mesmo.

               ROZA
               Essa foi a primeira que eu fiz, semana passada.
               Esta eu fiz ontem.

Ela mostra uma tirinha metade branca e metade muito azul.

               CHICO
               E tu fez mais de uma vez?

Ela mostra a ele um folha da agenda com várias tirinhas, todas
muito azuis.

Uma PAI e uma MÃE com seus DOIS FILHOS estão comprando pipocas.
Chico olha para as crianças enquanto fala com Roza.

               ROZA
               Eu vou tirar.

               CHICO
               Como?

               ROZA
               Vou abortar.

               CHICO
               Mas como?

               ROZA
               Numa clínica. Uma amiga minha conhece.

               CHICO
               Não é perigoso?

               ROZA
               Sempre é, um pouco. Ela disse que é um lugar
               chique, sala de espera, cheio de gente. Na zona
               sul.

               CHICO
               Como é que faz?

               ROZA
               É uma máquina, um tubo, tipo um aspirador. O cara
               enfia o tubo, liga a máquina e pronto.

               CHICO
               Pode ser perigoso.

               ROZA
               Se eu fizer logo, não é tanto. Quanto mais cedo,
               menos perigoso.

               CHICO
               Eu posso te ajudar?

               ROZA
               Não sei. Tu tem mil reais?

               CHICO
               Mil reais? Custa mil reais?

               ROZA
               Custa dois mil reais. Eu acho que consigo mil, já
               tenho seiscentos. Se tu não tiver, tudo bem.

               CHICO
               Mil reais?

               ROZA
               Mil reais. Eu posso conseguir mais um pouco se
               vender o celular.

               CHICO
               Tu tem celular?

               ROZA
               Tenho, mas é de cartão. (anota o número, dá o
               papel a ele) Me liga. Se eu conseguir mais que
               mil, te aviso. Se tu me ligar e outra pessoa
               atender é porque eu vendi o celular.

               CHICO
               Tá.

               CHICO
               Eu acho que ia ser legal ter um filho contigo.

               ROZA
               É. Quem sabe, mais tarde.

               CHICO
               É.

CENA 24 - BRIC - INTERIOR/DIA

Objetos variados expostos num bric: um carrinho de bebê, um
cavalinho, uma cadeirinha de bebê. Chico entrega um amplificador
para um VENDEDOR. O cara testa o amplificador. Chico examina
sapatinhos cor-de-rosa. Chico fica olhando para os objetos à
venda.

               CHICO (OFF)
               O filho que eu não vou ter com Roza nunca vai
               mentir para a mãe que o amplificador estragou para
               poder vender por seiscentos um amplificador que
               vale mil e juntar com o dinheiro da poupança para
               pagar um aborto.

CENA 25 - PRAÇA - EXTERIOR/DIA

Chico e Roza num banco de praça. Ela chora, ele conta o dinheiro.
Termina de contar, põe o dinheiro na agenda dela.

               CHICO
               Falta duzentos. Vou pedir para o Juca, talvez ele
               tenha.

               ROZA
               Melhor não dizer para ninguém. Eu consigo.

               CHICO
               Quer que eu vá contigo?

               ROZA
               Não precisa. A minha amiga vai, ela tem carro.

               CHICO
               Quando tu vai?

               ROZA
               Logo que der. Acho que amanhã. Eu te ligo.

               CHICO
               Liga?

               ROZA
               Ligo.

Ela dá um beijo nele, enxuga as lágrimas e sai.

CENA 26 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/DIA

Chico em sua casa, sentado, olha o telefone. Ele pega o telefone
e confere o botão que regula a altura do toque, põe no volume
máximo. Larga o telefone.

Levanta-se, caminha pelo quarto. Vai até o teclado e toca a mesma
música, agora com um som fraquinho. Vai até o telefone. Confere o
fio do telefone, verifica se está bem conectado na parede. Pega o
fone e escuta rapidamente. Desliga e fica olhando para o
telefone.

Pega o telefone e disca.

               CHICO
               Roza?

               CHICO
               Tu tá com a Roza?

               CHICO
               Ah, é? Quando?

               CHICO
               E... tu conhece a Roza de onde?

               CHICO
               Ah, é?

               CHICO
               Não, ela me falou que ia vender o celular, mas não
               pensei que fosse tão rápido. Ela não te deixou
               nenhum número?

               CHICO
               Bom, se ela ligar tu podia dar um recado?

               CHICO
               Tudo bem, eu sei que ela não vai ligar, mas SE ela
               ligar, tu pode dizer que o Chico telefonou?

               CHICO
               Tá bom, obrigado.

CENA 27 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Juca está jogando tetris no computador. Chico está na cama.

               JUCA
               Quem disse que o filho era teu?

               CHICO
               Não enche o saco.

               JUCA
               Tô falando sério. Quem disse que era teu?

Juca tem um espaço certinho para uma pedra comprida de quatro,
vermelha. Mas ela não vem.

               CHICO
               Eu sei que era meu. Ela sabia.

               JUCA
               Sabia que precisava de mil reais, isso é que ela
               sabia. Pode ter pedido pro outro cara, ele não
               deu, ela te procurou.

               CHICO
               Era meu. Eu sei que era.

O espaço da pedra de quatro continua vago, Juca empilha as outras
pedras nos cantos.

               JUCA
               Ela vendeu o celular.

               CHICO
               Ela disse que ia vender.

Surge uma pedra vermelha. Cai e se encaixa na buraco.

               JUCA
               Ela não te ligou, não te deu endereço. Tu não acha
               estranho?

Quatro fileiras desaparecem.

CENA 28 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/NOITE

Chico no bar, sozinho. Olha entre as mesas.

               CHICO (OFF)
               Achei estranho. Passou uma semana e eu achei muito
               estranho. Passou um mês e eu tive certeza que ela
               estava na Austrália, rindo da cara do idiota que
               pagou o aborto para ela.

CENA 29 - PLAYWORLD - INTERIOR/NOITE

Chico joga pimbal.

               CHICO (OFF)
               Passou um ano e eu estava no mesmo flíper, jogando
               na mesma máquina, na mesma praia, a maior e pior
               do mundo. Felizmente era dezembro, o meu pai
               juntou uma grana este ano. Prometeu que no ano que
               vem nós vamos tirar férias em janeiro. Meu recorde
               no pimbal era quarenta e oito mil e eu já estava
               com cinqüenta e seis. Sessenta! Sessenta e dois
               mil. Sessenta e quatro!

               CHICO
               Setenta mil!

Juca se aproxima.

               JUCA
               Setenta mil?

               CHICO
               Setenta e dois!

A bola passa. Game over.

               CHICO
               Merda!

Acende-se o placar: record!

               JUCA
               Recorde da máquina!

O cursor do placar dos recordes está piscando no décimo lugar. O
primeiro, segundo, terceiro, quinto e sétimo lugares estão
ocupados por Roza, com z. O placar também indica as datas dos
recordes.

Chico e Juca ficam olhando para o placar.

CENA 30 - RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA

Chico, de mochila, na fila para comprar passagens da rodoviária.
Confere o dinheiro na carteira, olha para o quadro de avisos.

               CHICO
               Ela sabia jogar, sabia jogar muito bem. Ela fingiu
               que não sabia para eu ajudar.

               JUCA
               Talvez o filho fosse teu.

               CHICO
               Que filho? Ela nem tava grávida.

Chico chega no balcão.

               CHICO
               (ao vendedor) Noiva do Mar. Só ida.

               JUCA
               Tu disse que viu o exame.

Chico pega a passagem e sai.

               CHICO
               Vi umas tirinhas de papel, podia ser qualquer
               coisa. Ela me fez vender meu pioneer. Eu vou matar
               aquela guria.

Chico está entrando no ônibus.

               JUCA
               Esquece.

               CHICO
               Esquece um cacete. Ela deve estar numa praia,
               procurando idiotas como eu.

Chico embarca no ônibus interpraias. Senta e abre a janela.

               JUCA
               Ela pode estar na Austrália.

               CHICO
               Eu encontro.

CENA 31 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA

O ônibus passa pela estrada entre dunas e lagoas. Chico, com a
cara grudada o vidro, olha os fios que correm ao lado da estrada.
Parece que é o fio que se move, descendo e subindo, uma linha
preta embarrigando sobre um céu azul e nuvens ralas.

CENA 32 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA

Chico, de mochila nas costas, caminha perto de um parque de
diversões, vazio. Vê um HOMEM, arrumando a máquina de um
carrossel. Chico se aproxima para falar com o homem mas ele
desaparece.

CENA 33 - BAR - EXTERIOR/NOITE

Chico caminha por uma calçada cheia de gente, mesas nas calçadas.
Uma guria está chorando, outra guria consola. Um gordo ri alto.
Um garçom traz dois chopes.

CENA 34 - CHAFARIZ - EXTERIOR/DIA

Chico lava os pés na fonte de uma praça.

CENA 35 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA

Chico passa de ônibus e vê Carmem num treiler. Ela está comendo
um chesseburger.

CENA 36 - FLÍPER - INTERIOR/NOITE

Chico caminha entre as máquinas de um flíper.

CENA 37 - CALÇADA - EXTERIOR/NOITE

Chico está sentado sobre o capô de um carro. Um HOMEM chega e
entra no carro. Chico levanta, faz menção de falar com o homem
mas ele liga o carro e parte.

CENA 38 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Chico caminha pela praia, observando as meninas. Uma MENINA se
parece com Roza, de costas. Ele se aproxima e vê que é outra
menina.

CENA 39 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA

Chico está sentado num muro. Um VELHO, carregando um cão fila
pela coleira, fica parado, encarando Chico.

Chico levanta e vai saindo de fininho.

CENA 40 - ESTRADA - EXTERIOR/DIA

Chico pede carona. Uma kombi, dirigida pára. Ele embarca na
kombi.

CENA 41 - KOMBI - EXTERIOR/DIA

Chico, com uma cara de enjôo, tenta sorrir para seus companheiros
de viagem, QUATRO PESCADORES. Chico olha um balaio cheio de
peixes.

Um pescador oferece a Chico uma garafa de cachaça com ervas e uma
cobra dentro. Chico bebe um gole.

A kombi balança. Chico olha o balaio. Um Pescador fuma. Chico
vomita no balaio de peixes.

CENA 42 - ESTRADA - EXTERIOR/DIA

Chico desce da kombi no meio da estrada. Os pescadores partem,
xingando.

Chico, enjoado, sai caminhando pela estrada.

CENA 42A - LOJA DE BUJIGANGAS - INTERIOR/DIA

Chico, viajandão, passa entre as bujigangas das lojas.

CENA 43 - BAR DE CALÇADA - EXTERIOR/NOITE

Chico, no bar, come um sanduíche. Ouve o barulho de um pimbal,
alguém jogando muito bem. Chico interrompe a mordida no meio.
Entra no flíper.

CENA 44 - FLÍPER - INTERIOR/NOITE

Chico se aproxima por trás da máquina onde há alguém marcando
muitos pontos. Chico, de longe, espia quem está jogando.

É uma criança. Chico morde o sanduíche. Chico pára de mastigar,
parece ter reconhecido a criança. Aproxima-se.

               CHICO
               Oi.

               CRIANÇA
               Não atrapalha.

               CHICO
               Eu te conheço.

               CRIANÇA
               Sorte tua.

               CHICO
               A gente não se viu no ano passado?

               CRIANÇA
               Game-over! Tu me atrapalhou. Tu me fez perder uma
               ficha!

               CHICO
               Eu te compro outra.

Chico vai até o caixa. Pede uma ficha a moça do caixa. É Roza.

               ROZA
               Ó.

               CHICO
               Ó.

CENA 45 - HOTEL - INTERIOR/NOITE

A Criança está dormindo no sofá de um pequeno apartamento de
hotel. Roza tira o som de uma televisão portátil. Chico está na
sala, Roza vai até o quarto, pega a carteira, tira o talão de
cheques. Chico pára na porta do quarto.

               ROZA
               Quer os juros da poupança?

               CHICO
               Quero. Quanto dá?

               ROZA
               Tu me deu oitocentos, faz um ano. Acho que dá uns
               mil.

               CHICO
               Tá bom.

Ela faz o cheque. Ele entra no quarto, tira a ficha do flíper do
bolso.

               CHICO
               Essa ficha é tua. Lembra?

               ROZA
               Pode deixar aí.

Ela estende a mão com o cheque.

               CHICO
               Esse cheque tem fundo?

               ROZA
               Vou botar o telefone atrás. Tá bom assim?

Ela escreve o telefone e entrega o cheque a ele.

               CHICO
               (ele pega o cheque e confere) Outro celular. É teu
               mesmo?

               ROZA
               (mostra o celular) Quer conferir?

               CHICO
               Quero.

Chico senta na cama, pega o telefone do quarto olha o número no
cheque e disca. O celular dela toca.

               ROZA
               Quer que eu atenda?

Ele desliga o telefone. Ela guarda o celular.

               CHICO
               O que tu ganhou com isso?

               ROZA
               No verão passado? Catorze mil reais. Vinte e dois
               caras, quinze caíram. Estou devolvendo mil. Ganhei
               catorze mil.

               CHICO
               Vinte e dois caras?

               ROZA
               Vinte e três, na verdade. Mas um eu nem procurei,
               ele trabalha de office-boy, sustenta a mãe e o
               irmão, só descobri depois. Deixei para lá. Eu
               preciso dormir.

Roza pega um vidro de mertiolate, abre. Roza senta numa cadeira e
apoia o pé sobre a cama. Começa a passar mertiolate entre os
dedos do pé.

               CHICO
               Tu não ficou com medo de engravidar de verdade?

               ROZA
               Eu tomo pílula.

               CHICO
               E a aids? Se o cara usa camisinha, não funciona.

               ROZA
               É, eu sei. Mas eu só escolho caras de pouca
               experiência. Ou nenhuma, como tu.

               CHICO
               Dava para ver assim, de longe?

               ROZA
               Quase sempre dá. Mais alguma coisa?

Ela troca o pé.

               CHICO
               Ele é teu filho?

               ROZA
               Meu irmão.

               CHICO
               E a tua mãe?

               ROZA
               Não sei onde anda.

               CHICO
               Teu pai?

               ROZA
               Morreu.

               CHICO
               Não tem mais ninguém?

               ROZA
               Onde?

               CHICO
               Tua família.

               ROZA
               Tenho um tio. Um idiota, casado com uma imbecil.

Ela abaixa o pé e fecha o vidro de mertiolate.

               CHICO
               Isso tudo não dá muito trabalho? Porque tu não
               cobra para transar? É mais prático.

               ROZA
               E tu acha que alguém ia pagar mil reais para
               transar comigo?

Chico olha para ela. Pega o cheque e rasga e pedacinhos. Joga os
pedacinhos do cheque sobre cama. Ela fecha e larga o vidro de
mertiolate.

Chico tira os tênis e joga no chão.

Roza vai até a porta do quarto e se certifica que a criança está
dormindo na sala. Fecha a porta do quarto.

Roza, tirando a blusa, olha para Chico e sorri. Chico também
sorri.

A blusa de Roza cai no chão, junto aos tênis de Chico. A colcha
da cama cai e provoca uma revoada de pedacinhos de cheque pelo
quarto.

CENA 45A - FACHADA DO HOTEL - EXTERIOR, DIA

Fachada do hotel - A luz de um quarto se apaga.

CENA 46 - MINIGOLFE - EXTERIOR/DIA

Manhã/quase ninguém na rua. Chico caminha por um campo de
minigolfe. Entra numa das pistas. A pista, de cimento, tem como
obstáculo um grande calombo. Chico chuta uma tampinha, posiciona
a tampinha no centro da pista. Chico observa o trajeto que a
tampinha deverá fazer para chegar no buraco, além do calombo.
Chico olha para a tampinha e dá um chute, seco.

A tampinha sobe e desce o calombo e cai exatamente no buraco.

Chico sorri.

CENA 45B - QUARTO DE HOTEL - INTERIOR/AMANHECER

Roza faz as malas. A Criança dorme. Roza guarda suas roupas e as
roupas da criança. Junta tralhas variadas, pega a televisão
portátil. Acorda a Criança.

Roza, cheia de bagagem e carregando a Criança (ou arrastando pela
mão), sai do quarto.

CENA 47 - FLÍPER - INTERIOR/DIA

Chico entra no flíper. INÁCIO, 30 anos, está no balcão conferindo
um livro caixa. Chico se aproxima.

               CHICO
               Oi. A Roza tá aí?

               INÁCIO
               Tu conhece ela?

               CHICO
               Conheço.

Inácio marca o livro e fecha.

               INÁCIO
               Sabe onde ela mora?

               CHICO
               Aqui na praia sei. Num hotel. Por quê?

               INÁCIO
               Não mora mais.

               CHICO
               Eu estive lá ontem.

               INÁCIO
               Ela se mandou, hoje. Sem pagar a conta. Eu estive
               lá, procurei no quarto. Tu não tem um telefone, um
               endereço dela em outro lugar?

               CHICO
               Não. Acho que ela mora em Porto Alegre. Ela não
               deu o endereço no hotel?

Inácio volta para o balcão e abre o livro caixa.

               INÁCIO
               Deu, deve ser falso, claro. O telefone que ela deu
               é de uma gráfica. Ela te deu um cano também?

               CHICO
               Deu.

               INÁCIO
               Quanto?

               CHICO
               Mil reais.

               INÁCIO
               Vagabunda. Daqui ela tirou seiscentos e cinqüenta,
               do caixa. Mais duzentos que eu emprestei. E mais
               uma televisão portátil. Colorida. Se tu encontrar
               com ela, dá um recado para mim?

               CHICO
               Dou.

               INÁCIO
               Diz que eu confiei nela. Ajudei quando ela estava
               precisando, dei pra ela um dinheiro que eu não
               podia dar. Eu vi que ela não valia nada mas mesmo
               assim ajudei. Eu gostava dela. E ela me sacaneou.
               Diz pra ela que ela é uma vagabunda. Que o Inácio
               mandou dizer que ela é uma vagabunda.

               CHICO
               Pode deixar. Eu digo.

CENA 47A - PIER - EXTERIOR/FIM DE TARDE

Chico come churros sozinho. Limpa a boca e sai.

CENA 48 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico em seu quarto, larga a mochila. Pensa. Tira os tênis. Fica
olhando para os tênis no chão, pensativo. Dentro do tênis tem um
pedacinho do cheque.

Chico pega o pedacinho do cheque, vira. No lado de trás, com a
letra de Roza, estão anotados os seis primeiros números de um
telefone celular. Chico fica olhando para aqueles números.

(Montagem de cenas muito curtas, pessoas dos mais variados tipos,
nos mais diferentes lugares, atendendo telefones celulares. Todas
atendem e dizem "alô". Sobre as cenas, OFF de Chico e Juca).

CENA 49 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA

Homem de terno e gravata atende o celular.

               JUCA (OFF)
               Faltavam dois números?

CENA 50 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA

Mulher fazendo compras atende o celular.

               CHICO (OFF)
               Dois números. Os últimos. Não consegui lembrar.

CENA 51 - CARRO - EXTERIOR/DIA

Mulher dirigindo atende o celular.

               JUCA (OFF)
               Noventa e nove possibilidades.

CENA 52 - ESCRITÓRIO - INTERIOR/DIA

Homem atende o celular.

               CHICO (OFF)
               Cem.

CENA 53 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

Professor, no quadro negro, atende o celular.

               JUCA (OFF)
               Cem?

CENA 54 - CONSULTÓRIO DENTÁRIO - INTERIOR/DIA

Dentista atende o celular.

               CHICO (OFF)
               Claro. O zero-zero também conta.

CENA 55 - SALA - INTERIOR/NOITE

Mulher atende o celular.

               JUCA (OFF)
               Cem. Tu ligou pra cem celulares?

CENA 56 - PÁTIO DE ESCOLA - EXTERIOR/DIA

Menina atende o celular.

               CHICO (OFF)
               Quarenta e oito. Tive sorte.

CENA 57 - LOJA DE ROUPAS - INTERIOR/DIA

Homem atende o celular.

               JUCA (OFF)
               E o que foi que ela disse?

CENA 58 - LOJA DE DISCOS - INTERIOR/DIA

Roza atende o celular.

               CHICO (OFF)
               Ela disse alô.

               ROZA
               Alô.

CENA 59 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/FIM DE TARDE

Chico e Juca numa mesa.

               JUCA
               Chico, eu acho que eu não conheço ninguém mais
               idiota do que tu. Tu gastou uns cinqüenta reais em
               telefone pra achar uma guria que roubou teu
               amplificador e cobra mil reais pra transar! A
               prima do Cabeça cobra cento e cinqüenta!

               CHICO
               Eu não estou a fim da prima do Cabeça.

               JUCA
               Vai dizer que tu tá a fim dessa guria?

               CHICO
               Não sei. É diferente.

               JUCA
               Pode ser diferente, mas não pode ser oitocentos e
               cinqüenta reais de diferença. Tu pagou mil reais
               por uma trepada.

               CHICO
               Quinhentos. Mil por duas.

               JUCA
               É. Mesmo assim é trezentos e cinqüenta reais mais
               caro que a prima do Cabeça. O que que ela faz?

               CHICO
               Como assim?

               JUCA
               O que ela faz por quinhentos reais?

               CHICO
               Não enche o saco.

               JUCA
               Sabe o que a prima do Cabeça faz por cento e
               cinqüenta?

               CHICO
               Sei, tu já me contou mil vezes.

               JUCA
               Tu acha que ela vem?

               CHICO
               Não sei. Disse que vinha.

               JUCA
               Será que ela não tem uma amiga mais em conta?

               CHICO
               Pode ser. Pergunta para ela.

Roza chega.

               ROZA
               Ó.

               CHICO
               Ó.

               JUCA
               Oi.

               CHICO
               Esse é o Juca.

               ROZA
               Oi.

               JUCA
               Posso te fazer uma pergunta?

               ROZA
               O quê?

               JUCA
               Tu aceita vale refeição?

               ROZA
               Gracinha.

Juca levanta e vai saindo.

               JUCA
               (para Roza) De repente, te ligo.

               ROZA
               (para Juca) Isso. Vai guardando tua mesada e me
               liga no ano que vem. (para Chico) O que tu quer?

               CHICO
               Queria te ver.

               ROZA
               Já viu. O que mais?

               CHICO
               O que que foi?

               ROZA
               Não posso demorar, meu irmão tá sozinho.

               CHICO
               Eu te levo.

               ROZA
               Tá de carro?

               CHICO
               Te levo de táxi.

               ROZA
               E como tu volta? Eu moro longe, na zona sul.

               CHICO
               Volto de ônibus. Vamos.

CENA 60 - TÁXI - EXTERIOR/NOITE

Chico e Roza no banco traseiro de um táxi.
               
               CHICO
               Tu tá trabalhando onde agora?

               ROZA
               Numa loja.

               CHICO
               E o dinheiro?

               ROZA
               Que dinheiro?

               CHICO
               O dinheiro que tu tem guardado? Por que não usa?

               ROZA
               Não posso, tenho que guardar.

               CHICO
               Para ir pra Austrália?

               ROZA
               É, isso, para ir para a Austrália. (ao motorista)
               A próxima o senhor entra à direita.

               CHICO
               Quanto custa duas passagens para a Austrália?

               ROZA
               Porque duas?

               CHICO
               O teu irmão.

               ROZA
               Não vou levar o meu irmão para a Austrália. (ao
               motorista) O senhor cuide que a próxima é
               preferencial.

               CHICO
               Ele vai ficar com quem?

               ROZA
               Com o meu tio.

               CHICO
               Tu disse que ele era um idiota, casado com uma
               imbecil.

               ROZA
               Disse. Ele é um idiota casado com uma imbecil. Vou
               fazer o quê? Também, nem sei se eu estou a fim de
               ir para a Austrália. (ao motorista) Atrás daquela
               Brasília o senhor pára.

O táxi. Pára.

               ROZA
               Ele vai continuar.

               CHICO
               Não, eu pego um ônibus.

               ROZA
               Não tem ônibus aqui esta hora, só lá embaixo. Vai
               com o táxi, eu pago até aqui.

               CHICO
               Eu caminho até lá embaixo. (ao motorista) Quanto
               foi?

CENA 61 - CALÇADA - EXTERIOR/NOITE

O táxi vai embora, Chico fica com Roza na calçada. Ela abre a
porta do prédio, acende a luz do corredor.

               ROZA
               É melhor tu não subir, o meu irmão tá dormindo.

               CHICO
               O que que tem? A gente não faz barulho.

               ROZA
               Chico, olha. Vai embora. Eu gosto de ti, tu é
               legal, legal mesmo. Mas vai embora.

               CHICO
               Eu não quero ir embora.

               ROZA
               Eu não quero complicar tua vida. Esquece. Já foi.
               
               CHICO
               Eu não tô a fim de esquecer. Complicar minha vida
               por quê?

               ROZA
               Chico. Eu estou grávida.

A luz do corredor se apaga.

CENA 62 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/NOITE

Roza lava a louça. Chico seca.

               CHICO
               Tu acha que pode ser meu?

               ROZA
               Chico, por favor. Acho que não.

               CHICO
               Acha ou não?

               ROZA
               Não sei, não importa. Eu não estou te pedindo
               nada.

               CHICO
               Não sabe? E se for?

               ROZA
               Se for, é. Eu não quero nada. É meu.

               CHICO
               Tu vai tirar?

               ROZA
               Não sei. E melhor tu ir embora.

               CHICO
               Eu não quero ir embora. E não sei se quero que tu
               tire. Tu tem dinheiro guardado.

               ROZA
               Que dinheiro, uma merreca.

               CHICO
               Eu posso trabalhar.

               ROZA
               Não viaja, Chico.

               CHICO
               Estou falando sério.

               ROZA
               Não, não tá, tu tá viajando. Tu quer trabalhar,
               casar e criar dois filhos que não são teus?

               CHICO
               Um pode ser meu.

               ROZA
               Não interessa, pode não ser. Acho que não é.

               CHICO
               Não interessa mesmo. Mas eu não quero ir embora.
               Eu gosto de ti. Gosto muito de ti.

               ROZA
               Eu também gosto de ti.

               CHICO
               Pois então?

               ROZA
               Pois então o quê?

               CHICO
               Eu gosto de ti, tu gosta de mim. Por que que eu
               tenho que ir embora? Tá esperando alguém?

               ROZA
               Não, não estou.

Roza desliga a luz da cozinha.

               ROZA
               Vamos pro meu quarto.

CENA 63 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/NOITE

Chico, na janela, observa a rua.

               CHICO (OFF)
               Se eu tivesse batido o recorde no tiro ao pato no
               dia em que eu conheci a Roza talvez eu não tivesse
               conhecido a Roza e a gente não teria um filho.

Chico observa Roza dormir.

               CHICO (OFF)
               Eu posso ter um filho por ter errado num pato. Eu
               não sei o que isso significa, mas deve significar
               alguma coisa.

Chico vai para a cama.

CENA 64 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA

Amanhece. Chico acorda, a cama vazia. Senta-se na cama. Levanta.
Vê a bolsa de Roza na mesinha de cabeceira, ao lado de uma
televisão portátil.

CENA 65 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico entra na cozinha. Vê um bilhete.

"Fui levar o guri no colégio. Esquenta o leite. Já volto."

Chico vê a leiteira no fogo, com leite. Na mesa da cozinha há
duas xícaras limpas e um copo plástico, com um resto de
chocolate. Farelos de pão sobre a toalha. Chico, movendo-se no
ritmo da música, pega o copo plástico e lava.

Limpa o farelo de pão da mesa, junta o farelo na mão. No meio do
farelo há um pequeno pedaço de alumínio. Chico examina o alumínio
e lê: TER.

Chico joga o farelo e o pedacinho de alumínio no lixo. Tenta
acender o fogão, mas não consegue. Procura fósforos. Não
encontra.

CENA 66 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico vai até o quarto e vê a bolsa de Roza. Despeja a bolsa
sobre a cama: carteira, algum dinheiro solto, cigarro, presilha
de cabelo, caixa de remédio, óculos escuros, um isqueiro cor de
rosa, a ficha do flíper. Chico pega a ficha do flíper, sorri.
Começa a dançar mais animadamente. Pega o isqueiro.

CENA 67 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico, na cozinha, acende o fogo sob a leiteira. Volta ao quarto.

CENA 68 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico guarda o isqueiro na bolsa. Guarda o cigarro, a ficha do
flíper, a carteira, os óculos, examina a caixa de remédio. Pára
de dançar. Chico abre a caixa de remédio e vê a bula. Lê. Examina
uma cartela de pílulas, parcialmente vazia. As pílulas tem os
dias marcados: QUA, QUI, SEX.

CENA 69 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico volta a cozinha, procura o pedacinho de alumínio no lixo.
Encontra. Compara o pedacinho de alumínio onde está escrito TER
com a cartela de pílulas. O pedaço de alumínio se encaixa
perfeitamente. Toca o telefone.

Chico fica parado no meio da cozinha, com as pílulas na mão. A
secretária eletrônica atente o telefone.

               ROZA (OFF)
               (gritando) Chico! Chico acorda! Atende Chico!
               Chico! Tu tem que sair daí agora! O dono do
               apartamento tá chegando. Chico! Sai daí, rápido!

CENA 70 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico vai até o quarto e atende o telefone.

               CHICO
               Alô.

CENA 71 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA
(em paralelo com cena 70)

Roza, num orelhão em frente ao prédio, do outro lado da rua. Ao
fundo, na calçada do prédio, Inácio e uma MULHER de casaco
vermelho, 25, descarregam malas de um táxi.

               ROZA
               (ao telefone) Chico, sai daí. Rápido.

               CHICO
               (ao telefone) Tu tá tomando pílula.

O Homem paga o táxi.

               ROZA
               O quê? Chico, tu tem que sair daí agora.

               CHICO
               Responde. Tu tá tomando pílula? Pílula
               anticoncepcional?

               ROZA
               E aí? Pega a minha bolsa e sai daí, Chico.
               
               CHICO
               Tu tomou uma hoje de manhã, terça. Por que tu tá
               tomando pílula? Tu tá grávida.

Pausa.

               CHICO
               Tu não tá grávida?

O táxi parte. Inácio, na porta do prédio, procura as chaves.

               ROZA
               Pode ser. Pára com essa conversa e me escuta. Pega
               a minha bolsa e sai daí, correndo. Agora.

               CHICO
               Como, pode ser? Tá ou não tá?

               ROZA
               Acho que não estou.

               CHICO
               Não está ou pode ser?

               ROZA
               Não estou. Me escuta...

               CHICO
               Não está?

               ROZA
               Eu descobri que não estava, agora de manhã.

               CHICO
               E já está tomando pílula?

               ROZA
               É. Não.

               CHICO
               Fala a verdade, uma vez na vida.

Inácio abre a porta do prédio, tem alguma dificuldade com as
malas.

               ROZA
               Eu menti. Menti que estava grávida. Não quero mais
               mentir pra ti, mas ontem eu menti. Eu não estou
               grávida.

               CHICO
               Por quê?

               ROZA
               Não estou porque não estou.

               CHICO
               Por que tu mentiu?

Inácio e a Mulher entram no prédio.

               ROZA
               Eu queria que tu fosse embora. Agora cala a boca e
               me escuta! Essa casa não é minha. Era emprestada.
               Eu estou aqui na frente, o dono está chegando, já
               entrou no prédio, deve estar entrando em casa.
               Pega a minha bolsa e te manda daí agora!

A porta do prédio se fecha.

               CHICO
               Tu é louca! Tu não tinha outro jeito de me mandar
               embora? Tinha que dizer que estava grávida e que o
               filho podia ser meu?

               ROZA
               Eu disse para tu ir embora, tu não foi. E disse
               que o filho não era teu.

               CHICO
               Disse que achava que não era.

               ROZA
               Pois então?

               CHICO
               Se achava que não era, podia ser.

               ROZA
               Não interessa. Eu não estou grávida. O Inácio vai
               te pegar aí, tu não tá entendendo? Pega a minha
               bolsa e sai!

               CHICO
               Tu é louca. Tu é completamente louca. Tu acha que
               pode fazer isso com as pessoas, dizer que elas vão
               ter um filho, depois dizer que não, depois dizer
               que sim e dizer que não outra vez?

               ROZA
               Eu gosto de ti. Eu gosto muito de ti, Chico. Gosto
               de verdade, Chico. Eu juro! Eu não vou mais mentir
               para ti. Mas sai daí agora! O dono do apartamento
               tá entrando. Ele não sabia que eu estava usando o
               apartamento, nem sabe que eu tenho a chave. Ele
               vai te matar. Sai daí agora!

               CHICO
               O leite.

               ROZA
               Chico, eu te amo.

               CHICO
               Vai te fuder!

Chico bate o telefone.

CENA 72 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

O leite está subindo, vai derramar.

CENA 73 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

Na sala, gira o trinco da porta.

CENA 74 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico, na cozinha, desliga o leite.

CENA 75 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

A porta se abre. Inácio e a Mulher entram na sala. Largam as
malas. Inácio fecha a porta, tranca a correntinha. A Mulher tira
o casaco.

CENA 76 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA

No quarto, Chico, pega a bolsa de Rosa. Enfia as meias e os
tênis. Escuta as vozes.

               MULHER (OFF)
               Tu deixou leite no fogão?

               INÁCIO (OFF)
               Deixei? Pode ser.

               MULHER (OFF)
               Ai!

               INÁCIO (OFF)
               O que foi?

               MULHER (OFF)
               Tá quente.

               INÁCIO (OFF)
               O quê?

               MULHER (OFF)
               A leiteira. Tá fervendo.

CENA 77 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

Mulher olha para dentro da casa.

               MULHER
               Tem alguém aí?

               INÁCIO
               Não, claro que não.

               MULHER
               Mas alguém saiu daqui faz pouco.

               INÁCIO
               Que estranho.

Inácio caminha para o quarto.

CENA 78 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA

Inácio entra no quarto. Vazio. A cama está desarrumada. Ele corre
e arruma rapidamente a cama. A mulher entra no quarto.

               MULHER
               Quem mais tem a chave?

               INÁCIO
               Minha mãe. Mas ela quase nunca vem aqui. Só se
               veio limpar.

Mulher vê um celular sobre a cômoda. Pega.

               MULHER
               De quem é esse celular?

               INÁCIO
               Deixa eu ver.

Inácio pega o celular.

               INÁCIO
               É o meu. Onde estava?

               MULHER
               Estava aqui. Tu não disse que tinha perdido?

               INÁCIO
               Tinha. Procurei pela casa toda.

               MULHER
               Sei.

               INÁCIO
               Que estranho.

               MULHER
               Muito estranho. Eu te liguei várias vezes, tu não
               atendeu e depois me disse que tinha perdido o
               celular. E ele estava bem aqui.

               INÁCIO
               Não sei como. Será que estava com a minha mãe?

Mulher tira os sapatos e joga para baixo da cama, quase acertando
Chico que, com a bolsa na mão, está de olhos fechados.

               INÁCIO (OFF)
               Quer tomar alguma coisa?

               MULHER (OFF)
               Um banho.

Inácio se aproxima dela. Chico abre os olhos.

               INÁCIO (OFF)
               Depois.

               MULHER (OFF)
               Não, estou suada.

Inácio puxa a Mulher para a cama.

               INÁCIO (OFF)
               Melhor.

               MULHER (OFF)
               Ai...

               INÁCIO (OFF)
               Tira isso.

As roupas dos dois vão caindo no chão. Camisas, saia, calça.

               MULHER (OFF)
               Calma.

               INÁCIO (OFF)
               Vem aqui...

               MULHER (OFF)
               Ai...

               INÁCIO (OFF)
               Olha só como eu estou.

               MULHER (OFF)
               Hummm.

               INÁCIO (OFF)
               Vem.

               MULHER (OFF)
               O que é isso?

               INÁCIO (OFF)
               O quê?

               MULHER (OFF)
               De quem é esse sutiã, Inácio?

               INÁCIO (OFF)
               Não é o seu?

Chico fecha os olhos.

               MULHER (OFF)
               Claro que não. Vai dizer que é da sua mãe.

               INÁCIO (OFF)
               Não. Não sei.

               MULHER (OFF)
               Tem uma mulher dormindo aqui?

               INÁCIO (OFF)
               Claro que não. Imagina.

               MULHER (OFF)
               Imaginar o quê? Leite quente no fogão, o celular
               que tu disse que tinha perdido, um sutiã na cama.

               INÁCIO (OFF)
               Eu não sei. Não sei mesmo.

               MULHER (OFF)
               Tá bom.

               INÁCIO (OFF)
               Onde é que tu vai?

               MULHER (OFF)
               Vou tomar um banho.

A mulher joga o sutiã no chão e sai. Chico abre os olhos.

               INÁCIO (OFF)
               Vem cá.

               MULHER (OFF)
               Me deixa.

Inácio, de cueca e camiseta, senta na cama. Pega o sutiã e joga
para baixo da cama. Som do chuveiro sendo ligado. Inácio vai até
o banheiro, entreabre a porta.

               INÁCIO
               Talvez eu tenha esquecido o telefone na minha mãe,
               ela veio trazer, esquentou o leite. Talvez ela
               tenha dormido aqui.

               MULHER (OFF)
               Sei. E tua mãe usa aquele sutiã.

               INÁCIO
               Pode ser de uma amiga.

               MULHER (OFF)
               Claro. Tua mãe é sapata, por acaso? Quer fazer o
               favor de fechar a porta? Tá frio.

Ele fecha a porta. Aciona a secretária eletrônica e veste as
calças. Inácio vai até a sala. A secretária transmite os recados.

               Recado 1:
               (voz da Mulher) Inácio. Ináaacio. Sou eu. Oi? Já
               saiu? Estou na porta do prédio já faz quinze
               minutos. Alô? Que saco!

               Recado 2:
               (voz de Roza) Inácio, sou eu, a Roza, com Z.
               Lembrou? Da praia. Alô? Alô...

Inácio, com uma faca de pão na mão, surge na porta, escuta o
recado.

               Recado 3:
               (voz de Roza) Alô. Inácio, sou eu de novo, a Roza,
               da praia. Oi? Quero devolver a televisão. Tu
               esqueceu o seu celular comigo, quero devolver
               também. Alô?

Inácio corre e baixa o volume da secretária. Olha para a porta do
banheiro, senta na cama e ouve os recados.

               Recado 4:
               (voz de mulher) Sou eu meu filho. Tu já voltou? Me
               liga quando chegar.

               Recado 5:
               (voz de Roza) Chico! Chico acorda! Atende Chico!
               Chico! Tu tem que sair daí agora! O dono do
               apartamento tá chegando. Chico! Sai daí, rápido!

Inácio se ergue, assustado, faca do pão na mão em posição de
ataque. Dá uma olhada em torno e fixa-se no armário. Aproxima-se
do armário. Aproxima o ouvido do armário. Escuta. Afasta-se um
pouco. Abre a porta do armário. Nada, só roupas.

Inácio examina o quarto, olha para a cama. Vai se abaixando, faca
em punho. Ajoelha-se. A mulher, secando-se, sai do banheiro.

               MULHER
               O que foi?

               INÁCIO
               Nada. Uma barata.

               MULHER
               E tu vai matar a barata com a faca do pão.

               INÁCIO
               Não. Só estou olhando.

Ela acende um cigarro, larga a toalha e sai. Inácio se abaixa
perto da cama, faca em punho.

Ele dá um grito e olha sob a cama.

               INÁCIO
               Há!

Não há ninguém embaixo da cama. Inácio vê um bilhete amassado no
chão.

CENA 79 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

A mulher, nua, fumando, entra na sala. Dá de cara com Chico, com
a bolsa e sutiã na mão, perto da porta.

               CHICO
               Bom dia.

               MULHER
               Aaaaah!

CENA 80 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA

Inácio, que estava tentando pegar o bilhete ergue-se rapidamente
e bate a cabeça na cama.

CENA 81 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA

Chico tenta abrir a porta, mas ela está trancada com a
correntinha. A mulher grita.

               MULHER
               Aaaaaaah!

Chico fecha a porta, tira a correntinha, abre a porta e sai
correndo.

Inácio surge na sala, de faca na mão. Mulher aponta para a porta.

               MULHER
               Aaaaaaaaah!

               INÁCIO
               Aaaaaaah!

CENA 82 - CORREDOR - INTERIOR/DIA

Inácio sai para o corredor, a Mulher o segue. Chico desce as
escadas, voando. A Mulher sai ao corredor para acender a luz.
Inácio vê Chico descendo as escadas e chama o elevador. A porta
do apartamento bate. A Mulher tenta abrir, mas a porta não abre
por fora.

               MULHER
               Cadê a chave?

               INÁCIO
               Lá dentro.

               MULHER
               Aaaaaaaah!

               INÁCIO
               Calma. Eu te dou minha roupa!

Ele tira a calça.

               MULHER
               Aaaah!

               INÁCIO
               Fica quieta!

A luz do corredor se apaga. TRÊS GAROTAS abrem a porta do
elevador e vêem Inácio sem calça, de faca na mão, e a Mulher nua.

               TRÊS GAROTAS
               Aaaaahhh!

               MULHER
               Aaaaaah!

               INÁCIO
               Aaaaaaah!

CENA 83 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA

Chico, de bolsinha e sutiã na mão, sai do prédio correndo. Ouve
uma sirene. Chico diminui o passo, enfia o sutiã na bolsinha e a
bolsinha no braço, disfarça. Um camburão chega. DOIS POLICIAIS
descem correndo e entram no prédio.

Chico vê o orelhão. Olha em volta. Ninguém. Chico se afasta
caminhando.

CENA 84 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA

O ônibus Tristeza se aproxima e pára. Chico sobe no ônibus.

               JUCA (OFF)
               Quando foi isso?

               CHICO (OFF)
               Faz mais de um mês.

CENA 85 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/DIA

Juca come batatinhas fritas. Há dois copos vazios sobre a mesa.

               JUCA
               E ela te ligou a troco de quê?

               CHICO
               Quer conversar. E quer a bolsa.

               JUCA
               Tem dinheiro na bolsa?

               CHICO
               Tem um pouco.

               JUCA
               Então ela vem. Ela disse "eu te amo"?

               CHICO
               Disse.

               JUCA
               E tu disse "vai te fuder".

               CHICO
               Disse.

               JUCA
               Legal. Tu não é tão idiota como eu pensava.

               CHICO
               Sou mais idiota do que eu pensava. Sabe o que eu
               devia ter dito?

               JUCA
               O quê?

O GARÇOM (o HOMEM da cena 1) chega, põe dois copos de suco na
mesa. Chico se aproxima de Juca.

               CHICO
               Eu também te amo.

O Garçom fica olhando para Juca.

               JUCA
                (para o Garçom) O senhor podia trazer a nossa
               continha?

O Garçom sai, levando os copos vazios.

               JUCA
               Tu acha que ela vem?

               CHICO
               Foi ela que ligou. Disse que vinha.

               JUCA
               Pelo menos dois sucos ela vai nos pagar. Dá aqui
               esta bolsa.

Juca pega a bolsa.

O Garçom chega com a nota.

Juca abre a bolsinha, tira a presilha de cabelo, o sutiã, o
isqueiro cor-de-rosa, pega o dinheiro. O Garçom fica olhando para
a bolsinha de Juca. Juca mantém a pose e paga.

               JUCA
               Pode ficar com o troco.

O Garçom pega o dinheiro e sai.

               JUCA
               Chico, essa guria tem um irmão para criar, dá para
               qualquer um por quinhentos reais, roubou o teu
               amplificador e fica grávida toda quarta-feira.

               CHICO
               Eu sei. Mas eu te juro que se ela disser que me
               ama eu caso com ela.

               JUCA
               Por quê?

               CHICO
               Ela guardou a ficha do flíper.

               ROZA (OFF)
               Chico.

               CHICO
               Oi.

               ROZA
               Oi.

               CHICO
               Esse é o Juca.

               ROZA
               Eu sei.

               JUCA
               Já sei. Tu tá grávida!

               CHICO
               Juca, não enche o saco.

               JUCA
               Olha, eu vou ao banheiro, rapidinho, se ela ficar
               grávida nesse meio tempo vocês não digam nada pro
               garçom, que aqui a consumação é cinco por pessoa
               ele pode querer cobrar da criança.

Juca sai. Roza senta.

               ROZA
               Chico, eu...

               CHICO
               Desculpa.

               ROZA
               Desculpa por quê?

               CHICO
               Por aquele dia. Eu fiquei louco, desculpa. Uma
               hora eu ia ter um filho, meia hora depois não ia
               mais, fiquei louco. É estranho, mas eu estava
               achando legal ter um filho. Mesmo que isso fosse
               abagunçar completamente a minha vida, eu estava
               achando legal ter um filho. Um filho contigo.

               ROZA
               Chico...

               CHICO
               Desculpa.

               ROZA
               Eu estou grávida.

Roza fica olhando para ele e sorri.

CENA 85A - ECOGRAFIA

Um bebê se mexe na barriga da mãe.

CENA 85B - TABLE-TOP

Notícia de jornal: "Pílulas Falsas Geram Processo". Foto de Roza
e Chico.

CENA 85C - PORTA DE QUARTO DE HOSPITAL - INTERIOR/DIA

Mão de Chico pendura na porta os sapatinhos cor-de-rosa que
encontrou no bric.

CENA 85D - TABLE-TOP

Notícia de jornal: "Laboratório vai pagar indenização". Foto de
Roza, Chico e Bebê.

CENA 86 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Chico abre um sorriso. Ergue uma máquina fotográfica e bate um
flash.

Roza, com uma Menina no colo, posa para a foto.

               CHICO (OFF)
               Desta vez era verdade. Eu errei nos patos e
               conheci a Roza.

O irmão de Roza com a Menina no colo. Juca com a menina no colo
mostra uma manchete de jornal

               CHICO (OFF)
               O laboratório vendeu pílulas de farinha e a Roza
               ficou grávida.

Juca e Roza com a menina no colo.

               CHICO (OFF)
               A gente processou o laboratório e eles vão pagar
               uma mesada para a Margarida até ela completar
               dezoito anos.

A menina sozinha.

Chico e Roza fazem caretas para provocar o riso do bebê. HOMEM
(da cena 1, GARÇON da cena 85) passa ao fundo caminhando pela
praia.

               CHICO (OFF)
               Acho que até lá eu arrumo um emprego.

Homem cai num buraco, uma armadilha igual a da cena 1.

Chico e Roza ajudam o Homem a se erguer. O Homem resmunga e vê
Juca. Juca fica duro, tentando não rir. Garçon reconhece Juca.
Brigam. O bebê assiste a briga.

FIM

*******************************************************************

(c) Jorge Furtado, 2001-2002
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
15/03/2001

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