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LUNA CALIENTE (CAP. 3)
microssérie em 4 capítulos
roteiro de Jorge Furtado,
Carlos Gerbase
e Giba Assis Brasil
a partir da novela homônima de
Mempo Giardinelli
versão de 11/08/1998
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
para TV Globo
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PRIMEIRO BLOCO
CENA 82 - EXT/DIA - TL / PONTE
Ramiro e Gomulka terminam de entrar no TL que está estacionado
de frente para a ponte ao lado da porteira. Monteiro abaixa-se
para falar com eles pela janela de Ramiro.
MONTEIRO
Vão devagar. Estou bem atrás de vocês.
Monteiro afasta-se. Ao fundo, o carro de Monteiro. Ramiro
ajeita o retrovisor para poder falar com Gomulka enquanto
observa Monteiro.
GOMULKA
Ramiro, namorada eu não tenho...
RAMIRO
Gomulka...
GOMULKA
Mas se você quiser acabar com a minha vida
de vez eu posso te dar o meu aparelho de
som, para você jogar no rio.
RAMIRO
Gomulka, você vai ter que me ajudar.
Carro de Monteiro sai pela porteira. Gomulka arranca.
CENA 82A - EXT/DIA - TL
GOMULKA
Claro... Que tal o carro da minha irmã?
Quer emprestar para algum outro bêbado?
RAMIRO
(interrompendo) Eu não emprestei o carro.
GOMULKA
Como é que é?
Ramiro olha para Gomulka.
RAMIRO
É que... (hesita) Tem umas... coisas que eu
não contei ainda.
GOMULKA
Que coisas?
RAMIRO
Você sabe como era o doutor Bráulio... Como
é o doutor Bráulio.
GOMULKA
Não, não sei. Nunca fui com a cara dele.
RAMIRO
Ele estava muito alterado, tinha bebido
demais...
GOMULKA
Isso eu já sei.
RAMIRO
Ele estava agressivo, me acusou de uns
troços absurdos...
GOMULKA
Como...
RAMIRO
Você conhece a filha dele...
GOMULKA
Acho que não tanto quanto você.
RAMIRO
Ela estava no jantar, conversamos um pouco.
E...
GOMULKA
E...
RAMIRO
O velho insinuou que eu dei em cima dela.
GOMULKA
E você deu.
RAMIRO
É uma criança, Gomulka!
GOMULKA
Claro. Você só conversou com ela, olhou
pras pernas dela...
RAMIRO
Não olhei nada. O velho estava fora de
órbita. Ele se enfiou no carro e começou a
dizer as maiores barbaridades.
GOMULKA
Certo. Um velho bêbado, chamando você de
tarado, e você ainda empresta o carro pra
ele.
RAMIRO
Eu NÃO emprestei o carro pra ele. Eu dei um
soco nele.
GOMULKA
(surpreso) Você bateu no velho? Por que não
disse isso antes?
RAMIRO
Achei que ficava mal pra mim. O velho
desaparecido, depois morto...
GOMULKA
E ele reagiu?
RAMIRO
Não. Desabou na hora, parecia desmaiado. Eu
parei o carro, não sabia o que fazer. Saí
para procurar ajuda. Quando eu vi, ele
tinha ligado o carro e estava indo embora.
Me deixou no meio da estrada.
GOMULKA
Velho desgraçado! Então você não emprestou
o carro. Foi ele que roubou! Eu sabia que
você não ia...
RAMIRO
Gomulka, quero que você me ajude a trocar
meu depoimento. Esse Monteiro vai pegar no
meu pé quando o velho contar da briga.
Gomulka olha para Ramiro.
GOMULKA
Não é bem a minha área. Eu cuido mais de
herança, inventários...
RAMIRO
Não vou conseguir outro advogado agora. Eu
estou pedindo como amigo, mas vou te pagar.
GOMULKA
Não é questão de dinheiro.
RAMIRO
Eu te compro outro carro.
GOMULKA
Não existe carro igual aquele.
RAMIRO
O carro do Rildo.
GOMULKA
O Chevrolet 45?
RAMIRO
Eu compro e te dou.
GOMULKA
Eu já tentei comprar um milhão de vezes.
RAMIRO
Ele é meu tio. Eu garanto.
Gomulka pensa um pouco e depois olha para Ramiro, muito sério.
Ramiro tira do bolso da camisa um cigarro, bate-o duas vezes
no painel do carro e o acende. Gomulka faz uma careta e afasta
a fumaça sacudindo a mão.
GOMULKA
Como é que você consegue fumar essa
porcaria sem filtro?
RAMIRO
Peguei costume na França.
GOMULKA
Você mudou bastante nesse tempo que ficou
fora.
Ramiro olha para Gomulka, outra vez preocupado. Traga e solta
a fumaça pela janela. Gomulka olha para Ramiro, como que
pensando sobre esta última frase. Depois de um tempo, Ramiro
insiste.
RAMIRO
É, mudei. (pausa) Afinal, você vai me
ajudar ou não?
O TL passa pela estrada asfaltada, seguido pelo carro de
Monteiro.
CENA 83 - EXT/DIA - FRENTE DA DELEGACIA
Os carros chegam e estacionam. Monteiro sai do carro. Gomulka
também sai e caminha apressado até Monteiro.
CENA 84 - INT/DIA þ DELEGACIA / RECEPÇÃO
Monteiro entra na delegacia, seguido por Gomulka.
GOMULKA
Doutor Monteiro...
MONTEIRO
Não sou doutor.
GOMULKA
O meu cliente...
Monteiro olha para Gomulka, meio desconfiado.
MONTEIRO
Cliente?
GOMULKA
O doutor Ramiro. Ele lembrou de alguns
detalhes sobre os acontecimentos de ontem à
noite e gostaria de comentá-los com o
senhor.
Monteiro olha para Ramiro por cima do ombro de Gomulka.
Depois, começa a caminhar em direção à porta de sua sala.
Gomulka vai atrás, quase correndo.
GOMULKA
Ele quer falar com o senhor agora. É
possível?
MONTEIRO
O seu cliente parece estar um pouco
nervoso.
Gomulka olha para Ramiro.
GOMULKA
Impressão sua...
MONTEIRO
Primeiro vou falar com o doutor Bráulio.
Monteiro volta-se para a porta, indica um banco de madeira.
MONTEIRO
Podem esperar aí.
Ramiro olha para Gomulka, que aponta para o banco. Os dois
olham para Monteiro, que está entrando em sua sala. Gomulka
senta.
GOMULKA
Ele já vai nos atender.
RAMIRO
(baixinho) O velho vai me ferrar, Gomulka.
Monteiro reaparece na soleira da porta.
MONTEIRO
Por favor, entrem.
CENA 85A - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE IDENTIFICAÇÃO
Gomulka e Ramiro entram na sala. Dois policiais, nas mesas,
olham para Ramiro. Ramiro diminui o passo.
MONTEIRO
O doutor Bráulio quer falar com vocês.
CENA 85 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO
BRAULITO, 23 anos, pele morena, ar preocupado está sentado em
frente à mesa de Monteiro.
BRAULITO
Na verdade eu ainda não sou doutor. Me
formo ano que vem.
Ramiro olha para Braulito, surpreso.
MONTEIRO
(apontando Ramiro para Braulito) Este
senhor estava no carro com o seu pai ontem
à noite.
RAMIRO
Braulito?
BRAULITO
E você é Ramiro. Eu lembro de você. Não
entendo como pôde emprestar o carro para o
papai, sabendo que ele estava embriagado.
GOMULKA
(para Monteiro) Pois é justamente isso que
o Ramiro queria...
RAMIRO
(cortando rápido) Foi tudo muito rápido,
Braulito. O seu pai estava...
GOMULKA
Fora de controle.
RAMIRO
Não te mete, Gomulka. (para Braulito) Ele
tinha bebido um pouco, mas parecia capaz de
dirigir. Foi uma fatalidade, talvez um pneu
estourado.
GOMULKA
Mas...
MONTEIRO
(para Ramiro) O seu advogado disse que você
tinha lembrado de uns detalhes.
Monteiro dirige-se à sua mesa.
RAMIRO
Lembrei. Lembrei sim. (hesita por um
instante) O carro estava com um problema...
Toca o telefone. Monteiro atende em sua mesa. Fica ouvindo.
GOMULKA
(baixinho, para Ramiro) Que problema?
Ramiro, não estou entendendo...
RAMIRO
(seco) Depois te explico.
Monteiro desliga o telefone. Olha para Ramiro.
MONTEIRO
(devagar) Encontramos...
Monteiro olha para Braulito.
MONTEIRO
O corpo de seu pai. Sinto muito.
Braulito senta, desolado. Gomulka coloca a mão sobre seu
ombro.
CENA 86 - INT/DIA - CASA DE BRÁULIO / SALA
Na sala lotada, umas trinta pessoas cercam um caixão fechado,
suspenso em cavaletes metálicos. Dona Carmem e Braulito
recebem os pêsames dos presentes. Um padre abraça Dona Carmem
e fala alguma coisa no seu ouvido. Ela chora. Dona Maria
também chora. Apesar das janelas abertas e dos três
ventiladores ligados, o calor é sufocante, fazendo todos
suarem muito.
Ramiro olha constrangido para as pessoas. Duas mulheres olham
para ele. Depois um homem e ainda outro grupo de pessoas,
todos olhando para Ramiro.
Braulito aproxima-se de Gomulka e Ramiro, estende a mão para
Gomulka.
BRAULITO
(para Gomulka) Muito obrigado. Se não fosse
a sua ajuda, isso tudo seria ainda mais
difícil.
GOMULKA
Não foi nada. Essas perícias às vezes
demoram.
BRAULITO
Eu sei.
Braulito encara Ramiro. Ficam por alguns segundos frente a
frente, olho no olho, as duas testas suadas. Finalmente,
Braulito estende a mão para Ramiro, que a aperta. Braulito não
larga a mão de Ramiro.
BRAULITO
É uma pena que, depois de tanto tempo, a
gente se reencontre assim.
RAMIRO
É.
BRAULITO
Mamãe disse que você não teve culpa. Que o
pai estava naqueles dias terríveis, em que
nem o diabo pode com ele.
RAMIRO
(culpado) Eu... Gostava muito do seu pai.
Braulito solta a mão de Ramiro.
BRAULITO
Eu sei.
Ramiro desvia os olhos de Braulito.
BRAULITO
Com licença.
Braulito sai.
CENA 86A þ CASA DE TENNEMBAUN þ ESCADA DO ALPENDRE
Ramiro e Gomulka no patamar.
GOMULKA
Não esquece de falar com o Rildo.
RAMIRO
Sobre o quê?
GOMUKA
Já esqueceu? Do carro dele.
RAMIRO
Num velório? Amanhã eu falo.
GOMULKA
Sei. Não esquece. Você vai comigo?
RAMIRO
(para Gomulka) Não, vou ficar mais um
pouco.
Ramiro começa a subir a escada mas encontra Elisa que desce o
lance mais alto da escada. Ela está com um vestido negro até a
metade da coxa, tecido leve, justo no torso. O cabelo está
preso com um passador. Não há sinal de lágrimas em seu rosto.
Ramiro olha para ela, indefeso.
ELISA
Me leva para andar um pouco.
Ramiro e Elisa descem e se afastam para os fundos da casa.
CENA 87 - EXT/CREPÚSCULO - CASA DE BRÁULIO / FUNDOS
Por um caminho de terra, Ramiro e Elisa afastam-se da casa.
Ramiro olha para Elisa. Ela parece estar calma. Caminham por
algum tempo em silêncio.
ELISA
(sem olhar para Ramiro) A polícia esteve
aqui.
Ramiro continua calado.
ELISA
Fizeram perguntas. Para mim, para mamãe e
para Braulito.
Elisa aproxima-se de uma árvore. Pára e olha para Ramiro.
Ramiro olha para trás. A casa não está mais à vista. Elisa
encosta-se na árvore. Ramiro volta-se para ela.
ELISA
Queriam saber a hora em que você e papai
saíram.
RAMIRO
E aí...
ELISA
Ninguém soube dizer.
RAMIRO
Nem você?
ELISA
Nem eu.
RAMIRO
E o que você disse, afinal?
Elisa está encostada na árvore, cujo tronco possui uma leve
inclinação. A respiração de Elisa fica agitada.
ELISA
Não te preocupa.
Elisa passa a mão nas suas coxas, suave e sugestivamente, de
cima para baixo. Sua boca se entreabre. A respiração se
acelera ainda mais. Alguns raios do sol conseguem driblar a
vegetação e iluminam apenas o rosto de Elisa, deixando seu
corpo na penumbra.
Ramiro olha para ela.
ELISA
(erguendo a saia) Vem.
As pernas de Elisa surgem perfeitas, torneadas, de um
bronzeado mate. Ramiro, nervoso, testa suada, aproxima-se
dela. Ficam frente a frente, sem se tocar.
RAMIRO
Elisa, pelo amor de Deus, você vai me
enlouquecer.
Elisa sorri, diabólica. Ramiro a abraça. Beija-a. Elisa beija-
lhe a orelha. Flexiona as pernas, facilitando os movimentos de
Ramiro, que a levanta com facilidade, usando o tronco da
árvore como apoio.
Ramiro a penetra com um ronco selvagem. Fazem movimentos
bruscos, quase brutais. As mãos dela cravam-se nas costas de
Ramiro, ao mesmo tempo em que morde sua orelha e lambe o seu
pescoço. Gemem de prazer. As mãos de Elisa crispam-se,
segurando-se na árvore.
Quando terminam, continuam abraçados, de olhos fechados, as
duas respirações ofegantes. Ramiro abre os olhos e se afasta.
Olha para cima e vê o tronco da árvore, que exibe um
emaranhado de linhas, como cicatrizes.
Num rompante, Ramiro afasta-se de Elisa, que tranqüilamente
arruma sua roupa e ajeita o cabelo. Sorri, como uma menina,
para Ramiro.
ELISA
Temos que voltar.
Ramiro enxuga o suor da testa.
Ramiro e Elisa voltam juntos, em silêncio, pelo mesmo caminho.
Na saída do mato, um vulto surge de costas, cortando-lhes o
caminho. Ramiro pára, aterrado, ao perceber que é Monteiro.
MONTEIRO
Boa noite, doutor Ramiro. Boa noite,
senhorita.
Ramiro fica olhando para Monteiro.
FIM DO PRIMEIRO BLOCO
SEGUNDO BLOCO
CENA 88 - EXT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / FUNDOS
Ramiro parece constrangido, ajeita a roupa, tenta compor-se.
Elisa não demonstra constrangimento.
MONTEIRO
Doutor, é preciso que me acompanhe.
RAMIRO
Agora, inspetor?
MONTEIRO
Sim, por favor. (para Elisa) A senhorita
pode ir para casa.
ELISA
Eu estou em casa. (para Ramiro) Boa noite.
Elisa afasta-se em diração à casa, ao fundo. Monteiro olha
para Elisa.
RAMIRO
Isto é uma prisão, inspetor? Qual é o
motivo?
Monteiro olha para Ramiro.
MONTEIRO
O senhor me acompanhe.
Monteiro toca levemente o braço de Ramiro. Ramiro o segue.
Andam, lado a lado, por um caminho que se afasta da casa, em
direção ao carro.
MONTEIRO
Lá na delegacia, nós conversaremos.
RAMIRO
Alguma novidade?
MONTEIRO
Recebemos os resultados da perícia no
carro. E o relatório do médico legista.
Quero confirmar com o senhor alguns
detalhes da sua declaração.
RAMIRO
Devo chamar meu advogado?
MONTEIRO
(ri) O dono do carro? Tem certeza que o
senhor não quer chamar um advogado mais
experiente para defendê-lo?
RAMIRO
O senhor acha que eu vou precisar?
MONTEIRO
É possível.
Chegam ao carro da polícia. Os POLICIAIS 1 e 2 estão no carro,
nos bancos da frente. O policial 1 desce do carro e abre a
porta de trás para Ramiro.
MONTEIRO
Se o senhor achar necessário, poderá chamá-
lo da delegacia. Mas nós estamos tratando
de ser discretos.
RAMIRO
Eu ouvi dizer que, neste país, a discrição
da polícia pode ser perigosa.
Monteiro vira-se e entra no carro.
MONTEIRO
Eu estou apenas cumprindo o meu dever. Mas,
se o senhor preferir, eu posso ligar a
sirene.
Ramiro se vira, dá uma olhada em direção à casa e vê, ao
longe, Elisa.
Elisa termina de subir a escada. Ela o observa. Ramiro entra
no carro. O policial 1 fecha a porta e dá a volta no carro.
Carro some atrás do galpão.
CENA 89 - EXT/NOITE - CARRO DA POLÍCIA / ESTRADA ASFALTADA
Ramiro e Monteiro, sentados lado a lado no banco de trás do
carro. Monteiro procura algo. Ramiro recosta-se no banco, olha
a paisagem: pequenos ranchos adormecidos, uma ou outra luz em
bares de beira de estrada, alguns animais no pasto. Ramiro
ainda olha para a paisagem. Monteiro continua procurando.
MONTEIRO
O senhor esqueceu mais alguma coisa no
carro?
Monteiro acende a luz do carro.
RAMIRO
Como?
MONTEIRO
Além da sua chave, o senhor esqueceu mais
alguma coisa, no carro ou com o doutor
Bráulio?
Monteiro abre sua pasta.
RAMIRO
O quê, por exemplo?
Ramiro olha para a pasta. Monteiro põe a mão no bolso do
paletó e tira uma carteira amassada de cigarros.
MONTEIRO
É exatamente o que eu estou lhe
perguntando. Esqueceu ou não?
Ramiro observa-o.
RAMIRO
Que eu lembre...
MONTEIRO
Não deu falta de nada?
Monteiro procura fósforos pelos bolsos. Não encontra.
RAMIRO
Inspetor, se o senhor me disser o que o
senhor encontrou e pensa que possa ser meu,
talvez seja mais fácil eu...
MONTEIRO
Eu não encontrei nada que pudesse ser seu.
RAMIRO
Então...
MONTEIRO
Então, nada.
Ramiro observa Monteiro alguns instantes, depois vira o rosto
e volta a olhar a paisagem que passa. Um caminhão se aproxima,
iluminando o interior do carro.
MONTEIRO
(para Ramiro) O senhor tem fogo?
RAMIRO
Não, não tenho.
Monteiro toca no ombro do motorista.
MONTEIRO
Tem fogo, Oliveira?
O caminhão passa. O homem ao lado do motorista, sem se virar,
entrega uma caixa de fósforos por sobre o ombro. Monteiro pega
a caixa de fósforos, abre, risca um fósforo, acende o cigarro.
Ramiro tenta abrir a janela, descobre que só é possível abrir
uma pequena fresta na janela de trás. Abre o último botão da
camisa. Segura a camisa e abana-se com ela.
RAMIRO
(para Monteiro) O senhor me daria um
cigarro?
Monteiro pega o maço de cigarro no bolso, examina. Está vazio.
MONTEIRO
Acabou. Era o último.
Monteiro dá uma longa tragada no cigarro, observa Ramiro.
Ramiro faz um gesto de "deixa para lá". Tenta mais uma vez
abrir a janela, mas não consegue. Parece que o mecanismo que
desce o vidro está quebrado.
O carro cruza a estrada. A grande lua cheia ilumina os campos.
CENA 90 - INT/NOITE - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO
Ramiro entra no escritório do Monteiro. Monteiro já está
sentado numa cadeira de couro em frente a uma velha mesa de
madeira em completa desordem. Um fichário de metal com gavetas
que não fecham muito bem, um quadro de avisos, uma cadeira de
madeira, giratória e reclinável, na frente da mesa.
A luz da lua entra filtrada pelos vidros não muito limpos das
basculantes semi-abertas.
MONTEIRO
Ligou?
RAMIRO
Liguei.
MONTEIRO
Quer esperar que ele chegue? Podemos ir
conversando, extra-oficialmente, para
ganhar tempo.
RAMIRO
O que o senhor quer saber?
Ramiro senta na cadeira de madeira em frente à mesa. Monteiro
procura alguns papéis sobre a mesa. A cadeira de Ramiro é
bastante instável mas ele procura se acomodar.
MONTEIRO
Olhe, doutor, vou ser bem claro: neste
assunto há um montão de coisas que não se
encaixam.
Monteiro acende uma luminária sobre a mesa. Um rasgo na
pantalha que cobre a lâmpada joga uma luz direta sobre o rosto
de Ramiro.
MONTEIRO
Conte-me de novo, com todos os detalhes que
puder lembrar, o que fez ontem à noite.
Ramiro suspira fundo.
CENA 91 - INT/NOITE - DELEGACIA / CORREDOR
Ramiro solta a fumaça do cigarro. Ramiro está sentado na
escada, Gomulka de pé, apoiado no corrimão, ao seu lado.
GOMULKA
(baixinho) Você contou?
RAMIRO
O quê?
GOMULKA
Do soco.
RAMIRO
Não.
GOMULKA
Por que não? Devia ter contado.
RAMIRO
Pense bem, Gomulka: o que é motivo para dar
um soco, pode ser motivo para matar. Não
contei, agora é tarde.
GOMULKA
Devia ter contado. Esses médicos hoje,
examinando um cadáver, descobrem até
quantos traques um sujeito deu antes de
morrer.
Monteiro surge no corredor, ao fundo, secando as mãos num
papel. Joga o papel no lixo. Erra. Pára, volta, junta o papel
no chão e coloca no lixo.
MONTEIRO
Podemos continuar?
Ramiro apaga o cigarro.
RAMIRO
Podemos.
CENA 92 - INT/NOITE - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO
Monteiro se senta. Gomulka e Ramiro sentam-se também.
MONTEIRO
Quer que lhe diga a verdade, doutor?
Ramiro fica olhando para ele em silêncio.
MONTEIRO
Acho que tudo o que o senhor contou está
certo em... noventa e nove por cento. O que
me preocupa é esse um por cento restante.
GOMULKA
Se o senhor puder esclarecer em que pontos
o depoimento do meu cliente não...
combina.. não se harmoniza...
Monteiro olha para Gomulka.
MONTEIRO
Não condiz.
GOMULKA
Obrigado. Se o senhor puder esclarecer em
que pontos o depoimento do meu cliente não
condiz com as suas observações...
Monteiro agora olha para Ramiro.
MONTEIRO
É curioso que no carro haja mais impressões
digitais suas do que do doutor Bráulio. No
volante e na alavanca de mudança.
Ramiro se apressa em responder. Gomulka tenta detê-lo com um
gesto, mas não consegue.
RAMIRO
Quem guiou quase todo o tempo fui eu.
MONTEIRO
Mas segundo seu relato você não tem como
saber quanto tempo guiou o doutor Bráulio.
Monteiro fica observando Ramiro. Gomulka dá uma olhadinha para
Ramiro e repreende-o com um olhar.
GOMULKA
Se ele deixou o Ramiro em casa antes das
quatro e morreu pouco depois das cinco, não
dirigiu por mais de uma hora. Ramiro pegou
o meu carro pouco depois das oito, dirigiu
até a casa do doutor Bráulio. E de volta
para a cidade. Muito mais tempo.
MONTEIRO
Mesmo assim, se o doutor Bráulio dirigiu
por mais de uma hora, é estranho que haja
tão poucas impressões dele. Mas não é só
isso.
Monteiro pega algumas das fotos que estavam sobre a mesa e se
levanta. Chega por trás deles e mostra as fotos.
MONTEIRO
O cadáver tinha uma machucadura, uma
equimose, no maxilar inferior esquerdo,
aqui. (batendo duas vezes em seu próprio
queixo) E um corte no lábio inferior.
GOMULKA
Ele caiu, de carro, de uma altura de dez
metros. É natural que tivesse muitas...
Monteiro olha para Gomulka.
MONTEIRO
Equimoses.
GOMULKA
Isso.
Monteiro dá a volta na mesa e senta em sua cadeira. Ramiro e
Gomulka o acompanham com o olhar.
MONTEIRO
E tinha mesmo. Muitas. Mas sua roupa quase
não tinha manchas de sangue. O que é
natural, considerando-se que ele caiu, com
o carro, dentro da água. Se os ferimentos
sangraram, e possivelmente tenham sangrado
muito, a água do rio cuidou de lavar suas
roupas imediatamente.
GOMULKA
E qual é a dúvida?
Monteiro fala para Gomulka.
MONTEIRO
A dúvida é que, como eu disse, sua roupa
QUASE não tinha manchas de sangue.
Monteiro fica mais um tempo examinando as fotos. E olha para
Ramiro.
MONTEIRO
Há uma mancha, bem visível, junto ao
colarinho esquerdo, perto das equimoses
descritas, no maxilar esquerdo. Parece que
esse ferimento foi feito algum tempo antes
da queda. Por isso a água do rio não tirou
a mancha. Percebem?
Gomulka olha para Ramiro.
GOMULKA
Percebemos.
Monteiro guarda as fotos num envelope e encara Ramiro.
MONTEIRO
Como se o tivessem feito dormir com um
golpe e depois colocado suas mãos no
volante e na alavanca para deixar as
impressões digitais.
Ramiro encolhe os ombros, engole saliva e fica olhando para a
lâmpada.
MONTEIRO
Você não viu se ele deu carona para alguém,
depois que o deixou em casa?
RAMIRO
Não, se tivesse visto eu teria dito.
MONTEIRO
Claro.
Monteiro acende um cigarro. Dá uma tragada. E olha para
Ramiro.
MONTEIRO
Imagino que alguém lhe deu um soco, para
fazê-lo dormir. Depois o colocou no
volante. E depois ligou o carro, na direção
da ponte.
Ramiro olha para Monteiro. Pausa. Ramiro pensa antes de falar.
RAMIRO
O senhor está pensando que fui eu?
Monteiro encara Ramiro. Gomulka levanta-se, alterado.
GOMULKA
O que é isso, Ramiro? Você estava em casa,
desde antes das quatro.
MONTEIRO
Isso é verdade. Sua mãe acordou e o viu
chegar em casa, antes das quatro. O senhor
tocou a campainha ao chegar?
RAMIRO
Não, claro que não. Mas ela tem o sono
leve. Qualquer barulhinho...
GOMULKA
Minha mãe é igual. Não posso me virar na
cama que...
MONTEIRO
O senhor então entrou em casa sozinho?
RAMIRO
Claro que sim.
MONTEIRO
Mas sua chave não estava com o senhor.
Estava no carro, com o doutor Bráulio.
Ramiro pára, sem saber o que dizer. Gomulka olha para Ramiro
tentando, sem muito sucesso, aparentar calma. Ao fundo,
Oliveira abre a porta e faz um sinal para Monteiro.
RAMIRO
Claro... agora que o senhor falou... Foi
isso... eu desci do carro e, quando cheguei
na porta, percebi que havia deixado a chave
no carro. O doutor Bráulio já tinha
partido...
MONTEIRO
E então?
RAMIRO
E então... eu dei a volta na casa e entrei
pela cozinha.
MONTEIRO
Pela porta da cozinha?
RAMIRO
Na verdade, pela janela da cozinha. Está
sempre aberta. Eu não queria acordar minha
mãe...
MONTEIRO
Mas acabou acordando.
RAMIRO
Sem querer.
MONTEIRO
Claro. O senhor me dá licença um minuto?
Monteiro levanta, sai e deixa a porta meio aberta.
GOMULKA
(falando baixo) Você devia ter contado do
soco... Devia ter contado!
RAMIRO
Agora é tarde.
Gomulka levanta-se e vai até a porta. Espia e fecha a porta.
Aproxima-se da ponta da mesa de Monteiro, ao lado direito de
Ramiro, e fica de pé, apoiado na mesa.
GOMULKA
E que merda é essa da chave? Você não me
disse nada!
RAMIRO
Esqueci, que importância tem isso? Entrei
pela janela da minha própria casa. Isso é
crime?
Monteiro entra pela porta, trazendo uma pasta. Aproxima-se da
sua cadeira.
GOMULKA
Inspetor, se o senhor não tem mais
perguntas...
MONTEIRO
Só mais uma, depois vocês podem ir.
Monteiro senta, encara Ramiro.
MONTEIRO
Olhe, doutor Ramiro, o senhor me perguntou
se eu acho que o senhor matou o doutor
Bráulio Tennembaun.
Monteiro faz uma pausa.
RAMIRO
Perguntei. O senhor acha?
MONTEIRO
Pois me dá um palpite que sim, que quer que
eu faça?
Ramiro olha para Gomulka.
GOMULKA
O senhor está acusando o meu cliente...
MONTEIRO
Não estou acusando de nada. Estou dizendo
que é só um palpite. Um palpite que não
posso provar. Ainda. Falta um detalhe.
GOMULKA
Qual?
MONTEIRO
Motivo. Que motivo teria o senhor para
matá-lo?
GOMULKA
Nenhum. Nenhum motivo.
MONTEIRO
Olhe, doutor, o senhor é um homem jovem, de
futuro. Estudou na França e tudo. Vai ser
professor na universidade, não tem maus
antecedentes... Além disso comprovamos sua
velha amizade com a família Tennembaun.
Então é isso, não consigo entender... por
que haveria de matar esse médico
provinciano?
Ramiro fica em silêncio.
MONTEIRO
Que relações o senhor tem com a senhorita
Elisa?
Ramiro fica alguns segundos em silêncio, tentando conter o
nervosismo.
RAMIRO
Quando eu fui para Paris, ela era muito
criança. Só tornei a vê-la ontem à noite.
Somos amigos. De família.
MONTEIRO
Claro. Ela está lhe esperando.
RAMIRO
Como? Onde?
MONTEIRO
Aí fora. Vocês podem ir agora.
Ramiro e Gomulka levantam-se.
MONTEIRO
O senhor não pretende viajar nos próximos
dias, pretende?
RAMIRO
Não.
GOMULKA
O senhor está querendo dizer que o meu
cliente não pode sair do país?
MONTEIRO
Não, senhor Gomulka. (levantando-se) Eu
estou querendo dizer que o seu cliente não
pode sair da cidade.
A porta da sala de Monteiro é aberta, Ramiro e Gomulka saem
seguidos por Monteiro. Os três olham para a recepção, Monteiro
entre eles, um pouco para trás. Através da porta da sala de
Oliveira vêem Elisa sentada num banco da recepção.
MONTEIRO
Ela está muito bonita, não?
Ramiro pensa um pouco antes de responder.
RAMIRO
Sim, muito bonita.
MONTEIRO
Sabe a idade dela?
RAMIRO
Sei.
FIM DO SEGUNDO BLOCO
TERCEIRO BLOCO
CENA 93 - EXT/NOITE - FRENTE DA DELEGACIA
Ramiro, Elisa e Gomulka saem da delegacia.
GOMULKA
(para Elisa) Quer que eu leve você em casa?
ELISA
Não, obrigado. Eu vou dormir na casa de uma
amiga, aqui perto. Vou com o Ramiro.
GOMULKA
Não sei se é uma boa idéia.
Gomulka olha para Ramiro e, com o canto do olho, olha para a
delegacia. Monteiro está na janela e observa-os.
RAMIRO
Pode deixar, Gomulka.
GOMULKA
Você é quem sabe.
Gomulka sai para a esquerda. Ramiro e Elisa caminham lado a
lado, na calçada.
CENA 93A - EXT/NOITE þ RUA DA CIDADE
Ramiro e Elisa caminham em silêncio, afastando-se.
RAMIRO
Acho melhor a gente não se ver muito, nos
próximos dias.
ELISA
Por que não?
RAMIRO
Esse inspetor, ele tem muita imaginação.
ELISA
Como assim?
RAMIRO
Ele... está pensando que talvez o seu
pai... que talvez não tenha sido um
acidente.
ELISA
Eu sei que não foi acidente.
RAMIRO
Sabe?
ELISA
Ele dirigia muito bem.
RAMIRO
Desculpe, mas ele estava bêbado.
ELISA
Ele estava sempre bêbado.
RAMIRO
Você acha...
ELISA
Acho que ele nos viu.
RAMIRO
Como assim? Nos viu?
ELISA
Eu e você. Acho que ele viu.
RAMIRO
Nós, no seu quarto?
ELISA
Ou antes. Ele não lhe falou nada?
RAMIRO
Não.
ELISA
Foi suicídio. Ele pulou.
RAMIRO
Por que ele faria isso?
Chegam no portão da casa de Ramiro. Ramiro abre o portão. Os
dois entram.
ELISA
Culpa. Ou ciúme.
RAMIRO
Ciúme?
ELISA
De mim. Ele nos viu e percebeu que tinha me
perdido. Que agora eu era sua.
Ramiro abre a porta.
CENA 94 - INT/NOITE - CASA DE RAMIRO / SALA
Ramiro e Elisa abrem a porta e entram na sala. Ramiro vê algo
que o surpreende: DORA, 35 anos, morena, sentada numa
poltrona. Ramiro fica estupefato. Dora se levanta, Maria
aproxima-se dela.
MARIA
Ramiro, olha quem está aqui...
RAMIRO
Dora?
DORA
Tudo bem com você?
RAMIRO
O que você...
DORA
Eu queria te ver.
Todos ficam alguns segundos sem saber o que fazer. Dora
aproxima-se de Ramiro.
DORA
Não vai me dar um abraço, pelo menos
apertar minha mão...
Ramiro se aproxima, meio sem jeito, se abraçam.
RAMIRO
Desculpe. Que loucura... Eu estou ainda...
surpreso.
Elisa surge entre Ramiro e Dora.
RAMIRO
Por que você não avisou?
DORA
Se eu ligasse, você ia dizer para eu não
vir. Não ia?
RAMIRO
Ia. Claro que ia.
DORA
Pois é.
Dora pela primeira vez repara em Elisa. Dora vira-se para
Elisa. Elisa senta no braço do sofá.
DORA
Tudo bem?
RAMIRO
Desculpe, eu...
MARIA
Essa é a Elisa. Ela é filha de uns amigos.
Elisa, esta é a Dora, esposa do Ramiro.
DORA
Ex-esposa.
Dora volta a sentar.
MARIA
Chegou agora, imagine, de Paris.
Ramiro senta no sofá cujo braço é ocupado por Elisa.
RAMIRO
Você veio como? Você chegou...
DORA
Cheguei de manhã. Peguei um ônibus e vim
para cá. Não faz uma hora, chegamos juntas,
eu e sua mãe. Ela me disse que vocês
estavam num velório. Um acidente de carro,
não foi?
RAMIRO
Foi. É...
Ramiro percebe que está muito próximo de Elisa e afasta-se.
DORA
Que horror. Parece que ele tinha bebido
demais...
RAMIRO
Era o... pai de Elisa.
Dora fica surpresa e constrangida. Olha para Elisa.
DORA
Nossa, desculpe.
ELISA
Tudo bem. Ele bebia sempre.
DORA
Desculpe... Eu... sinto muito.
Elisa sacode a cabeça e baixa os olhos. Maria ergue-se do sofá
e se aproxima de Elisa.
MARIA
(para Elisa, carinhosa) Como você vai
voltar para casa tão tarde, minha filha?
ELISA
Eu não quero ir para casa.
MARIA
(abraçando-a) Coitadinha... Se você quiser
dormir aqui...
RAMIRO
Ela vai dormir na casa de uma amiga. (para
Dora) Você não quer... comer alguma coisa,
tomar um banho...
MARIA
Eu já disse para ela ficar à vontade.
DORA
Eu já peguei um quarto no hotel, não quero
dar trabalho.
MARIA
Trabalho nenhum.
DORA
Eu me sinto mais à vontade num hotel,
obrigado. Eu fumo... Gosto de ficar lendo
até tarde, você sabe.
RAMIRO
Se você prefere...
DORA
Prefiro.
MARIA
Eu vou fazer um chá.
Maria conduz Elisa para a cozinha.
MARIA
(para Elisa) Venha, minha filha, vamos
deixar os dois conversarem um pouco.
As duas saem. Ramiro e Dora ficam sozinhos na sala.
RAMIRO
Que loucura, Dora... Você devia ter ligado
antes de vir.
DORA
Não gostou de me ver?
RAMIRO
Gostei, é que... A hora não podia ser pior.
A minha vida está...
Ramiro tenta encontrar uma palavra que defina como sua vida
está. Não consegue.
RAMIRO
Você nem imagina.
DORA
A minha também está um confusão.
Ramiro ri.
DORA
O que foi?
RAMIRO
Você não tem idéia... A minha vida está...
realmente... uma confusão.
DORA
(irônica) Claro. Você nem sabe o que está
me acontecendo, mas nada pode se comparar à
SUA confusão.
RAMIRO
Dora, acredite em mim: por mais confusa que
esteja a sua vida, nada... Esquece.
Ficam em silêncio.
RAMIRO
Por que você veio?
DORA
Eu estive no nosso apartamento. Passei na
Madame Claudel pra pegar a chave. Fui lá
buscar as plantas.
RAMIRO
Sei.
DORA
Tinha um monte de jornais no chão, você não
cancelou a assinatura.
RAMIRO
Não.
DORA
Pois é. Estava uma manhã de sol, aquele sol
batendo na sacada, nos telhados, você sabe.
RAMIRO
Sei.
DORA
O sol é tão raro naquele inverno. Peguei os
jornais, sentei na sacada e fiquei lendo.
Eu me dei conta que eu fui muito feliz
naquele apartamento. Nós fomos. Não fomos?
RAMIRO
Acho que sim.
DORA
Eu fui. Tenho certeza. E aí eu pensei
que... que talvez eu e você... que talvez a
gente estivesse perdendo uma coisa boa. Uma
coisa difícil de conseguir. E que... talvez
a gente devesse lutar um pouco mais.
RAMIRO
Você não pensou que... talvez... fosse um
pouco tarde?
DORA
Não, não pensei. E não acho que seja tarde.
Ficam em silêncio.
RAMIRO
Aconteceu muita coisa.
DORA
O quê?
Elisa entra na sala.
ELISA
Ramiro. Eu já vou.
Ramiro e Dora ficam olhando para Elisa. Dora olha para Ramiro.
Ele se levanta, vai até a porta.
ELISA
(para Dora) Muito prazer.
DORA
A gente se fala depois. E desculpe...
ELISA
Imagina. (para Ramiro) Você tem razão, ela
é bonita mesmo. (para Dora) É verdade que
você não raspa embaixo dos braços?
Dora hesita alguns segundos antes de responder.
DORA
(olhando para Ramiro) É.
ELISA
Legal. Outro dia você me mostra. Tchau.
Elisa dá um beijo em Ramiro e sai.
FIM DO TERCEIRO BLOCO
QUARTO BLOCO
CENA 95 - EXT/NOITE - RUA ARBORIZADA
A rua é iluminada pela lua cheia e pelas lâmpadas de alguns
postes. Ramiro e Dora caminham lado a lado, sem pressa, sem se
olhar.
DORA
Que história é essa de raspar embaixo dos
braços?
RAMIRO
(dando de ombros) Coisa de criança...
DORA
Essa... Elisa... não parece uma criança.
RAMIRO
As adolescentes, hoje em dia...
DORA
O que é que tem?
RAMIRO
Querem crescer antes do tempo. Mas
continuam crianças. É só ver o jeito que
falam...
Dora parece dar o assunto por esgotado. Pára e olha para uma
vitrine, muda de tom.
DORA
Lembra de Paris? Eu gostava de caminhar com
você pela rua, à noite.
RAMIRO
É. Lá não era tão quente...
DORA
Você saía da Universidade e ia me encontrar
no Restif. No verão, em vez de pegar o
metrô, a gente voltava a pé até Levallois.
Ramiro dá uma rápida olhada para o lado. Percebe que Dora o
está fitando e volta a olhar para a frente.
DORA
O que você tem, Rami? Quer que eu vá
embora? Não quer falar sobre Paris?
RAMIRO
(desconversando) Nada, não. É o calor...
Ramiro segue caminhando, sem olhar para Dora. Ela o acompanha.
CENA 96 - EXT-INT/NOITE - HOTEL DE DORA / ENTRADA E HALL
Ramiro e Dora chegam ao hotel. Ele abre a porta de vidro e
espera que ela passe para o hall. Ela passa, indicando a
portaria, e o RECEPCIONISTA atrás do balcão.
DORA
Seja bonzinho e pegue a minha chave. É o
vinte e seis.
Dora vai em direção ao elevador.
RAMIRO
Dora, eu não quero...
DORA
(voltando-se, sorrindo) Só quero te mostrar
uma coisa, Rami.
Ramiro assente com a cabeça, resignado, e anda em direção à
portaria. Dora, parada em frente ao elevador, acompanha-o com
o olhar. Ramiro dirige-se ao recepcionista.
RAMIRO
O vinte e seis, por favor.
Dora sorri para si mesma, aprovando.
CENA 97 - INT/NOITE - HOTEL DE DORA / QUARTO
A porta do quarto 26. Ramiro tira a chave na fechadura e fecha
a porta. Dora acende a luz. Ramiro a segue e fecha a porta
atrás de si.
O quarto está praticamente intocado. Uma cama de casal com as
cobertas estendidas, duas poltronas, uma janela com a persiana
fechada, uma grande mala fechada sobre uma banqueta.
Dora, do outro lado da cama, abre a frasqueira e tira alguns
papéis.
Ramiro permanece de pé, ao lado da porta.
RAMIRO
O que você queria me mostrar?
DORA
Senta.
Ramiro senta na cama, de costas para Dora. Ela faz a volta na
cama e vem até ele, com os papéis na mão: é um folheto de
companhia aérea, com passagens de avião dentro. Entrega para
Ramiro.
DORA
A passagem. Ida e volta. Mas a volta é para
duas pessoas. (em tom de brincadeira) É o
que as agências chamam de "pacote turístico
completo".
Ramiro, com o folheto na mão, ergue o olhar para Dora, sem
saber o que dizer. Ela volta a se afastar, em direção ao fundo
do quarto, enquanto fala.
DORA
Está marcada para amanhã à noite. Mas, se
você precisar de mais tempo, nós podemos
transferir.
Ramiro fecha os olhos. Respira fundo. Volta a abrir os olhos.
Abre o folheto, retira as passagens. Olha as páginas do
folheto, onde há várias fotos turísticas de Paris: torre
Eiffel, um casal de namorados num parque, neve.
Ramiro olha as fotos. Volta a olhar as passagens. Fala sem se
virar, para Dora, às suas costas.
RAMIRO
Sabe qual é o problema, Dora? Não é você,
não é Paris, não é a data. O problema... é
esse nome na passagem.
Ramiro esfrega os olhos com as mãos, com força. Está quase
chorando, desamparado, indefeso. Ainda assim, continua falando
sem se virar para Dora.
RAMIRO
Até ante-ontem, é possível... é bem
possível que eu... eu ia querer voltar. Só
que... esse Ramiro Bernardes não existe
mais. Não tem mais volta. Pra mim não tem
mais volta. Você entende que...
De repente, Ramiro ouve um ruído vindo do banheiro. Vira-se,
assustado, e percebe que está sozinho no quarto.
A porta do banheiro se abre e Dora sai, de camisola. Ramiro
faz menção de dizer alguma coisa, mas não diz.
Dora olha para Ramiro, ainda sentado na cama, olhos vermelhos.
Dora sorri, enternecida, ao ver a emoção de Ramiro.
DORA
Amor...
Ramiro continua olhando para Dora, desamparado.
Dora apaga a luz do quarto. Em seguida, abre a persiana da
janela atrás de si, deixando a luz do luar entrar e iluminar o
quarto. Dora tira a camisola, mostrando seu corpo nu,
silhuetado pela luz que vem da janela.
Ramiro, ainda sentado na cama, olha para Dora.
Sempre sorrindo, Dora aproxima-se de Ramiro. Atrás dela, a luz
do luar continua entrando pela janela.
FADE OUT.
CENA 98 - INT/AMANHECER - HOTEL DE DORA / QUARTO
FADE IN.
A luz da manhã entra pela janela do quarto. Na cama, sob o
lençol, Dora dorme, com ar satisfeito. A seu lado, sentado na
cama, sem camisa, Ramiro está acordado, preocupado, fumando.
De repente, Ramiro vira-se para a janela. Percebe que já é
dia.
Devagar, sem fazer movimentos bruscos, cuidando para não
acordar Dora, Ramiro levanta-se. Apaga o cigarro no cinzeiro
sobre a mesa de cabeceira e vai pegar suas roupas no chão.
Na cama, Dora se movimenta, abre lentamente os olhos. Procura
Ramiro pelo quarto.
DORA
Rami?
Ramiro, já de calças, a camisa sobre os ombros, aproxima-se de
Dora. Volta a sentar na cama, ao lado dela.
RAMIRO
Tenho que ir em casa.
Dora murmura um hum-hum satisfeito e preguiçoso, fecha os
olhos e vira-se na cama, ficando de costas para Ramiro.
Ramiro fica olhando para Dora, sério, enquanto termina de
vestir a camisa.
CENA 99 - EXT/DIA - FRENTE DO HOTEL DE DORA
Ramiro sai pela porta de vidro do hotel e caminha, decidido,
pela calçada. Já há algum movimento na rua.
CENA 100 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DE RAMIRO
Ramiro vem andando pela rua, em direção à sua casa. De
repente, pára e olha, assustado.
Em frente à casa de Ramiro, há dois carros de polícia. O
policial 1, inclinado sobre a capota de um dos carros,
preenche um volante de loteria esportiva.
Ramiro toma fôlego e segue andando em direção à casa. Passa
pelos carros. O policial 1 o vê, mas volta a trabalhar em seu
volante. Ramiro abre o portãozinho de ferro e entra.
De dentro da casa, surge dona Maria, preocupada, em direção a
Ramiro.
MARIA
Ramiro! Meu filho, graças a Deus, você
chegou. Eles estão mexendo em tudo.
RAMIRO
Calma, mãe, calma. O que houve?
Nesse momento, Monteiro vem saindo da casa.
RAMIRO
Inspetor Monteiro! Faça o favor de sair da
minha casa. E só volte aqui com um mandado!
Monteiro, calmamente, caminha em direção a Ramiro. Tira do
bolso do paletó alguns papéis.
MONTEIRO
Qual mandado o senhor vai querer?
(entregando-lhe um papel) Busca e
apreensão?
Ramiro pega o papel e confere, derrotado. Mas Monteiro
entrega-lhe outro papel.
MONTEIRO
Ou prefere um mandado de prisão?
MARIA
Deus meu!
Ramiro não sabe o que fazer. Nesse momento, os policiais 2 e 3
vêm saindo de dentro da casa. O policial 1 aproxima-se por
trás de Ramiro e algema-o.
MONTEIRO
Ramiro Bernardes, você está preso por
suspeita de assassinato do doutor Bráulio
Tennembaun, ocorrido na madrugada de ante-
ontem. Pode ser uma boa idéia chamar o seu
advogado.
Ramiro, algemado, sem ação, procura socorro com sua mãe.
RAMIRO
Mãe! Chama o Gomulka!
MONTEIRO
É. O senhor conhece os seus direitos, eu
não preciso ficar repetindo. Vamos embora.
Monteiro faz um sinal para o policial 1, que conduz Ramiro em
direção aos carros de polícia.
RAMIRO
(de costas, saindo) Chama o Gomulka, mãe!
Os outros policiais vão saindo também, atrás de Monteiro. Dona
Maria fica parada, sem ação, sozinha no jardim da casa.
FIM DO QUARTO BLOCO
QUINTO BLOCO
CENA 101 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO
Ramiro está sentado numa cadeira, no centro do escritório de
Monteiro, com as mãos algemadas. A seu lado, de pé, apenas o
policial 1. Ninguém mais na sala. Mais do que nervoso, Ramiro
parece irritado.
A porta se abre e entra Monteiro, seguido por Gomulka.
Monteiro pára na porta e aponta Ramiro.
MONTEIRO
Aí está o seu cliente, doutor Gomulka. Como
pode ver, ele não foi molestado. (para o
policial) Pode soltar, Oliveira.
O policial tira do bolso uma chave e inclina-se para abrir as
algemas de Ramiro. Monteiro fecha a porta atrás de si. Gomulka
aproxima-se de Ramiro, como que para verificar se ele está
bem.
GOMULKA
Tudo bem, Ramiro?
Ramiro termina de soltar-se das algemas, rotaciona os pulsos,
abre os braços. Olha para Gomulka, faz que sim com a cabeça.
MONTEIRO
Pode esperar lá fora, Oliveira.
O policial pega as algemas e sai, sem falar nada.
GOMULKA
Posso saber por que o meu cliente está
detido?
MONTEIRO
Ele demoliu o seu carro, doutor Gomulka.
GOMULKA
(sem achar graça) Muito engraçado.
Monteiro senta-se em sua cadeira, atrás da escrivaninha.
MONTEIRO
Prisão preventiva. Ele é suspeito de
homicídio qualificado. Não tem um álibi
convincente para a noite do crime. E
estamos muito perto da fronteira.
GOMULKA
Mas isso são suposições suas. Eu não
entendo por que esse tipo de raciocínio
pode justificar uma prisão preventiva. Meu
cliente é primário e...
MONTEIRO
O juiz entendeu. É o que basta, por
enquanto.
Gomulka balança a cabeça, tentando ganhar tempo para pensar.
GOMULKA
E eu imagino que o senhor tenha apresentado
ao juiz alguma evidência que eu desconheço.
MONTEIRO
Não foi necessário. Mas, na verdade...
(abrindo uma gaveta da escrivaninha) Tem
uma coisa que eu gostaria de perguntar ao
seu cliente...
GOMULKA
(para Ramiro) Meu cliente não é obrigado a
responder nada.
Monteiro tira da gaveta um saco plástico transparente. Ramiro
fica tentando espiar o seu conteúdo.
MONTEIRO
Não, ele não é obrigado. Mesmo assim, eu
gostaria de saber se ele pode imaginar o
que isto... (mostrando o saco plástico)...
estava fazendo no bolso das calças do
doutor Bráulio.
Monteiro estende o saco plástico a Gomulka. Dentro do saco, há
uma calcinha branca de mulher. Gomulka pega o saco com a ponta
dos dedos e coloca-o diante dos olhos de Ramiro. Ramiro e
Gomulka se olham rapidamente.
GOMULKA
Como o meu cliente já disse...
RAMIRO
(cortando) Como eu já disse, o doutor
Bráulio estava bêbado e falou mais de uma
vez que queria ir ao La Estrella, continuar
bebendo. (cada vez mais irritado) É bem
possível que ele tenha ido a outro lugar,
encontrado uma mulher, rasgado a calcinha
dela, sei lá... O que é que eu tenho a ver
com isso?
GOMULKA
Ramiro, é melhor você não dizer mais nada.
Monteiro ergue-se em sua cadeira, atento.
MONTEIRO
O senhor afirma então que nunca viu antes
essa calcinha?
RAMIRO
Não, nunca.
GOMULKA
Eu exijo conversar a sós com o meu cliente
antes que o senhor prossiga com...
MONTEIRO
(com autoridade, mas sem levantar a voz) O
senhor vai se sentar e não vai exigir coisa
nenhuma.
Gomulka, resignado, senta.
MONTEIRO
Além do mais, eu já estou terminando. Só
gostaria de saber do senhor Bernardes como
ele sabe que a calcinha encontrada no bolso
do doutor Bráulio estava rasgada.
RAMIRO
(rindo, nervoso) Essa não colou, inspetor.
O senhor não disse que ela estava rasgada.
Mas eu acabei de ver e ela estava rasgada.
MONTEIRO
O senhor viu que ela estava rasgada? Mesmo
dentro de um saco plástico?
Ramiro não responde. Gomulka, temeroso, olha a calcinha dentro
do saco plástico em suas mãos.
MONTEIRO
Doutor Gomulka, pode me devolver?
Gomulka levanta-se e devolve o saco com a calcinha a Monteiro.
MONTEIRO
Curioso. O mais estranho é que ela não está
rasgada.
Monteiro mostra a calcinha a Ramiro e Gomulka. Está intacta.
Gomulka olha para Ramiro. Uma gota de suor escorre pela testa
de Ramiro, que não diz nada.
MONTEIRO
Já sei! Eu me enganei.
Monteiro volta a abrir a gaveta da escrivaninha. De dentro
dela, tira um segundo saco plástico, com outra calcinha
dentro.
MONTEIRO
Esta aqui foi encontrada no bolso do doutor
Bráulio. E está rasgada mesmo, vejam.
Aquela outra, que eu mostrei antes por
engano, e que o senhor disse que nunca viu,
estava no seu quarto, doutor Bernardes.
Embaixo do colchão. Não é uma coincidência?
Gomulka volta a sentar, desistindo. Monteiro segura as duas
calcinhas, uma ao lado da outra.
MONTEIRO
São parecidas, não é? Eu diria que são
quase iguais. Não fosse o fato de uma delas
estar rasgada, dava até pra confundir...
Monteiro encara Ramiro e Gomulka. Gomulka olha para Ramiro.
Ramiro faz para Gomulka um sinal negativo com a cabeça, como
de desistência.
GOMULKA
Meu cliente não tem mais nada a dizer.
Monteiro levanta-se da cadeira.
MONTEIRO
Ótimo. Porque agora ele não precisa dizer
mais nada.
Monteiro vai até a porta, abre-a.
MONTEIRO
Agora vamos ver o que outra pessoa tem a
dizer. (falando alto, para fora) Pode
trazer, Oliveira! (para Ramiro) O nome dele
é João Pedro de Assis. Profissão:
caminhoneiro.
Ramiro olha para Monteiro, não mais conseguindo disfarçar o
pavor. Uma gota de suor escorre até o seu queixo e pinga.
Gomulka olha para Ramiro, depois para Monteiro, sem saber o
que fazer.
Pela porta, o caminhoneiro entra, baixo, forte, braços
tatuados, chapéu na mão. Meio envergonhado, pára no meio da
sala, sem saber o que fazer, para onde olhar.
Monteiro aponta Ramiro e pergunta para o caminhoneiro.
MONTEIRO
Conhece este homem?
O caminhoneiro e Ramiro encaram-se.
FIM DO CAPÍTULO 3
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(C) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1998
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
11/08/1988
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