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               A IMPORTÂNCIA DO CURRÍCULO NA CARREIRA ARTÍSTICA
	               episódio da série
	               CONTOS DE INVERNO
	               roteiro de Ana Luiza Azevedo,
	               Glênio Póvoas
	               e Giba Assis Brasil
	               baseado no conto homônimo
	               de Carlos Gerbase
versão 3 - 02/04/2001
	               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
	               para RBS TV
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CENA 1 - TEATRO - INTERIOR/NOITE
	ERNESTO, 22 anos, sentado atrás de uma velha escrivaninha,
	vestindo uma roupa do século 19, segura uma pena-tinteiro.
	               ERNESTO
	               São hoje quatorze de maio de mil oitocentos e
	               sessenta e seis. Vivo na cidade de Porto Alegre,
	               capital da Província de São Pedro do Rio Grande do
	               Sul; e para muitos - Império do Brasil... Já se vê
	               pois que isto é uma verdadeira comédia!
	Na platéia de um pequeno teatro contemporâneo, a MÃE, 45 anos, de
	óculos, muito bem arrumada, sorri com a piada. Ao seu lado, o
	PAI, 50 anos, terno e gravata, está quase dormindo.
No palco, Ernesto atira longe a pena-tinteiro que tinha na mão.
	               ERNESTO
	               (gritando) Leve o diabo esta vida de escritor! É
	               melhor ser comediante! ***
	Ernesto continua dando o texto, mas agora ouvimos sua voz
	comentando a cena.
	               ERNESTO (VS)
	               Entrei no curso de arte dramática um pouco por
	               curiosidade: eu queria saber se eu podia ser um
	               bom ator. Mas, quatro anos depois, eu ainda não
	               sabia.
	Um outro ator, interpretando MALHERBE, de barba postiça, entra em
	cena e começa a dar um texto, falando diretamente ao público, sem
	parecer notar a presença de Ernesto.
	Ernesto sai do palco pelos fundos. Na coxia, com o auxílio de um
	CONTRA-REGRA, Ernesto rapidamente se troca, colocando uma roupa
	de mulher.
	               ERNESTO (VS)
	               No encerramento do curso, montamos "As Relações
	               naturais", de Qorpo Santo, e eu fiz dois papéis: o
	               Impertinente e Mildona. Eu queria ser um ator
	               eclético. Meu pai, é claro, achava tudo aquilo
	               apenas... impertinente.
	No palco, o Outro Ator continua o seu texto. Ernesto, agora como
	Mildona, entra em cena.
	               MALHERBE
	               Ah! És tu, minha querida Mildona? Quanto é doce
	               vermos feitos de nossos trabalhos de longos anos!
	               Um abraço, minha estimadíssima, minha mesmo
	               queridíssima filha!
	Na platéia, a Mãe entreabre a boca, assustada. Com o cotovelo,
	faz um sinal para o Pai, sussurrando.
	               MÃE
	               Otávio...
O Pai acorda e olha para o palco, incrédulo.
	               ERNESTO (como MILDONA)
	               O senhor não reparou bem; eu não sou a sua
	               encantadora filha; mas a jovem a quem o Senhor, em
	               vez de amizade, sempre há confessado tributar
	               amor!
	O Pai olha para a mãe, sério. Neste momento, irrompem os
	aplausos. A Mãe se dá conta e também começa a aplaudir, simulando
	entusiasmo. Levanta-se.
	               MÃE
	               Bravo!
	O Pai, discretamente, sério, também começa a aplaudir. Na platéia
	há pouco mais de 20 pessoas, todas aplaudindo.
	No palco, Ernesto, Malherbe e mais QUATRO ATORES, todos jovens e
	com figurinos de época, agradecem.
	Pessoas da platéia deixam seus lugares e vão em direção ao palco
	para cumprimentar os atores.
	A Mãe e o Pai se dirigem para Ernesto (ainda vestido como
	Mildona). A Mãe abraça Ernesto.
	               MÃE
	               (falando alto, exagerada) Ernesto, querido! Foi
	               muito forte, viu? Muito... intenso.
	               ERNESTO
	               (constrangido) Obrigado, mãe.
	PROFESSORA, 40 anos, casaco de couro, calça comprida, se aproxima
	de Ernesto, dá-lhe um abraço.
	               PROFESSORA
	               Meus parabéns, Ernesto! (para a Mãe) Seu filho é
	               muito talentoso.
	               MÃE
	               Eu sempre achei isso, desde criança. Ele sempre
	               foi muito desinibido. Era o palhacinho da família,
	               não era?
	Ernesto sorri amarelo, envergonhado. A Mãe e a Professora
	continuam conversando. O Pai fica ao lado, quieto, sério. DURVAL,
	25 anos, calça jeans, blusão de lã, um pouco afastado, faz um
	sinal de "positivo" para Ernesto, que responde da mesma forma.
	               ERNESTO (VS)
	               Não posso dizer que a minha carreira começou mal.
	               Nos primeiros cinco minutos, duas críticas
	               positivas, ainda que fossem da minha mãe e da
	               minha professora. Mas, a partir do sexto minuto,
	               tudo começou a mudar.
	A Professora se afasta, indo abraçar outro ator. O Pai,
	finalmente, se aproxima de Ernesto, estendendo-lhe a mão.
	               PAI
	               Talento não enche barriga. Vou te mandar mais dois
	               meses de mesada. Depois, se quiser, pode voltar
	               para Erechim.
	               ERNESTO
	               Obrigado, pai.
O Pai olha para o vestido de Ernesto.
	               PAI
	               Filho... "ator" eu ainda agüento. Mas vagabundo,
	               não.
	               MÃE
	               (protestando) Otávio!
	Neste momento, CECÍLIA, 21 anos, bonita, com cabelos longos e
	soltos, aproxima-se do grupo e, entre o Pai e a Mãe, entrega a
	Ernesto um embrulho enrolado com papel para presente.
	               CECÍLIA
	               Com licença? Olha, a Suzana pediu para avisar que
	               era para devolver lavada, que da última vez que
	               ela emprestou voltou cheia de tinta e que tinha
	               até piolho.
	               ERNESTO
	               (não entendendo nada) Suzana?
	               CECÍLIA
	               Tu não é o Luiz Augusto?
	               ERNESTO
	               Não.
	               CECÍLIA
	               Desculpa, eu me enganei.
	Imediatamente, Cecília se vira e leva o seu pacote em direção a
	outro dos atores sobre o palco. O Pai e a Mãe se olham, sem saber
	onde pôr as mãos. Ernesto fica prestando atenção em Cecília.
	Sobre o palco cheio de gente, Cecília se aproxima do ator que fez
	Malherbe. Pode-se ver que ela faz a pergunta "Tu não é o Luiz
	Augusto? " empurrando o embrulho para ele, que o rejeita.
	               ERNESTO (VS)
	               E agora... o futuro!
CENA 2 - BAR - INTERIOR/NOITE
	Dois copos de conhaque se batem. Ernesto e Durval estão sentados
	no balcão de um bar.
	               DURVAL
	               Eu tenho só uma palavra para te dizer sobre o
	               futuro:
	Ernesto fica olhando, interessado. Durval faz suspense, leva o
	copo à boca, toma um longo gole, estala a língua e diz,
	pausadamente:
	               DURVAL
	               Cachorro... quente.
	               ERNESTO
	               (tomando o seu gole) São duas palavras, Durval.
	               DURVAL
	               Uma, composta. Pensa nisso. (pra dentro do balcão,
	               indicando o copo) Mais uma, Espanhol!
	               ERNESTO
	               Eu acho que nós temos que montar um espetáculo que
	               fale de nós mesmos, das nossas inquietações, das
	               nossas dúvidas. O que é ter vinte e poucos anos
	               nessa cidade, nesse começo de século. Começar com
	               umas improvisações, o texto a gente vai
	               construindo depois. O que tu acha?
	               DURVAL
	               (servindo-se mais uma dose) Prefiro cachorro-
	               quente.
	               ERNESTO
	               (subitamente irritado) Babaca!
	               DURVAL
	               É tu!
	Os dois se olham, sérios, incomodados. Em seguida, sem que se
	perceba de quem foi a iniciativa, voltam a bater os copos.
CENA 2A - RUA - EXTERIOR / NOITE
Ernesto e Durval vêm caminhando lado a lado pela rua escura.
	               ERNESTO
	               Eu preciso de um emprego.
	               DURVAL
	               Claro! Quer ser ator. Mas tá preocupado com
	               emprego. Tu devia pensar na proposta que eu te
	               fiz.
	               ERNESTO
	               Mês que vem não tenho mais como pagar aluguel.
	               DURVAL
	               Ernesto, vender cachorro-quente no porta-malas do
	               carro tá dando a maior grana.
	               ERNESTO
	               Eu não estou brincando, Durval.
	               DURVAL
	               Nem eu. O governo abriu um crédito para
	               microempresas. A gente consegue uma
	               caminhonetezinha por...
	               ERNESTO
	               Durval, eu sou um ator. EU SOU UM ATOR. E não vou
	               desistir tão fácil.
CENA 3 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 1 - INTERIOR/DIA
	Ernesto entra na recepção da produtora. Dirige-se à RECEPCIONISTA
	1, que está atrás de uma mesa e que, sem parar de falar ao
	telefone, indica-lhe a cadeira em frente.
	               RECEPCIONISTA 1
	               (ao telefone) É só deixar aqui comigo que eu passo
	               para ela. (...) Pode ter certeza.
	Ernesto senta-se na cadeira indicada, muito desconfortável,
	daquelas em que se fica afundado.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Sim, senhor. Até logo.
	A recepcionista desliga o telefone. Ernesto começa a tentar se
	levantar da cadeira mas imediatamente o telefone volta a tocar.
	               ERNESTO
	               Ahn... Boa tarde.
	Recepcionista 1 atende, faz um gesto com a mão pedindo que
	Ernesto espere um pouco,
	               RECEPCIONISTA 1
	               Set de Produção, boa tarde.
A Recepcionista 1 fala ao telefone e ao mesmo tempo com Ernesto.
	               ERNESTO
	               (gesticulando bem a boca) Eu queria falar com a
	               Niaia.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Só um momentinho. (tecla um ramal e, enquanto
	               espera, fala com Ernesto) Ela saiu para ver umas
	               locações. (para o telefone) Seu Gilberto, é aquele
	               rapaz que deixou uns roteiros para o senhor no
	               final de fevereiro. Ele quer saber se o senhor já
	               leu.
Toca o telefone novamente.
	               ERNESTO
	               Tu sabe se ela vai demorar?
	               RECEPCIONISTA 1
	               (ao telefone) Pode deixar, eu digo pra ele. (na
	               outra linha) Set de Produção, um momentinho por
	               favor. (voltando à linha 1) Olha, ele não tem como
	               te atender agora, quem sabe tu liga amanhã? (...)
	               Eu dou o recado, sim. Até logo. (desligando uma
	               ligação e pegando a outra) Set de Produção, boa
	               tarde. Desculpe a demora.
Ernesto já ficando impaciente.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Sim, vai ser para homens e mulheres de vinte a
	               vinte e cinco anos.
	Enquanto presta atenção no que a pessoa do outro lado fala, a
	recepcionista faz um gesto negativo com a mão para Ernesto e fala
	sussurrando, tapando o bocal do telefone.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Não sei quanto tempo, isso de ver locações às
	               vezes demora. (ao telefone) É. Tem que deixar o
	               currículo aqui na produtora. (...) Bom, o de
	               sempre: tem que ser mais ou menos bonita, ter
	               dentes bons, cabelo bom e pele boa. (...) Tá bom,
	               até logo.
	Ernesto aproveita que a Recepcionista 1 desligou o telefone,
	aproxima-se.
	               ERNESTO
	               Eu posso...?
	               RECEPCIONISTA 1
	               Quem sabe tu telefona para ela amanhã e marca uma
	               hora?
	               ERNESTO
	               Mas eu posso...
O telefone volta a tocar.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Set de produção, boa tarde.
A Recepcionista 1 olha na agenda.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Exatamente. Dia doze, sala trezentos e quatorze,
	               às treze e trinta.
	               ERNESTO
	               Só diz para ela que é o Ernesto, sobrinho da Cida.
	               Minha tia é amiga dela.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Pode deixar. (já sem olhar para Ernesto, que se
	               vira e sai). Set de Produção boa tarde. (pausa)
	               Sim. Já passo para ela, um momentinho por favor.
CENA 4 - ORELHÃO - BORGES DE MEDEIROS - EXTERIOR/DIA
Ernesto falando ao telefone, num orelhão.
	               ERNESTO
	               Por favor, eu gostaria de falar com a Niaia.
	               (pausa) Eu sou o Ernesto, o sobrinho da Cida. Eu
	               estive aí na produtora ontem à tarde. (pausa) E a
	               que horas termina a reunião? (pausa) Tá bom, eu
	               ligo daqui a meia hora.
	Ernesto desliga desanimado, sai caminhando pelos arcos do viaduto
	da Borges.
CENA 5 - BAR/BALCÃO - INTERIOR/NOITE
No balcão, o barman serve uma cachacinha para Ernesto e Durval.
	               ERNESTO
	               Eu não sei por quê que é tão difícil. Eles não
	               sabem se sou um bom ator ou não. Aliás, nem eu
	               sei.
	               DURVAL
	               Normal. Ninguém sabe.
	               ERNESTO
	               Mas alguém tem que me dar uma chance. O que é eu
	               preciso fazer pra eles me darem uma chance?
	               DURVAL
	               Currículo, cara! Já que é isso que tu quer,
	               capricha num currículo e leva para as produtoras.
	               ERNESTO
	               Eu posso não saber nada de latim. Mas "curriculum"
	               quer dizer "carreira". Como é que eu posso fazer
	               currículo se eu ainda não tenho uma carreira?
	               DURVAL
	               Não sabe latim mesmo. "Curriculum vitae" quer
	               dizer "carreira de vida". Vida todo mundo tem. Até
	               tu. (sorrindo) E quem precisa de currículo é
	               justamente quem não fez nada. Ou tu acha que o Zé
	               Vitor Castiel anda por aí, com um currículo na
	               mão, pedindo uma chance?
CENA 6 - JK DE ERNESTO - INTERIOR/DIA
	Uma peça única com apenas o básico: uma cama de solteiro, uma
	geladeira pequena, um fogão, uma estante de metal com alguns
	livros e papéis, uma arara com roupas dependuradas, uma mesa e
	duas cadeiras.
	Ernesto, com uma máquina de escrever, datilografa. Pára, fica em
	dúvida. Tira a folha da máquina, fica relendo.
	               ERNESTO (VS)
	               Nome, data e local de nascimento, curso de Arte
	               Dramática. Não era uma grande "carreira de vida",
	               mas o que é que eu ia fazer? Pensei em botar o
	               sarampo, a cachumba, essas coisas, mas achei que
	               eles não iam gostar da brincadeira: a moça deixou
	               bem claro que tinha que ter pele boa.
	Neste momento, Ernesto larga a folha e passa a mão no rosto,
	procurando alguma imperfeição.
CENA 7 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 2 - INTERIOR/DIA
	Na recepção, muito semelhante à da Produtora 1, Ernesto pega um
	copo de plástico e tenta pegar água numa bombona próxima à porta
	de saída, ao lado da poltrona. Algumas pessoas passam apressadas
	à sua frente, som de conversa telefônica ao fundo.
	Ernesto aperta a torneirinha para colocar água no copo. Quando
	solta a torneirinha, a água não pára de correr.
	Ernesto, sem saber o que fazer, coloca um copo novo embaixo da
	torneira enquanto pega o primeiro, cheio de água, e deixa-o num
	cantinho escondido.
	               RECEPCIONISTA 2 (OFF)
	               O que o senhor deseja?
	Ernesto se vira e percebe que a Recepcionista largou o telefone e
	está falando com ele. Rapidamente, coloca um copinho vazio sob a
	torneira, pega uma folha de papel ofício dobrada em dois que
	estava sobre a poltrona e vai correndo até a mesa.
	               ERNESTO
	               Ah, sim. (largando a folha sobre a mesa) Eu vim
	               deixar o meu currículo.
E volta correndo até a bombona, para trocar o copo.
	               RECEPCIONISTA 2
	               (pegando o currículo) Ah.
	A água continua escorrendo e Ernesto continua enchendo copos e os
	cantinhos de uma prateleira com copos cheios de água.
	               ERNESTO
	               Eu já tinha falado contigo por telefone e...
	               RECEPCIONISTA 2
	               Ah, tá.
	               ERNESTO
	               Eu achei que, se eu deixasse o currículo, o
	               pessoal poderia me selecionar pra fazer algum
	               trabalho.
	               RECEPCIONISTA 2
	               Hum, hum.
	Ernesto, bastante atrapalhado, já quase não tem mais onde colocar
	os copinhos com água. A Recepcionista 2 olha o currículo de
	Ernesto sem nenhum interesse, abre uma gaveta de um arquivo e
	joga-o dentro.
	Ernesto, decepcionado, deixa cair um copo no chão, molhando todo
	o carpete. Toca o telefone.
A recepcionista atende, aparentemente sem notar o acidente.
	               RECEPCIONISTA 2
	               Dirigível produções, boa tarde. (...) Sim, já vou
	               passar. (...) Seu Ricardo, é aquele fotógrafo que
	               deixou um trabalho pro senhor examinar o ano
	               passado.
	Ernesto junta o copo do chão calmamente, põe na lixeira, deixa a
	bombona escorrendo e vai embora.
CENA 8 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 3 - INTERIOR/DIA
	A RECEPCIONISTA 3, muito parecida com as outras duas, bate o
	telefone e fala para alguém à sua frente.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Infelizmente ele está numa reunião, não pode ser
	               interrompido.
	A recepção é muito parecida com a das produtoras anteriores. Em
	frente à recepcionista, de pé, está WILSON, 25 anos, roupa
	esquisita, um maço de papéis embaixo do braço.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Mas o senhor pode deixar o seu currículo e, quando
	               ele estiver precisando de um ator...
	Pela porta, ao fundo, Ernesto vem entrando, com uma folha de
	papel ofício dobrada em dois na mão.
	               WILSON
	               Eu sei. Mas desta vez eu vim preparado. Gastei um
	               dinheirão, mas valeu a pena.
	Wilson coloca em cima da mesa o seu maço de papéis. A folha de
	cima é um "composite" supertransado, com texto, fotos coloridas
	e, bem acima, em tipo grande, o nome WILSON HOLANDA. Ernesto fica
	olhando, curioso, por cima do ombro de Wilson.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Muito bonito, seu Wilson. Profissional.
	               WILSON
	               Obrigado.
	A recepcionista pega a folha de cima. A de baixo é igual, e a
	outra também.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Mas... É tudo isso?
	               WILSON
	               (sem entender) É, são duzentas cópias. Será que
	               precisa mais?
	               RECEPCIONISTA 3
	               O senhor não quer... deixar em outras produtoras,
	               quem sabe?
	               WILSON
	               (seguro) Já deixei. Acho que agora eu consigo um
	               trabalho, né?
	               RECEPCIONISTA 3
	               (sem jeito) Claro. Só falta um pouquinho de sorte.
	               WILSON
	               A gente tem que ajudar a sorte. Até logo.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Até.
Wilson se retira. A Recepcionista 3 fala com Ernesto.
	               RECEPCIONISTA 3
	               E o senhor, veio deixar o currículo também?
Ernesto, rapidamente, esconde a sua folha de papel nas costas.
	               ERNESTO
	               Não, eu só queria... (olha em volta, encontra a
	               bombona) ... um copo d'água.
CENA 9 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 1 - INTERIOR/DIA
	Cecília passa por uma porta interna, preocupada, ao mesmo tempo
	caminhando, lendo um roteiro em voz baixa e tentando decorar o
	texto.
	               CECÍLIA
	               "E a morte, ao meu olhar roubando a claridade..."
	               E a morte... ao meu olhar...
Cecília passa pela Recepcionista 1, que está ao telefone.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Sabe o que é, seu Gilberto, é que esteve aqui um
	               ator, o nome dele é Wilson Holanda. (...) Não, mas
	               deixou currículo.
	Cecília vai indo em direção à porta de saída, sempre lendo o seu
	roteiro.
	               CECÍLIA
	               "Ao dia que polui rende a serenidade." Ao dia...
	Ao chegar à porta, esta se abre, e por ela entra Ernesto. Os dois
	se chocam, o roteiro cai no chão, Ernesto se apressa em juntá-lo.
	               ERNESTO
	               Desculpe.
	               CECÍLIA
	               Não, desculpe. Eu é que estava distraída.
	               RECEPCIONISTA 1
	               Eu sei, seu Gilberto, mas é que ele deixou
	               duzentos. (...) É duzentos currículos. O que é que
	               eu faço com isso?
	               ERNESTO
	               (para Cecília) Ei, eu te conheço. Lembra de mim?
	               CECÍLIA
	               Acho que não.
	               ERNESTO
	               Claro! Eu sou aquele que não era o Luiz Augusto.
	               Lembra?
	               CECÍLIA
	               Luiz Augusto?
	               ERNESTO
	               O pacote da Suzana, que da outra vez voltou com
	               piolho...
Cecília olha desconfiada, não entendendo.
	               ERNESTO
	               (sorrindo) Bom, esquece. Eu não sou o Luiz
	               Augusto, sou o Ernesto.
	               CECÍLIA
	               E eu não sou a Suzana, sou a Cecília.
	               RECEPCIONISTA 1 (OFF)
	               Moço, me faz um favor?
Ernesto e Cecília olham para a Recepcionista 1.
	               RECEPCIONISTA 1
	               (ao telefone) Sim, dona Mônica, já foram pro
	               estúdio. (para Ernesto, tapando o bocal) Me
	               alcança aquele cestinho ali?
	Ernesto olha em volta e vê um cestinho de lixo ao lado da bombona
	de água. Pega-o, leva-o até a mesa.
	               RECEPCIONISTA 1
	               (ao telefone) Mas eu encaminhei todos os que
	               vieram pro teste. (para Ernesto) Obrigado.
	Sem largar o telefone, a Recepcionista 1 pega a pilha de
	currículos de Wilson Holanda sobre a mesa e joga-a toda no
	cestinho de lixo. Ernesto e Cecília se olham, perplexos.
	               RECEPCIONISTA 1
	               (ao telefone) Mais um? Homem? Tá bom, eu vou o que
	               eu posso fazer.
	A Recepcionista desliga o telefone e olha com atenção para as
	mãos de Ernesto, ainda segurando o cesto cheio de papéis à sua
	frente.
	               RECEPCIONISTA 1
	               O senhor não quer fazer um teste de mão?
Ernesto e Cecília se olham, surpresos e divertidos.
CENA 11 - SALA TESTE DE MÃO - INTERIOR/DIA
	Numa grande sala com apenas um grande balcão no centro, um
	ELETRICISTA termina de ajustar o foco de um refletor, voltado
	para o balcão. A um canto da sala, 4 MODELOS esperam, de pé,
	encostados à parede.
	               ERNESTO (VS)
	               Quando eu nasci, tive que fazer o teste do
	               pezinho. Pra tirar carteira de motorista, exame de
	               olhos. Depois que eu resolvi ser ator, minha
	               primeira chance foi num teste de mão.
	Pela porta entra Ernesto, conduzido pela Recepcionista 1, que lhe
	indica o canto onde estão os Modelos e em seguida se retira,
	fechando a porta. Ernesto aproxima-se de um dos Modelos, fazendo
	gestos com as mãos, exercitando-se.
	               ERNESTO
	               Oi. Tu já fez esse tal teste de mão?
	               MODELO 1
	               (também gesticulando) Muitos. Sou PHD em testes,
	               faz parte do ofício.
	A porta se abre e entra o ASSISTENTE 1, que vai direto ao
	assunto.
	               ASSISTENTE 1
	               Coloquem as mãos no balcão, por favor.
	Ernesto e os quatro modelos com as mãos em cima do balcão. O
	Assistente 1, sem olhar para o rosto deles, observa as mãos como
	quem faz revista em uma tropa. Todos os modelos ficam com as mão
	paradas, com exceção de Ernesto, que gesticula a mão tentando
	torná-la mais expressiva. O Assistente 1 estranha, mas não fala
	nada.
	               ERNESTO (VS)
	               Eu ainda não era um ator de corpo inteiro, mas...
	               Bom, já era um começo. E tudo isso graças ao meu
	               currículo.
O Assistente 1 aponta para as mãos escolhidas, de um dos Modelos.
	               ASSISTENTE 1
	               Esta aqui. Pode passar no departamento de pessoal
	               pra assinar o contrato.
	O Modelo escolhido fica contente, sacudindo as mãos. Os outros o
	olham. O Assistente vai saindo.
	               ASSISTENTE
	               Vocês estão liberados, obrigado.
CENA 15 - CACHORRO-QUENTE - EXTERIOR/NOITE
	Durval termina de olhar a folha de ofício que é o currículo de
	Ernesto.
	               DURVAL
	               Datilografado? Isto aqui tá ridículo.
	Durval e Ernesto estão sentados em um banco, ao lado de uma
	caminhonete de cachorro-quente. Seus lanches já estão quase no
	fim. Durval fica brandindo a folha de ofício enquanto fala.
	               DURVAL
	               Tem que ser mais audaz, moderno! Tu tem que te
	               vender, Ernesto! Com este currículo eu não te
	               contrataria nunca. (no ouvido de Ernesto) Nem para
	               vender cachorro-quente.
	               ERNESTO
	               (chateado) Ah, mas com isso aí eu já consegui um
	               teste. Já é alguma coisa.
	               DURVAL
	               Mas nunca vai passar do teste. Um bom currículo,
	               um currículo de verdade, se faz com imagens,
	               autoconfiança...
	               ERNESTO
	               ... e mentiras?
	               DURVAL
	               Nada de mentiras. Verdades... um pouquinho
	               exageradas.
	Durval levanta-se. Fica desenhando no ar o texto do novo
	currículo de Ernesto.
	               DURVAL
	               "Ernesto Dias. Formou-se, com grande destaque...
CENA 16 - APARTAMENTO DE DURVAL (ESCRITÓRIO) - INTERIOR/DIA
	Ernesto sentado em frente do computador. Durval ao seu lado,
	ditando.
	               DURVAL
	               "... no Departamento de Arte Dramática da
	               Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi
	               referenciado pela crítica como grande promessa no
	               teatro gaúcho." Aqui a gente deixa espaço para a
	               foto. Cadê as fotos?
CENA 24 - ESTÚDIO DE FOTO - INTERIOR/DIA
	FOTÓGRAFO tira várias fotos de Ernesto, de frente, de perfil, de
	calção de banho, de paletó.
CENA 16A - APARTAMENTO DE DURVAL (ESCRITÓRIO) - INTERIOR/DIA
	Ernesto entrega um envelope para Durval. Durval abre o envelope,
	olha as fotos, escolhe uma.
A foto de Ernesto sendo escanerizada.
Na tela do computador, a foto sendo inserida no meio do texto.
	               DURVAL
	               Participou de vários festivais de teatro,
	               recebendo muitos elogios. Cadê aquela crítica do
	               Festival de Santo Ângelo?
	               ERNESTO
	               Tá aqui.
Durval vai empurrando Ernesto e assume o teclado do computador.
	               DURVAL
	               O que é que o crítico disse mesmo?
	               ERNESTO
	               (lendo) "O conjunto das atuações destaca-se pelo
	               equilíbrio e talento."
	               DURVAL
	               É isso aí.
Durval digita.
	               DURVAL
	               "A crítica especializada foi unânime em reconhecer
	               o talento de Ernesto Dias." E a matéria sobre o
	               espetáculo de formatura?
	               ERNESTO
	               "Texto de Qorpo Santo é montado pelos formandos do
	               DAD. Talento de nova geração promete sacudir o
	               teatro gaúcho".
	               DURVAL
	               "Ernesto é a grande promessa do novo teatro
	               gaúcho." Essa letra não tá boa, quem sabe esta?
Na tela do computador, aparecem as mudanças de letra.
	               DURVAL
	               O tamanho também não tá bom. (levantando) Bota aí
	               tudo em tamanho 14 e manda imprimir.
	Durval prepara a Câmera. Tira um poster da parede, pendura um
	pano para servir de fundo. Coloca um abajur para iluminar a cena.
Imagem do visor de uma câmera, Ernesto se prepara para gravar.
	               ERNESTO
	               O mundo ainda não sabe se eu sou um bom ou um mau
	               ator. Mas vocês podem saber... se me derem uma
	               chance. A seguir vocês verão alguns personagens
	               que eu já interpretei nessa minha carreira que
	               está apenas começando.
FIM DO PRIMEIRO BLOCO
CENA 17 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 3 - INTERIOR/DIA
	O novo currículo de Ernesto, com texto e fotos coloridas, é
	colocado sobre a mesa.
	               RECEPCIONISTA 3
	               (simpática) Hummm, mas este currículo, assim, em
	               forma de "composite", ficou muito "fashion".
Ernesto está de pé em frente à Recepcionista 3, satisfeito.
	               ERNESTO
	               Mas tem mais.
Ernesto coloca sobre a mesa uma fita VHS com a sua foto na capa.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Hummm.... E acompanhado de um "videobook", então,
	               é o "must".
	Recepcionista abre a porta de um armário atrás de sua mesa.
	Aquela divisão do armário está abarrotada de fitas de vídeo.
	Ernesto nota, decepcionado. A Recepcionista guarda a fita de
	Ernesto por cima das outras, com certa dificuldade.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Pelo que eu vi, o senhor conhece tudo de "self-
	               selling".
	               ERNESTO
	               Quase tudo. E aquele trabalho que tu tinha falado?
	               RECEPCIONISTA 3
	               Ah, aquele "job"... Infelizmente, o "casting" já
	               está completo.
	               ERNESTO
	               Claro.
Ernesto vai se virando pra ir embora, meio chateado.
	               RECEPCIONISTA 3
	               Não quer fazer um "coffee-break"? (apontando a
	               garrafa térmica) Tá novinho.
	               ERNESTO
	               Não, obrigado. Tem um telefone pra recados aí.
	               Qualquer coisa, "turn me on".
CENA 18 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 2 - INTERIOR/DIA
	Na produtora 2, Wilson se aproxima da recepcionista, com um
	pacote embaixo do braço.
	               WILSON
	               Boa tarde. Lembra de mim? Wilson Holanda?
	               RECEPCIONISTA 2
	               (sem saco) Sim, os duzentos currículos.
	               WILSON
	               (contente) Exatamente. É que... aconteceu um
	               imprevisto.
	               RECEPCIONISTA
	               (pegando a lixa de unhas na gaveta) Hum-hum?
	               WILSON
	               É... Eu tive que mudar o meu nome.
	               RECEPCIONISTA
	               Não me diga.
	Neste momento, Ernesto entra pela porta e aproxima-se pelas
	costas de Wilson.
	               WILSON
	               É... numerologia, sabe? Eu estava precisando de um
	               "ele" a mais. Pra dar um impulso na minha
	               carreira, entende?
	Ernesto chega ao lado de Wilson. A Recepcionista levanta o olhar
	para Ernesto, os dois se olham.
	               WILSON
	               Mas aí eu pensei: puxa, e todos aqueles meus
	               currículos, por aí, com o nome antigo? Um
	               problema, né?
	               ERNESTO E RECEPCIONISTA
	               É...
	Wilson abre o pacote: é uma pilha de etiquetas com o nome WILSON
	HOLLANDA impresso.
	               WILSON
	               Então eu mandei fazer isso. Pra colar em cima do
	               nome antigo, percebe? São duzentas etiquetas, mas
	               pode deixar que eu mesmo colo, tu não vai ter
	               trabalho nenhum. É só me emprestar os currículos
	               que eu deixei aqui a semana passada.
	A Recepcionista 2 fica olhando para Wilson, sem saber o que
	dizer. Ernesto se intromete.
	               ERNESTO
	               Com licença? Olha, eu só vim deixar o meu
	               currículo, tá? (largando a folha e a fita sobre a
	               mesa) É só um, Ernesto com um "ene" só, não
	               precisa mudar nada. (cumprimentando Wilson) Aí,
	               Wilson, tudo de bom pra ti, hein? Valeu.
CENA 12 - ESTÚDIO 2 - INTERIOR/DIA
	Em frente a um fundo neutro com uma luz precária, Cecília
	aguarda, nervosa, olhando em volta.
	               ASSISTENTE 2 (OFF)
	               Tá, pode ir.
	               CECÍLIA
	               Nada se ganha, ao contrário, tudo se perde, quando
	               nosso desejo se realiza sem satisfazer-nos.
	O DIRETOR 2, óculos escuros, calça de couro, do outro lado do
	estúdio, olhando pelo monitor. Aperta o botão do
	intercomunicador.
	               DIRETOR 2
	               Faz de novo, mas agora sem atuar. Seja tu mesma.
A ASSISTENTE 2, constrangida, "traduz" para Cecília.
	               ASSISTENTE 2
	               Menos teatral.
	Diretor 2 olha de forma arrogante para a Assistente 2. Faz um
	sinal com mão para que a Cecília siga.
	               CECÍLIA
	               Nada se ganha, ao contrário, tudo se perde, quando
	               nosso desejo se realiza sem satisfazer-nos.
	               DIRETOR 2
	               OK, a próxima!
	ATRIZ 3 entra nas luzes e se prepara para dar o texto. A
	Assistente 2 se aproxima, conferindo.
	               ASSISTENTE 2
	               Shakespeare, também?
	               ATRIZ 3
	               Não, eu prefiro dar o texto de um autor gaúcho.
	               Pode ser?
	               ASSISTENTE 2
	               Claro, claro que pode.
A Assistente anota alguma coisa na prancheta e sai.
	               ASSISTENTE (OFF)
	               Um, dois e... pode ir.
	Atriz começa a interpretar, acompanhando com gestos, como se
	fosse realmente um texto teatral.
	               ATRIZ 3
	               Bom dia, senhoras e senhores presentes neste dia
	               de festa. Eu sou uma atriz gaúcha. Trabalho há
	               vinte anos com teatro, já atuei em algumas peças
	               de Tchecov, Brecht, Beckett e de muitos
	               dramaturgos brasileiros, Oduvaldo Viana Filho, Ivo
	               Bender, Nelson Rodrigues, enfim. Tempo e trabalho
	               suficientes para ter o meu talento confirmado, ou
	               não. Mas diretor gaúcho não vai ao teatro, não
	               conhece os atores gaúchos.
O diretor e a assistente se olham, incrédulos.
	               ATRIZ 3
	               E quando vão fazer seus filmes ou comerciais, nos
	               chamam para fazer estes testes ridículos.
	               DIRETOR 2
	               Tá bom, tá bom, muito obrigado pelo teste, foi
	               ótimo.
	               ATRIZ 3
	               E não pagam nem cachê pelo teste. Pois se ao menos
	               fizessem isto estariam valorizando um trabalho...
	               DIRETOR
	               Tá bom, chega! (para o Assistente 2) Pode mandar a
	               próxima.
Atriz 3 sai do estúdio, triunfal.
	               ATRIZ 3
	               Até logo. Até o próximo teste.
CENA 13 - ESTÚDIO 2 - EXTERIOR/DIA
	Uma fila com 5 ATRIZES e Ernesto. A Assistente 2 aparece na
	porta.
	               ASSISTENTE 2
	               A número dezesseis, por favor.
CENA 14 - ESTÚDIO 2 - INTERIOR/DIA
	O Diretor 2 toma um gole de café e olha pelo monitor, quando vê
	Ernesto entrando no estúdio.
	               DIRETOR 2
	               Quem é esse sujeito aí?
A Assistente, atrapalhada, olha na prancheta.
	               ASSISTENTE
	               É... Ernesto Dias. Formado no Curso de Arte
	               Dramática, fez...
Ernesto vai se posicionando na frente da câmera.
	               DIRETOR 2
	               Peraí! O que este cara tá fazendo aqui? Tu não
	               sabe que o papel é feminino?
	               ASSISTENTE 2
	               (constrangida) É, eu falei pra ele. Quem sabe a
	               gente faz um teste pra arquivo?
	               DIRETOR 2
	               E tu acha que eu vou perder meu tempo fazendo
	               arquivo? Manda este cara embora. A próxima.
	               ASSISTENTE 2
	               (para Ernesto) Não te disse?
	Ernesto dá um sorriso meio sem jeito, como quem diz "pelo menos
	eu tentei".
CENA 20 - BAR - INTERIOR/NOITE
Ernesto e Durval jogando sinuca.
	               ERNESTO
	               Voltei em todas as produtoras de cinema e
	               publicidade da cidade. A quatro no canto.
Ernesto tenta a tacada e erra.
	               DURVAL
	               Posso te dizer uma palavra?
	               ERNESTO
	               Não!
Durval move a boca para dizer "cachorro-quente", sem pronunciar.
	               DURVAL
	               A seis no meio.
	               ERNESTO
	               Ontem eu vi a Cecília de novo.
	               DURVAL
	               Humpf... A do pacote?
Durval acerta a tacada.
	               DURVAL
	               Tu, além de ser ator, ainda vai te interessar por
	               uma assistente de figurinista?
	               ERNESTO
	               Ela é atriz. E é boa. Boa atriz, quero dizer. Eu
	               vi ela fazendo um teste, mas ela não me viu.
	               DURVAL
	               (irônico) Ah, o amor... A sete, lá do outro lado.
	Ernesto senta ao lado da mesa de sinuca, nem acompanha a tacada
	de Durval. Durval acerta.
	               DURVAL
	               Entraram em contato ontem. (entregando um papel
	               pra Ernesto) Deixaram este telefone, disseram que
	               era para tu falar com a Cíntia.
	               ERNESTO
	               (pegando o papel) E tu não ia me dizer nada?
	               DURVAL
	               Ernesto! Isto é embromação, cara! Tu vai lá, faz
	               um teste, fica cheio de esperança e no mês que vem
	               não tem dinheiro para pagar aluguel. Pensa que eu
	               não conheço isso?
Ernesto joga o taco no chão.
	               ERNESTO
	               Tu não conhece é nada, Durval. Tu é um fracassado,
	               cara. E eu não!
Ernesto vai saindo.
	               DURVAL
	               A oito no meio. Ô, Ernesto, vai abandonar, cara?
	               ERNESTO
	               Tchau, Durval.
CENA 26 - RUA - EXTERIOR/DIA
	Ernesto, com a sua mochila às costas, vem apressado pela rua,
	sério. Aos poucos, um sorriso vai surgindo no seu rosto. De
	repente ele percebe que está muito contente. Passa por uma
	SENHORA, cumprimenta-a. A Senhora pára ao seu lado, sem entender
	direito. Ernesto aperta as duas bochechas da Senhora com as mãos.
	               ERNESTO
	               Eu sou um ator. Eu sou um ator!
CENA 27 - FIM DA LINHA DO ÔNIBUS TV - EXTERIOR/DIA
	Ernesto, agora vestido de black-tie, mas ainda com a mochila às
	costas, desce do ônibus, sorridente. Caminha a passos largos,
	dobra a esquina.
CENA 28 - PRÉDIO DO ESTÚDIO - EXTERIOR/DIA
	Ernesto sobe as escadarias do prédio. Outros ATORES E ATRIZES,
	todos vestidos com roupas de festa, também vão chegando.
CENA 29 - ESTÚDIO 1 (SALÃO) - INTERIOR/DIA
	No salão de espera, um grupo de 10 atores e 10 atrizes. Os atores
	estão vestidos da mesma maneira: black-tie, alguns ainda
	colocando a gravata, outros trocando de sapatos, carregando
	alguma mochila, pasta, mala, saco.
	As atrizes também estão vestidas da mesma maneira: vestido de
	festa, dando os últimos retoques de maquiagem.
	Ernesto entra e procura um lugar para sentar. Cecília, com o
	número 96 sobre o colo, está sentada numa banco de madeira.
	Ernesto faz menção de sentar ao lado dela. Ela se mexe no banco
	abrindo espaço para que ele possa sentar. Ele senta. Ficam os
	dois em silêncio por um momento.
	               ERNESTO
	               Oi.
	               CECÍLIA
	               Oi.
	               ERNESTO
	               Quanta gente. Eu não imaginava.
	               CECÍLIA
	               Normal. É o teu primeiro teste?
	               ERNESTO
	               Assim, de corpo inteiro, é.
	               CECÍLIA
	               Vão selecionar um homem e uma mulher.
	               ERNESTO
	               Então temos cinqüenta por cento de chance.
Cecília sorri.
	No pátio, os outros atores e atrizes conversam. Ouvem-se trechos
	de conversas.
	               ATRIZ
	               Eu sei que desta vez eu vou conseguir.
	               ATOR
	               Eu estou cansado de tanto esperar nestes testes.
	               ATOR
	               Eles ao menos podiam nos oferecer um lanche.
	               ATRIZ
	               Não tá faltando trabalho não, pelo menos pra mim.
	               ATRIZ
	               Ela viu o anúncio lá no DAD. Foi para o teste. Só
	               ali ela ficou sabendo que era para um filme pornô
	               em Alvorada.
	               ATOR
	               E aí?
	               ATRIZ
	               Aí, ela encarou.
	Agora, há apenas cerca de dez atores no corredor. Ernesto está
	sozinho no banco. ASSISTENTE 1 abre a porta do estúdio.
	               ASSISTENTE 1
	               Noventa e oito.
Ernesto se levanta.
CENA 30 - ESTÚDIO 1 - INTERIOR/DIA
	Assistente 1 coloca Ernesto encostado num fundo infinito, num
	ponto onde está marcado com fita crepe. Uma camêra de vídeo está
	posicionada sobre um tripé. Assistente 1 confere o visor e
	dispara a câmera.
	               ASSISTENTE 1
	               Já está gravando. Diga seu nome.
	               ERNESTO
	               Ernesto Dias.
	               ASSISTENTE 1
	               Pode virar e ficar de lado.
Ernesto vira de lado.
	               ASSISTENTE 1
	               O outro lado.
Ernesto vira para o outro lado.
	               ASSISTENTE 1
	               Ok. Vira para cá.
Ernesto fica de frente.
	               ASSISTENTE 1
	               Agora diga: Cuidado, você está numa situação muito
	               delicada.
Ernesto fica por um momento atônito.
	               ASSISTENTE 1
	               Cuidado, você está numa situação muito delicada.
Ernesto se posiciona. Repete a frase baixinho.
	               ERNESTO
	               Cuidado, você está numa situação muito perigosa.
	               ASSISTENTE 1
	               Delicada, situação muito delicada. Mais uma vez,
	               ação.
Ernesto suando, passa a mão na cabeça.
	               ERNESTO
	               Cuidado, você está numa situação muito delicada.
	               ASSISTENTE 1
	               Valeu, obrigado.
Ernesto fica parado. Assistente 1 olhando para Ernesto.
	               ASSISTENTE 1
	               Valeu, muito obrigado. Você já está dispensado.
Ernesto começa a sair do estúdio, devagar.
CENA 31 - ESTÚDIO 1 (SALÃO) - INTERIOR/DIA
	Ernesto entra no corredor e vê, no mesmo banco de antes, Cecília,
	com lágrimas nos olhos. Ernesto senta ao seu lado.
	               ERNESTO
	               Chateada?
Ela encolhe os ombros, demonstrando que sim.
	               ERNESTO
	               Bobagem... Um ator de verdade jamais vai
	               demonstrar seu talento dizendo: "Cuidado, você
	               está numa situação muito delicada."
CENA 32 - ESTÚDIO 1 - INTERIOR/DIA
	Vários atores e atrizes dizem a frase de maneiras diferentes,
	acertando, errando.
	               ATRIZ
	               Cuidado, você está numa situação muito delicada.
	               ATOR
	               Cuidado, você está numa situação muito delicada.
	               ATOR
	               Eu acho que ele não diria assim.
	               ATRIZ
	               Cuidado, você está numa situação muito delicada.
	               ATOR
	               Cuidado, você está numa situação muito delicada.
	               ATRIZ
	               Quem é este personagem? O que ele faz? Eu preciso
	               de uma base, uma motivação.
CENA 33 - ESTÚDIO 1 (SALÃO) - INTERIOR/DIA
Cecília limpa os olhos com um lenço de papel.
	               CECÍLIA
	               Tu é um ator de verdade?
	               ERNESTO
	               Sou. Mas amanhã começo uma nova carreira. Como
	               empresário.
	               CECÍLIA
	               Empresário?
	               ERNESTO
	               Um negócio pequeno... Cachorro-quente.
Cecília fica olhando, séria.
CENA 34 - ALAMEDA AO LADO DO MARGS - EXTERIOR/AMANHECER
	Largo da praça da Alfândega bastante vazio. Ao longe, um homem
	(em silhueta) abre uma caminhonete de Cachorro-quente, prepara-se
	para começar a trabalhar. Coloca o guarda-sol, os bancos para os
	clientes.
	Num banco ao lado, mais próximo, Cecília está sentada, esperando.
	Ernesto chega por trás dela. Abraçam-se, conversam. Ele senta ao
	lado dela. Beijam-se.
	               ERNESTO (VS)
	               A partir daí a minha vida mudou. No dia seguinte
	               eu não entrei no ramo de cachorros-quentes com o
	               Durval. Aliás, ele também não. A gente marcou um
	               encontro, eu e a Cecília. E foram muitos encontros
	               a partir de então.
CENA 35 - FOTOS/TEATRO - INTERIOR/DIA
	Num palco com alguns elementos de época, Ernesto e Cecília
	encenam Romeu e Julieta.
	               ERNESTO
	               Neste instante, meu arrebatamento é tão infinito e
	               meu amor tão profundo como o maior dos oceanos.
	               CECÍLIA
	               Romeu, livra-te do teu nome. Em troca dele, que
	               não é parte de ti, toma-me inteira para ti.
	Ernesto e Cecília, no palco, representando trechos de vários
	espetáculos: "Longa jornada noite adentro", "Casa de bonecas",
	"Esperando Godot", "Hamlet".
	               ERNESTO (VS)
	               Montamos juntos vários espetáculos. Primeiro foi
	               "Romeu e Julieta". Depois, "Longa jornada noite
	               adentro". Usamos vários textos que eu tinha
	               estudado na faculdade, Ibsen, Beckett,
	               Shakespeare.
	Ernesto está no palco como Hamlet. Cecília, como Ofélia, a seu
	lado. Na platéia, um único espectador se levanta e sai.
	               ERNESTO (VS)
	               A grande maioria foi um fracasso de público. Mas
	               isto pra nós não tinha a menor importância.
	               Tínhamos um ótimo patrocinador.
	Ernesto-Hamlet e Cecília-Ofélia, no palco, acham graça, riem.
	Caem na gargalhada.
	               DURVAL (OFF)
	               Posso acender as luzes?
	Ernesto e Cecília fazem um sinal afirmativo, mas não conseguem
	falar de tanto que riem. Durval sobe no palco.
	               DURVAL
	               Cecília, queria que tu já me assinasse estes
	               cheques. É pra pagar o teatro e o pessoal da
	               técnica.
	Durval coloca os cheques numa mesa do cenário. Cecília, ainda se
	divertindo com o fracasso, assina.
	               ERNESTO (VS)
	               Cecília, além de ter cabelo bom, pele boa e dentes
	               bons, tinha também uma ótima conta bancária.
CENA 36 - TEATRO - CAMARIM - INTERIOR/NOITE
	Cecília e Ernesto, em frente ao espelho do camarim, tiram a
	maquilagem enquanto ainda riem. Cecília fala alguma coisa,
	Ernesto não leva a sério.
	               ERNESTO (VS)
	               Tanto que, na semana passada, depois do fracasso
	               da nossa montagem revolucionária de "Hamlet", ela
	               resolveu que iríamos fazer um filme.
	               ERNESTO
	               Tá maluca? Sabe quanto custa?
	               CECÍLIA
	               E daí?
	Durval entra no camarim com um balde de champanhe e gelo e três
	taças. Serve, enquanto os três vão discutindo, animados.
	               ERNESTO (VS)
	               Vai ser um filme que fale de nós mesmos, das
	               nossas inquietações, das nossas dúvidas. O que é
	               ter vinte e poucos anos nessa cidade, nesse começo
	               de século. Durval vai cuidar da produção, eu e
	               Cecília faremos os papéis principais, o diretor e
	               o roteirista nós vamos contratar. Falta o elenco
	               de apoio.
CENA 37 - RECEPÇÃO DE UMA PRODUTORA - INTERIRO/DIA
	Numa recepção de uma produtora moderna, Wilson fala com a
	telefonista, que tenta fazer uma ligação.
	               WILSON
	               Eu posso deixar meu currículo, entende? Mas eu
	               gostaria de dar só uma palavrinha com ele, ele me
	               conhece, é só dois minutinhos.
	               RECEPCIONISTA
	               (ao telefone) Seu Ernesto, tem um ator aqui,
	               Wilson Holanda...
	               WILSON
	               Wilson com dois "esses".
	               RECEPCIONISTA
	               ... que diz que lhe conhece e gostaria de falar
	               com o senhor. (...) Pode deixar. (desligando o
	               telefone). Ele mandou pedir desculpa, não pode lhe
	               atender. Mas o senhor pode deixar o seu currículo,
	               semana que vem nós vamos fazer uns testes...
CENA 38 - SALA DE REUNIÕES - INTERIOR/DIA
	Numa mesa de reuniões, Ernesto e Durval, entre pilhas de papéis,
	analisam currículos.
	               DURVAL
	               Olha essa ruivinha aqui: Trabalho em longa-
	               metragem há mais de dez anos. Fui protagonista em
	               "Agarra que elas Gostam", "Upa, upa Cavalinho",
	               "Americana sem pudor"...
Ernesto arranca o currículo das mãos de Durval.
	               ERNESTO
	               Como é que é?
	Os dois ficam examinando as fotos e os detalhes do currículo da
	moça.
	               ERNESTO (VS)
	               E deixo aqui meu conselho para as futuras gerações
	               de atores: caprichem no currículo, porque ele é a
	               porta de entrada para o sucesso artístico e para a
	               realização profissional.
	               ERNESTO
	               Ótimo currículo. chama pro teste.
FIM
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	(c) Ana Luiza Azevedo, Glênio Póvoas e Giba Assis Brasil, 2001
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
30/06/2001
| Anexo | Tamanho | 
|---|---|
| curricul.txt | 49.78 KB |