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INVERNO
	        Roteiro de Carlos Gerbase,
	        julho de 1982
	        baseado no conto
	        "O Argonauta"
	        de Carlos Gerbase
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CENA 1 - EXT/DIA - DIVERSOS LOCAIS
	Imagens do inverno. Amanhecer nebuloso, cerração, árvores sem
	folhas, frio, chuva, gente com montes de roupa, tudo em tons
	cinza, azul, marrom. Locações: cais do porto, muro da Mauá,
	centro, proximidades do apê.
	Música: Concerto "O Inverno", de Vivaldi, 1§ movimento. A
	introdução fica para as imagens iniciais; o primeiro acorde mais
	forte deve coincidir com o aparecimento do Herói.
CENA 2 - EXT/DIA - RUA DA PRAIA
	Surge o Herói, caminhando pela rua da Praia. Pára e olha a
	vitrine da Falk's; não gosta. Pára na vitrine da Kosmos, entra e
	pede um livro. A vendedora diz que ainda não chegou.
	O Herói vai para a Galeria Chaves e vê a vitrine da King's. Volta
	a sair. A chuva está mais forte. Ele anda bem pelo meio da chuva
	e da rua, não se importando com a roupa molhada, retornando para
	a praça Dom Feliciano.
	Na esquina da Dr Flores, o Herói vê uma menina descendo a rua.
	Ela é muito bonita. Ele olha interessado para ela. Ela cmainha
	olhando para o chão. Quando se cruzam, ela ergue os olhos
	rapidamente, segue em frente. Ele quer olhar para trás mas não
	consegue. Segue em frente, confuso.
	A menina desaparece no movimento. O Herói segue até a banca da
	Sr. dos Passos, compra uma revista. Pega um ônibus, que sai e
	entra na cerração.
CENA 3 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO E SALA
	Manhã no apê. O Herói está no banho, ouvindo "The Dark side of
	the moon". Pequenos flashes do apê, junto com a música, definindo
	ambiente e astral. O relógio mostra que é de manhã.
	Três sons combinados: música do disco, barulho do chuveiro e ele
	cantarolando baixinho a música, com razoável certeza da letra.
Toca a campainha.
	Herói percebe que a campainha tocou e sai do chuveiro, puto da
	cara. Bota um roupão e vai abrir. É a vizinha do lado.
	               VIZINHA
	               Será que dá pra baixar um pouquinho a música? É
	               que eu tenho criança pequena. O senhor entende,
	               né?
	               HERÓI
	               (sem saco) Tudo bem.
	O Herói vai até o ampli e baixa o volume. Quase imediatamente,
	começa a ouvir uma música do Odair José, baixinho, mas
	perfeitamente identificável, vinda do apartamento de cima.
	Ele olha para cima, indignado. Fica puto. Vai enxugar o cabelo.
	De repente, faz uma expressão satânica.
CENA 4 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA
	Começa a tocar "Brown sugar", dos Rolling Stones, a todo volume.
	Herói aparece na sala, colocando as caixas de som viradas para
	cima, de onde sai, a todo volume, a música dos Stones. Ele ri,
	dança e faz sinais ameaçadores pro teto.
CENA 5 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO
	Corte seco para o Herói, que continua enxugando os cabelos,
	pensativo. Volta o Odair José, baixinho.
CENA 6 - EXT/DIA - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI / ORELHÃO
	Herói sai do apê e vai para a rua. A câmara mostra o edifício.
	Ele vai até um orelhão e disca. A câmara segue fixa nele, mas
	ouve-se, bem claro, a outra voz no meio do movimento da rua.
	               HERÓI
	               Alô, a Mariana está?
	               EMPREGADA (VS)
	               Já vou chamar.
Silêncio. Ele olha pra rua.
	               MARIANA (VS)
	               Alô.
	               HERÓI
	               Mariana? Oi, tudo bem?
	               MARIANA (VS)
	               Tudo legal.
	               HERÓI
	               Será que eu posso dar uma chegadinha aí na tua
	               casa?
	               MARIANA (VS)
	               Legal. Vê se traz uns discos.
	               HERÓI
	               (contente) Que tipo de música?
	               MARIANA (VS)
	               Vê se traz música calma.
	               HERÓI
	               Calma?
	               MARIANA (VS)
	               É. Tu tem James Taylor?
	               HERÓI
	               (detestando) Não tenho, não.
	               MARIANA (VS)
	               Carole King?
	               HERÓI
	               (com cara de nojo) Também não.
	               MARIANA (VS)
	               (fazendo um esforço mental) Sei lá; quem sabe
	               alguma coisa do Fagner...
	               HERÓI
	               Tudo bem, tudo bem. Eu levo alguma coisa calama,
	               pode deixar.
	               MARIANA (VS)
	               Legal. Então tchau.
Som do telefone desligando.
	               HERÓI
	               Mariana...
	Ele percebe que ela desligou. Fica olhando um pouco para o fone.
	Recoloca-o no gancho.
CENA 7 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA
Ele no apê, escolhendo discos na estante.
CENA 8 - EXT/DIA - CASA DE MARIANA: FRENTE
	O Herói chegando na casa de Mariana, que é bem grande e tem um
	jardim bem cuidado. Classe-média alta. Aperta a campainha. Atende
	a empregada.
	Ele está surpreendido com a empregada, que não conhece. Ele fica
	meio sem jeito, sem saber o que dizer. Finalmente, consegue
	perguntar.
	               HERÓI
	               Ôi. A Mariana tá aí?
	               EMPREGADA
	               Ela tá lá no quarto dela.
	               HERÓI
	               Será que eu posso falar com ela?
	               EMPREGADA
	               (confusa, se desculpando) O senhor espera um
	               pouquinho que eu vou ver.
	Fecha a porta. Ele fica de pé, do lado de fora, feito um imbecil.
	Dali a pouco, volta a empregada.
	               EMPREGADA
	               O senhor desculpe, mas é que eu sou nova na casa.
	               (sorrindo amarelo) Pode entrar, a dona Mariana tá
	               esperando.
CENA 9 - INT/DIA - CASA DE MARIANA: ENTRADA, ESCADA, QUARTO
Ele entra e sobe as escadas.
	Na frente da porta do quarto de Mariana, pára e hesita. Olha para
	os lados. Acaba batendo.
	               MARIANA
	               (voz abafada) Entra.
	Ele entra. Mariana está sentada na cama, lendo a "Cláudia", ou
	coisa assim. Ele sorri.
	               MARIANA
	               Ôi, tudo bem?
	Ele vai até a cama e dá um beijo rápido na boca. Ele está
	apaixonado. Ela é linda.
	               HERÓI
	               (tomando a iniciativa) Eu trouxe uns discos.
	Ela sorri e pega os discos, curiosa. Encosta-se na parede. Ele
	também se encosta e passa o braço pelos ombros dela. Ela pega
	dois discos de Vivaldi.
	               MARIANA
	               Mas isso é música chata, dá sono. É música de
	               igreja, né?
Ela pega um disco da Elis.
	               MARIANA
	               Agora que ela morreu todo mundo gosta. A voz dela
	               é bonita, mas... não sei... falta alguma coisa.
	               (taxativa) É muito técnica.
Ela pega o disco da Simone ("Quatro paredes").
	               MARIANA
	               Ih... mas essa é lésbica. (ri)
	Pega os dos Beatles ("Abbey road", "Let it be"). Fica mais
	entusiasmada.
	               MARIANA
	               Legal. (olhando as contracapas) Mas é meio velho,
	               né? E depois que o John morreu é meio baixo-
	               astral. (sorri) Quem sabe a gente ouve FM?
	Liga o rádio e ouve-se uma música horrível, melosa, tipo John
	Denver, "Sunshine on my shoulders".
	Ela sorri. Ele não sabe o que dizer. Ela olha pra ele e dá um
	beijo um pouco mais caloroso que o primeiro. Ele retribui na
	mesma medida. Olham-se. Ela sorri, divertida. Ele está confuso.
	Vai falar alguma coisa, mas desiste. Nada mais dizem.
FADE OUT
CENA 10 - EXT/NOITE - AV OSVALDO ARANHA
	O Herói caminha pela Osvaldo Aranha rumo ao Bristol. Noite fria.
	Passa por um bar (o que for mais fácil de filmar) e olha pra
	dentro. De repente, pára e volta. Entra no bar.
CENA 11 - INT/NOITE - BAR DA OSVALDO ARANHA
	Herói entra, caminha em direção a uma mesa, onde está Leopoldo,
	um antigo colega de faculdade, sentado sozinho. Abraçam-se.
	               HERÓI
	               E aí, Leo, cumé que tá?
	               LEOPOLDO
	               Tudo bem, tudo bem. (Mas ele não tá bem.)
	               HERÓI
	               Eu tava indo ali no Bristol.
	               LEOPOLDO
	               Ah...
	               HERÓI
	               (sorrindo) Lembra quando a gente matava as aulas
	               de Editoração e ia ver os filmes velhos?
	               LEOPOLDO
	               (sorrindo, mais animado) A revisão crítica!
	               HERÓI
	               (também rindo) Isso aí.
De repente, silêncio. Não sabem o que dizer.
	               HERÓI
	               E tu? Tá trabalhando?
	               LEOPOLDO
	               Pois é. Quase peguei uma boca aí num jornal de
	               empresa, mas depois despintou. Depois o Zeca,
	               lembra o Zeca?, me convidou pra ir diagramar o
	               jornal que ele trabalha, em Santa Maria. Não tô a
	               fim.
	               HERÓI
	               (espantando) O Zeca em Santa Maria?
	               LEOPOLDO
	               É.
	               HERÓI
	               Não dá pra entender. E o Júlio, o Celso, o Duarte?
	               LEOPOLDO
	               Não sei. Não vi mais. Tu tem visto o Gordo?
	               HERÓI
	               Não. Não vejo ninguém. Depois que a Faculdade
	               terminou, não vi mais ninguém.
	               LEOPOLDO
	               E tu? Tá com algum basquete?
	               HERÓI
	               (meio envergonhado) É... Consegui uma boca numa
	               imobiliária.
	               LEOPOLDO
	               (surpreso) Imobiliária?
	               HERÓI
	               É. Tu vê, bacharel em Jornalismo, mas só trato com
	               aluguéis, impostos, síndicos... É isso.
	               LEOPOLDO
	               (sem jeito) ainda tá morando com os velhos?
	               HERÓI
	               Não. Me mudei logo depois de conseguir o emprego.
	               Tô morando sozinho, num apartamento ali na
	               Cristóvão.
	               LEOPOLDO
	               (olhando o relógio) Tu não ia no cinema? São quase
	               dez.
	               HERÓI
	               É mesmo. Tenho que cair.
Ele vai levantando. Leopoldo também levanta.
	               LEOPOLDO
	               Eu vou junto.
CENA 12 - EXT/NOITE - AV OSVALDO ARANHA
O Herói e Leopoldo saem do bar e começam a caminhar lado a lado.
	               LEOPOLDO
	               (meio rindo, meio sério) Quais são as
	               perspectivas?
	               HERÓI
	               (surpreso, não esperava esse tipo de papo) Não
	               sei. Não tem emprego aqui. Pro interior é que eu
	               não vou. Tudo muito saudável. Muito verde. Eu
	               prefiro a fumaça.
CENA 13 - INT/NOITE - CINEMA BRISTOL
	Chegam no Bristol. O Herói compra entradas para os dois. Sobem as
	escadas.
	               LEOPOLDO
	               E os velhos? Não se importaram com a tua saída?
	               HERÓI
	               (pensativo) Não sei explicar direito. Alguma coisa
	               mudou, não sei o quê.
	               LEOPOLDO
	               Mas tu continua vendo eles seguido?
	               HERÓI
	               Ãh-hã. Amanhã combinei de almoçar lá. (pensa um
	               pouco) Tô com saudade da comida da mãe. Mas às
	               vezes acho que não compensa.
	Entram na sala de projeção, de onde sai o som do "Brasil em
	Notícias".
CENA 14 - INT/DIA - CASA DOS PAIS: SALA DE JANTAR
	O Herói chegando na casa dos pais. A Mãe o abraça, o Pai já está
	na mesa. A Mãe busca a comida na cozinha. O Herói beija o Pai na
	testa.
	               HERÓI
	               E daí, pai, tudo bem?
	               PAI
	               Tudo bem. (mas não tá tudo bem)
	               MÃE
	               Fiz a lasanha que tu gosta.
	               HERÓI
	               (sorrindo) Que bom.
Ele começa a comer.
	               PAI
	               (cortante) Já pagou o aluguel desse mês?
	               HERÓI
	               (enquanto come) Ainda não. Só recebo dia dez.
	               PAI
	               Mas o aluguel vence dia cinco.
	               HERÓI
	               Mas eu sempre pago pelo dia dez, não tem galho.
	               PAI
	               Mas tá errado. Se vence dia cinco, tem que pagar
	               dia cinco.
	               HERÓI
	               (sm saco) Não te preocupa.
	O Pai quer mostrar que tem mais experiência e acentuar o grau de
	dependência que o Herói ainda tem em relação a ele.
	               PAI
	               Eu sou o teu fiador, meu filho. Depois, vem tudo
	               pra cima de mim, e tu sabe que eu não tenho tempo.
	               MÃE
	               (intervindo, apascentadora) Calma, Francisco. O
	               menino tá dizendo que não tem mal nenhum.
	               PAI
	               Ele não se preocupa com nada.
	               MÃE
	               Vamo comê. Tá boa a comida, filho?
O Herói come, quieto, tentando navegar por cima do diálogo.
	               PAI
	               (voltando à carga) Cumé que tá o emprego na
	               imobiliária?
	               HERÓI
	               Tudo bem.
	               PAI
	               Não tá procurando coisa melhor?
	               MÃE
	               Não começa, Francisco. Tá boa a comida, filho?
	               PAI
	               Eu sei que é difícil conseguir emprego em jornal,
	               mas eu já te falei que talvez eu consiga alguma
	               coisa...
	               MÃE
	               (cortando) Ele não quer.
	               PAI
	               (para o Herói) Quanto tu tá ganhando nessa
	               imobiliária?
	               HERÓI
	               (sem saco) Mais do que se fosse repórter.
	               PAI
	               Então por que fez Jornalismo?
	               MÃE
	               Porque ele quis.
	               PAI
	               Olha, meu filho, se eu fosse tu partia pra outra.
	               Sei lá, quem sabe fazer outro curso.
	A mãe gosta da idéia, mas não tem coragem de abandonar sua
	posição de defesa incondicional do filho. O Herói continua
	comendo.
	               HERÓI
	               Pai, não te preocupa. Eu tô bem.
	               MÃE
	               (sorrindo) Claro, Francisco. Ele tá fazendo o que
	               gosta.
	               PAI
	               (irônico) Trabalhar numa imobiliária?
	               MÃE
	               Quer mais arroz?
	Silêncio. Todos comem. O Pai desiste de incomodar. Sabe que não
	adianta nada, mas considera seu dever dizer sempre as mesmas
	coisas.
	               MÃE
	               (para o filho) Sabe o Antônio?
	               HERÓI
	               Ãh-hã.
	               MÃE
	               Chegou uma carta da tia Lice dizendo que ele anda
	               amasiado com uma dona no Rio de Janeiro.
	               HERÓI
	               (surpreendido) O Antônio?
	               MÃE
	               É. Diz que ela tem uns quarenta. A tia Lice também
	               não tá muito bem.
	               HERÓI
	               A tia Lice?
	               MÃE
	               A catarata dela piorou. Agora vai pros Estados
	               Unidos, tentar uma operação complicada. Só tem um
	               problema: os filhos não querem dar o dinheiro pra
	               ela ir.
	               HERÓI
	               (surpreendido) Ué, mas o tio não deixou nada pra
	               ela?
	               MÃE
	               Deixou, mas ela dividiu tudo duma vez, pra não
	               haver briga depois de morta. Aliás, eu ouvi dizer
	               que ela já tentou até encaminhar...
	O Herói vai comendo e ouvindo a conversa da Mãe. O som da voz da
	Mãe vai baixando, enquanto mixa com a música.
CENA 15 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: COZINHA
	Herói sentado na cozinha do seu apartamento, na frente de uma
	xícara com café-com-leite e uma fatia de pão, bananas ao fundo.
	Come, satisfeito, tranqüilo.
CENA 16 - INT/DIA - CASA DOS PAIS: SALA DE JANTAR
Volta outra vez pra casa dos pais. Mãe continua falando.
	               MÃE
	               Tá boa a comida, filho?
	               HERÓI
	               Ótima, mãe. Boa mesmo.
	               PAI
	               (sem acreditar muito) E tu fica comendo mal fora
	               daqui.
	               HERÓI
	               Pois é.
	               PAI
	               Passa mal porque quer.
	               HERÓI
	               Pois é.
CENA 17 - EXT/DIA - PUC: EM FRENTE À FACULDADE DE DIREITO
	Herói na PUC, sentado no murinho defronte ao Direito, esperando
	Mariana. Ele gosta de almoçar com ela porque assim fazem alguma
	coisa juntos. Ele lê a Folha da Tarde. Faz frio e sol.
	A turma sai. Mariana o vê, se aproxima, beijam-se. Uma colega
	cochicha alguma coisa com uma outra. Els saem conversando em
	direção à Famecos.
	               MARIANA
	               (carinhosa) Que bom que tu veio.
	               HERÓI
	               (sorrindo) Eu disse que vinhe, vim.
	               MARIANA
	               Mas não é uma mão vir lá do centro até aqui?
	Ele abre a Folha da Tarde. Ela olha por cima dele, sorri e
	arranca o jornal.
	               MARIANA
	               Que legal. Vamo olhar o horóscopo! (concentra-se)
	               Primeiro o meu. Tá aqui. Capricórnio... Sorte nos
	               negócios... bobagem... deixa eu ver o que
	               interessa... Amor: boas perspectivas, dia propício
	               a namoro, poderá conhecer pessoa muito
	               interessante. (ri) Cor azul, que legal!
Ela está de azul e bate palmas, satisfeita.
	               MARIANA
	               Agora o teu. Tu é... deixa eu lembrar...
Ele está decepcionado com o esquecimento dela, mas disfarça.
	               HERÓI
	               (atalhando) Aquário.
	               MARIANA
	               É isso. É isso. Deixa eu ver aqui... Amor: uma
	               pequena discussão acabará bem. Seu relacionamento
	               começa a amadurecer. Bom dia para passeios a dois.
	               Que bom.
Ela fecha o jornal e o abraça.
	               HERÓI
	               (divertido) Então a gente pode ficar junto hoje?
	               MARIANA
	               (defendendo-se) Eu sei que tu acha bobagem, mas
	               esse negócio de horóscopo às vezes dá certo.
	               HERÓI
	               (contemporizando) Eu acho que alguma coisa tem que
	               ser real nesse negócio de Astrologia. Mas
	               horóscopo da Folha da Tarde?... Pelo amor de Deus!
	               MARIANA
	               (irritada) Quê que tem? Tá pensando que eu
	               acredito em tudo? Tá pensando que eu sou burra?
Ele fica quieto.
	               MARIANA
	               Às vezes tu me trata como uma débil mental.
	               HERÓI
	               (carinhoso) Desculp, querida, mas é que...
Ele não sabe o que dizer. Tenta beijar, ela evita.
	               MARIANA
	               Aqui não; tem muita gente.
	               HERÓI
	               Quê que tem?
	               MARIANA
	               Nada.
	               HERÓI
	               (paciente) Então quem sabe a gente dá uma volta
	               por aí?
	               MARIANA
	               (já calma) Tudo bem. Só que eu tenho que almoçar
	               cedo. Ainda quero estudar antes da aula.
	               HERÓI
	               (carinhoso) Tudo bem.
	Levanta-se. Eles caminham lado a lado, sem grandes carinhos. De
	vez em quando ele faz carinho no braço dela. Só.
	               HERÓI
	               Já começou o Germinal?
	               MARIANA
	               Aquele livro que tu me deu ontem? (com cara de
	               quem comeu e não gostou) Acho que eu não vou
	               gostar muito. O cara fica caminhando não sei
	               quantos quilômetros de campo de beterraba.
	               HERÓI
	               (sem entender) Cumé que é?
	               MARIANA
	               Eu não curto muito esses negócios de século
	               dezenove.
	               HERÓI
	               Por quê?
	               MARIANA
	               Muito velho.
	               HERÓI
	               Tudo bem. Eu vou te far um troço mais moderno,
	               mais século vinte.
Pausa.
	               HERÓI
	               Mariana, tá a fim de ir pra praia?
	               MARIANA
	               Que praia?
	               HERÓI
	               Sei lá. Pode ser Arroio do Sal. Meus velhos têm
	               casa lá.
	               MARIANA
	               No inverno?
	               HERÓI
	               Quê que tem?
	               MARIANA
	               Ninguém vai pra praia no inverno.
	               HERÓI
	               Eu vou.
	               MARIANA
	               Qual é a graça?
	               HERÓI
	               É muito melhor que no verão.
	               MARIANA
	               É muito frio, não dá pra tomar banho, nem pra
	               pegar sol.
	               HERÓI
	               E daí? A gente pode caminhar bastante, tirar umas
	               fotos, ler.
	               MARIANA
	               (pesando a proposta) É. Até que pode ser. Só que
	               eu vou ter que estudar lá. Tu tem que prometer que
	               vai deixar.
	               HERÓI
	               (feliz) Claro, claro.
	               MARIANA
	               Te amo.
	Ela, rapidamente, dá um beijo na boca dele. Ele quer mais, ela
	não deixa.
	               MARIANA
	               (rindo) Depois, na praia.
	               HERÓI
	               (contrariado) Tá legal.
	               MARIANA
	               Agora eu tenho que almoçar.
	               HERÓI
	               Será que a gente pode ir no teu carro?
	               MARIANA
	               Sempre no meu carro. Será que tu não pode pedir o
	               carro do teu pai emprestado?
	               HERÓI
	               Posso... É que...
	               MARIANA
	               Eu sei. Tu não gosta.
	               HERÓI
	               Não, não tem nenhuma. Eu peço.
	               MARIANA
	               Não precisa. Vamos no meu.
	               HERÓI
	               (tendo uma idéia) Pô, a gente podia ir de ônibus.
	               Ninguém incomoda e...
	               MARIANA
	               De ônibus? Tá maluco? Vamos no meu carro.
Entram no bar.
CENA 18 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI
	Herói no apê, esperando Mariana chegar. Tá com tudo pronto. Olha
	pela janela. Música "Country honk", desde o início.
CENA 19 - EXT/DIA - EDIFÍCIO DO HERÓI
	Chega o carro, ela buzina. Ele entra no carro, que arranca. Os
	dois estão felizes, quase bobos.
CENA 20 - EXT/DIA - ESTRADA
	Entram na free-way. Ela corre bastante. Ele buzina o carro, faz
	que vai dar um beliscão nela. Ela reage fazendo de conta que vai
	largar a direção. Ele corrige, se fazendo de assustado.
	Galinhagens em geral.
CENA 21 - EXT/DIA - PRAIA: RUAS
	Quando chegam, o astral muda. As ruas tão vazias, cheias de
	areia. Faz frio. Tempo nublado. Ninguém à vista. Ela tá muito
	assustada. Vão direto pra casa.
CENA 21B - INT/DIA - CASA DE PRAIA: SALA
	Abrem a porta da casa. Entram juntos. Típico astral de casa na
	praia no inverno. Tudo escuro, meio mofado. Ele pega as coisas e
	traz pra dentro. Ela abre as janelas.
	Ele abre a bolsa e tira um livro. É "O Caso Morel". Leva até ela,
	que está parada, de pé, sem saber o que fazer a seguir.
	               HERÓI
	               Olha, trouxe pra ti.
	               MARIANA
	               (examinando o livro) Rubem Fonseca? Nunca ouvi
	               falar.
	               HERÓI
	               É bem moderno, como tu pediu.
	               MARIANA
	               Legal. Vou começar a ler hoje de noite.
	               HERÓI
	               (sem jeito) Tá.
	               MARIANA
	               E agora?
	               HERÓI
	               Agora o quê?
	               MARIANA
	               O quê que a gente faz?
	               HERÓI
	               (confuso) Sei lá. A gente podia olhar o quarto,
	               arrumar as coisas...
	               MARIANA
	               É. Pode ser.
	               HERÓI
	               (tentando vencer o gelo) Querida, querida,
	               querida...
E dá um beijo bem carinhoso. Ela retribui. Entram no quarto.
CENA 22 - EXT/FIM DA TARDE - CASA DE PRAIA: VARANDA
	Herói e Mariana sentados na varanda da frente da casa de praia,
	abraçados, com frio. Ele está de olhos fechados.
	               HERÓI
	               Tá vendo? Não é legal?
	               MARIANA
	               Vendo o quê?
	               HERÓI
	               (abrindo os olhos) Tudo. É tão bonito.
	A câmara mostra o que ele quer dizer, terminando na cara dela,
	meio confusa.
CENA 23 - INT/NOITE - CASA DE PRAIA: QUARTO
	Os dois estão deitados na cama de casal. Cada um dum lado,
	debaixo das cobertas, lendo seus livros. Ela lê "O Caso Morel". O
	Herói pára de ler. Olha pra ela, divertido.
	               HERÓI
	               Sabe, Mariana, eu pensei que ia ficar um negócio
	               gozado a gente dormir na mesma cama. Eu pensei que
	               talvez pintasse algum grilo, ou que tu quisesse...
	               MARIANA
	               (cortando, sem levantar os olhos do livro) Tá
	               pensando outra vez que eu sou uma débil mental?
	               HERÓI
	               Não, não. É que... Sei lá. Podia pintar alguma
	               coisa.
	               MARIANA
	               (lendo) Não tem grilo nenhum. (pára de ler) Eu te
	               amo.
	Ela dá um beijo nele. Ele quer aproveitar. Encomprida o beijo o
	máximo possível. Tenta ir pra cima. Ela não deixa.
	               MARIANA
	               Agora não. Tô lendo.
	Ele volta à posição inicial. Pausa. De repente, ela pára e
	afirma.
	               MARIANA
	               Quanta besteira!
	               HERÓI
	               (surpreso) Onde?
	               MARIANA
	               Aqui no livro.
	               HERÓI
	               Não pode ser. Eu já li duas vezes. É tri bom.
	               MARIANA
	               Não gosto de ler esse tipo de coisa.
	               HERÓI
	               Que tipo?
	               MARIANA
	               Esses negócios aqui. É sexo pelo sexo.
	               HERÓI
	               (tentando entender) Cumé que é?
	               MARIANA
	               Pornografia. Ele tá escrevendo só sobre sexo. Não
	               tá explicando nada.
	               HERÓI
	               (confuso) Não entendi.
	               MARIANA
	               É isso. O cara tá escrevendo só pelo sexo em si.
	               HERÓI
	               E tem que ter mais alguma coisa?
	               MARIANA
	               (perdendo o saco de explicar) É isso. Não gosto.
	               Acho que vou dormir.
	Mariana apaga a lâmpada de cabeceira do seu lado da cama. O Herói
	não apaga a sua, mas também pára de ler.
	               HERÓI
	               Mariana, eu queria conversar uma coisa contigo.
	               MARIANA
	               (com sono) O quê?
	               HERÓI
	               Sei lá.
	Ele vai chegando mais perto. Olha pra ela, linda, embaixo das
	cobertas.
	               HERÓI
	               Acho que não tem nada pra conversar. (ela ri)
	               Então acho que eu vou dar um beijo de boa noite.
	Ele beija, com tesão. Ela responde. Ele acaricia o rosto dela.
	Beija uma das orelhas. Ela gosta.
	Ele tira as cobertas de cima dela. Dá um jeito e segura os
	peitinhos por baixo da camisola ou camiseta. Ela gosta.
De repente, ela pára de gostar.
	               MARIANA
	               Tira a mão.
ele faz que não ouve, continua.
	               MARIANA
	               (mais forte) Tira a mão daí!
	               HERÓI
	               Por quê?
	               MARIANA
	               Não quero.
	               HERÓI
	               Eu tô só fazendo carinho.
	               MARIANA
	               (ainda forte) Não tô a fim.
	               HERÓI
	               Tá legal.
	Ele tira a mão, volta pro seu próprio canto da cama. Ela fica
	envergonhada, mas logo parte pra ofensiva.
	               MARIANA
	               (carinhosa) Tô com soninho.
	               HERÓI
	               (meio puto) Tudo bem.
	               MARIANA
	               (muito carinhosa) Não fica assim, amor. É que, sei
	               lá. Não sei explicar direito. Não quero ainda,
	               ainda não, dá pra entender?
	               HERÓI
	               Não, não dá. Tu sente tesão por mim?
	               MARIANA
	               Claro.
	               HERÓI
	               Tu não fica molhada (aponta pra checheca dela)
	               aqui?
	               MARIANA
	               (rindo) Fico.
	               HERÓI
	               Pois eu fico também. Então por que a gente não
	               pode trepar?
	               MARIANA
	               Eu te amo, pequeninho.
E o beija, primeiro na boca, depois no rosto todo.
	               HERÓI
	               Te amo, te amo.
	E a beija com vontade, quase violento. Tenta ir pra cima outra
	vez, ela não deixa.
	               MARIANA
	               Amanhã, meu amor, amanhã.
Ele desiste, vai pro seu canto e apaga a luz.
CENA 24 - EXT/DIA - PRAIA
	O Herói e Mariana na praia, caminhando lado a lado, bem
	agasalhados, sozinhos. Ela tá abraçada nele, mais por causa do
	frio que por carinho. O mar faz barulho. Vento. Dia nublado. De
	vez em quando, ela treme de frio.
	               MARIANA
	               Tá frio.
	               HERÓI
	               É.
	               MARIANA
	               Quem sabe a gente volta pra casa?
	               HERÓI
	               Eu só queria andar mais um pouquinho.
	               MARIANA
	               Tá bem.
Continuam andando. De repente, ele pára e olha pra ela.
	               HERÓI
	               Sabe duma coisa? Sempre que eu venho pra praia, eu
	               lembro do "Interiores".
	               MARIANA
	               Que interiores?
	               HERÓI
	               Aquele filme do Woody Allen, lembra?
	               MARIANA
	               Não. Acho que eu não vi.
	               HERÓI
	               Mas a gente viu junto. Era aquele que a família se
	               reunia numa casa de praia no inverno...
	               MARIANA
	               (sem paciência) Não lembro.
	               HERÓI
	               Pena.
	Continuam caminhando. Ele fecha os olhos, larga o braço dela e
	começa a andar de olhos fechados.
	               HERÓI
	               Sabe, no inverno a gente pode caminhar quilômetros
	               pela beira da praia de olhos fechados. Sem medo de
	               nada! Já pensou? Não tem ninguém na frente.
	               Ninguém. Experimenta.
	Ela o segue de boca aberta, sem entender nada. Ele continua
	caminhando, satisfeito. De repente, ele pára. Abre os olhos.
	               HERÓI
	               Experimentou?
	               MARIANA
	               Não. Eu prefiro andar com os olhos abertos.
	Ele olha para ela decepcionado, mas sacando tudo. Faz carinho no
	rosto dela. O zoom afasta. Os dois estão com frio.
FADE OUT
CENA 25 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS
	Herói chega num apartamento. Os amigos estão lá, sentados no chão
	e nas cadeiras (poucas) existentes. Tomam mate.
	               HERÓI
	               Oi.
E vai entrando.
	               JÚLIO
	               Chegou o caminhante solitário.
Todos riem. Ele sorri para todos, meio sem jeito.
	               MILTON
	               (chato) E daí, lobo da estepe? Cumé que anda o
	               astral?
	               HERÓI
	               Tudo bem.
Ele senta no chão.
	               CLÁUDIA
	               Quê que fez no fim de semana?
	               HERÓI
	               Fui pra praia.
	               CLÁUDIA
	               Sozinho?
	               HERÓI
	               (medroso) Com a Mariana.
	               MILTON
	               (chato) Com a Mariana!
	               MARIA
	               (carinhosa) A Mariana é aquela guria que tu me
	               falou há tempo?
	               HERÓI
	               É.
	               MARIA
	               Vocês ainda tão transando?
	               HERÓI
	               Mais ou menos.
	               MILTON
	               História! Ele não larga o pé da guria. Tou
	               sabendo, tou sabendo. Eu tenho os meus informantes
	               lá pela PUC.
	               JÚLIO
	               Por que tu não traz ela pra gente conhecer?
	               MILTON
	               É, traz. Aliás, pelo que eu sei, ela é um
	               tesãozinho. Uma menina toda gostosinha...
O Herói, sem saco, fala com Alexandre.
	               HERÓI
	               E daí, tchê, tudo bem?
	               ALEXANDRE
	               Tudo bem. Na mesma.
	               MILTON
	               (muito chato) Fugiu da raia, é?
	               HERÓI
	               (pra Maria) Cumé que tá o emprego?
	               MARIA
	               Uma bosta.
O Herói ri pela primeira vez.
	               HERÓI
	               Como sempre.
	               MARIA
	               Como sempre.
	               CLÁUDIA
	               (se intrometendo) Vocês sabem duma coisa? Eu andei
	               lendo o Relatório Hite, e menos de dois por cento
	               das mulheres têm orgasmo quando trepam.
	               LÚCIA
	               Não acredito.
	               CLÁUDIA
	               Tá lá. Depois te mostro.
	               LÚCIA
	               Isso vale lá nos Estados Unidos. Aqui é diferente.
	               CLÁUDIA
	               Não sei. Acho que tem muita gente que finge.
	               MARIA
	               (interressada) Também acho.
	               LÚCIA
	               Não sei, não sei.
	               MILTON
	               (se metendo, chato) Eu garanto que comigo não tem
	               fingimento.
	Risos educados para a piada infame. Cláudia olha para o Herói,
	encarando.
CENA 26 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO
	Cláudia e o Herói na cama, trepando. Ela está por cima e gosta
	bastante. Gemidos um pouco exagerados. Ela se acaba. Ele olha,
	fascinado, maravilhado, quase sem acreditar. Ela sai de cima e
	desaba ao lado dele.
	O Herói olha pra ela, ainda maravilhado consigo mesmo, terno,
	inocente.
	               HERÓI
	               Tava bom?
	               CLÁUDIA
	               (se assoprando) Quê que tu acha?
	               HERÓI
	               Tava, né?
	               CLÁUDIA
	               (rindo) Tava ótimo.
	               HERÓI
	               (se explicando) É que eu nunca tinha visto uma
	               guria se acabar assim. Porra... É um troço quase
	               violento.
	               CLÁUDIA
	               Eu sou assim. Não pensa que eu tava fingindo. É
	               que pouca gente consegue ter um orgasmo realmente
	               bom.
	               HERÓI
	               Como assim?
	               CLÁUDIA
	               Não sei explicar direito. Mas esse foi dos fortes.
	               Foi por dentro e por fora, entende?
	               HERÓI
	               Não.
	               CLÁUDIA
	               É difícil encontrar um pau que dê o contato exato,
	               sem faltar nada e sem pisar o útero.
	               HERÓI
	               E o meu é bom?
	               CLÁUDIA
	               (sorrindo, carinhosa) Perfeito.
	               HERÓI
	               Eu sempre achei que fosse pequeno.
	               CLÁUDIA
	               Bobagem. É perfeito. Ele raspa direitinho nos
	               lugares certos.
Ele sorri e a beija.
CENA 27 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS
	Volta pro apartamento dos amigos. O Herói está olhando para
	Cláudia. Ela também olha para ele, sacando o que ele tá pensando.
	De repente, ela levanta e vai sentar ao lado do Milton. Dá um
	beijo nele. O Herói se incomoda. Parte pra ofensiva.
	               HERÓI
	               E daí, Milton, tá firme no Hermann Hesse?
	               MILTON
	               Agora tô lendo o "Sidarta".
	               MARIA
	               É aquele dos hindu, né?
	               MILTON
	               É. (para todos) Alguém mais já leu?
	               HERÓI
	               Eu li há muito tempo, no colégio. Na época eu
	               gostei. Acho que hoje ia detestar.
	               MILTON
	               (muito chato) É claro. Ele já leu (faz cara de
	               importante) "Ulisses", de James Joyce.
	               HERÓI
	               Não tem nada a ver.
	               MARIA
	               (intercedendo, conciliadora) Tu já foi ver "Reds",
	               Cláudia?
	               CLÁUDIA
	               (olhando fixo pro Herói) Tô cagando pro Joyce e
	               pro Hermann Hesse. Eu queria é o Warren Beatty na
	               minha cama.
Ela ri, todos riem, o Herói quieto.
CENA 28 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO
	O Herói acorda na cama com Cláudia. É a manhã seguinte à grande
	trepada. Ele está segurando o seio esquerdo de Cláudia. Levanta
	devagar, depois de tirar a mão com cuidado.
CENA 29 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: COZINHA
	O Herói vai até a cozinha e prepara café com leite e duas
	torradas.
CENA 30 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO
	Volta para o quarto com a bandeja cheia. Coloca tudo na cama.
	Beija a orelha de Cláudia, que abre os olhos, muito sonolenta.
	               CLÁUDIA
	               (arrastado) Que horas são?
	               HERÓI
	               Dez e quinze.
	               CLÁUDIA
	               (quase dormindo) Muito cedo...
	Cláudia vira pro outro lado e continua dormindo. Ele está
	decepcionado, mas não insiste. Começa a comer rapidamente as
	torradas.
CENA 31 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: SALA
	O Herói dando uma olhada no apartamento. Nenhum livro. Discos de
	Gilberto Gil, Caetano Veloso (todos), Fagner, A Cor do Som e
	coisas assim. Bota os fones.
CENA 32-35 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO E SALA
Na cama, Cláudia dormindo.
Na sala, Herói esperando.
Cláudia continua dormindo. O tempo passa.
Herói olha pro relógio: meio dia.
CENA 36 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: SALA
	Herói vai até o quarto e beija os cabelos de Cláudia, que
	continua dormindo, nem aí.
Ele pega papel e lápis e escreve:
	TIVE QUE IR PRO TRABALHO. POR FAVOR ME TELEFONA LOGO (41.37.12).
	UM BEIJO.
	Lê, relê, faz cara de quem não gostou. Amassa o bilhete e começa
	outro:
	NÃO TIVE CORAGEM DE TE ACORDAR. O NÚMERO DO MEU TRABALHO É
	41.37.12. SE TU ME LIGAR, CERTAMENTE ME LIVRA DE UM SÍNDICO
	MANÍACO-DEPRESSIVO. JÁ VIU CIDADÃO KANE?
	Lê, gosta, coloca o bilhete em cima da cama. Olha pra Cláudia
	mais uma vez. Sai do quarto.
CENA 37 - INT/DIA - IMOBILIÁRIA
	Herói na imobiliária, trabalhando. Toca o telefone, ele corre pra
	atender. Não é com ele.
	Toca de novo. Ele vai atender, esperançoso, mas alguém inicia um
	papo complicado, que ele logo corta e dá um jeito pra desligar.
	Volta pra mesa.
	Olha o relógio na parede: seis e dez. Ele faz cara de saco cheio.
	Todo mundo começa a ir embora.
	Ele olha pro telefone, concentrado. Toca de novo, ele vai
	atender, mas alguém atende antes e fica assustado com a afobação
	do Herói.
	Ele espera, ansioso. Era engano. Volta pra mesa. O chefe tá
	saindo.
	               CHEFE
	               Ué, não vai embora?
	               HERÓI
	               (sem jeito) Já tô indo, já vou.
	               CHEFE
	               Vamo duma vez, que a porta vai fechar.
	               HERÓI
	               Já vou.
	Levanta e sai bem devagar. Ainda olha uma última vez pro
	telefone, mudo, frio, odioso.
CENA 38 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS
	Cláudia ainda tá rindo da piada do Warren Beatty. O Herói olha
	pra ela, magoado, confuso. Cláudia ri, satisfeita, sem olhar pra
	ele. Ele sorri, confuso.
FADE OUT
CENA 39 - EXT/ENTARDECER - RUA SIQUEIRA CAMPOS
	O Herói está no fim da Siqueira Campos. Entardecer-anoitecer. A
	cãmara mostra os edifícios, o astral do ambiente, o astral dele
	próprio.
CENA 40 - EXT/ENTARDECER - FRENTE DO RIB'S
	Mariana no Rib's, muito movimentado, cheio de carros e gatinhas.
	Ela ri, enquanto toma milk-shake rodeada por amigos e amigas.
CENA 41 - EXT/ENTARDECER - PRAÇA JÚLIO DE CASTILHOS
	A Praça Júlio de Castilhos está quase vazia. Exceção dum mendigo,
	meio bêbado, sentado num banco, que olha o movimento com uma
	expressão vazia. Ponto de vista do mendigo.
CENA 42 - EXT/ENTARDECER - RUA SIQUEIRA CAMPOS
	O Herói continua no mesmo lugar, sentado, apreciando o pôr-do-
	sol. A luz penetra direto na objetiva da câmara. Ele pisca os
	olhos, ofuscado. Fecha os olhos. Abre de novo. Muita luz. Fecha
	outra vez.
	Quando abre, Mariana está olhando pra ele. Ele sorri. Ela não
	está entendendo nada. O sol está bem detrás do rosto dela.
	               HERÓI
	               É bonito, isso aqui, né?
	               MARIANA
	               (sem entender) Eu acho triste. Não quero ficar
	               aqui.
	Ela movimenta o rosto. O sol bate direto na lente. Ele fica
	novamente ofuscado. Fecha os olhos.
	Quando abre, os amigos estão sentados com ele. Ele reage
	naturalmente à presença deles, que estão contra o sol.
	               JÚLIO
	               E daí, tchê, quê que se faz?
	               MILTON
	               (se intrometendo, chato) Não tá vendo, Júlio? Como
	               tu é burro! Ele tá pensando, cara. Ele tá curtindo
	               o ambiente. Ele tá tentando encontrar uma maneira
	               de resolver todos os problemas do mundo, sentado
	               num muro da Siqueira Campos.
	               LÚCIA
	               Não enche o saco, Milton.
	               MILTON
	               Mas é isso, é bem isso. Não é, ô lobo da estepe?
	               HERÓI
	               (de saco cheio) Olha lá, que troço estranho.
	E aponta prum casal que vem em direção ao grupo. Começa a tocar
	"Gimme shelter", primeiro bem baixinho, mas vai aumentando à
	medida que o casal se aproxima.
	O cara é alto, louro, tipo estudante de teologia. Caminha todo
	torto, com uma das pernas curvadas num ângulo ilógico. A cada
	passo, é obrigado a fazer uma dança horrível como quadril. Apóia-
	se numa bengala de metal.
	Ela usa um vestido com bolinhas pretas e uma sandália vermelha
	presa com pequenas tiras ao tornozelo. Tem a boca permanentemente
	aberta, num sorriso debilóide. Anda devagar, pra poder acompanhar
	o paraplégico.
	Aproximam-se. Os dois se amam, estão completamente felizes. Fazem
	carinho um no outro enquanto andam.
O Herói olha pros dois, surpreso, confuso.
	               MILTON
	               Mas o que é isso? Meu deus, que aparição.
E aponta, rindo, tirando sarro.
	               LÚCIA
	               Tu vê, cara, eles tão bem, tão numa boa.
	"Gimme shelter" bem alto. O Herói continua olhando pro casal, já
	bem perto.
	               HERÓI
	               Incrível, né? Eles tão felizes. Puta merda, tão
	               felizes.
	"Gimme shelter" a todo volume. O Herói acompanha o casal,
	atônito.
	               MILTON
	               (rindo, gritando) Ô vaca, vê se fecha essa boca,
	               que a baba tá respingando aqui. Sai daí ô manco,
	               perneta, paralítico. (rindo muito) No mínimo,
	               ainda é poeta...
	               CLÁUDIA
	               (rindo) O que é a sandalinha...
	O Herói continua com a mesma expressão, sem saber o que fazer. O
	casal passa na frente dele.
	               CLÁUDIA
	               Que belo par. Lindo!
	Desaparecem os amigos. O Herói tá sozinho no muro. Acompanha o
	casal, que agora caminha de costas pra ele. O casal dobra a
	esquina e desaparece de vista.
O Herói olha pro fim da rua, tenso. Tudo vazio.
Música a mil. Devagar, o Herói levanta e caminha até a esquina.
	Quando consegue olhar pro lado, vê os dois abraçados, quase
	beijando. O Herói está completamente tenso. Os dois se beijam,
	ternamente, completamente felizes.
	O Herói abre a boca, respirando fundo, e assiste o beijo. O sol
	está bem atrás da cabeça dele.
FADE OUT
CENA 43 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA E COZINHA
	O Herói chega em casa, ainda chocado com a cena da Siqueira
	Campos. Está chovendo. Ele abre a janela e a sala fica mais
	clara.
Vai até a cozinha e toma um gole dágua na garrafa.
	De volta à sala, dirige-se ao amplificador. Liga. Vai até a
	estante dos discos. Olha as capas de vários, mas não se decide
	por nenhum.
	Senta no colchão da sala. Olha a estante de livros. Pega um
	deles, ilustrado (pode ser um de ficção científica). Folheia,
	pouco interessado. Enche o saco.
Levanta e desenha o bolha na janela embaçada.
Volta a sentar. Fecha os olhos.
CENA 44 - EXT/DIA - DIVERSOS LOCAIS
	Imagens do inverno na cidade, semelhantes às dos créditos. Nuvens
	correndo. Frio. Gente na parada de ônibus, com o ar quente da
	respiração fazendo "fumaça". Cachorro dormindo.
CENA 45 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói continua no seu apartamento, sentado no colchão da sala.
	Abre os olhos. Fecha outra vez.
CENA 46 - INT/DIA - IMOBILIÁRIA
	O Herói na imobiliária, trabalhando mecanicamente. De repente,
	pára e olha em volta. O som ambiente some.
	A câmara faz uma panorâmica pelos rostos dos colegas de trabalho
	(mais velhos, engravatados, medíocres, com um bom saldo no
	banco).
Volta pro Herói. Volta o ruído da imobiliária.
CENA 47 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
O Herói outra vez no seu apartamento, parado, pensando.
	Levanta, vai até a máquina de escrever e senta. Bota o papel.
	Olha a folha em branco.
FADE OUT
CENA 48 - EXT/DIA - CASA DE MARIANA: FRENTE
	O Herói e Mariana conversam, em frente à casa dela. Ela está
	comendo pêssegos em conserva.
	               MARIANA
	               Quer um pouquinho?
	               HERÓI
	               Não.
Ela continua comendo, satisfeita.
	               HERÓI
	               Ontem eu lembrei daquele filme que a gente viu
	               outro dia na tevê. "Cidade das ilusões", lembra?
	               MARIANA
	               Não.
	               HERÓI
	               É aquele do cara que era boxeador, que tinha uma
	               mulher bêbada que andava com um negro. Ele tinha
	               um amigo bem guri.
	               MARIANA
	               Lembro.
	               HERÓI
	               Lembra o final?
	               MARIANA
	               (fazendo um esforço mental) Acho que não.
E continua comendo.
	               HERÓI
	               É o cara num bar, no meio dum monte de velhos. De
	               repente, ele se dá conta que vai ficar do mesmo
	               jeito. Não tem saída. Pra ninguém. Nem pra ele,
	               nem pro guri.
	               MARIANA
	               Baixo-astral...
	               HERÓI
	               É, eu lembrei ontem, na imobiliária.
	               MARIANA
	               (oferecendo o potinho) Não quer mesmo um
	               pouquinho?
	               HERÓI
	               Não, Mariana, tu sabe que eu não gosto de pêssego.
	               MARIANA
	               Tá legal. (come) Vamo no cinema, hoje de noite?
	               HERÓI
	               Eu combinei de ir na casa da Lúcia.
	               MARIANA
	               Fazer o quê?
	               HERÓI
	               Sei lá. Conversar. O pessoal vai tá lá.
	               MARIANA
	               Tu cansa de dizer que os papos são chatos...
	               HERÓI
	               É... quer dizer... não é. Tem umas pessoas legais,
	               outras chatas.
	               MARIANA
	               Cumé o nome daquele cara que tu não gosta? (faz um
	               esforço) Milton... É isso?
	               HERÓI
	               (rindo) É. O Milton é dose.
	               MARIANA
	               O quê que ele faz?
	               HERÓI
	               Agora tá planejando ir pra Moçambique.
	               MARIANA
	               Fazer o quê?
	               HERÓI
	               Não sei. Tem um outro amigo meu, o Maurício, que
	               foi pra Israel. Deve tá colhendo laranja em algum
	               kibutz.
	               MARIANA
	               (surpresa) Colhendo laranja?
	               HERÓI
	               (divertido) É. Lsranja. (pra ela, sério) O que
	               será que se colhe em Moçambique?
	               MARIANA
	               (nervosa com o teste) Sei lá... (oha pra tigelinha
	               dos pêssegos) Sei lá. (tomando coragem) Pêssegos?
CENA 49 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE LÚCIA
	O Herói no apartamento de Lúcia, com todos os amigos. Sentado no
	chão, em cima de uma almofada. Música desde o início da cena.
	Lúcia sai dum quarto e chega na sala. Senta bem na frente do
	Herói e o encara.
	À medida que se desenvolve o "stream of consciousness" do Herói,
	a câmara descreve os movimentos como se fosse os seus olhos.
	               HERÓI (VS)
	               Sentou na minha frente de propósito / quer brincar
	               comigo / mas eu faço que não tô interessado e olho
	               pros posters na parede / mas que saco / como são
	               horríveis / quem sabe só virar um pouquinho a
	               cabeça? / mas aqui tá ela de novo / puta merda,
	               coninua me olhando / parece que ela tá a fim de
	               conversar / quem sabe ela não tá brincando? /
	               Lúcia, eu nunca sei se é sério / eu gosto de ti,
	               sabe? / agora ela desviou os olhos / vai voltar
	               daqui a pouco, pra conferir se eu ainda tô olhando
	               pra ela / será que ela sabe que eu tenho vontade
	               de conhecer ela? / ela tá voltando / voltou / ela
	               tá rindo pra mim / eu acho que ela me acha chato /
	               o Júlio disse / a Maria acha que não / agora é a
	               minha vez de desviar / pequeno passeio pela sala /
	               Lúcia, tu vai estar quando eu voltar? / devagar
	               agora / Lúcia...
	Lúcia levanta, rápido, e vai até onde está Milton. Corta música,
	entra ruído ambiente.
	Lúcia cochicha alguma coisa no ouvido de Milton, que sorri, bota
	a mão no bolso do casaco e tira um cigarro. Acende.
	Lúcia dá uma tragada funda e olha pro Herói, divertida. Close no
	Herói, confuso.
CENA 50 - INT/DIA - CASA DE MARIANA: QUARTO
	O Herói e Mariana no quarto dela. Cada um lê a sua revista: ela,
	Cláudia; ele, ???.
	               MARIANA
	               (levantando os olhos) Amanhã é aniversário da
	               Cristina. Vai comigo?
Ele finge que continua lendo.
	               HERÓI
	               Hã?
	               MARIANA
	               É a minha prima mais chegada. Vai fazer dezesseis
	               anos.
Ele abandona a revista e estende as pernas.
	               HERÓI
	               Mariana, eu já te expliquei antes. Não gosto
	               daqueles caras, não me sinto bem.
	               MARIANA
	               Por quê?
	               HERÓI
	               Não gosto das músicas... (pensa um pouco) E também
	               não gosto da tua prima. E tu sabe que ela não
	               gosta de mim.
	               MARIANA
	               Não.
	               HERÓI
	               Tu sabe que não gosta. (pausa) Me dá uma boa razão
	               pra eu ir que eu vou.
	               MARIANA
	               Me acompanhar.
	               HERÓI
	               (fechando os olhos) A gente podia ir no cinema...
	               MARIANA
	               (emburrada) Eu vou na festa.
	               HERÓI
	               (abrindo os olhos) Não suporto essas festas. Não
	               lembra da última? Fiquei num canto o tempo todo,
	               me embebedando com cuba-libre.
Mariana faz cara de quem não se lembra.
	               HERÓI
	               E tem mais. Eu acho que tu também não gosta. Só
	               vai pra satisfazer a família, a vaidade, sei lá o
	               quê!
	Mariana está com raiva, mas ainda não entendeu o alcance da
	última frase do Herói. Pega a revista e folheia duas vezes, com
	gestos secos e concentrados. Fica um tempo fingindo que lê.
	Depois, baixa a revista, encara o Herói fixamente e começa,
	mastigando as palavras.
	               MARIANA
	               Vaidosa? Eu, vaidosa?
	O Herói sente o que vem por aí. Está arrependido, mas agora não
	adianta mais.
	               MARIANA
	               Vaidosa? Que coragem a tua, hein? Eu não uso
	               exatamente três calças e quatro camisetas minhas
	               porque tu não gosta. Eu parei de usar salto alto
	               porque o senhor diz que é bagaceiro. Não uso
	               pintura porque o senhor não gosta. Não prendo o
	               cabelo. Não corro mais no Parcão. Não posso mais
	               andar de barco com os meus amigos porque tu não
	               sabe nadar. Vaidosa? Vaidosa?
	Mariana joga a revista longe. O Herói admira, entre maravilhado e
	medroso, a explosão de Mariana.
	Mariana levanta e vai até onde está o Herói. Senta na frente
	dele. Coloca a mão esquerda no joelho direito do Herói. As unhas
	são pequenas, sem pintura. Ela tem uma tristeza de mártir nos
	olhos.
	               MARIANA
	               Não pinto mais as unhas.
Mariana olha pra ele, com pena de si mesma.
	Ele não agüenta. Começa a beijá-la em todas as partes do corpo.
	Mariana resiste apenas no começo. Ele levanta a blusa dela pra
	beijar o umbigo.
	               MARIANA
	               (séria) Então vamos no aniversário juntos, né?
	               HERÓI
	               (sem pensar) É. É.
CENA 51 - EXT/NOITE - FRENTE DO CINEMA VITÓRIA
	O Herói na fila do cinema Vitória. Em cartaz, um típico filme do
	Vitória. Ele tá encucado, sem tesão de ir ao cinema.
CENA 52 - INT/NOITE - BILHETERIA DO CINEMA
	O Herói chega na bilheteria, se agacha para perguntar alguma
	coisa. Fica surpreso. Os olhos que aparecem são os de Mariana.
	               MARIANA
	               Meia ou inteira?
	               HERÓI
	               Cumé que tá a festa?
	               MARIANA
	               Meia boca. Mas tem uns caras legais!
	               HERÓI
	               O quê?
	               MARIANA
	               Um amigo da minha prima. Ele faz Medicina. (sorri)
	               Legal, ele.
	               HERÓI
	               (confuso, arrependido) Meia.
CENA 53 - INT/NOITE - SALA DE ESPERA DO CINEMA
O Herói entra na sala de espera e senta. Olha pro outro lado.
	Mariana e um quintanista de Medicina estão sentados no sofá,
	alegres, bem arrumados, com astral de festa. Cada um segura um
	copo. Ela ri bastante. Ele, o quintanista, parece cobiçar aquela
	menina tão bonita que acaba de encontrar. Ela ri muito e se apóia
	no ombro dele.
	O Herói está com raiva. Fecha os olhos, com força. Abre-os e
	volta a olhar pro mesmo lado.
O sofá em frente agora abriga um outro casal.
	O Herói levanta, decidido, e desce a escada em direção à sala de
	projeção do cinema. Antes de entrar, pára um pouco, indeciso, e
	acaba olhando pra trás.
No sofá, Mariana e o quintanista olham-se ternamente.
Com raiva, triste, angustiado, o Herói entra na escuridão.
CENA 54 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói na sala do seu apê, sentado, pensando. Pega uma folha de
	papel e caneta. A câmara mostra, em close, a mão dele iniciando
	uma carta:
	ISABEL. AQUI TÁ MUITO FRIO. SEMPRE QUE EU SINTO FRIO, LEMBRO DE
	TI E DE MONTEVIDÉU.
Pára de escrever. Levanta a cabeça. Pensa. Entra narração.
	               HERÓI (VS)
	               Isabel. Aqui tá frio. Sempre que eu sinto
	               angústia, lembro de ti e de Montevidéu.
CENA 55 - EXT/ENTARDECER - RODOVIÁRIA DE MONTEVIDÉU
(Entra música, junto com a primeira imagem de Montevidéu.)
	Rodoviária. O Herói descendo do ônibus, encontrando Isabel.
	Abraçam-se bem forte.
Saem caminhando abraçados, conversando.
CENA 56 - EXT/ENTARDECER - RUAS DE MONTEVIDÉU
	O Herói e Isabel na rua, caminhando abraçados, rumo ao
	apartamento dela.
	               HERÓI (VS)
	               Ano passado, tava muito frio quando eu cheguei.
	               Seis e meia da tarde, mais ou menos. Tava quase
	               escuro. Eu tava preocupado, não via Isabel há
	               muito tempo. E todo mundo mente nas cartas.
Os dois, ainda caminhando.
	               HERÓI (VS)
	               Mas ela tava lá, me esperando, como disse que
	               faria.
CENA 57 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL
	Chegam no apartamento dela. Isabel prepara duas xícaras bem
	grandes de chocolate quente. Ela e o Herói bebem, sorrindo e
	conversando.
	               HERÓI (VS)
	               Isabel, sempre me esperando, ela e a cidade uma
	               coisa só, que protege, cura. Como eu aprendi.
CENAS 58-62 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU
Herói caminhando pelas ruas do centro.
Compra um jornal.
Pergunta alguma coisa prum castelhano de chapéu.
Olha vitrines.
Senta numa praça, com a cabeça leve.
	               HERÓI (VS)
	               É ótimo andar numa cidade estranha. Se eu quero,
	               não falo com ninguém, finjo que a língua é
	               incompreensível. Ninguém me conhece, eu só conheço
	               Isabel.
CENA 63 - EXT/DIA - PRAIA DE MONTEVIDÉU
	O Herói caminha pela avenida que margeia a praia. Anda devagar,
	com as mãos nos bolsos. De vez em quando olha pra cima. Nuvens.
	Entra na areia, vai até a beira do mar, olha para a cidade e para
	as gaivotas. Volta para a avenida.
	               HERÓI (VS)
	               Montevidéu é parecida com Porto Alegre, talvez um
	               pouco mais somria. Isabel é a síntese de tudo. Ela
	               é parecida com as nuvens que aparecem de repente,
	               com as gaivotas que ficam voando pela praia.
CENA 64 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL
	O Herói e Isabel na cama, nus. Ela está deitada bem em cima dele,
	com os cotovelos apoiados perto da cabeça dele. Conversam
	serenamente. Ela sorri.
	               HERÓI (VS)
	               Só Isabel sabe o que eu sou de verdade. Não
	               escondo nada. E nem poderia. Ela me ensinou a ir
	               mais devagar, trocar de posição sem me precipitar,
	               a descobrir pequenas coisas no corpo dela.
CENA 65 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU
O Herói na rua outra vez. Entrando na Sala Millington Drake.
Depois, entrando em dois outros cinemas.
	               HERÓI (VS)
	               Ano passado, vimos "Annie Hall" juntos. Mas eu
	               gosto de ir ao cinema sozinho, dois, três filmes
	               seguidos, até os olhos se cansarem e a cabeça
	               doer. A dor do cinema faz bem, alivia outra dor.
CENA 66 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL
(Entra "Angie", dos Stones, seguindo até o final da cena.)
	O Herói e Isabel dançando, bem juntos, mal se movendo, na sala
	escura do apartamento dela. Ele apóia a cabeça no ombro dela e
	fecha os olhos.
	               HERÓI (VS)
	               Isabel. Vontade de te ver logo. Dançar contigo com
	               as luzes apagadas.
CENA 67 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU
	O Herói e Isabel caminhando lado a lado, rumo à rodoviária, ele
	com a sacola no ombro.
	               HERÓI (VS)
	               É duro ir embora.
CENA 68 - EXT/DIA - RODOVIÁRIA DE MONTEVIDÉU
	O Herói e Isabel chegam na rodoviária. O ônibus já tá encostado.
	Ele entrega a bagagem, dá a passagem e recebe o beijo de Isabel.
	Entra no ônibus.
	               HERÓI (VS)
	               Ela sempre me leva até a rodoviária e me dá um
	               beijo antes de eu subir no ônibus.
	Ele aparece em uma das janelas do ônibus. Observa Isabel
	encostada numa coluna, sorrindo pra ele. Ele sorri, triste, mas
	sem angústia. O ônibus sai.
	               HERÓI (VS)
	               E então é só esperar o ônibus sair. Isabel fica,
	               sempre fica. Mas eu sei onde ela tá.
	Ponto de vista dele, vendo Isabel ficar pra trás. O ônibus vai
	embora, Isabel desaparece.
	               HERÓI (VS)
	               Ela tá me esperando, sempre.
O ônibus desaparece na cerração.
CENA 69 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói no apê, olhando pro papel, onde ainda estão escritas as
	mesmas palavras de antes. Ele coloca o papel na mesinha e
	levanta.
	Vai até a janela, olha para fora, onde a chuva cai devagar e as
	árvores estão molhadas. Close no papel.
"Angie" desaparece, bem devagar.
FADE OUT
CENA 70 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO
	Sábado à tarde, apartamento do Herói. Ele e Mariana estão no
	quarto, não fazendo nada. Encostada numa almofada, Mariana olha
	para cima do armário e percebe a TV, meio escondida entre duas
	caixas de papelão.
	               MARIANA
	               Não sabia que tinha tevê aqui.
	Mariana levanta-se em direção à TV. Mas o Herói levanta-se também
	echega antes ao armário.
	               HERÓI
	               Não liga.
	               MARIANA
	               Se tem, é pra ligar.
	               HERÓI
	               Ver o quê, às quatro e meia da tarde?
	               MARIANA
	               (obviamente, sorrindo) Ver tevê.
	               HERÓI
	               (carregando-a de volta pra cama) Não acha que a
	               gente pode fazer coisas bem melhores do que ver
	               desenhos animados japoneses?
	               MARIANA
	               Se tu sabe o que tá passando, por que perguntou o
	               que eu queria ver?
	               HERÓI
	               (desconcertado) Eu? Eu nem sei se tá mesmo pass...
	               MARIANA
	               (cortando) Então não tá passando nenhum desenho
	               animado japonês? (inocente) Pena, eu gosto da
	               carinha deles, sempre tão limpinhos e arrumados.
	O Herói pára um pouco pra pensar. Tenta descobrir se ela tá
	falando sério ou é ironia. Não consegue. Tenta dar outro rumo pra
	conversa.
	               HERÓI
	               Não acha que é uma perda de tempo ver esses
	               desenhos mal-feitos se nós temos milhares de
	               coisas melhores pra fazer?
	               MARIANA
	               (duvidando) O quê, por exemplo?
	               HERÓI
	               (depois de hesitar um pouco) Conversar, por
	               exemplo.
	               MARIANA
	               Legal.
Mariana pensa um pouco e aponta pra TV.
	               MARIANA
	               Por que a televisão, se eu nunca te vejo
	               assistindo?
	               HERÓI
	               Porque eu só vejo uns filmes, quase sempre tarde
	               da noite.
Ela faz cara de quem não entendeu. Ele tenta explicar.
	               HERÓI
	               Eu só ligo quando sei que vai passar um filme bom.
	               MARIANA
	               (curiosa, cética) E como é que se descobre quando
	               vai passar um filme bom?
	Ele simplesmente aponta uma pilha de jornais no chão e sorri. Ela
	olha pros jornais, pensa um pouco e faz cara de saco-cheio, como
	alguém que espera algo que não quer ouvir.
	               MARIANA
	               Por favor, não vem com o teu papo precisa-ler-
	               jornal-comprar-livros-e-i-mais-ao-cinema.
	Ele sorri e olha pra Mariana, admirado com a reação. Pensa um
	pouco e tem uma idéia.
	               HERÓI
	               Quem sabe a gente vai ao cinema?
	               MARIANA
	               Agora? De tarde?
	               HERÓI
	               Quê que tem?
	               MARIANA
	               Sei lá... De tarde, parece coisa de quem não tem
	               nada pra fazer.
	               HERÓI
	               (rindo) O que não é, nem de longe, o nosso caso.
	               MARIANA
	               (desconcertada) É.
	               HERÓI
	               Vâmo?
	               MARIANA
	               (levantando, indecisa) Vâmo.
CENA 71 - EXT/DIA - RUA DA CASA DA LÚCIA
	Proximidades da cassa da Lúcia. Ela e o Herói conversam, enquanto
	caminham e tomam sol.
	               LÚCIA
	               Tu já viu aquele filme francês que tá passando no
	               Coral?
	               HERÓI
	               "A Filha da minha mulher"?
	               LÚCIA
	               É.
	               HERÓI
	               Fui ver ontem, com a Mariana.
	               LÚCIA
	               E daí?
	               HERÓI
	               Eu gostei.
	               LÚCIA
	               E a Mariana?
	               HERÓI
	               Não sei, eu nunca tenho certeza se ela gosta dos
	               filmes.
	               LÚCIA
	               Por quê?
	               HERÓI
	               Ela diz que gosta, mas... Sei lá. Se eu gosto, ela
	               sempre gosta.
	               LÚCIA
	               (sorrindo) Como é que anda a transa de vocês?
	               HERÓI
	               (sem jeito) Tá legal, tudo legal.
	               LÚCIA
	               Ela faz... psicologia, né?
	               HERÓI
	               É.
	               LÚCIA
	               Eu vi ela uma vez, meio de longa, lá na Reitoria.
	               HERÓI
	               É?
	               LÚCIA
	               Era um show... sei lá de quem. Ela tava contigo,
	               bem na frente.
	               HERÓI
	               Ela gosta de sentar bem na frente.
	               LÚCIA
	               (arriscando) Eu tinha vontade de conhecer ela
	               melhor...
	               HERÓI
	               (assustado) A Mariana?
	               LÚCIA
	               É. Sei lá, de vez em quando eu tenho vontade de...
	               sacar umas coisas.
	               HERÓI
	               É, a gente podia sair junto, ou se encontrar um
	               dia de noite.
	Ele não tá acreditando no papo. Já teve vários parecidos e nunca
	aconteceu nada.
	               MARIANA
	               Tu vai encontrar ela hoje de noite?
	               HERÓI
	               Vou.
	               LÚCIA
	               Vão fazer alguma coisa?
	               HERÓI
	               Não tem nada planejado.
	               LÚCIA
	               Legal. A gente podia fazer o seguinte: se
	               encontrar aqui em casa, tomar um vinho.
	               HERÓI
	               (sem jeito, escorragadio) É. Eu acho que é legal.
	               LÚCIA
	               (arriscando) Eu podia convidar o resto do
	               pessoal...
	               HERÓI
	               (com medo) Legal. O Júlio, o Alexandre, a Maria, a
	               Cláudia...
Silêncio. Lúcia olha pra ele.
	               HERÓI
	               O Milton, acho melhor não.
	               LÚCIA
	               (condescendente) Tudo bem.
CENA 72 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO
	O Herói e Mariana estão outra vez no quarto dele. Beijam-se
	sofregamente. A mão dele vai baixando, baixando, aperta a
	cintura, depois a perna e acaba no meio das pernas. Quando ela
	sente, dá um pulo.
	               MARIANA
	               (séria) Faz isso de novo, e tu nunca mais vai me
	               ver.
	               HERÓI
	               (chateado) Desculpe.
	               MARIANA
	               Eu já te disse que eu não gosto.
	Ele vai um pouco pro lado, olha pra Mariana e pensa um pouco.
	Depois, decide enfrentar a parada e tentar alguma coisa.
	               HERÓI
	               Mariana, tu tem vinte e um anos, é maior de idade,
	               etc. Eu tenho vinte e quatro. Nós tâmo namorando
	               há seis meses. Eu gosto de ti, gosto pra burro, tu
	               sabe disso. (toma fôlego) Tô meio cansado dos
	               chupões e não entendo a tua tabela de
	               permissividade. Qual é a diferença de mão nos
	               peitos e mão no meio das pernas?
	               MARIANA
	               (confusa) Quê?
	               HERÓI
	               (cortando) Pera aí. Eu vou direto pro ponto: tu
	               quer trepar comigo?
Ela não responde, olha pro chão.
	               MARIANA
	               Tem medo?
	               MARIANA
	               Tu sabe que eu nunca trepei.
	               HERÓI
	               Eu sei. Tu não quer... comigo?
	               MARIANA
	               Eu quero.
	               HERÓI
	               (animado) E eu também!
	               MARIANA
	               (assustada) Mas não agora.
	               HERÓI
	               Por quê?
	               MARIANA
	               Por uma série de razões. Tenta entender.
	Ela está nervosa, tensa, insegura. Ele sente a barra, chega mais
	perto e a abraça.
	               HERÓI
	               Tudo bem.
Ele passa a mão nos cabelos dela.
	               HERÓI
	               Eu te amo. (muda de assunto) Tu lembra da Lúcia?
	               MARIANA
	               Aquela amiga tua?
	               HERÓI
	               É. Eu falei com ela hoje de manhã. Ela me convidou
	               pra ir lá na casa dela hoje de noite, tomar um
	               vinho com o pessoal.
	               MARIANA
	               Legal.
	               HERÓI
	               Tu não tá a fim de ir também?
	               MARIANA
	               (admirada) Eu?
	               HERÓI
	               É... Sei lá. Acho que vai tá legal.
Mariana pensa um pouco, avaliando o convite.
	               MARIANA
	               É, pode ser. Tu passa lá em casa pra me pegar?
	               HERÓI
	               (inseguro) Passo sim... Pelas nove, tá bom?
	               MARIANA
	               Tá.
	Silêncio. Os dois se olham. Devagar, ele levanta a mão e começa a
	passar no rosto dela, com carinho.
	Vai chegando mais perto, e acaba beijando, bem suave, três vezes.
	Encosta a boca. Beijam-se. Ele segura a nuca dela. Continua o
	beijo.
	Devagar, a mão dele vai baixando, passa pelas costas e se
	aproxima da bunda. Na cintura, pára um pouco e faz carinho.
	Depois, continua baixando. Chega na bunda. Pára. Está indeciso.
	Faz que vai apertar com força, mas desiste. Coloca a mão
	espalmada e faz um pouco de carinho. Afasta a mão, fecha com
	força.
	Volta, medroso, para o mesmo lugar de antes. Aperta, quase sem
	força. Desiste.
CENA 73 - EXT/ENTARDECER - TRAILER
	O Herói está comendo um cheese-burger num trailer. Olha o
	relógio, seis e meia. Sai.
CENA 74 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói chega no apê e bota um disco. Senta no colchão e pega o
	Correio do Povo de domingo. Começa a ler.
FUSÃO
CENA 75 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO
Herói sentado na patente, ainda com o Correio.
FUSÃO
CENA 76 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	Ele no colchão, lendo um livro. Pára um pouco, olha pro relógio:
	oito horas. Close no rosto dele. Está com medo.
CENA 77 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA
	O Herói e Mariana chegando na casa de Lúcia. Lúcia abre a porta,
	dá dois beijos em Mariana. Entram. O Herói olha em volta.
	Num canto da sala, com um sorriso irônico na cara, Milton observa
	a cena.
CENA 78 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói ainda na sala do seu apê, sentado no colchão, ainda com o
	mesmo livro na mão. Ele estende as pernas, coça atrás da orelha.
CENA 79 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA
	De novo na casa de Lúcia. Milton levanta-se e vai sentar ao lado
	de Mariana. Ela sorri quando ele chega.
	               MILTON
	               Eu gosto do teu nome, Mariana.
O Herói observa a cena, angustiado. Mariana sorri.
	               MILTON
	               Tu deve valer por duas, né? Maria, mais Ana.
Milton ri, Mariana também.
	               MILTON
	               Sabe, eu tava há horas a fim de te conhecer.
	               MARIANA
	               (orgulhosa, levemente sensual) É?
	               MILTON
	               É. Quê que tu estuda?
	               MARIANA
	               Psicologia.
	               MILTON
	               Que barato. Outro dia eu ainda tava lendo um
	               livro... é dum cara aí. Ele diz que a psicologia e
	               a psiquiatria, essas coisas aí, tão cavando um
	               túnel numa montanha. No outro lado tá o marxismo,
	               que também tá cavando um túnel. Só que as duas
	               equipes nunca se encontram.
	               MARIANA
	               (rindo, mas sem entender nada) Montanha? Que
	               montanha?
	               MILTON
	               A montanha é tudo isso aí.
	               MARIANA
	               (como quem entendeu) Ah, tá.
	               MILTON
	               (sorrindo) E se fosse na China, hein?
	               MARIANA
	               (confusa, mas aberta) Quê que tem?
	               MILTON
	               Na China, eles podiam botar uns milhares de
	               chineses cavando de cada lado. Se eles se
	               encontrassem, fariam um túnel. Se eles não se
	               encontraseem, fariam dois túneis.
	Milton ri, Mariana também. Milton fica mais entusiasmado e ri
	mais alto. Mariana vai atrás. O Herói observa tudo, mudo,
	angustiado.
CENA 80 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói no seu apê, ainda na mesma posição. Olha pro lado.
	Mariana tá ali com ele.
	               MARIANA
	               Eu achei o Milton muito legal. Não vi todas essas
	               coisas que tu me falou dele. Sei lá, ele é bem
	               divertido.
CENA 81 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói na mesma posição da cena anterior, mas agora sozinho. Ele
	olha pro relógio: nove horas. Permanece sentado, olhando pra
	lugar nenhum.
	De repente, levanta, bota o casaco, vai até a porta. Segura o
	trinco. Pára. Volta, senta outra vez no colchão. Pensa.
CENA 82 - INT/NOITE - CASA DE MARIANA: QUARTO
	Mariana deitada de bruços na cama, vendo TV, novela das 8. Quando
	anunciam as "cenas do próximo capítulo", ela levanta e vai até o
	telefone. Disca.
	               MARIANA
	               Betina? Oi, é a Mariana. (pausa) Quê que tu vai
	               fazer hoje de noite? (pausa) É que eu tinha um
	               troço... mas nem sei mais o que é. (pausa) O Rui?
	               Tá legal, eu passo aí daqui a pouco.
Desliga o telefone.
CENA 83 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
O Herói ainda no colchão. Olha pro relógio: dez horas.
	Pega um livro. Tenta ler, mas não consegue. Está angustiado, mas
	sonolento. Fecha um pouco os olhos.
CENA 84 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA
	Na casa de Lúcia, os amigos estão reunidos, conversando. De
	repente, Lúcia parece lembrar alguma coisa.
	               LÚCIA
	               Se não me engano, tá faltando alguém.
	               JÚLIO
	               Vamo até o Alaska tomar um chope?
	               LÚCIA
	               (indiferente) Vamo, pessoal?
Todos levantam.
CENA 85 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA
	O Herói no colchão da sala, quase dormindo. Ainda consegue olhar
	pro relógio antes de dormir: onze e meia. Adormece.
CENA 86 - EXT/NOITE - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI
	Na frente do edifício, surge Lúcia. ela vai até o porteiro
	eletrônico. Aperta e fica esperando.
	Logo depois, chega Mariana. Vai até o porteiro e também bate.
	Lúcia percebeu que Mariana tocou no apartamento do Herói.
	               LÚCIA
	               Oi. Tu que é a Mariana?
	               MARIANA
	               É.
	               LÚCIA
	               Vocês não tinham ficado de ir lá em casa hoje de
	               noite?
	               MARIANA
	               Tu é a Lúcia? É, mas ele não apareceu lá em casa
	               pra me pegar, não sei o que aconteceu, tô
	               preocupada.
	               LÚCIA
	               Lá em casa ele também não foi.
	               MARIANA
	               Será que ele tá em casa? Aperta de novo.
Lúcia aperta o botão com força.
CENA 87 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: COZINHA E SALA
	Detalhe do porteiro eletrônico do apê, mudo. A câmara desloca-se,
	devagar, até o Herói, que continua deitado no colchão. Ele parece
	sentir frio, enrosca-se mais, até atingir uma posição quase
	fetal.
CENA 88 - EXT/NOITE - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI
	A frente do edifício, com o porteiro eletrônico bem no meio do
	quadro. Completamente deserta.
	A câmara faz uma panorâmica e mostra a rua, escura, com carros
	passando de vez em quando.
FADE OUT
CENA 89 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA
	É de manhã. O Herói abre os olhos. Olha pro relógio: oito e meia.
	Levanta devagar e olha em volta, tentando descobrir por que não
	dormiu na sua cama. Olha pra fora.
	Tá chovendo. Nuvens passam devagar. As árvores, nuas, estão
	completamente molhdas, e os galhos retorcidos deixam a água
	escorrer devagar. A parede do edifício parece manchada com a
	umidade. A grama por perto tá toda queimada.
	O Herói bota um disco. É "Echoes". Aumenta o volume. Olha pra
	cima, desafiador.
A chuva aumenta.
	Ele senta no chão da sala e toca os pés com as pontas dos dedos
	das mãos. Baixa a cabeça. Fica um tempo assim.
	Depois, levanta a cabeça, bem rápido, e a sacode, espantando os
	demônios. Levanta, vai em direção ao banheiro.
CENA 90 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO
	O Herói no chuveiro, tomando um banho quente. O vapor toma conta
	do banheiro.
CENA 91 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO
O Herói veste-se: abrigo de nylon com capuz.
CENA 92 - EXT/DIA - RUA
	O Herói caminha pela rua, com a cabeça baixa. Continua chovendo.
	Ele olha pro lado. Mariana tá caminhando com ele. Ele sorri e
	olha pra frente.
A música do Pink Floyd continua.
CENA 93 - EXT/DIA - BANCA DE REVISTAS
	O Herói chega na banca de revistas, sozinho, e compra o jornal.
	Bota debaixo do braço e começa a voltar, bem devagar.
CENA 94 - EXT/DIA - RUA
	A chuva aumenta ainda mais. O Herói levanta a cabeça e deixa a
	chuva molhar bem o seu rosto. Continua caminhando.
	Já está nas proximidades do edifício. Numa esquina, pára e olha
	pro lado. Mariana já vai atravessar. Ele a segura.
Corta a música.
Mariana olha pra ele.
	               HERÓI
	               Pra que a pressa? Olha bem pros dois lados,
	               Mariana. Não quero que tu morra atropelada. Tem um
	               monte de coisa que a gente ainda tem que fazer.
A câmara agora pega os dois pelas costas. Eles atravessam a rua.
CENA 95 - EXT/DIA - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI
Entra "O Inverno", de Vivaldi.
	O Herói e Mariana caminham juntos em direção ao edifício. O Herói
	abraça Mariana pelos ombros. Os dois vão diminuindo no quadro,
	sempre rumo ao edifício. Entram.
A câmara fica um pouco mostrando o edifício e a chuva.
CRÉDITOS FINAIS
FIM
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	(c) Carlos Gerbase, 1982.
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
01/01/1983
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