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MEIA ENCARNADA DURA DE SANGUE
episódio da série
BRAVA GENTE
baseado no conto de Lourenço Cazarré
roteiro de Jorge Furtado
e Guel Arraes
versão 09/11/2000
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
para TV Globo
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CENA 1 - CIDADE - EXTERIOR - DIA
Panorâmica da cidade, hoje.
Fusão para
Panorâmica (sentido inverso), da cidade em 1953.
NARRAÇÃO
Esta história aconteceu numa pequena cidade do Rio
Grande do Sul, em 1953. O personagem principal
chama-se...
CENA 2 - VESTIÁRIO, INTERIOR - DIA
BONIFÁCIO está na ducha, a água caindo sobre suas costas.
NARRAÇÃO
... Bonifácio. Nem alto, nem baixo, magro como a
peste e leve como a brisa e dançarino como as
borboletas. Bonifácio jogava pelo Grêmio
Recreativo Farrapos, o time dos pobres, dos negros
e dos mulatos. Bonifácio era o maior driblador e
fazedor de golos da época.
CENA 3 - FOTOS
Fotos de Bonifácio, do time do Farrapos e manchetes de jornais.
NARRAÇÃO
Jogava de olhos abertos, cabeça erguida. Jogava
rindo. Não era um sorriso, era um arremedo de
sorriso, uma máscara que nada tinha a ver com o
que lhe ia pelas entranhas. Era frio. Implacável.
Isso dentro do campo. Fora, era outra coisa.
CENA 4 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA
No vestiário todos os companheiros, entre eles VICENTE, estão
celebrando a vitória, felizes.
Vicente abre a porta do chuveiro, vazio.
VICENTE
Bonifácio?
CENA 5 - EXTERIOR DO TRABALHO DE ELISA - FIM DE TARDE
Bonifácio rodeia a casa antes de entrar. ELISA está no pátio, nos
fundos, lavando roupas.
BONIFÁCIO
Ouviu?
ELISA
Só o primeiro tempo. Tive que fazer janta, ela não
gosta de rádio na cozinha.
BONIFÁCIO
Três a um. Fiz dois.
ELISA
Quem fez o outro?
BONIFÁCIO
Ferrinho. De cabeça.
ELISA
Passe teu?
BONIFÁCIO
Do Vicente. Mas eu que lancei o Vicente. Tu vai
poder sair hoje?
ELISA
Não sei. Acho que não. Tenho que acordar muito
cedo amanhã. Dia bom de sair é sábado.
BONIFÁCIO
Sábado tu sabe que eu não posso.
ELISA
Pois é.
ELVIRA, a patroa, surge na porta.
ELVIRA
Elisa, tu tá cuidando esse peixe?
ELISA
Vi há pouco, ainda falta.
ELVIRA
Não deixa secar demais.
ELISA
Já vou entrar.
Elvira entra. Bonifácio põe o uniforme sobre a cerca.
BONIFÁCIO
Lava para mim?
ELISA
Lavo.
BONIFÁCIO
Então eu já vou.
ELISA
Tá bom.
Bonifácio sai. Elisa estende a roupa no varal e vê Bonifácio se
afastando. Elisa pega a camiseta do time e joga numa bacia.
CENA 6 - MATADOURO - INTERIOR - DIA
Um lugar sujo e pequeno. Vicente e Bonifácio estão trabalhando,
desossando a carcaça de um boi.
VICENTE
Por que tu não foi ontem?
BONIFÁCIO
Tava cansado.
VICENTE
Hoje tu vai?
BONIFÁCIO
Não sei.
VICENTE
Vou pedir pra não treinar amanhã. Viu o meu
joelho?
BONIFÁCIO
Vi.
VICENTE
Até domingo tá bom. Mas é melhor não treinar.
Trabalham em silêncio.
VICENTE
Tu acha que o Telmo joga?
BONIFÁCIO
Não sei.
VICENTE
Acho que joga. Eles tão dizendo que não joga,
então é porque joga. Tão morrendo de medo,
treinando em dois turnos.
Bate um sino. Eles param de trabalhar, largam as facas.
VICENTE
Sabe o que eu queria?
BONIFÁCIO
O quê?
VICENTE
Quatro a zero. Quatro a zero é para calar a boca
deles. Lembra daquele cinco a um?
BONIFÁCIO
Lembro.
VICENTE
Quatro a zero é melhor que cinco a um. Não sei por
que, mas é.
O CHEFE DO MATADOURO se aproxima.
CHEFE
Bonifácio. O Belenho está aí.
VICENTE
O Belenho?
CHEFE
Tá aí fora. Quer falar contigo.
Bonifácio tira o avental e sai.
CENA 7 - MATADOURO - EXTERIOR - DIA
Um homem branco, BELENHO, espera perto do carro. Bonifácio se
aproxima.
BELENHO
E aí? Pensou?
BONIFÁCIO
Pensei.
BELENHO
E aí?
BONIFÁCIO
Não sei ainda.
BELENHO
Tá esperando o quê?
BONIFÁCIO
Tô pensando.
BELENHO
Tem que decidir até amanhã. Amanhã de tarde.
BONIFÁCIO
Eu sei.
BELENHO
Eu não sei qual é a dúvida. Tu não ganha nada para
jogar. Tu vai ganhar uma casa. E mais uma ajuda.
Qual é a dúvida?
BONIFÁCIO
Tô pensando.
BELENHO
E depois tem o seguinte: eles querem um negro no
time. Não fica essa coisa de time dos brancos,
time dos negros.
BONIFÁCIO
Nosso time tem branco. Quer mais branco que o
Ferrinho?
BELENHO
Mas o Serrano não tem negro nenhum. E agora eles
querem ter. Isso não é bom?
BONIFÁCIO
Bom para quem?
BELENHO
Bom pra cidade. Bom pro futebol.
BONIFÁCIO
Só é ruim pra mim que vou ser o crioulo vendido.
BELENHO
Escuta, Bonifácio. Tu joga muito. Tu sabe disso,
todo mundo sabe disso. O que tu não sabe é que
isso dura pouco, dois, três, quatro anos. E
depois? Depois tu estoura um joelho, tem uma lesão
grave, e aí? Tô falando pro teu bem, não quero que
te aconteça nada disso, Deus me livre. Mas pode
acontecer. O que tu ganhou com isso, jogando de
graça?
BONIFÁCIO
Eu sei. Tô pensando.
BELENHO
Uma casa. E mais uma ajuda. Onde já se viu um
homem velho desses morando com a mãe? Tu não tem
namorada?
BONIFÁCIO
Tenho.
BELENHO
Então. Olha aqui. (entrega a ele uma chave) Tu
sabe qual é a casa?
BONIFÁCIO
Sei.
BELENHO
Leva tua namorada pra ver. Amanhã eu passo aqui.
Mas amanhã é sim ou não. Se for não eu vou trazer
um cara de Bagé.
BONIFÁCIO
Quem?
BELENHO
O Deco.
BONIFÁCIO
Cai-cai. E não sabe cabecear.
BELENHO
Eu sei, por isso que eu estou aqui. Mas é só até
amanhã.
CENA 8 - REFEITÓRIO DO MATADOURO - INTERIOR - DIA
Vicente, pela janela do refeitório, vê Bonifácio se despedir de
Belenho. Bonifácio entra no refeitório sob o olhar atento de
todos.
Bonifácio senta e abre sua marmita. Vicente vem sentar ao seu
lado.
VICENTE
O que é?
BONIFÁCIO
O que é o quê?
VICENTE
O que ele queria?
BONIFÁCIO
Conversar.
VICENTE
Conversar o quê?
BONIFÁCIO
Assunto meu.
Vicente fica olhando para Bonifácio, sem entender, surpreso com a
resposta. Vicente pega a sua marmita e sai.
CENA 9 - PÁTIO - TRABALHO DE ELISA - EXTERIOR - NOITE.
Bonifácio e Elisa conversam no pátio, separados por uma cerca.
Elisa está descascando aipim numa bacia.
BONIFÁCIO
O que tu acha?
ELISA
Tu que sabe.
BONIFÁCIO
Tu pode ir ver a casa amanhã?
ELISA
Vou ver.
Elisa larga o aipim na bacia e pega um lençol para estender.
BONIFÁCIO
Na hora do almoço.
ELISA
Eu sei qual é a casa.
BONIFÁCIO
Ver por dentro.
ELISA
Vou ver.
Elvira surge na porta.
ELVIRA
Elisa, tu ainda está nessa roupa?
ELISA
Falta só o lençol.
ELVIRA
Conversando demora mais.
BONIFÁCIO
Ela já vai.
ELVIRA
Não é hora nem lugar de namoro.
ELISA
Eu já vou.
Elvira entra.
ELISA
Tenho que entrar.
CENA 10 - MATADOURO - INTERIOR - DIA
Bonifácio abre o armário do vestiário e vê que seu avental está
todo rasgado.
CENA 11 - MATADOURO - INTERIOR - DIA
Bonifácio, com o avental rasgado, entra no matadouro e todos
fazem silêncio. Ninguém olha para ele.
CENA 12 - CASA NOVA - INTERIOR - DIA
Bonifácio abre a porta de um casa vazia. Elisa entra.
BONIFÁCIO
(Na sala) Aqui cabe sofá e mesa de jantar.
ELISA
É grande.
BONIFÁCIO
Pra receber os amigos. Sem mãe dormindo na sala.
(Caminham até a cozinha) Se tu preferir dá pra
fazer refeição na cozinha.
ELISA
De frente pro quintal.
BONIFÁCIO
O quarto do guri... ou dos guris.
ELISA
Ou das gurias.
BONIFÁCIO
E esse é o quarto de fazer guri.
Ela ri encabulada.
ELISA
O pai disse que dá a cama. Presente de casamento.
BONIFÁCIO
Então não precisa mais nada.
ELISA
Precisa casar, ora...
BONIFÁCIO
Só depende de ti. Já temos até onde morar.
ELISA
Tu já assinou?
BONIFÁCIO
Ainda não. Queria saber o que tu achava.
ELISA
Nunca pensei de ter uma casa. Ela vive dizendo "a
casa é minha". Pra dizer que ela manda. Eu tenho
que ir.
BONIFÁCIO
Aqui tu vai ser a patroa, botar os pés pra cima.
ELISA
Ouvir rádio bem alto.
BONIFÁCIO
Sair pela porta da frente.
Quando saem da casa, um casal de vizinhos brancos está no jardim
e olha para eles com curiosidade.
Elisa segura a mão de Bonifácio.
CENA 13 - ESCRITÓRIO DE ALMEIDA - INTERIOR - DIA
Bonifácio está sentado em escritório. ALMEIDA lhe entrega uma
caneta.
ALMEIDA
A caneta.
Bonifácio pega a caneta mas não sabe abrir. Almeida pega a
caneta, abre.
ALMEIDA
Assim.
Bonifácio escreve seu nome com dificuldade. Um fotógrafo bate
fotos. Aplausos.
ALMEIDA
Um momento histórico. Vamos comemorar. Na minha
casa.
CENA 14 - COZINHA - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - NOITE
Elisa está na cozinha. Elvira entra.
ELVIRA
Corta um queijo e um salaminho. Mas primeiro leva
as cervejas. E quatro copos.
ELISA
Sim senhora.
Elisa prepara uma bandeja com copos e duas cervejas. Leva para a
sala.
CENA 15 - SALA - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - NOITE
Elisa entra na sala com as cervejas. Dá de cara com Bonifácio,
sentado à mesa com Almeida e Belenho.
ALMEIDA
Começa um novo tempo de profissionalismo e de
vitórias.
Elisa serve os copos de cerveja. Na hora de servir o de
Bonifácio, pega o copo e inclina, para não fazer espuma.
ALMEIDA
(ergue um brinde) Pelo fim da discriminação. Ao
Serrano.
BELENHO
Ao Serrano.
Bonifácio bebe. Elisa sai da sala.
CENA 16 - CAMPO - EXTERIOR - DIA
Bonifácio entra campo. Os brancos olham para ele, em silêncio. Um
ALEMÃOZINHO sardento vem cumprimentá-lo. Belenho entrega as
camisas.
BELENHO
Bonifácio com a nove. Telmo com a dez. Ademir,
Juarez...
CENA 17 - CAMPO - EXTERIOR - DIA
Bonifácio pega uma bola e é derrubado por um carrinho violento.
BELENHO
Epa! (apita) O que é isso? Vamos deixar os
carrinhos pro jogo. Não quero saber de carrinho em
treino!
Bonifácio se levanta sem reclamar e pega bola para bater a falta.
CENA 18 - CAMPO - EXTERIOR - DIA
Bonifácio pega a bola, dribla o zagueiro espetacularmente e, na
hora de marcar, passa para o Alemãozinho, que faz o gol.
BELENHO
É isso aí, Bonifácio! Viu como é que é? Viu o
jogador em posição mais favorável, não fomeia!
Entrega a bola.
O Alemãozinho cumprimenta Bonifácio.
CENA 19 - MATADOURO - INTERIOR - DIA
Bonifácio entra no vestiário do matadouro. Silêncio completo.
Vicente passa por ele. Bonifácio procura suas botas. Descobre que
elas estão cheias de bosta de vaca.
CENA 20 - MATADOURO - INTERIOR - DIA
Todos estão falando sobre o jogo de domingo. Bonifácio entra e
todos param de falar. Bonifácio caminha até seu posto de
trabalho, descalço, pisando o chão que está muito sujo.
CENA 21 - MATADOURO - INTERIOR - DIA
Bonifácio está sozinho, desossando um boi. Vicente chega.
VICENTE
Vai morar bem, né? Sair da rua do canal.
BONIFÁCIO
Que é que tem melhorar de vida?
VICENTE
Vai levar a mãe ou largar ela lá com a mobília
velha?
BONIFÁCIO
Não te mete, Vicente.
VICENTE
(amanhã) Tu vai perder, Bonifácio. E isso vai ser
tua sorte. Porque tu já perdeu o gosto de ganhar.
BONIFÁCIO
É só um jogo.
VICENTE
Era um jogo. Dos pobres contra os ricos, dos
crioulos contra os brancos. O único jogo que a
gente pode ganhar. E vai ganhar. Agora virou uma
guerra. Contra os ricos, contra os brancos e
contra o crioulo vendido.
Vicente sai. Bonifácio fica sozinho, desossando o boi com sua
faca. Bonifácio separa a carne do osso cada vez com mais força,
mais raiva.
A faca escorrega e atinge o seu pé descalço. Bonifácio larga a
faca e segura o pé direito. Sua mão se enche de sangue.
FIM DO PRIMEIRO BLOCO
SEGUNDO BLOCO
CENA 22 - QUINTAL DA CASA DE BONIFÁCIO - EXTERIOR - DIA
A água de uma bica cai sobre o pé de Bonifácio. Um corte fundo
rasga seu pé direito do dedão ao calcanhar.
Bonifácio tem uma agulha e uma linha de costura. Costura o pé.
(mãe)
Bonifácio veste a meia vermelha no pé cortado. Calça as
chuteiras.
Caminha pelo pátio, testando o pé. Pega uma bola e bate alguns
balõezinhos, primeiro com o pé direito, depois com o pé esquerdo.
Desequilibra-se e quase cai.
Sai, mancando.
CENA 23 - CARROÇA - EXTERIOR - DIA
Bonifácio caminha, mancando, pela rua.
SALVADOR, um carroceiro negro, se aproxima com sua carroça.
SALVADOR
Bonifácio!
Bonifácio acena.
SALVADOR
Tá indo pro jogo?
BONIFÁCIO
Estou.
SALVADOR
Sobe aí. Te deixo lá.
Bonifácio sobe na carroça.
SALVADOR
Quero só ver a cara dos alemão depois desse jogo.
Passaram a semana me enchendo. Apostei dois golos
de diferença. Mas acho que vai seu mais.
Um carro com a bandeira do Serrano passa pela carroça.
SALVADOR
(grita) Farrapos! Três a zero! Não tem nada melhor
que tocar flauta num branquelo para começar bem a
semana.
Salvador vê Vicente caminhando.
SALVADOR
Vicente! Sobe aí!
Vicente se vira e vê Bonifácio.
VICENTE
Prefiro ir a pé.
Salvador não entende a reação de Vicente, olha para Bonifácio.
BONIFÁCIO
Aqui está bom. Obrigado.
Bonifácio desce da carroça. caminha mancando.
SALVADOR
Três a zero!
CENA 24 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA
Bonifácio veste a camiseta do Serrano. Almeida entra com um
repórter.
ALMEIDA
Quero uma foto com o Bonifácio.
Bonifácio se posiciona para a foto. O fotógrafo bate a foto.
Almeida vê sua chuteira.
ALMEIDA
Que chuteira é essa? Belenho, vê uma chuteira nova
pro Bonifácio.
BONIFÁCIO
Ele já ofereceu, obrigado. Prefiro a minha. Estou
acostumado.
ALMEIDA
Pelo menos dá uma graxa então. Mico!
MICO, um garoto negro, se aproxima com sua caixa de engraxate.
ALMEIDA
Dá um lustre aqui na chuteira do Bonifácio.
Mico se abaixa, Bonifácio põe o pé sobre a caixa.
ALMEIDA
O Belenho já falou dá importância desse jogo.
Mico engraxa o pé esquerdo de Bonifácio.
BELENHO
É jogo decisivo.
ALMEIDA
Com dois pontos hoje a classificação tá
encaminhada, a gente só vai precisar de mais um
ponto em dois jogos.
Mico bate na caixa. Bonifácio troca o pé.
ALMEIDA
O último jogo é aqui. Mas se a gente perder hoje
vamos ter que pelo menos empatar em Bagé.
Mico engraxa o pé direito de Bonifácio e percebe que ele se curva
de dor. Mico pára, vê que a ponta dos seus dedos estão manchadas
de sangue. Olha para Bonifácio. Bonifácio encara Mico. Mico limpa
os dedos no pano e passa a engraxar a chuteira com mais cuidado.
BELENHO
O pessoal tá consciente dá importância da vitória.
A gente trabalhou para isso.
ALMEIDA
Não quero ninguém fomeando hoje. O importante são
os dois pontos.
BELENHO
Trabalho de conjunto. O pessoal tá consciente.
ALMEIDA
E vamos acionar o Bonifácio. Com o Telmo vindo de
trás.
BELENHO
E cuidar da marcação. Todo mundo voltando para
marcar, fechando o meio campo.
Mico bate na caixa. Bonifácio desce o pé.
ALMEIDA
Agora sim. Chega de conversa! Muito esforço em
direção ao gol.
BELENHO
Vamos pro jogo!
O time sobe sai para o campo. Foguetes e vaias.
CENA 25 - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - DIA
Elisa está na cozinha escutando a partida pelo rádio e cortando
carne numa tábua.
RÁDIO
Ademir leva o Serrano para o ataque, entrega para
Telmo. Telmo encara a marcação de Vicente. Devolve
para Ademir. Ademir para Bonifácio, marcado de
cima pelo Ferrinho, devolve para Telmo. Bonifácio
escapa, recebe na frente...
CENA 26 - CAMPO - EXTERIOR - DIA
Bonifácio escapa com a bola e é derrubado por Vicente.
RÁDIO
... e é falta. Uma entrada dura de Vicente, por
trás, Bonifácio no chão.
O massagista examina Bonifácio. Mico lhe oferece água. Bonifácio
bebe. Mico derrama o resto da água sobre o pé direito de
Bonifácio.
CENA 27 - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - DIA
Elisa continua cortando carne.
RÁDIO
Bonifácio já está recuperado mas parece que sentiu
a entrada. Caminha para a área com dificuldade. É
falta para o Serrano, lado direito de ataque.
Ademir pediu para bater. Vem bola para a área do
Farrapos, dois homens na barreira. Até o Ferrinho
desceu para marcar.
Elvira entra na cozinha.
ELVIRA
E esse rádio, Elisa?
RÁDIO
Ademir toma distância. Bola na área...
Elisa desliga o rádio. Elvira dá um dinheiro a Elisa.
ELVIRA
Vai até o Natal e me compra cinco folhas de papel
almaço.
ELISA
Sim senhora.
ELVIRA
Se der o troco traz uma rosca também.
Elisa guarda o dinheiro, tira o avental e sai, carregando uma
sacola.
CENA 28 - RUA - EXTERIOR - DIA
Elisa caminha pela rua. Diminui o passo ao se aproximar de uma
casa onde se ouve um rádio.
RÁDIO
... Juarez lança Ferrinho, antecipação de Aloísio
que entrega para Ademir. O Brasil não encontra
espaço na defesa do Serrano, muito bem armada pelo
Belenho. Ademir segura, Bonifácio marcado na
frente, Ademir entrega para Telmo. Telmo carrega
pela direita, Bonifácio vem buscar, pede a bola,
recebe, se livrou de Vicente, grande jogada de
Bonifácio... É falta! Mais uma falta sobre
Bonifácio, essa é perigosa, na entrada da área.
Bonifácio já levantou e pediu para bater.
Elisa passa pela casa, o som do rádio vai diminuindo.
RÁDIO
Cinco homens na barreira, Bonifácio conta os
passos, vai bater direto. Pode ser a chance do
Serrano abrir o placar faltando menos de três
minutos. Bonifácio bateu... Na trave! A bola
explodiu na trave e saiu pela linha de fundo. Que
cobrança, Sérgio nem se mexeu, teve mais sorte que
juízo... Ele está dando escanteio. Não vi se a
bola desviou na barreira, mas o juiz está dando o
escanteio...
CENA 29 - ARMAZÉM NATAL - INTERIOR - DIA
Elisa entra. O rádio está ligado. Dois homens brancos tomam
cerveja e escutam o jogo. O balconista, branco, vem atender
Elisa. Salvador está num canto, bebendo cachaça e ouvindo o jogo.
ELISA
Cinco folhas de almaço e uma rosca.
RÁDIO
... o escanteio está marcado, não adianta o
Vicente reclamar, vai acabar sendo expulso. Um
minuto e trinta para o encerramento. O Farrapos
está todo na área, só ficou o Ferrinho aqui em
cima. Quem bate é o Ademir, aqui pela direita.
CENA 30 - CAMPO - EXTERIOR - DIA
Bonifácio na área, marcado pelo Vicente.
Ademir bate o escanteio.
Bonifácio escapa da marcação de Vicente.
Telmo se antecipa e desvia a bola de cabeça.
Bonifácio acompanha a bola que se aproxima encobrindo Vicente.
Bonifácio, de sem-pulo, acerta um chute certeiro.
CENA 31 - ARMAZÉM NATAL - INTERIOR - DIA
Os dois homens brancos comemoram.
HOMENS
Gol! É gol!
Elisa pega as folhas de almaço e a rosca, põe na sacola.
RÁDIO
Goooooooollllllll...... Golaço! Bonifácio, no
ângulo, de sem-pulo, sem chance para Sérgio. O
Serrano faz um a zero, faltando menos de um minuto
para acabar o jogo. Bonifácio, um a zero para o
Serrano. Jogando no sacrifício, caminhando com
dificuldade. Bonifácio, grande gol, um a zero.
SALVADOR
Crioulo vendido.
Elisa vai saindo.
SALVADOR
Ei.
Elisa pára.
SALVADOR
Tu esqueceu o troco.
Elisa pega o troco sobre o balcão. Vai saindo. Os homens brancos
comemoram.
HOMENS
Grande Bonifácio! Agora é segurar. Acaba logo isso
aí, juiz! Acabou.
CENA 32 - RUA - EXTERIOR - DIA
Elisa caminha devagar pela rua, em silêncio. Aproxima-se da casa
onde se ouve o rádio.
RÁDIO
... o Farrapos, no ataque, bola na área do
Serrano, corta Juarez de qualquer maneira pela
lateral. O juiz está pedindo a bola. Acabou! Final
de jogo, Serrano, um, Bonifácio, Farrapos zero.
Foguetes estouram ao longe. Buzinas. Elisa sorri, acelera o
passo.
RÁDIO
Com essa vitória o Serrano encaminha sua
classificação para quadrangular...
Elisa corre pela rua.
CENA 33 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA
Todos cumprimentam Belenho pela vitória, Almeida dá entrevistas.
Mico procura Bonifácio.
Por baixo da porta do banheiro, Mico vê Bonifácio tirando as
chuteiras com dificuldades.
CENA 34 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA
Trancado no banheiro, Bonifácio tira as meias. A meia, encharcada
de sangue, grudou no corte. Ele tira a meia e lava o pé cortado
no chuveiro.
Põe a meia num saco de papel.
Por baixo da porta surge a mão de Mico com uma bandagem branca.
Bonifácio pega a bandagem. Enrola o pé cortado.
CENA 35 - TRABALHO DE ELISA - EXTERIOR - DIA
Vestiário quase vazio. Belenho sai com o último jogador. Mico
fica sentado, sozinho.
Bonifácio abre a porta do chuveiro. Já está vestido, de sapatos,
meias pretas. Caminha mancando até Mico.
MICO
Golaço, hein?
Entrega as chuteiras para Mico.
BONIFÁCIO
Engraxa para mim.
MICO
Claro.
Bonifácio sai. Mico examina as chuteiras, começa a passar graxa.
CENA 36 - TRABALHO DE ELISA - EXTERIOR - DIA
Bonifácio chega no pátio e acena para Elisa, no tanque.
BONIFÁCIO
Ouvisse?
ELISA
Só uns pedaços. Ouvi o teu gol.
BONIFÁCIO
Podia ter sido mais. Dei duas na trave. E o Telmo
perdeu um gol certo.
ELISA
Um a zero tá bom.
BONIFÁCIO
Podia ter sido mais.
ELISA
Eu vi um sofá lá no centro. Quero te mostrar. Tu
pode amanhã?
BONIFÁCIO
Pode ser. Na hora do almoço.
ELISA
Tu passa aqui?
BONIFÁCIO
Passo. (ele pega o saco com as meias) Lava para
mim?
ELISA
Lavo.
Ela pega o saco e deixa as meias caírem numa bacia de alumínio,
com um pouco de água.
ELISA
Faz em três vezes.
BONIFÁCIO
O quê?
ELISA
O sofá. Uma entrada e mais duas.
BONIFÁCIO
Amanhã a gente vê.
ELISA
Tá bom.
Ele sai. Ela olha a bacia. A água está tingida de vermelho. O
reflexo do sol na água projeta riscos de luz sobre o rosto de
Elisa.
Elisa vê Bonifácio se afastar, mancando.
FIM
(c) Jorge Furtado e Guel Arraes, 2000
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
26/12/2000
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