INVERNO - texto inicial

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        INVERNO

        Roteiro de Carlos Gerbase,
        julho de 1982

        baseado no conto
        "O Argonauta"
        de Carlos Gerbase

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CENA 1 - EXT/DIA - DIVERSOS LOCAIS

Imagens do inverno. Amanhecer nebuloso, cerração, árvores sem
folhas, frio, chuva, gente com montes de roupa, tudo em tons
cinza, azul, marrom. Locações: cais do porto, muro da Mauá,
centro, proximidades do apê.

Música: Concerto "O Inverno", de Vivaldi, 1§ movimento. A
introdução fica para as imagens iniciais; o primeiro acorde mais
forte deve coincidir com o aparecimento do Herói.

CENA 2 - EXT/DIA - RUA DA PRAIA

Surge o Herói, caminhando pela rua da Praia. Pára e olha a
vitrine da Falk's; não gosta. Pára na vitrine da Kosmos, entra e
pede um livro. A vendedora diz que ainda não chegou.

O Herói vai para a Galeria Chaves e vê a vitrine da King's. Volta
a sair. A chuva está mais forte. Ele anda bem pelo meio da chuva
e da rua, não se importando com a roupa molhada, retornando para
a praça Dom Feliciano.

Na esquina da Dr Flores, o Herói vê uma menina descendo a rua.
Ela é muito bonita. Ele olha interessado para ela. Ela cmainha
olhando para o chão. Quando se cruzam, ela ergue os olhos
rapidamente, segue em frente. Ele quer olhar para trás mas não
consegue. Segue em frente, confuso.

A menina desaparece no movimento. O Herói segue até a banca da
Sr. dos Passos, compra uma revista. Pega um ônibus, que sai e
entra na cerração.

CENA 3 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO E SALA

Manhã no apê. O Herói está no banho, ouvindo "The Dark side of
the moon". Pequenos flashes do apê, junto com a música, definindo
ambiente e astral. O relógio mostra que é de manhã.

Três sons combinados: música do disco, barulho do chuveiro e ele
cantarolando baixinho a música, com razoável certeza da letra.

Toca a campainha.

Herói percebe que a campainha tocou e sai do chuveiro, puto da
cara. Bota um roupão e vai abrir. É a vizinha do lado.

               VIZINHA
               Será que dá pra baixar um pouquinho a música? É
               que eu tenho criança pequena. O senhor entende,
               né?

               HERÓI
               (sem saco) Tudo bem.

O Herói vai até o ampli e baixa o volume. Quase imediatamente,
começa a ouvir uma música do Odair José, baixinho, mas
perfeitamente identificável, vinda do apartamento de cima.

Ele olha para cima, indignado. Fica puto. Vai enxugar o cabelo.
De repente, faz uma expressão satânica.

CENA 4 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA

Começa a tocar "Brown sugar", dos Rolling Stones, a todo volume.
Herói aparece na sala, colocando as caixas de som viradas para
cima, de onde sai, a todo volume, a música dos Stones. Ele ri,
dança e faz sinais ameaçadores pro teto.

CENA 5 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO

Corte seco para o Herói, que continua enxugando os cabelos,
pensativo. Volta o Odair José, baixinho.

CENA 6 - EXT/DIA - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI / ORELHÃO

Herói sai do apê e vai para a rua. A câmara mostra o edifício.
Ele vai até um orelhão e disca. A câmara segue fixa nele, mas
ouve-se, bem claro, a outra voz no meio do movimento da rua.

               HERÓI
               Alô, a Mariana está?

               EMPREGADA (VS)
               Já vou chamar.

Silêncio. Ele olha pra rua.

               MARIANA (VS)
               Alô.

               HERÓI
               Mariana? Oi, tudo bem?

               MARIANA (VS)
               Tudo legal.

               HERÓI
               Será que eu posso dar uma chegadinha aí na tua
               casa?

               MARIANA (VS)
               Legal. Vê se traz uns discos.

               HERÓI
               (contente) Que tipo de música?

               MARIANA (VS)
               Vê se traz música calma.

               HERÓI
               Calma?

               MARIANA (VS)
               É. Tu tem James Taylor?

               HERÓI
               (detestando) Não tenho, não.

               MARIANA (VS)
               Carole King?

               HERÓI
               (com cara de nojo) Também não.

               MARIANA (VS)
               (fazendo um esforço mental) Sei lá; quem sabe
               alguma coisa do Fagner...

               HERÓI
               Tudo bem, tudo bem. Eu levo alguma coisa calama,
               pode deixar.

               MARIANA (VS)
               Legal. Então tchau.

Som do telefone desligando.

               HERÓI
               Mariana...

Ele percebe que ela desligou. Fica olhando um pouco para o fone.
Recoloca-o no gancho.

CENA 7 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA

Ele no apê, escolhendo discos na estante.

CENA 8 - EXT/DIA - CASA DE MARIANA: FRENTE

O Herói chegando na casa de Mariana, que é bem grande e tem um
jardim bem cuidado. Classe-média alta. Aperta a campainha. Atende
a empregada.

Ele está surpreendido com a empregada, que não conhece. Ele fica
meio sem jeito, sem saber o que dizer. Finalmente, consegue
perguntar.

               HERÓI
               Ôi. A Mariana tá aí?

               EMPREGADA
               Ela tá lá no quarto dela.

               HERÓI
               Será que eu posso falar com ela?

               EMPREGADA
               (confusa, se desculpando) O senhor espera um
               pouquinho que eu vou ver.

Fecha a porta. Ele fica de pé, do lado de fora, feito um imbecil.
Dali a pouco, volta a empregada.

               EMPREGADA
               O senhor desculpe, mas é que eu sou nova na casa.
               (sorrindo amarelo) Pode entrar, a dona Mariana tá
               esperando.

CENA 9 - INT/DIA - CASA DE MARIANA: ENTRADA, ESCADA, QUARTO

Ele entra e sobe as escadas.

Na frente da porta do quarto de Mariana, pára e hesita. Olha para
os lados. Acaba batendo.

               MARIANA
               (voz abafada) Entra.

Ele entra. Mariana está sentada na cama, lendo a "Cláudia", ou
coisa assim. Ele sorri.

               MARIANA
               Ôi, tudo bem?

Ele vai até a cama e dá um beijo rápido na boca. Ele está
apaixonado. Ela é linda.

               HERÓI
               (tomando a iniciativa) Eu trouxe uns discos.

Ela sorri e pega os discos, curiosa. Encosta-se na parede. Ele
também se encosta e passa o braço pelos ombros dela. Ela pega
dois discos de Vivaldi.

               MARIANA
               Mas isso é música chata, dá sono. É música de
               igreja, né?

Ela pega um disco da Elis.

               MARIANA
               Agora que ela morreu todo mundo gosta. A voz dela
               é bonita, mas... não sei... falta alguma coisa.
               (taxativa) É muito técnica.

Ela pega o disco da Simone ("Quatro paredes").

               MARIANA
               Ih... mas essa é lésbica. (ri)

Pega os dos Beatles ("Abbey road", "Let it be"). Fica mais
entusiasmada.

               MARIANA
               Legal. (olhando as contracapas) Mas é meio velho,
               né? E depois que o John morreu é meio baixo-
               astral. (sorri) Quem sabe a gente ouve FM?

Liga o rádio e ouve-se uma música horrível, melosa, tipo John
Denver, "Sunshine on my shoulders".

Ela sorri. Ele não sabe o que dizer. Ela olha pra ele e dá um
beijo um pouco mais caloroso que o primeiro. Ele retribui na
mesma medida. Olham-se. Ela sorri, divertida. Ele está confuso.
Vai falar alguma coisa, mas desiste. Nada mais dizem.

FADE OUT

CENA 10 - EXT/NOITE - AV OSVALDO ARANHA

O Herói caminha pela Osvaldo Aranha rumo ao Bristol. Noite fria.
Passa por um bar (o que for mais fácil de filmar) e olha pra
dentro. De repente, pára e volta. Entra no bar.

CENA 11 - INT/NOITE - BAR DA OSVALDO ARANHA

Herói entra, caminha em direção a uma mesa, onde está Leopoldo,
um antigo colega de faculdade, sentado sozinho. Abraçam-se.

               HERÓI
               E aí, Leo, cumé que tá?

               LEOPOLDO
               Tudo bem, tudo bem. (Mas ele não tá bem.)

               HERÓI
               Eu tava indo ali no Bristol.

               LEOPOLDO
               Ah...

               HERÓI
               (sorrindo) Lembra quando a gente matava as aulas
               de Editoração e ia ver os filmes velhos?

               LEOPOLDO
               (sorrindo, mais animado) A revisão crítica!

               HERÓI
               (também rindo) Isso aí.

De repente, silêncio. Não sabem o que dizer.

               HERÓI
               E tu? Tá trabalhando?

               LEOPOLDO
               Pois é. Quase peguei uma boca aí num jornal de
               empresa, mas depois despintou. Depois o Zeca,
               lembra o Zeca?, me convidou pra ir diagramar o
               jornal que ele trabalha, em Santa Maria. Não tô a
               fim.

               HERÓI
               (espantando) O Zeca em Santa Maria?

               LEOPOLDO
               É.

               HERÓI
               Não dá pra entender. E o Júlio, o Celso, o Duarte?

               LEOPOLDO
               Não sei. Não vi mais. Tu tem visto o Gordo?

               HERÓI
               Não. Não vejo ninguém. Depois que a Faculdade
               terminou, não vi mais ninguém.

               LEOPOLDO
               E tu? Tá com algum basquete?

               HERÓI
               (meio envergonhado) É... Consegui uma boca numa
               imobiliária.

               LEOPOLDO
               (surpreso) Imobiliária?

               HERÓI
               É. Tu vê, bacharel em Jornalismo, mas só trato com
               aluguéis, impostos, síndicos... É isso.

               LEOPOLDO
               (sem jeito) ainda tá morando com os velhos?

               HERÓI
               Não. Me mudei logo depois de conseguir o emprego.
               Tô morando sozinho, num apartamento ali na
               Cristóvão.

               LEOPOLDO
               (olhando o relógio) Tu não ia no cinema? São quase
               dez.

               HERÓI
               É mesmo. Tenho que cair.

Ele vai levantando. Leopoldo também levanta.

               LEOPOLDO
               Eu vou junto.

CENA 12 - EXT/NOITE - AV OSVALDO ARANHA

O Herói e Leopoldo saem do bar e começam a caminhar lado a lado.

               LEOPOLDO
               (meio rindo, meio sério) Quais são as
               perspectivas?

               HERÓI
               (surpreso, não esperava esse tipo de papo) Não
               sei. Não tem emprego aqui. Pro interior é que eu
               não vou. Tudo muito saudável. Muito verde. Eu
               prefiro a fumaça.

CENA 13 - INT/NOITE - CINEMA BRISTOL

Chegam no Bristol. O Herói compra entradas para os dois. Sobem as
escadas.

               LEOPOLDO
               E os velhos? Não se importaram com a tua saída?

               HERÓI
               (pensativo) Não sei explicar direito. Alguma coisa
               mudou, não sei o quê.

               LEOPOLDO
               Mas tu continua vendo eles seguido?

               HERÓI
               Ãh-hã. Amanhã combinei de almoçar lá. (pensa um
               pouco) Tô com saudade da comida da mãe. Mas às
               vezes acho que não compensa.

Entram na sala de projeção, de onde sai o som do "Brasil em
Notícias".

CENA 14 - INT/DIA - CASA DOS PAIS: SALA DE JANTAR

O Herói chegando na casa dos pais. A Mãe o abraça, o Pai já está
na mesa. A Mãe busca a comida na cozinha. O Herói beija o Pai na
testa.

               HERÓI
               E daí, pai, tudo bem?

               PAI
               Tudo bem. (mas não tá tudo bem)

               MÃE
               Fiz a lasanha que tu gosta.

               HERÓI
               (sorrindo) Que bom.

Ele começa a comer.

               PAI
               (cortante) Já pagou o aluguel desse mês?

               HERÓI
               (enquanto come) Ainda não. Só recebo dia dez.

               PAI
               Mas o aluguel vence dia cinco.

               HERÓI
               Mas eu sempre pago pelo dia dez, não tem galho.

               PAI
               Mas tá errado. Se vence dia cinco, tem que pagar
               dia cinco.

               HERÓI
               (sm saco) Não te preocupa.

O Pai quer mostrar que tem mais experiência e acentuar o grau de
dependência que o Herói ainda tem em relação a ele.

               PAI
               Eu sou o teu fiador, meu filho. Depois, vem tudo
               pra cima de mim, e tu sabe que eu não tenho tempo.

               MÃE
               (intervindo, apascentadora) Calma, Francisco. O
               menino tá dizendo que não tem mal nenhum.

               PAI
               Ele não se preocupa com nada.

               MÃE
               Vamo comê. Tá boa a comida, filho?

O Herói come, quieto, tentando navegar por cima do diálogo.

               PAI
               (voltando à carga) Cumé que tá o emprego na
               imobiliária?

               HERÓI
               Tudo bem.

               PAI
               Não tá procurando coisa melhor?

               MÃE
               Não começa, Francisco. Tá boa a comida, filho?

               PAI
               Eu sei que é difícil conseguir emprego em jornal,
               mas eu já te falei que talvez eu consiga alguma
               coisa...

               MÃE
               (cortando) Ele não quer.

               PAI
               (para o Herói) Quanto tu tá ganhando nessa
               imobiliária?

               HERÓI
               (sem saco) Mais do que se fosse repórter.

               PAI
               Então por que fez Jornalismo?

               MÃE
               Porque ele quis.

               PAI
               Olha, meu filho, se eu fosse tu partia pra outra.
               Sei lá, quem sabe fazer outro curso.

A mãe gosta da idéia, mas não tem coragem de abandonar sua
posição de defesa incondicional do filho. O Herói continua
comendo.

               HERÓI
               Pai, não te preocupa. Eu tô bem.

               MÃE
               (sorrindo) Claro, Francisco. Ele tá fazendo o que
               gosta.

               PAI
               (irônico) Trabalhar numa imobiliária?

               MÃE
               Quer mais arroz?

Silêncio. Todos comem. O Pai desiste de incomodar. Sabe que não
adianta nada, mas considera seu dever dizer sempre as mesmas
coisas.

               MÃE
               (para o filho) Sabe o Antônio?

               HERÓI
               Ãh-hã.

               MÃE
               Chegou uma carta da tia Lice dizendo que ele anda
               amasiado com uma dona no Rio de Janeiro.

               HERÓI
               (surpreendido) O Antônio?

               MÃE
               É. Diz que ela tem uns quarenta. A tia Lice também
               não tá muito bem.

               HERÓI
               A tia Lice?

               MÃE
               A catarata dela piorou. Agora vai pros Estados
               Unidos, tentar uma operação complicada. Só tem um
               problema: os filhos não querem dar o dinheiro pra
               ela ir.

               HERÓI
               (surpreendido) Ué, mas o tio não deixou nada pra
               ela?

               MÃE
               Deixou, mas ela dividiu tudo duma vez, pra não
               haver briga depois de morta. Aliás, eu ouvi dizer
               que ela já tentou até encaminhar...

O Herói vai comendo e ouvindo a conversa da Mãe. O som da voz da
Mãe vai baixando, enquanto mixa com a música.

CENA 15 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: COZINHA

Herói sentado na cozinha do seu apartamento, na frente de uma
xícara com café-com-leite e uma fatia de pão, bananas ao fundo.
Come, satisfeito, tranqüilo.

CENA 16 - INT/DIA - CASA DOS PAIS: SALA DE JANTAR

Volta outra vez pra casa dos pais. Mãe continua falando.

               MÃE
               Tá boa a comida, filho?

               HERÓI
               Ótima, mãe. Boa mesmo.

               PAI
               (sem acreditar muito) E tu fica comendo mal fora
               daqui.

               HERÓI
               Pois é.

               PAI
               Passa mal porque quer.

               HERÓI
               Pois é.

CENA 17 - EXT/DIA - PUC: EM FRENTE À FACULDADE DE DIREITO

Herói na PUC, sentado no murinho defronte ao Direito, esperando
Mariana. Ele gosta de almoçar com ela porque assim fazem alguma
coisa juntos. Ele lê a Folha da Tarde. Faz frio e sol.

A turma sai. Mariana o vê, se aproxima, beijam-se. Uma colega
cochicha alguma coisa com uma outra. Els saem conversando em
direção à Famecos.

               MARIANA
               (carinhosa) Que bom que tu veio.

               HERÓI
               (sorrindo) Eu disse que vinhe, vim.

               MARIANA
               Mas não é uma mão vir lá do centro até aqui?

Ele abre a Folha da Tarde. Ela olha por cima dele, sorri e
arranca o jornal.

               MARIANA
               Que legal. Vamo olhar o horóscopo! (concentra-se)
               Primeiro o meu. Tá aqui. Capricórnio... Sorte nos
               negócios... bobagem... deixa eu ver o que
               interessa... Amor: boas perspectivas, dia propício
               a namoro, poderá conhecer pessoa muito
               interessante. (ri) Cor azul, que legal!

Ela está de azul e bate palmas, satisfeita.

               MARIANA
               Agora o teu. Tu é... deixa eu lembrar...

Ele está decepcionado com o esquecimento dela, mas disfarça.

               HERÓI
               (atalhando) Aquário.

               MARIANA
               É isso. É isso. Deixa eu ver aqui... Amor: uma
               pequena discussão acabará bem. Seu relacionamento
               começa a amadurecer. Bom dia para passeios a dois.
               Que bom.

Ela fecha o jornal e o abraça.

               HERÓI
               (divertido) Então a gente pode ficar junto hoje?

               MARIANA
               (defendendo-se) Eu sei que tu acha bobagem, mas
               esse negócio de horóscopo às vezes dá certo.

               HERÓI
               (contemporizando) Eu acho que alguma coisa tem que
               ser real nesse negócio de Astrologia. Mas
               horóscopo da Folha da Tarde?... Pelo amor de Deus!

               MARIANA
               (irritada) Quê que tem? Tá pensando que eu
               acredito em tudo? Tá pensando que eu sou burra?

Ele fica quieto.

               MARIANA
               Às vezes tu me trata como uma débil mental.

               HERÓI
               (carinhoso) Desculp, querida, mas é que...

Ele não sabe o que dizer. Tenta beijar, ela evita.

               MARIANA
               Aqui não; tem muita gente.

               HERÓI
               Quê que tem?

               MARIANA
               Nada.

               HERÓI
               (paciente) Então quem sabe a gente dá uma volta
               por aí?

               MARIANA
               (já calma) Tudo bem. Só que eu tenho que almoçar
               cedo. Ainda quero estudar antes da aula.

               HERÓI
               (carinhoso) Tudo bem.

Levanta-se. Eles caminham lado a lado, sem grandes carinhos. De
vez em quando ele faz carinho no braço dela. Só.

               HERÓI
               Já começou o Germinal?

               MARIANA
               Aquele livro que tu me deu ontem? (com cara de
               quem comeu e não gostou) Acho que eu não vou
               gostar muito. O cara fica caminhando não sei
               quantos quilômetros de campo de beterraba.

               HERÓI
               (sem entender) Cumé que é?

               MARIANA
               Eu não curto muito esses negócios de século
               dezenove.

               HERÓI
               Por quê?

               MARIANA
               Muito velho.

               HERÓI
               Tudo bem. Eu vou te far um troço mais moderno,
               mais século vinte.

Pausa.

               HERÓI
               Mariana, tá a fim de ir pra praia?

               MARIANA
               Que praia?

               HERÓI
               Sei lá. Pode ser Arroio do Sal. Meus velhos têm
               casa lá.

               MARIANA
               No inverno?

               HERÓI
               Quê que tem?

               MARIANA
               Ninguém vai pra praia no inverno.

               HERÓI
               Eu vou.

               MARIANA
               Qual é a graça?

               HERÓI
               É muito melhor que no verão.

               MARIANA
               É muito frio, não dá pra tomar banho, nem pra
               pegar sol.

               HERÓI
               E daí? A gente pode caminhar bastante, tirar umas
               fotos, ler.

               MARIANA
               (pesando a proposta) É. Até que pode ser. Só que
               eu vou ter que estudar lá. Tu tem que prometer que
               vai deixar.

               HERÓI
               (feliz) Claro, claro.

               MARIANA
               Te amo.

Ela, rapidamente, dá um beijo na boca dele. Ele quer mais, ela
não deixa.

               MARIANA
               (rindo) Depois, na praia.

               HERÓI
               (contrariado) Tá legal.

               MARIANA
               Agora eu tenho que almoçar.

               HERÓI
               Será que a gente pode ir no teu carro?

               MARIANA
               Sempre no meu carro. Será que tu não pode pedir o
               carro do teu pai emprestado?

               HERÓI
               Posso... É que...

               MARIANA
               Eu sei. Tu não gosta.

               HERÓI
               Não, não tem nenhuma. Eu peço.

               MARIANA
               Não precisa. Vamos no meu.

               HERÓI
               (tendo uma idéia) Pô, a gente podia ir de ônibus.
               Ninguém incomoda e...

               MARIANA
               De ônibus? Tá maluco? Vamos no meu carro.

Entram no bar.

CENA 18 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI

Herói no apê, esperando Mariana chegar. Tá com tudo pronto. Olha
pela janela. Música "Country honk", desde o início.

CENA 19 - EXT/DIA - EDIFÍCIO DO HERÓI

Chega o carro, ela buzina. Ele entra no carro, que arranca. Os
dois estão felizes, quase bobos.

CENA 20 - EXT/DIA - ESTRADA

Entram na free-way. Ela corre bastante. Ele buzina o carro, faz
que vai dar um beliscão nela. Ela reage fazendo de conta que vai
largar a direção. Ele corrige, se fazendo de assustado.
Galinhagens em geral.

CENA 21 - EXT/DIA - PRAIA: RUAS

Quando chegam, o astral muda. As ruas tão vazias, cheias de
areia. Faz frio. Tempo nublado. Ninguém à vista. Ela tá muito
assustada. Vão direto pra casa.

CENA 21B - INT/DIA - CASA DE PRAIA: SALA

Abrem a porta da casa. Entram juntos. Típico astral de casa na
praia no inverno. Tudo escuro, meio mofado. Ele pega as coisas e
traz pra dentro. Ela abre as janelas.

Ele abre a bolsa e tira um livro. É "O Caso Morel". Leva até ela,
que está parada, de pé, sem saber o que fazer a seguir.

               HERÓI
               Olha, trouxe pra ti.

               MARIANA
               (examinando o livro) Rubem Fonseca? Nunca ouvi
               falar.

               HERÓI
               É bem moderno, como tu pediu.

               MARIANA
               Legal. Vou começar a ler hoje de noite.

               HERÓI
               (sem jeito) Tá.

               MARIANA
               E agora?

               HERÓI
               Agora o quê?

               MARIANA
               O quê que a gente faz?

               HERÓI
               (confuso) Sei lá. A gente podia olhar o quarto,
               arrumar as coisas...

               MARIANA
               É. Pode ser.

               HERÓI
               (tentando vencer o gelo) Querida, querida,
               querida...

E dá um beijo bem carinhoso. Ela retribui. Entram no quarto.

CENA 22 - EXT/FIM DA TARDE - CASA DE PRAIA: VARANDA

Herói e Mariana sentados na varanda da frente da casa de praia,
abraçados, com frio. Ele está de olhos fechados.

               HERÓI
               Tá vendo? Não é legal?

               MARIANA
               Vendo o quê?

               HERÓI
               (abrindo os olhos) Tudo. É tão bonito.

A câmara mostra o que ele quer dizer, terminando na cara dela,
meio confusa.

CENA 23 - INT/NOITE - CASA DE PRAIA: QUARTO

Os dois estão deitados na cama de casal. Cada um dum lado,
debaixo das cobertas, lendo seus livros. Ela lê "O Caso Morel". O
Herói pára de ler. Olha pra ela, divertido.

               HERÓI
               Sabe, Mariana, eu pensei que ia ficar um negócio
               gozado a gente dormir na mesma cama. Eu pensei que
               talvez pintasse algum grilo, ou que tu quisesse...

               MARIANA
               (cortando, sem levantar os olhos do livro) Tá
               pensando outra vez que eu sou uma débil mental?

               HERÓI
               Não, não. É que... Sei lá. Podia pintar alguma
               coisa.

               MARIANA
               (lendo) Não tem grilo nenhum. (pára de ler) Eu te
               amo.

Ela dá um beijo nele. Ele quer aproveitar. Encomprida o beijo o
máximo possível. Tenta ir pra cima. Ela não deixa.

               MARIANA
               Agora não. Tô lendo.

Ele volta à posição inicial. Pausa. De repente, ela pára e
afirma.

               MARIANA
               Quanta besteira!

               HERÓI
               (surpreso) Onde?

               MARIANA
               Aqui no livro.

               HERÓI
               Não pode ser. Eu já li duas vezes. É tri bom.

               MARIANA
               Não gosto de ler esse tipo de coisa.

               HERÓI
               Que tipo?

               MARIANA
               Esses negócios aqui. É sexo pelo sexo.

               HERÓI
               (tentando entender) Cumé que é?

               MARIANA
               Pornografia. Ele tá escrevendo só sobre sexo. Não
               tá explicando nada.

               HERÓI
               (confuso) Não entendi.

               MARIANA
               É isso. O cara tá escrevendo só pelo sexo em si.

               HERÓI
               E tem que ter mais alguma coisa?

               MARIANA
               (perdendo o saco de explicar) É isso. Não gosto.
               Acho que vou dormir.

Mariana apaga a lâmpada de cabeceira do seu lado da cama. O Herói
não apaga a sua, mas também pára de ler.

               HERÓI
               Mariana, eu queria conversar uma coisa contigo.

               MARIANA
               (com sono) O quê?

               HERÓI
               Sei lá.

Ele vai chegando mais perto. Olha pra ela, linda, embaixo das
cobertas.

               HERÓI
               Acho que não tem nada pra conversar. (ela ri)
               Então acho que eu vou dar um beijo de boa noite.

Ele beija, com tesão. Ela responde. Ele acaricia o rosto dela.
Beija uma das orelhas. Ela gosta.

Ele tira as cobertas de cima dela. Dá um jeito e segura os
peitinhos por baixo da camisola ou camiseta. Ela gosta.

De repente, ela pára de gostar.

               MARIANA
               Tira a mão.

ele faz que não ouve, continua.

               MARIANA
               (mais forte) Tira a mão daí!

               HERÓI
               Por quê?

               MARIANA
               Não quero.

               HERÓI
               Eu tô só fazendo carinho.

               MARIANA
               (ainda forte) Não tô a fim.

               HERÓI
               Tá legal.

Ele tira a mão, volta pro seu próprio canto da cama. Ela fica
envergonhada, mas logo parte pra ofensiva.

               MARIANA
               (carinhosa) Tô com soninho.

               HERÓI
               (meio puto) Tudo bem.

               MARIANA
               (muito carinhosa) Não fica assim, amor. É que, sei
               lá. Não sei explicar direito. Não quero ainda,
               ainda não, dá pra entender?

               HERÓI
               Não, não dá. Tu sente tesão por mim?

               MARIANA
               Claro.

               HERÓI
               Tu não fica molhada (aponta pra checheca dela)
               aqui?

               MARIANA
               (rindo) Fico.

               HERÓI
               Pois eu fico também. Então por que a gente não
               pode trepar?

               MARIANA
               Eu te amo, pequeninho.

E o beija, primeiro na boca, depois no rosto todo.

               HERÓI
               Te amo, te amo.

E a beija com vontade, quase violento. Tenta ir pra cima outra
vez, ela não deixa.

               MARIANA
               Amanhã, meu amor, amanhã.

Ele desiste, vai pro seu canto e apaga a luz.

CENA 24 - EXT/DIA - PRAIA

O Herói e Mariana na praia, caminhando lado a lado, bem
agasalhados, sozinhos. Ela tá abraçada nele, mais por causa do
frio que por carinho. O mar faz barulho. Vento. Dia nublado. De
vez em quando, ela treme de frio.

               MARIANA
               Tá frio.

               HERÓI
               É.

               MARIANA
               Quem sabe a gente volta pra casa?

               HERÓI
               Eu só queria andar mais um pouquinho.

               MARIANA
               Tá bem.

Continuam andando. De repente, ele pára e olha pra ela.

               HERÓI
               Sabe duma coisa? Sempre que eu venho pra praia, eu
               lembro do "Interiores".

               MARIANA
               Que interiores?

               HERÓI
               Aquele filme do Woody Allen, lembra?

               MARIANA
               Não. Acho que eu não vi.

               HERÓI
               Mas a gente viu junto. Era aquele que a família se
               reunia numa casa de praia no inverno...

               MARIANA
               (sem paciência) Não lembro.

               HERÓI
               Pena.

Continuam caminhando. Ele fecha os olhos, larga o braço dela e
começa a andar de olhos fechados.

               HERÓI
               Sabe, no inverno a gente pode caminhar quilômetros
               pela beira da praia de olhos fechados. Sem medo de
               nada! Já pensou? Não tem ninguém na frente.
               Ninguém. Experimenta.

Ela o segue de boca aberta, sem entender nada. Ele continua
caminhando, satisfeito. De repente, ele pára. Abre os olhos.

               HERÓI
               Experimentou?

               MARIANA
               Não. Eu prefiro andar com os olhos abertos.

Ele olha para ela decepcionado, mas sacando tudo. Faz carinho no
rosto dela. O zoom afasta. Os dois estão com frio.

FADE OUT

CENA 25 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS

Herói chega num apartamento. Os amigos estão lá, sentados no chão
e nas cadeiras (poucas) existentes. Tomam mate.

               HERÓI
               Oi.

E vai entrando.

               JÚLIO
               Chegou o caminhante solitário.

Todos riem. Ele sorri para todos, meio sem jeito.

               MILTON
               (chato) E daí, lobo da estepe? Cumé que anda o
               astral?

               HERÓI
               Tudo bem.

Ele senta no chão.

               CLÁUDIA
               Quê que fez no fim de semana?

               HERÓI
               Fui pra praia.

               CLÁUDIA
               Sozinho?

               HERÓI
               (medroso) Com a Mariana.

               MILTON
               (chato) Com a Mariana!

               MARIA
               (carinhosa) A Mariana é aquela guria que tu me
               falou há tempo?

               HERÓI
               É.

               MARIA
               Vocês ainda tão transando?

               HERÓI
               Mais ou menos.

               MILTON
               História! Ele não larga o pé da guria. Tou
               sabendo, tou sabendo. Eu tenho os meus informantes
               lá pela PUC.

               JÚLIO
               Por que tu não traz ela pra gente conhecer?

               MILTON
               É, traz. Aliás, pelo que eu sei, ela é um
               tesãozinho. Uma menina toda gostosinha...

O Herói, sem saco, fala com Alexandre.

               HERÓI
               E daí, tchê, tudo bem?

               ALEXANDRE
               Tudo bem. Na mesma.

               MILTON
               (muito chato) Fugiu da raia, é?

               HERÓI
               (pra Maria) Cumé que tá o emprego?

               MARIA
               Uma bosta.

O Herói ri pela primeira vez.

               HERÓI
               Como sempre.

               MARIA
               Como sempre.

               CLÁUDIA
               (se intrometendo) Vocês sabem duma coisa? Eu andei
               lendo o Relatório Hite, e menos de dois por cento
               das mulheres têm orgasmo quando trepam.

               LÚCIA
               Não acredito.

               CLÁUDIA
               Tá lá. Depois te mostro.

               LÚCIA
               Isso vale lá nos Estados Unidos. Aqui é diferente.

               CLÁUDIA
               Não sei. Acho que tem muita gente que finge.

               MARIA
               (interressada) Também acho.

               LÚCIA
               Não sei, não sei.

               MILTON
               (se metendo, chato) Eu garanto que comigo não tem
               fingimento.

Risos educados para a piada infame. Cláudia olha para o Herói,
encarando.

CENA 26 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO

Cláudia e o Herói na cama, trepando. Ela está por cima e gosta
bastante. Gemidos um pouco exagerados. Ela se acaba. Ele olha,
fascinado, maravilhado, quase sem acreditar. Ela sai de cima e
desaba ao lado dele.

O Herói olha pra ela, ainda maravilhado consigo mesmo, terno,
inocente.

               HERÓI
               Tava bom?

               CLÁUDIA
               (se assoprando) Quê que tu acha?

               HERÓI
               Tava, né?

               CLÁUDIA
               (rindo) Tava ótimo.

               HERÓI
               (se explicando) É que eu nunca tinha visto uma
               guria se acabar assim. Porra... É um troço quase
               violento.

               CLÁUDIA
               Eu sou assim. Não pensa que eu tava fingindo. É
               que pouca gente consegue ter um orgasmo realmente
               bom.

               HERÓI
               Como assim?

               CLÁUDIA
               Não sei explicar direito. Mas esse foi dos fortes.
               Foi por dentro e por fora, entende?

               HERÓI
               Não.

               CLÁUDIA
               É difícil encontrar um pau que dê o contato exato,
               sem faltar nada e sem pisar o útero.

               HERÓI
               E o meu é bom?

               CLÁUDIA
               (sorrindo, carinhosa) Perfeito.

               HERÓI
               Eu sempre achei que fosse pequeno.

               CLÁUDIA
               Bobagem. É perfeito. Ele raspa direitinho nos
               lugares certos.

Ele sorri e a beija.

CENA 27 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS

Volta pro apartamento dos amigos. O Herói está olhando para
Cláudia. Ela também olha para ele, sacando o que ele tá pensando.
De repente, ela levanta e vai sentar ao lado do Milton. Dá um
beijo nele. O Herói se incomoda. Parte pra ofensiva.

               HERÓI
               E daí, Milton, tá firme no Hermann Hesse?

               MILTON
               Agora tô lendo o "Sidarta".

               MARIA
               É aquele dos hindu, né?

               MILTON
               É. (para todos) Alguém mais já leu?

               HERÓI
               Eu li há muito tempo, no colégio. Na época eu
               gostei. Acho que hoje ia detestar.

               MILTON
               (muito chato) É claro. Ele já leu (faz cara de
               importante) "Ulisses", de James Joyce.

               HERÓI
               Não tem nada a ver.

               MARIA
               (intercedendo, conciliadora) Tu já foi ver "Reds",
               Cláudia?

               CLÁUDIA
               (olhando fixo pro Herói) Tô cagando pro Joyce e
               pro Hermann Hesse. Eu queria é o Warren Beatty na
               minha cama.

Ela ri, todos riem, o Herói quieto.

CENA 28 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO

O Herói acorda na cama com Cláudia. É a manhã seguinte à grande
trepada. Ele está segurando o seio esquerdo de Cláudia. Levanta
devagar, depois de tirar a mão com cuidado.

CENA 29 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: COZINHA

O Herói vai até a cozinha e prepara café com leite e duas
torradas.

CENA 30 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO

Volta para o quarto com a bandeja cheia. Coloca tudo na cama.
Beija a orelha de Cláudia, que abre os olhos, muito sonolenta.

               CLÁUDIA
               (arrastado) Que horas são?

               HERÓI
               Dez e quinze.

               CLÁUDIA
               (quase dormindo) Muito cedo...

Cláudia vira pro outro lado e continua dormindo. Ele está
decepcionado, mas não insiste. Começa a comer rapidamente as
torradas.

CENA 31 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: SALA

O Herói dando uma olhada no apartamento. Nenhum livro. Discos de
Gilberto Gil, Caetano Veloso (todos), Fagner, A Cor do Som e
coisas assim. Bota os fones.

CENA 32-35 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO E SALA

Na cama, Cláudia dormindo.

Na sala, Herói esperando.

Cláudia continua dormindo. O tempo passa.

Herói olha pro relógio: meio dia.

CENA 36 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: SALA

Herói vai até o quarto e beija os cabelos de Cláudia, que
continua dormindo, nem aí.

Ele pega papel e lápis e escreve:

TIVE QUE IR PRO TRABALHO. POR FAVOR ME TELEFONA LOGO (41.37.12).
UM BEIJO.

Lê, relê, faz cara de quem não gostou. Amassa o bilhete e começa
outro:

NÃO TIVE CORAGEM DE TE ACORDAR. O NÚMERO DO MEU TRABALHO É
41.37.12. SE TU ME LIGAR, CERTAMENTE ME LIVRA DE UM SÍNDICO
MANÍACO-DEPRESSIVO. JÁ VIU CIDADÃO KANE?

Lê, gosta, coloca o bilhete em cima da cama. Olha pra Cláudia
mais uma vez. Sai do quarto.

CENA 37 - INT/DIA - IMOBILIÁRIA

Herói na imobiliária, trabalhando. Toca o telefone, ele corre pra
atender. Não é com ele.

Toca de novo. Ele vai atender, esperançoso, mas alguém inicia um
papo complicado, que ele logo corta e dá um jeito pra desligar.
Volta pra mesa.

Olha o relógio na parede: seis e dez. Ele faz cara de saco cheio.
Todo mundo começa a ir embora.

Ele olha pro telefone, concentrado. Toca de novo, ele vai
atender, mas alguém atende antes e fica assustado com a afobação
do Herói.

Ele espera, ansioso. Era engano. Volta pra mesa. O chefe tá
saindo.

               CHEFE
               Ué, não vai embora?

               HERÓI
               (sem jeito) Já tô indo, já vou.

               CHEFE
               Vamo duma vez, que a porta vai fechar.

               HERÓI
               Já vou.

Levanta e sai bem devagar. Ainda olha uma última vez pro
telefone, mudo, frio, odioso.

CENA 38 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS

Cláudia ainda tá rindo da piada do Warren Beatty. O Herói olha
pra ela, magoado, confuso. Cláudia ri, satisfeita, sem olhar pra
ele. Ele sorri, confuso.

FADE OUT

CENA 39 - EXT/ENTARDECER - RUA SIQUEIRA CAMPOS

O Herói está no fim da Siqueira Campos. Entardecer-anoitecer. A
cãmara mostra os edifícios, o astral do ambiente, o astral dele
próprio.

CENA 40 - EXT/ENTARDECER - FRENTE DO RIB'S

Mariana no Rib's, muito movimentado, cheio de carros e gatinhas.
Ela ri, enquanto toma milk-shake rodeada por amigos e amigas.

CENA 41 - EXT/ENTARDECER - PRAÇA JÚLIO DE CASTILHOS

A Praça Júlio de Castilhos está quase vazia. Exceção dum mendigo,
meio bêbado, sentado num banco, que olha o movimento com uma
expressão vazia. Ponto de vista do mendigo.

CENA 42 - EXT/ENTARDECER - RUA SIQUEIRA CAMPOS

O Herói continua no mesmo lugar, sentado, apreciando o pôr-do-
sol. A luz penetra direto na objetiva da câmara. Ele pisca os
olhos, ofuscado. Fecha os olhos. Abre de novo. Muita luz. Fecha
outra vez.

Quando abre, Mariana está olhando pra ele. Ele sorri. Ela não
está entendendo nada. O sol está bem detrás do rosto dela.

               HERÓI
               É bonito, isso aqui, né?

               MARIANA
               (sem entender) Eu acho triste. Não quero ficar
               aqui.

Ela movimenta o rosto. O sol bate direto na lente. Ele fica
novamente ofuscado. Fecha os olhos.

Quando abre, os amigos estão sentados com ele. Ele reage
naturalmente à presença deles, que estão contra o sol.

               JÚLIO
               E daí, tchê, quê que se faz?

               MILTON
               (se intrometendo, chato) Não tá vendo, Júlio? Como
               tu é burro! Ele tá pensando, cara. Ele tá curtindo
               o ambiente. Ele tá tentando encontrar uma maneira
               de resolver todos os problemas do mundo, sentado
               num muro da Siqueira Campos.

               LÚCIA
               Não enche o saco, Milton.

               MILTON
               Mas é isso, é bem isso. Não é, ô lobo da estepe?

               HERÓI
               (de saco cheio) Olha lá, que troço estranho.

E aponta prum casal que vem em direção ao grupo. Começa a tocar
"Gimme shelter", primeiro bem baixinho, mas vai aumentando à
medida que o casal se aproxima.

O cara é alto, louro, tipo estudante de teologia. Caminha todo
torto, com uma das pernas curvadas num ângulo ilógico. A cada
passo, é obrigado a fazer uma dança horrível como quadril. Apóia-
se numa bengala de metal.

Ela usa um vestido com bolinhas pretas e uma sandália vermelha
presa com pequenas tiras ao tornozelo. Tem a boca permanentemente
aberta, num sorriso debilóide. Anda devagar, pra poder acompanhar
o paraplégico.

Aproximam-se. Os dois se amam, estão completamente felizes. Fazem
carinho um no outro enquanto andam.

O Herói olha pros dois, surpreso, confuso.

               MILTON
               Mas o que é isso? Meu deus, que aparição.

E aponta, rindo, tirando sarro.

               LÚCIA
               Tu vê, cara, eles tão bem, tão numa boa.

"Gimme shelter" bem alto. O Herói continua olhando pro casal, já
bem perto.

               HERÓI
               Incrível, né? Eles tão felizes. Puta merda, tão
               felizes.

"Gimme shelter" a todo volume. O Herói acompanha o casal,
atônito.

               MILTON
               (rindo, gritando) Ô vaca, vê se fecha essa boca,
               que a baba tá respingando aqui. Sai daí ô manco,
               perneta, paralítico. (rindo muito) No mínimo,
               ainda é poeta...

               CLÁUDIA
               (rindo) O que é a sandalinha...

O Herói continua com a mesma expressão, sem saber o que fazer. O
casal passa na frente dele.

               CLÁUDIA
               Que belo par. Lindo!

Desaparecem os amigos. O Herói tá sozinho no muro. Acompanha o
casal, que agora caminha de costas pra ele. O casal dobra a
esquina e desaparece de vista.

O Herói olha pro fim da rua, tenso. Tudo vazio.

Música a mil. Devagar, o Herói levanta e caminha até a esquina.

Quando consegue olhar pro lado, vê os dois abraçados, quase
beijando. O Herói está completamente tenso. Os dois se beijam,
ternamente, completamente felizes.

O Herói abre a boca, respirando fundo, e assiste o beijo. O sol
está bem atrás da cabeça dele.

FADE OUT

CENA 43 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA E COZINHA

O Herói chega em casa, ainda chocado com a cena da Siqueira
Campos. Está chovendo. Ele abre a janela e a sala fica mais
clara.

Vai até a cozinha e toma um gole dágua na garrafa.

De volta à sala, dirige-se ao amplificador. Liga. Vai até a
estante dos discos. Olha as capas de vários, mas não se decide
por nenhum.

Senta no colchão da sala. Olha a estante de livros. Pega um
deles, ilustrado (pode ser um de ficção científica). Folheia,
pouco interessado. Enche o saco.

Levanta e desenha o bolha na janela embaçada.

Volta a sentar. Fecha os olhos.

CENA 44 - EXT/DIA - DIVERSOS LOCAIS

Imagens do inverno na cidade, semelhantes às dos créditos. Nuvens
correndo. Frio. Gente na parada de ônibus, com o ar quente da
respiração fazendo "fumaça". Cachorro dormindo.

CENA 45 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói continua no seu apartamento, sentado no colchão da sala.
Abre os olhos. Fecha outra vez.

CENA 46 - INT/DIA - IMOBILIÁRIA

O Herói na imobiliária, trabalhando mecanicamente. De repente,
pára e olha em volta. O som ambiente some.

A câmara faz uma panorâmica pelos rostos dos colegas de trabalho
(mais velhos, engravatados, medíocres, com um bom saldo no
banco).

Volta pro Herói. Volta o ruído da imobiliária.

CENA 47 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói outra vez no seu apartamento, parado, pensando.

Levanta, vai até a máquina de escrever e senta. Bota o papel.
Olha a folha em branco.

FADE OUT

CENA 48 - EXT/DIA - CASA DE MARIANA: FRENTE

O Herói e Mariana conversam, em frente à casa dela. Ela está
comendo pêssegos em conserva.

               MARIANA
               Quer um pouquinho?

               HERÓI
               Não.

Ela continua comendo, satisfeita.

               HERÓI
               Ontem eu lembrei daquele filme que a gente viu
               outro dia na tevê. "Cidade das ilusões", lembra?

               MARIANA
               Não.

               HERÓI
               É aquele do cara que era boxeador, que tinha uma
               mulher bêbada que andava com um negro. Ele tinha
               um amigo bem guri.

               MARIANA
               Lembro.

               HERÓI
               Lembra o final?

               MARIANA
               (fazendo um esforço mental) Acho que não.

E continua comendo.

               HERÓI
               É o cara num bar, no meio dum monte de velhos. De
               repente, ele se dá conta que vai ficar do mesmo
               jeito. Não tem saída. Pra ninguém. Nem pra ele,
               nem pro guri.

               MARIANA
               Baixo-astral...

               HERÓI
               É, eu lembrei ontem, na imobiliária.

               MARIANA
               (oferecendo o potinho) Não quer mesmo um
               pouquinho?

               HERÓI
               Não, Mariana, tu sabe que eu não gosto de pêssego.

               MARIANA
               Tá legal. (come) Vamo no cinema, hoje de noite?

               HERÓI
               Eu combinei de ir na casa da Lúcia.

               MARIANA
               Fazer o quê?

               HERÓI
               Sei lá. Conversar. O pessoal vai tá lá.

               MARIANA
               Tu cansa de dizer que os papos são chatos...

               HERÓI
               É... quer dizer... não é. Tem umas pessoas legais,
               outras chatas.

               MARIANA
               Cumé o nome daquele cara que tu não gosta? (faz um
               esforço) Milton... É isso?

               HERÓI
               (rindo) É. O Milton é dose.

               MARIANA
               O quê que ele faz?

               HERÓI
               Agora tá planejando ir pra Moçambique.

               MARIANA
               Fazer o quê?

               HERÓI
               Não sei. Tem um outro amigo meu, o Maurício, que
               foi pra Israel. Deve tá colhendo laranja em algum
               kibutz.

               MARIANA
               (surpresa) Colhendo laranja?

               HERÓI
               (divertido) É. Lsranja. (pra ela, sério) O que
               será que se colhe em Moçambique?

               MARIANA
               (nervosa com o teste) Sei lá... (oha pra tigelinha
               dos pêssegos) Sei lá. (tomando coragem) Pêssegos?

CENA 49 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE LÚCIA

O Herói no apartamento de Lúcia, com todos os amigos. Sentado no
chão, em cima de uma almofada. Música desde o início da cena.

Lúcia sai dum quarto e chega na sala. Senta bem na frente do
Herói e o encara.

À medida que se desenvolve o "stream of consciousness" do Herói,
a câmara descreve os movimentos como se fosse os seus olhos.

               HERÓI (VS)
               Sentou na minha frente de propósito / quer brincar
               comigo / mas eu faço que não tô interessado e olho
               pros posters na parede / mas que saco / como são
               horríveis / quem sabe só virar um pouquinho a
               cabeça? / mas aqui tá ela de novo / puta merda,
               coninua me olhando / parece que ela tá a fim de
               conversar / quem sabe ela não tá brincando? /
               Lúcia, eu nunca sei se é sério / eu gosto de ti,
               sabe? / agora ela desviou os olhos / vai voltar
               daqui a pouco, pra conferir se eu ainda tô olhando
               pra ela / será que ela sabe que eu tenho vontade
               de conhecer ela? / ela tá voltando / voltou / ela
               tá rindo pra mim / eu acho que ela me acha chato /
               o Júlio disse / a Maria acha que não / agora é a
               minha vez de desviar / pequeno passeio pela sala /
               Lúcia, tu vai estar quando eu voltar? / devagar
               agora / Lúcia...

Lúcia levanta, rápido, e vai até onde está Milton. Corta música,
entra ruído ambiente.

Lúcia cochicha alguma coisa no ouvido de Milton, que sorri, bota
a mão no bolso do casaco e tira um cigarro. Acende.

Lúcia dá uma tragada funda e olha pro Herói, divertida. Close no
Herói, confuso.

CENA 50 - INT/DIA - CASA DE MARIANA: QUARTO

O Herói e Mariana no quarto dela. Cada um lê a sua revista: ela,
Cláudia; ele, ???.

               MARIANA
               (levantando os olhos) Amanhã é aniversário da
               Cristina. Vai comigo?

Ele finge que continua lendo.

               HERÓI
               Hã?

               MARIANA
               É a minha prima mais chegada. Vai fazer dezesseis
               anos.

Ele abandona a revista e estende as pernas.

               HERÓI
               Mariana, eu já te expliquei antes. Não gosto
               daqueles caras, não me sinto bem.

               MARIANA
               Por quê?

               HERÓI
               Não gosto das músicas... (pensa um pouco) E também
               não gosto da tua prima. E tu sabe que ela não
               gosta de mim.

               MARIANA
               Não.

               HERÓI
               Tu sabe que não gosta. (pausa) Me dá uma boa razão
               pra eu ir que eu vou.

               MARIANA
               Me acompanhar.

               HERÓI
               (fechando os olhos) A gente podia ir no cinema...

               MARIANA
               (emburrada) Eu vou na festa.

               HERÓI
               (abrindo os olhos) Não suporto essas festas. Não
               lembra da última? Fiquei num canto o tempo todo,
               me embebedando com cuba-libre.

Mariana faz cara de quem não se lembra.

               HERÓI
               E tem mais. Eu acho que tu também não gosta. Só
               vai pra satisfazer a família, a vaidade, sei lá o
               quê!

Mariana está com raiva, mas ainda não entendeu o alcance da
última frase do Herói. Pega a revista e folheia duas vezes, com
gestos secos e concentrados. Fica um tempo fingindo que lê.

Depois, baixa a revista, encara o Herói fixamente e começa,
mastigando as palavras.

               MARIANA
               Vaidosa? Eu, vaidosa?

O Herói sente o que vem por aí. Está arrependido, mas agora não
adianta mais.

               MARIANA
               Vaidosa? Que coragem a tua, hein? Eu não uso
               exatamente três calças e quatro camisetas minhas
               porque tu não gosta. Eu parei de usar salto alto
               porque o senhor diz que é bagaceiro. Não uso
               pintura porque o senhor não gosta. Não prendo o
               cabelo. Não corro mais no Parcão. Não posso mais
               andar de barco com os meus amigos porque tu não
               sabe nadar. Vaidosa? Vaidosa?

Mariana joga a revista longe. O Herói admira, entre maravilhado e
medroso, a explosão de Mariana.

Mariana levanta e vai até onde está o Herói. Senta na frente
dele. Coloca a mão esquerda no joelho direito do Herói. As unhas
são pequenas, sem pintura. Ela tem uma tristeza de mártir nos
olhos.

               MARIANA
               Não pinto mais as unhas.

Mariana olha pra ele, com pena de si mesma.

Ele não agüenta. Começa a beijá-la em todas as partes do corpo.
Mariana resiste apenas no começo. Ele levanta a blusa dela pra
beijar o umbigo.

               MARIANA
               (séria) Então vamos no aniversário juntos, né?

               HERÓI
               (sem pensar) É. É.

CENA 51 - EXT/NOITE - FRENTE DO CINEMA VITÓRIA

O Herói na fila do cinema Vitória. Em cartaz, um típico filme do
Vitória. Ele tá encucado, sem tesão de ir ao cinema.

CENA 52 - INT/NOITE - BILHETERIA DO CINEMA

O Herói chega na bilheteria, se agacha para perguntar alguma
coisa. Fica surpreso. Os olhos que aparecem são os de Mariana.

               MARIANA
               Meia ou inteira?

               HERÓI
               Cumé que tá a festa?

               MARIANA
               Meia boca. Mas tem uns caras legais!

               HERÓI
               O quê?

               MARIANA
               Um amigo da minha prima. Ele faz Medicina. (sorri)
               Legal, ele.

               HERÓI
               (confuso, arrependido) Meia.

CENA 53 - INT/NOITE - SALA DE ESPERA DO CINEMA

O Herói entra na sala de espera e senta. Olha pro outro lado.

Mariana e um quintanista de Medicina estão sentados no sofá,
alegres, bem arrumados, com astral de festa. Cada um segura um
copo. Ela ri bastante. Ele, o quintanista, parece cobiçar aquela
menina tão bonita que acaba de encontrar. Ela ri muito e se apóia
no ombro dele.

O Herói está com raiva. Fecha os olhos, com força. Abre-os e
volta a olhar pro mesmo lado.

O sofá em frente agora abriga um outro casal.

O Herói levanta, decidido, e desce a escada em direção à sala de
projeção do cinema. Antes de entrar, pára um pouco, indeciso, e
acaba olhando pra trás.

No sofá, Mariana e o quintanista olham-se ternamente.

Com raiva, triste, angustiado, o Herói entra na escuridão.

CENA 54 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói na sala do seu apê, sentado, pensando. Pega uma folha de
papel e caneta. A câmara mostra, em close, a mão dele iniciando
uma carta:

ISABEL. AQUI TÁ MUITO FRIO. SEMPRE QUE EU SINTO FRIO, LEMBRO DE
TI E DE MONTEVIDÉU.

Pára de escrever. Levanta a cabeça. Pensa. Entra narração.

               HERÓI (VS)
               Isabel. Aqui tá frio. Sempre que eu sinto
               angústia, lembro de ti e de Montevidéu.

CENA 55 - EXT/ENTARDECER - RODOVIÁRIA DE MONTEVIDÉU

(Entra música, junto com a primeira imagem de Montevidéu.)

Rodoviária. O Herói descendo do ônibus, encontrando Isabel.
Abraçam-se bem forte.

Saem caminhando abraçados, conversando.

CENA 56 - EXT/ENTARDECER - RUAS DE MONTEVIDÉU

O Herói e Isabel na rua, caminhando abraçados, rumo ao
apartamento dela.

               HERÓI (VS)
               Ano passado, tava muito frio quando eu cheguei.
               Seis e meia da tarde, mais ou menos. Tava quase
               escuro. Eu tava preocupado, não via Isabel há
               muito tempo. E todo mundo mente nas cartas.

Os dois, ainda caminhando.

               HERÓI (VS)
               Mas ela tava lá, me esperando, como disse que
               faria.

CENA 57 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL

Chegam no apartamento dela. Isabel prepara duas xícaras bem
grandes de chocolate quente. Ela e o Herói bebem, sorrindo e
conversando.

               HERÓI (VS)
               Isabel, sempre me esperando, ela e a cidade uma
               coisa só, que protege, cura. Como eu aprendi.

CENAS 58-62 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU

Herói caminhando pelas ruas do centro.

Compra um jornal.

Pergunta alguma coisa prum castelhano de chapéu.

Olha vitrines.

Senta numa praça, com a cabeça leve.

               HERÓI (VS)
               É ótimo andar numa cidade estranha. Se eu quero,
               não falo com ninguém, finjo que a língua é
               incompreensível. Ninguém me conhece, eu só conheço
               Isabel.

CENA 63 - EXT/DIA - PRAIA DE MONTEVIDÉU

O Herói caminha pela avenida que margeia a praia. Anda devagar,
com as mãos nos bolsos. De vez em quando olha pra cima. Nuvens.

Entra na areia, vai até a beira do mar, olha para a cidade e para
as gaivotas. Volta para a avenida.

               HERÓI (VS)
               Montevidéu é parecida com Porto Alegre, talvez um
               pouco mais somria. Isabel é a síntese de tudo. Ela
               é parecida com as nuvens que aparecem de repente,
               com as gaivotas que ficam voando pela praia.

CENA 64 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL

O Herói e Isabel na cama, nus. Ela está deitada bem em cima dele,
com os cotovelos apoiados perto da cabeça dele. Conversam
serenamente. Ela sorri.

               HERÓI (VS)
               Só Isabel sabe o que eu sou de verdade. Não
               escondo nada. E nem poderia. Ela me ensinou a ir
               mais devagar, trocar de posição sem me precipitar,
               a descobrir pequenas coisas no corpo dela.

CENA 65 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU

O Herói na rua outra vez. Entrando na Sala Millington Drake.

Depois, entrando em dois outros cinemas.

               HERÓI (VS)
               Ano passado, vimos "Annie Hall" juntos. Mas eu
               gosto de ir ao cinema sozinho, dois, três filmes
               seguidos, até os olhos se cansarem e a cabeça
               doer. A dor do cinema faz bem, alivia outra dor.

CENA 66 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL

(Entra "Angie", dos Stones, seguindo até o final da cena.)

O Herói e Isabel dançando, bem juntos, mal se movendo, na sala
escura do apartamento dela. Ele apóia a cabeça no ombro dela e
fecha os olhos.

               HERÓI (VS)
               Isabel. Vontade de te ver logo. Dançar contigo com
               as luzes apagadas.

CENA 67 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU

O Herói e Isabel caminhando lado a lado, rumo à rodoviária, ele
com a sacola no ombro.

               HERÓI (VS)
               É duro ir embora.

CENA 68 - EXT/DIA - RODOVIÁRIA DE MONTEVIDÉU

O Herói e Isabel chegam na rodoviária. O ônibus já tá encostado.
Ele entrega a bagagem, dá a passagem e recebe o beijo de Isabel.
Entra no ônibus.

               HERÓI (VS)
               Ela sempre me leva até a rodoviária e me dá um
               beijo antes de eu subir no ônibus.

Ele aparece em uma das janelas do ônibus. Observa Isabel
encostada numa coluna, sorrindo pra ele. Ele sorri, triste, mas
sem angústia. O ônibus sai.

               HERÓI (VS)
               E então é só esperar o ônibus sair. Isabel fica,
               sempre fica. Mas eu sei onde ela tá.

Ponto de vista dele, vendo Isabel ficar pra trás. O ônibus vai
embora, Isabel desaparece.

               HERÓI (VS)
               Ela tá me esperando, sempre.

O ônibus desaparece na cerração.

CENA 69 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói no apê, olhando pro papel, onde ainda estão escritas as
mesmas palavras de antes. Ele coloca o papel na mesinha e
levanta.

Vai até a janela, olha para fora, onde a chuva cai devagar e as
árvores estão molhadas. Close no papel.

"Angie" desaparece, bem devagar.

FADE OUT

CENA 70 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO

Sábado à tarde, apartamento do Herói. Ele e Mariana estão no
quarto, não fazendo nada. Encostada numa almofada, Mariana olha
para cima do armário e percebe a TV, meio escondida entre duas
caixas de papelão.

               MARIANA
               Não sabia que tinha tevê aqui.

Mariana levanta-se em direção à TV. Mas o Herói levanta-se também
echega antes ao armário.

               HERÓI
               Não liga.

               MARIANA
               Se tem, é pra ligar.

               HERÓI
               Ver o quê, às quatro e meia da tarde?

               MARIANA
               (obviamente, sorrindo) Ver tevê.

               HERÓI
               (carregando-a de volta pra cama) Não acha que a
               gente pode fazer coisas bem melhores do que ver
               desenhos animados japoneses?

               MARIANA
               Se tu sabe o que tá passando, por que perguntou o
               que eu queria ver?

               HERÓI
               (desconcertado) Eu? Eu nem sei se tá mesmo pass...

               MARIANA
               (cortando) Então não tá passando nenhum desenho
               animado japonês? (inocente) Pena, eu gosto da
               carinha deles, sempre tão limpinhos e arrumados.

O Herói pára um pouco pra pensar. Tenta descobrir se ela tá
falando sério ou é ironia. Não consegue. Tenta dar outro rumo pra
conversa.

               HERÓI
               Não acha que é uma perda de tempo ver esses
               desenhos mal-feitos se nós temos milhares de
               coisas melhores pra fazer?

               MARIANA
               (duvidando) O quê, por exemplo?

               HERÓI
               (depois de hesitar um pouco) Conversar, por
               exemplo.

               MARIANA
               Legal.

Mariana pensa um pouco e aponta pra TV.

               MARIANA
               Por que a televisão, se eu nunca te vejo
               assistindo?

               HERÓI
               Porque eu só vejo uns filmes, quase sempre tarde
               da noite.

Ela faz cara de quem não entendeu. Ele tenta explicar.

               HERÓI
               Eu só ligo quando sei que vai passar um filme bom.

               MARIANA
               (curiosa, cética) E como é que se descobre quando
               vai passar um filme bom?

Ele simplesmente aponta uma pilha de jornais no chão e sorri. Ela
olha pros jornais, pensa um pouco e faz cara de saco-cheio, como
alguém que espera algo que não quer ouvir.

               MARIANA
               Por favor, não vem com o teu papo precisa-ler-
               jornal-comprar-livros-e-i-mais-ao-cinema.

Ele sorri e olha pra Mariana, admirado com a reação. Pensa um
pouco e tem uma idéia.

               HERÓI
               Quem sabe a gente vai ao cinema?

               MARIANA
               Agora? De tarde?

               HERÓI
               Quê que tem?

               MARIANA
               Sei lá... De tarde, parece coisa de quem não tem
               nada pra fazer.

               HERÓI
               (rindo) O que não é, nem de longe, o nosso caso.

               MARIANA
               (desconcertada) É.

               HERÓI
               Vâmo?

               MARIANA
               (levantando, indecisa) Vâmo.

CENA 71 - EXT/DIA - RUA DA CASA DA LÚCIA

Proximidades da cassa da Lúcia. Ela e o Herói conversam, enquanto
caminham e tomam sol.

               LÚCIA
               Tu já viu aquele filme francês que tá passando no
               Coral?

               HERÓI
               "A Filha da minha mulher"?

               LÚCIA
               É.

               HERÓI
               Fui ver ontem, com a Mariana.

               LÚCIA
               E daí?

               HERÓI
               Eu gostei.

               LÚCIA
               E a Mariana?

               HERÓI
               Não sei, eu nunca tenho certeza se ela gosta dos
               filmes.

               LÚCIA
               Por quê?

               HERÓI
               Ela diz que gosta, mas... Sei lá. Se eu gosto, ela
               sempre gosta.

               LÚCIA
               (sorrindo) Como é que anda a transa de vocês?

               HERÓI
               (sem jeito) Tá legal, tudo legal.

               LÚCIA
               Ela faz... psicologia, né?

               HERÓI
               É.

               LÚCIA
               Eu vi ela uma vez, meio de longa, lá na Reitoria.

               HERÓI
               É?

               LÚCIA
               Era um show... sei lá de quem. Ela tava contigo,
               bem na frente.

               HERÓI
               Ela gosta de sentar bem na frente.

               LÚCIA
               (arriscando) Eu tinha vontade de conhecer ela
               melhor...

               HERÓI
               (assustado) A Mariana?

               LÚCIA
               É. Sei lá, de vez em quando eu tenho vontade de...
               sacar umas coisas.

               HERÓI
               É, a gente podia sair junto, ou se encontrar um
               dia de noite.

Ele não tá acreditando no papo. Já teve vários parecidos e nunca
aconteceu nada.

               MARIANA
               Tu vai encontrar ela hoje de noite?

               HERÓI
               Vou.

               LÚCIA
               Vão fazer alguma coisa?

               HERÓI
               Não tem nada planejado.

               LÚCIA
               Legal. A gente podia fazer o seguinte: se
               encontrar aqui em casa, tomar um vinho.

               HERÓI
               (sem jeito, escorragadio) É. Eu acho que é legal.

               LÚCIA
               (arriscando) Eu podia convidar o resto do
               pessoal...

               HERÓI
               (com medo) Legal. O Júlio, o Alexandre, a Maria, a
               Cláudia...

Silêncio. Lúcia olha pra ele.

               HERÓI
               O Milton, acho melhor não.

               LÚCIA
               (condescendente) Tudo bem.

CENA 72 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO

O Herói e Mariana estão outra vez no quarto dele. Beijam-se
sofregamente. A mão dele vai baixando, baixando, aperta a
cintura, depois a perna e acaba no meio das pernas. Quando ela
sente, dá um pulo.

               MARIANA
               (séria) Faz isso de novo, e tu nunca mais vai me
               ver.

               HERÓI
               (chateado) Desculpe.

               MARIANA
               Eu já te disse que eu não gosto.

Ele vai um pouco pro lado, olha pra Mariana e pensa um pouco.
Depois, decide enfrentar a parada e tentar alguma coisa.

               HERÓI
               Mariana, tu tem vinte e um anos, é maior de idade,
               etc. Eu tenho vinte e quatro. Nós tâmo namorando
               há seis meses. Eu gosto de ti, gosto pra burro, tu
               sabe disso. (toma fôlego) Tô meio cansado dos
               chupões e não entendo a tua tabela de
               permissividade. Qual é a diferença de mão nos
               peitos e mão no meio das pernas?

               MARIANA
               (confusa) Quê?

               HERÓI
               (cortando) Pera aí. Eu vou direto pro ponto: tu
               quer trepar comigo?

Ela não responde, olha pro chão.

               MARIANA
               Tem medo?

               MARIANA
               Tu sabe que eu nunca trepei.

               HERÓI
               Eu sei. Tu não quer... comigo?

               MARIANA
               Eu quero.

               HERÓI
               (animado) E eu também!

               MARIANA
               (assustada) Mas não agora.

               HERÓI
               Por quê?

               MARIANA
               Por uma série de razões. Tenta entender.

Ela está nervosa, tensa, insegura. Ele sente a barra, chega mais
perto e a abraça.

               HERÓI
               Tudo bem.

Ele passa a mão nos cabelos dela.

               HERÓI
               Eu te amo. (muda de assunto) Tu lembra da Lúcia?

               MARIANA
               Aquela amiga tua?

               HERÓI
               É. Eu falei com ela hoje de manhã. Ela me convidou
               pra ir lá na casa dela hoje de noite, tomar um
               vinho com o pessoal.

               MARIANA
               Legal.

               HERÓI
               Tu não tá a fim de ir também?

               MARIANA
               (admirada) Eu?

               HERÓI
               É... Sei lá. Acho que vai tá legal.

Mariana pensa um pouco, avaliando o convite.

               MARIANA
               É, pode ser. Tu passa lá em casa pra me pegar?

               HERÓI
               (inseguro) Passo sim... Pelas nove, tá bom?

               MARIANA
               Tá.

Silêncio. Os dois se olham. Devagar, ele levanta a mão e começa a
passar no rosto dela, com carinho.

Vai chegando mais perto, e acaba beijando, bem suave, três vezes.
Encosta a boca. Beijam-se. Ele segura a nuca dela. Continua o
beijo.

Devagar, a mão dele vai baixando, passa pelas costas e se
aproxima da bunda. Na cintura, pára um pouco e faz carinho.
Depois, continua baixando. Chega na bunda. Pára. Está indeciso.

Faz que vai apertar com força, mas desiste. Coloca a mão
espalmada e faz um pouco de carinho. Afasta a mão, fecha com
força.

Volta, medroso, para o mesmo lugar de antes. Aperta, quase sem
força. Desiste.

CENA 73 - EXT/ENTARDECER - TRAILER

O Herói está comendo um cheese-burger num trailer. Olha o
relógio, seis e meia. Sai.

CENA 74 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói chega no apê e bota um disco. Senta no colchão e pega o
Correio do Povo de domingo. Começa a ler.

FUSÃO

CENA 75 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO

Herói sentado na patente, ainda com o Correio.

FUSÃO

CENA 76 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

Ele no colchão, lendo um livro. Pára um pouco, olha pro relógio:
oito horas. Close no rosto dele. Está com medo.

CENA 77 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA

O Herói e Mariana chegando na casa de Lúcia. Lúcia abre a porta,
dá dois beijos em Mariana. Entram. O Herói olha em volta.

Num canto da sala, com um sorriso irônico na cara, Milton observa
a cena.

CENA 78 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói ainda na sala do seu apê, sentado no colchão, ainda com o
mesmo livro na mão. Ele estende as pernas, coça atrás da orelha.

CENA 79 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA

De novo na casa de Lúcia. Milton levanta-se e vai sentar ao lado
de Mariana. Ela sorri quando ele chega.

               MILTON
               Eu gosto do teu nome, Mariana.

O Herói observa a cena, angustiado. Mariana sorri.

               MILTON
               Tu deve valer por duas, né? Maria, mais Ana.

Milton ri, Mariana também.

               MILTON
               Sabe, eu tava há horas a fim de te conhecer.

               MARIANA
               (orgulhosa, levemente sensual) É?

               MILTON
               É. Quê que tu estuda?

               MARIANA
               Psicologia.

               MILTON
               Que barato. Outro dia eu ainda tava lendo um
               livro... é dum cara aí. Ele diz que a psicologia e
               a psiquiatria, essas coisas aí, tão cavando um
               túnel numa montanha. No outro lado tá o marxismo,
               que também tá cavando um túnel. Só que as duas
               equipes nunca se encontram.

               MARIANA
               (rindo, mas sem entender nada) Montanha? Que
               montanha?

               MILTON
               A montanha é tudo isso aí.

               MARIANA
               (como quem entendeu) Ah, tá.

               MILTON
               (sorrindo) E se fosse na China, hein?

               MARIANA
               (confusa, mas aberta) Quê que tem?

               MILTON
               Na China, eles podiam botar uns milhares de
               chineses cavando de cada lado. Se eles se
               encontrassem, fariam um túnel. Se eles não se
               encontraseem, fariam dois túneis.

Milton ri, Mariana também. Milton fica mais entusiasmado e ri
mais alto. Mariana vai atrás. O Herói observa tudo, mudo,
angustiado.

CENA 80 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói no seu apê, ainda na mesma posição. Olha pro lado.
Mariana tá ali com ele.

               MARIANA
               Eu achei o Milton muito legal. Não vi todas essas
               coisas que tu me falou dele. Sei lá, ele é bem
               divertido.

CENA 81 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói na mesma posição da cena anterior, mas agora sozinho. Ele
olha pro relógio: nove horas. Permanece sentado, olhando pra
lugar nenhum.

De repente, levanta, bota o casaco, vai até a porta. Segura o
trinco. Pára. Volta, senta outra vez no colchão. Pensa.

CENA 82 - INT/NOITE - CASA DE MARIANA: QUARTO

Mariana deitada de bruços na cama, vendo TV, novela das 8. Quando
anunciam as "cenas do próximo capítulo", ela levanta e vai até o
telefone. Disca.

               MARIANA
               Betina? Oi, é a Mariana. (pausa) Quê que tu vai
               fazer hoje de noite? (pausa) É que eu tinha um
               troço... mas nem sei mais o que é. (pausa) O Rui?
               Tá legal, eu passo aí daqui a pouco.

Desliga o telefone.

CENA 83 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói ainda no colchão. Olha pro relógio: dez horas.

Pega um livro. Tenta ler, mas não consegue. Está angustiado, mas
sonolento. Fecha um pouco os olhos.

CENA 84 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA

Na casa de Lúcia, os amigos estão reunidos, conversando. De
repente, Lúcia parece lembrar alguma coisa.

               LÚCIA
               Se não me engano, tá faltando alguém.

               JÚLIO
               Vamo até o Alaska tomar um chope?

               LÚCIA
               (indiferente) Vamo, pessoal?

Todos levantam.

CENA 85 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA

O Herói no colchão da sala, quase dormindo. Ainda consegue olhar
pro relógio antes de dormir: onze e meia. Adormece.

CENA 86 - EXT/NOITE - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI

Na frente do edifício, surge Lúcia. ela vai até o porteiro
eletrônico. Aperta e fica esperando.

Logo depois, chega Mariana. Vai até o porteiro e também bate.
Lúcia percebeu que Mariana tocou no apartamento do Herói.

               LÚCIA
               Oi. Tu que é a Mariana?

               MARIANA
               É.

               LÚCIA
               Vocês não tinham ficado de ir lá em casa hoje de
               noite?

               MARIANA
               Tu é a Lúcia? É, mas ele não apareceu lá em casa
               pra me pegar, não sei o que aconteceu, tô
               preocupada.

               LÚCIA
               Lá em casa ele também não foi.

               MARIANA
               Será que ele tá em casa? Aperta de novo.

Lúcia aperta o botão com força.

CENA 87 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: COZINHA E SALA

Detalhe do porteiro eletrônico do apê, mudo. A câmara desloca-se,
devagar, até o Herói, que continua deitado no colchão. Ele parece
sentir frio, enrosca-se mais, até atingir uma posição quase
fetal.

CENA 88 - EXT/NOITE - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI

A frente do edifício, com o porteiro eletrônico bem no meio do
quadro. Completamente deserta.

A câmara faz uma panorâmica e mostra a rua, escura, com carros
passando de vez em quando.

FADE OUT

CENA 89 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA

É de manhã. O Herói abre os olhos. Olha pro relógio: oito e meia.
Levanta devagar e olha em volta, tentando descobrir por que não
dormiu na sua cama. Olha pra fora.

Tá chovendo. Nuvens passam devagar. As árvores, nuas, estão
completamente molhdas, e os galhos retorcidos deixam a água
escorrer devagar. A parede do edifício parece manchada com a
umidade. A grama por perto tá toda queimada.

O Herói bota um disco. É "Echoes". Aumenta o volume. Olha pra
cima, desafiador.

A chuva aumenta.

Ele senta no chão da sala e toca os pés com as pontas dos dedos
das mãos. Baixa a cabeça. Fica um tempo assim.

Depois, levanta a cabeça, bem rápido, e a sacode, espantando os
demônios. Levanta, vai em direção ao banheiro.

CENA 90 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO

O Herói no chuveiro, tomando um banho quente. O vapor toma conta
do banheiro.

CENA 91 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO

O Herói veste-se: abrigo de nylon com capuz.

CENA 92 - EXT/DIA - RUA

O Herói caminha pela rua, com a cabeça baixa. Continua chovendo.
Ele olha pro lado. Mariana tá caminhando com ele. Ele sorri e
olha pra frente.

A música do Pink Floyd continua.

CENA 93 - EXT/DIA - BANCA DE REVISTAS

O Herói chega na banca de revistas, sozinho, e compra o jornal.
Bota debaixo do braço e começa a voltar, bem devagar.

CENA 94 - EXT/DIA - RUA

A chuva aumenta ainda mais. O Herói levanta a cabeça e deixa a
chuva molhar bem o seu rosto. Continua caminhando.

Já está nas proximidades do edifício. Numa esquina, pára e olha
pro lado. Mariana já vai atravessar. Ele a segura.

Corta a música.

Mariana olha pra ele.

               HERÓI
               Pra que a pressa? Olha bem pros dois lados,
               Mariana. Não quero que tu morra atropelada. Tem um
               monte de coisa que a gente ainda tem que fazer.

A câmara agora pega os dois pelas costas. Eles atravessam a rua.

CENA 95 - EXT/DIA - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI

Entra "O Inverno", de Vivaldi.

O Herói e Mariana caminham juntos em direção ao edifício. O Herói
abraça Mariana pelos ombros. Os dois vão diminuindo no quadro,
sempre rumo ao edifício. Entram.

A câmara fica um pouco mostrando o edifício e a chuva.

CRÉDITOS FINAIS

FIM

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(c) Carlos Gerbase, 1982.
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

01/01/1983

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