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O HOMEM QUE COPIAVA
	roteiro de Jorge Furtado
	versão junho/2001
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA
	ANDRÉ, 18 anos, magro, roupas simples, mochila nas costas, está
	na fila de um caixa de supermercado. Atrás dele, um HOMEM, 50
	anos, com dois pacotes na mão. Atrás do homem, uma SENHORA, 40
	anos, e uma CRIANÇA de 5 anos, com um carrinho cheio de compras.
	André tira do bolso sua a carteira de dinheiro enquanto a MOÇA do
	caixa, 18 anos, vai passando as compras de André: esponja para
	lavar pratos, detergente, leite, pão, margarina, fósforos. André
	confere o dinheiro na carteira.
	ANDRÉ
	Quanto deu até agora?
	MOÇA
	Oito e vinte e cinco.
	ANDRÉ
	Tudo bem.
Ela passa a carne e registra.
	ANDRÉ
	Quanto?
	MOÇA
	Onze e trinta.
	ANDRÉ
	(surpreso) Quanto é a carne?
	MOÇA
	Três e cinco.
	ANDRÉ
	Não vai dar. Eu só tenho onze e cinqüenta.
	MOÇA
	Deu onze e trinta.
	ANDRÉ
	É que eu preciso levar o álcool. Quanto é o
	álcool?
	MOÇA
	Um e vinte.
	ANDRÉ
	Pois é, não vai dar. Desculpe, mas é que eu
	preciso levar o álcool.
	MOÇA
	Eu já registrei a carne.
Ao fundo, um CASAL entra na fila.
	ANDRÉ
	Não dá para tirar o detergente? Quanto é o
	detergente?
	MOÇA
	Eu já registrei o detergente.
	ANDRÉ
	Eu sei, desculpe. Mas é que eu preciso levar o
	álcool.
	A mulher e o homem na fila estão visivelmente irritados com a
	demora dele.
	MOÇA
	O que eu faço?
	ANDRÉ
	É que... eu preciso levar o álcool mesmo,
	desculpe.
	A moça, mal contendo a irritação, toca uma campainha que acende
	uma luz sobre o caixa. O homem na fila troca de caixa,
	resmungando, irritado. O SUB-GERENTE, 30 anos, camisa branca,
	crachá e calça de tergal cinza, chega ao caixa.
	MOÇA
	Tenho que abrir.
	SUB-GERENTE
	O que foi?
Uma VELHINHA chega e entra na fila.
	ANDRÉ
	Desculpe, mas eu preciso levar o álcool. Não vi
	que a carne era tão cara.
	SUB-GERENTE
	Quanto é que você tem?
	ANDRÉ
	Tenho onze e cinqüenta.
O sub-gerente examina a conta.
	SUB-GERENTE
	A conta deu onze e trinta.
	ANDRÉ
	É que eu preciso levar o álcool, que ainda não
	está na conta.
	SUB-GERENTE
	Quanto é o álcool?
	MOÇA
	Um e vinte.
	O Sub-Gerente, visivelmente irritado, examina André enquanto tira
	uma chave do bolso mexe na registradora.
	MOÇA
	Você vai tirar o quê?
	ANDRÉ
	Quanto é o detergente?
	MOÇA
	Um e quinze. Se deixar a carne, dá.
	ANDRÉ
	E a esponja?
	MOÇA
	A esponja é quarenta.
André pensa um pouco, faz contas.
	MOÇA
	E aí?
	ANDRÉ
	Tudo bem, deixa a carne.
A Moça separa a carne, registra o álcool.
	MOÇA
	Nove e quarenta e cinco.
	André paga. A Moça dá o troco em moedas. André pega o troco e
	sai, sob o olhar irritado do gerente e dos outros clientes.
CENA 2 - TERRENO BALDIO - EXTERIOR/DIA
	André sai do supermercado, caminha pela calçada até um terreno
	baldio ao lado do supermercado. Ele olha para os lados, abre a
	mochila, revelando uma grande quantidade de dinheiro, notas de
	cem e cinqüenta. Despeja o dinheiro no chão. Derrama álcool sobre
	o dinheiro e acende um fósforo. O dinheiro queima.
Créditos Iniciais
CENA 3 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	Uma pequena papelaria e livraria de subúrbio. Estantes com
	revistas e balcões com material escolar. No fundo da loja, André
	opera uma máquina fotocopiadora.
	ANDRÉ (VS)
	O meu nome é André. Era o nome do meu pai. Foi ele
	quem escolheu o meu. Minha mãe me chamava de
	Zinho. Ele não gostava, só me chamava de André.
	Depois ele desistiu, começou a me chamar de Zinho
	também.
	CENA 4 - SEQ. DE MONTAGEM: RUAS DO QUARTO DISTRITO TABLE-TOP -
	EXTERIOR-INTERIOR/DIA
	Imagens do Quarto Distrito, um antigo bairro operário de Porto
	Alegre: casas de classe média-baixa, fábricas fechadas,
	depósitos.
	ANDRÉ (VS)
	Eu moro em Porto Alegre, uma cidade no sul do
	Brasil. Moro no Quarto Distrito, na Presidente
	Roosevelt, que é essa rua.
	Gravuras do Presidente Roosevelt e de sua mulher, num trabalho
	escolar, na fotocopiadora.
	ANDRÉ (VS)
	Roosevelt foi presidente dos Estados Unidos, era
	casado com uma gordinha que era prima dele. Ele
	ficou conhecido por causa da Doutrina Roosevelt,
	que não deu tempo de eu ler o que era.
Desenho de André: uma velha parecida com Eleanor Roosevelt.
	ANDRÉ (VS)
	Nem sei direito o que é doutrina, acho que é um
	monte de regras. Parece nome de uma velha. Vó
	Doutrina.
A fachada do prédio do Clube Gondoleiros,
	ANDRÉ (VS)
	Da janela do meu quarto eu vejo um clube, o
	Gondoleiros...
Uma festa no salão do clube, casais dançando.
	ANDRÉ (VS)
	...onde tem umas festas. No teto do prédio tem uma
	gôndola. Não sei se em Porto Alegre já teve alguma
	gôndola.
Na caixinha de música da mãe de André uma pequena gôndola gira.
	ANDRÉ (VS)
	Minha mãe tem uma caixinha de música com uma
	gôndola que rodeia.
CENA 5 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	André trabalhando, tirando cópias na fotocopiadora. Detalhes da
	máquina fazendo cópias.
	ANDRÉ (VS)
	Eu trabalho nesta papelaria, sou operador de
	fotocopiadora. Aqui você liga e desliga a máquina.
	Está vendo? Liga. Desliga. Liga. Desliga. Liga,
	desliga. Não é bom ficar fazendo isto muitas
	vezes, pode queimar. Liga. Desliga.
	SEU GOMIDE, 50 anos, está sentado próximo a entrada da loja, no
	caixa. Interrompe a leitura de uma revista para dar uma olhada no
	espelho côncavo pelo qual controla a loja.
	ANDRÉ (VS)
	É melhor parar, o Bolha acaba me vendo pelo
	espelho bolha dele. Ele diz que o espelho é para a
	segurança da loja. O Bolha pensa que eu sou
	otário. Considerando o que ele me paga, ele não
	deixa de ter uma certa razão. O nome do bolha é
	seu Gomide.
	DONA MARIA, 40 anos, entra na loja acompanhada de GUIGO, um
	menino de dois anos.
	ANDRÉ (VS)
	A dona bolha se chama Maria. Só aparece aqui na
	loja para ver revista e pegar dinheiro. O nome do
	bolhinha é Rodrigo. Ou Diogo. Eles chamam o
	bolhinha de Guigo, acho que é Rodrigo.
	André pega folhas de ofício num pequeno armário. Dentro do
	armário, uma lâmpada acesa. Guigo, atraído pela luz, tenta abrir
	o armário dos papéis.
	ANDRÉ (VS)
	Ele fica abrindo o armário do papel, por causa da
	luz. Isso é outra coisa que você tem saber. O
	papel da máquina deve ser bem seco e por isso fica
	guardado num armário com uma luz dentro que o
	bolhinha adora ficar abrindo. Não mexe aí,
	bolhinha.
André segura o braço de Guigo.
	ANDRÉ
	Não pode...
	MARIA
	Deixa ele, André.
	ANDRÉ
	É que depois o papel gruda e o seu Gomide reclama
	de mim, Dona Maria.
	SEU GOMIDE
	Tira esse guri daí, Maria.
Maria pega Guigo pela mão e o afasta do armário.
	MARIA
	Vem Guigo, vem, não mexe. Eu já vou.
Maria e Guigo saem da loja.
	ANDRÉ (VS)
	Isso, dona Bolha, vá em frente. Adeus, bolhinha.
André prepara as folhas para a máquina. Põe o papel na máquina.
	ANDRÉ (VS)
	Quando o papel acaba, você abaixa este troço, tira
	esta gaveta e põe o papel. Primeiro você solta bem
	o papel, para não grudar. É só segurar, dobrar,
	soltar. Segurar, dobrar, soltar. Mais uma. Aí você
	arruma o papel e põe na gaveta. Põe a gaveta na
	máquina e levanta o troço. Aqui você controla a
	cópia, mais escura ou mais clara.
CENA 6 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
Seu Gomide orienta André a operar a máquina.
	SEU GOMIDE
	É melhor deixar sempre no meio.
CENA 7 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	André opera a máquina: aperta botões, prepara a cópia de uma
	gravura. Põe o original sobre o vidro da máquina.
	ANDRÉ (VS)
	Certo bolha. Sempre no meio. Aqui você diz para
	ela quantas cópias você quer. Aí você levanta esta
	tampa e põe o papel que você quer copiar, o
	original, aqui. Você tem que pôr no limite desta
	marca no vidro. Aí você fecha a tampa, cuidando
	para não tirar o papel do lugar. Apertando este
	botão aqui você está dizendo: vá em frente, minha
	filha, está tudo certo. E ela vai.
	A máquina faz a cópia da gravura. A luz da máquina varre o rosto
	de André.
	ANDRÉ (VS)
	Essa luz é a melhor parte.
A cópia sai na gaveta da máquina.
	ANDRÉ (VS)
	Pronto. Você já sabe tudo que é preciso saber para
	fazer o que eu faço. Operador de fotocopiadora.
	Grande merda. É o que eu digo para as gurias se
	elas me perguntam. Só se elas me perguntam.
CENA 8 - PARQUE - EXTERIOR/DIA
André e uma Guria, num parque, sentados.
	GURIA
	O que é que você faz?
	ANDRÉ
	Eu? Eu sou operador de fotocopiadora.
	GURIA
	Que que é isso?
	ANDRÉ
	Eu opero uma máquina de fotocópias.
	GURIA
	Tipo assim, xerox?
	ANDRÉ
	É. Só que é de outra marca.
	GURIA
	Você trabalha no xerox de uma firma?
	ANDRÉ
	Não, não. Numa loja.
	GURIA
	Ah. Legal.
CENA 9 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
André opera a máquina.
	ANDRÉ (VS)
	Muito legal. Liga, desliga, o papel com a luz, a
	gaveta, o botão sempre no meio, quantas cópias e
	vai minha filha. Quantos neurônios um sujeito
	precisa para fazer essa merda?
CENA 10 - PARQUE - EXTERIOR/DIA
André e a Guria continuam sentados.
	ANDRÉ
	É uma merda.
	GURIA
	Bom...
	ANDRÉ
	É só pra ganhar uma grana. Eu trabalho com
	ilustrações, mandei um material para uma revista.
	ANDRÉ (VS)
	"Material". Acho que ela não caiu nessa. Gurias
	são espertas.
CENA 11 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André ocupa uma pequena escrivaninha, coberta de papéis soltos,
	desenhos e canetinhas. Ele desenha gurias, gurias de todos os
	tipos, magras, gordas, altas, bonitas e feias.
	ANDRÉ (VS)
	Quando eu não estou trabalhando eu fico em casa
	desenhando. É divertido porque não serve para
	nada, só para dizer para as gurias. Não tem dado
	muito certo. Gurias reconhecem um operador de
	fotocopiadora em poucos segundos.
	Desenhos de gurias na praia, gurias num carro, gurias cheias de
	jóias.
	ANDRÉ (VS)
	Gurias não sonham em passar a vida ao lado de um
	operador de fotocopiadora, viajar pelo mundo com
	um operador de fotocopiadora, ter filhos de um
	operador de fotocopiadora. Pelo menos eu, até
	agora, não encontrei nenhuma guria que sonhasse
	isso.
CENA 12 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	Através do binóculo, a sala do apartamento de Sílvia. ANTUNES, 60
	anos, está no sofá, apalermado frente à televisão. Na televisão,
	um programa de auditório.
	ANDRÉ (VS)
	Ela ainda não chegou. Ela mora com o pai. Acho que
	é pai, só pode ser. Ela chega em casa onze meia.
	Um dia ela atrasou, fiquei preocupado, ela chegou
	quase meia noite. Deve ter ido comer alguma coisa
	depois do cursinho.
	André observa o apartamento: mesa para quatro pessoas, sofá,
	televisão ligada, na parede da sala, um quadro com uma paisagem
	dos Alpes Suíços e uma Santa Ceia.
	ANDRÉ (VS)
	Pelos móveis, eles não devem ter grana, são tão
	duros quanto eu.
André observa Antunes.
	ANDRÉ (VS)
	Só que o pai dela trabalha, tem um uniforme, uma
	camisa que tem aquelas coisinhas no ombro, presas
	por um botão, parece um policial civil, ou agente
	sanitário, estes que matam mosquito. Nunca vi ele
	trazendo para casa aquela máquina de matar
	mosquito, mas acho que eles não levam mesmo para
	casa, aquilo é veneno. Talvez ele seja agente
	sanitário.
	SILVIA, 20 anos, entra em casa. Vai até a cozinha, pega uma fruta
	na geladeira e cruza a sala, passando por Antunes sem falar com
	ele. Ele também não tira os olhos da televisão.
	ANDRÉ (VS)
	Ela chegou. Linda. Ela vai direto para o quarto,
	acho que janta na rua. As vezes ela pega alguma
	coisa na cozinha. Só as vezes, quase nunca. Ela
	chega sempre depois das onze e vai direto para o
	quarto.
CENA 13 - APARTAMENTO DE SÍLVIA/BINÓCULO - INTERIOR/NOITE
	A luz do quarto de Sílvia se acende. Há apenas uma fresta no
	vidro da janela, o resto está coberto de papel decorado.
	ANDRÉ (VS)
	O vidro é quase todo coberto com um papel. No
	vidro têm também três adesivos, antigos, por trás
	do papel, e um papel colado, na fresta.
Sílvia se aproxima do papel colado no vidro e o examina.
	ANDRÉ (VS)
	O papel colado tem três linhas de cola, pode ser
	um cartão postal, pelo tamanho. As vezes ela pára
	e fica olhando para o papel. Deve ser uma foto.
	Ela tinha uma veneziana, mas apodreceu e eles
	tiraram, nunca mais colocaram. Deve ser caro, uma
	veneziana.
	Sílvia desaparece no quarto outra vez. Sua mão reaparece abrindo
	a porta do armário.
	ANDRÉ (VS)
	Pela fresta dá para ver só um pedaço do armário,
	mas as vezes ela deixa a porta do armário aberta e
	na porta tem um espelho. Dependendo do jeito que a
	porta fica aberta dá para ver um pedaço diferente
	do quarto, pelo espelho.
CENA 14 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE (TRUCAGEM)
	Os vários fragmentos do quarto de Sílvia montam um painel - como
	um código de barras de imagens.
	ANDRÉ (VS)
	A cama tem um edredon floreado. Tem um abajur numa
	mesinha ao lado da cama. Uma televisão no quarto,
	só dá para ver a luz, ela fica vendo filme até
	tarde. Uma escova, cabo de madeira redondo. Uma
	latinha que acho que era de biscoitos, com umas
	flores.
A luz se apaga.
	ANDRÉ (VS)
	Pronto. Acabou.
	CENA 15 - SEQ. DE MONTAGEM: QUARTO DE ANDRÉ RUAS TABLE-TOP -
	INTERIOR-EXTERIOR/NOITE-DIA
	André em seu quarto, fazendo contas. Detalhes de suas contas no
	papel, detalhes do contracheque.
	ANDRÉ (VS)
	Eu ganho dois salários mínimos, são trezentos e
	dois reais por mês, duzentos e noventa com os
	descontos.
André caminhando na calçada.
	ANDRÉ (VS)
	Não gasto em transporte, vou a pé para a loja e
	não saio nunca.
	Mãe de André abrindo a geladeira. Detalhe do carnê da
	imobiliária.
	ANDRÉ (VS)
	Minha mãe paga o supermercado com a pensão dela,
	eu pago metade do aluguel...
	Planta baixa do apartamento de André. Detalhe do quarto de
	empregada.
	ANDRÉ (VS)
	... dois quartos com dependência de empregada, se
	a gente tivesse empregada e ela conseguisse dormir
	de pé.
Sala do apartamento, a janela aberta.
	ANDRÉ (VS)
	Sala, vista para o prédio em frente, tudo isso por
	apenas...
Detalhe dos recibos.
	ANDRÉ (VS)
	... trezentos e trinta reais, trezentos e oitenta
	com o condomínio.
Detalhes das contas de André.
	ANDRÉ (VS)
	Sobram cem.
	Televisão na vitrine, com anúncio de preço. televisão na sala de
	André.
	ANDRÉ (VS)
	Pago metade da prestação da tv, quatorze
	polegadas, controle remoto, sessenta e quatro
	reais, trinta e dois a minha parte, sobram
	sessenta e oito.
André tomando uma cerveja num bar.
	ANDRÉ (VS)
	Gasto com bobagens: uma revista, uma cerveja...
André desenha uma guria.
	ANDRÉ (VS)
	...uma caneta.
André com o binóculo, na janela.
	ANDRÉ (VS)
	Para comprar o meu binóculo em precisei economizar
	um ano: pentax, doze por cinqüenta cpf. Não sei o
	que significa este cpf, sei que não tem nada a ver
	com aquele cpf da carteirinha, certificado de
	pessoa física.
CENA 16 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
André lê um gibi. Detalhes do gibi.
	ANDRÉ (VS)
	Pelo menos sobra tempo para ler na loja.
André faz cópias.
	ANDRÉ (VS)
	A maior parte do tempo eu fico lendo as coisas que
	as pessoas trazem para copiar. Enquanto eu estou
	tirando as cópias, só consigo ler algumas linhas
	de cada folha. Já é alguma coisa.
CENA 17 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
Ilustrações de um trabalho sobre Shakespeare e Cervantes.
	ANDRÉ (VS)
	Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia:
	vinte e três de abril de mil seiscentos e
	dezesseis. Eles nem se conheceram e morreram bem
	pobres. Cervantes foi enterrado numa vala comum,
	porque eu não sei. Nem sei bem o que significa
	vala comum. Que diferença faz? Nunca li nada que
	eles escreveram. Já vi uns filmes.
CENA 18 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
O soneto de Shakespeare por escrito, em detalhe.
	ANDRÉ (VS)
	Uma outra folha. Tinha um poema do Shakespeare.
	"Quando a hora dobra em triste e tardo toque e em
	noite horrenda vejo escoar-se o dia, quando vejo
	esvair-se a violeta, ou que a prata a preta
	têmpora assedia; quando vejo sem folha o tronco
	antigo que ao rebanho estendia a sombra franca, e
	em feixe atado agora o verde trigo, seguir no
	carro, a barba hirsuta e branca; sobre a tua
	beleza então questiono, que há de sofrer do tempo a
	dura prova, pois as graças do mundo em abandono
	morrem ao ver nascer a graça nova. Contra a foice
	do tempo é vão combate..."
Cai outra folha sobre o poema.
CENA 19 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	Uma Mulher está no balcão. André fecha o trabalho e entrega a
	ela.
	ANDRÉ (VS)
	A guria chegou para buscar o trabalho. Não
	consegui ler a última linha. E não sei o que é
	hirsuta.
	MARINÊS, 20 e poucos anos, muito bonita, roupas justas, entra na
	loja, Entrega recibos de pagamento ao Seu Gomide e vai para trás
	do balcão do material escolar.
	ANDRÉ (VS)
	Eu não falei da Marinês. Ela tinha ido ao centro,
	pagar uma conta. A Marinês também trabalha na
	loja, nas revistas e nas coisas do balcão. Lápis,
	borrachas, cola. Gostosa. O pior é que ela sabe
	que é gostosa, fica usando aquela calça bem justa.
	Ela me disse uma vez que só consegue vestir a
	calça deitada, com as pernas para cima.
CENA 20 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
Marinês se observa no reflexo do balcão.
	MARINÊS
	Não dá nem para usar calcinha, senão fica marca.
CENA 21 - QUARTO DE MARINÊS - INTERIOR/DIA
	Marinês faz acrobacias sobre a cama para entrar numa calça muito
	justa.
	ANDRÉ (VS)
	Fiquei imaginando aquela cena, ela deitada, de
	pernas para cima, sem calcinha, tentando entrar
	naquela calça justa.
CENA 22 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	André volta a fazer cópias. Marinês vai atender uma mulher que
	entrou na loja, mas ela só dá uma olhada nas revistas e vai
	embora.
	ANDRÉ (VS)
	É melhor nem imaginar muito, não é para a minha
	bolinha.
CENA 23 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
Uma foto do Alemão, na mão de Marinês.
	ANDRÉ (VS)
	Ela namorou um alemão e o cara escreveu para ela,
	duas vezes. O cara é alemão mas mora em Den
	Haagen, na Holanda.
CENA 24 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	Marinês e André conversam enquanto folheiam revistas: ele, uma
	revista de futebol; ela, uma revista de colunismo social.
	MARINÊS
	Den Haagen quer dizer "A Haia".
	ANDRÉ
	A-aia?
	MARINÊS
	Haia. O nome da cidade, a capital da Holanda, onde
	ele mora. É como se fosse "a Brasilia", entendeu?
	A Haia. Den Hageen.
	ANDRÉ
	Ah.
	ANDRÉ (VS)
	Eu disse "ah" para não estender aquela conversa.
	MARINÊS
	Pai pobre é destino, marido pobre é burrice.
	Pobreza é isso: destino ou burrice.
	ANDRÉ (VS)
	Além de gostosa, filósofa.
	ANDRÉ
	Pois é.
	ANDRÉ (VS)
	Destino ou burrice. No meu caso, um pouco dos
	dois.
CENA 25 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
André-Criança está sentado em frente a uma televisão.
	ANDRÉ (VS)
	Meu pai foi embora quando eu tinha quatro anos.
	Essa é a parte do destino. Eu estava vendo um
	programa de televisão.
CENA 26 - SEQ. DE MONTAGEM / ARQUIVO
	Imagens de arquivo da família Trapo. Cópia - na máquina, da capa
	do livro "A Vida, Modo de Usar": ilustração de um prédio sem uma
	das paredes, revelando o interior dos apartamentos.
	ANDRÉ (VS)
	O cenário era uma casa cortada ao meio, sem as
	paredes para a gente poder ver dentro. Vi a capa
	de um livro que era assim.
CENA 27 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA
O Pai de André, na porta do apartamento.
	PAI
	Guarda a correspondência para mim?
	ANDRÉ
	A-hã.
André-Criança guarda correspondências em caixas.
	ANDRÉ (VS)
	Ele não recebia muita carta, era mais cobrança e
	anúncio de um monte de coisas. Eu guardava tudo
	numa caixa de camisa. Depois a caixa ficou pequena
	e eu passei tudo para uma caixa de sapato. Depois
	para três caixas, dividindo as cobranças, os
	anúncios e as cartas.
CENA 28 - ANIMAÇÃO
	Desenho animado. O pátio de uma escola, crianças brincam. André e
	Mairoldi estão sentados numa escada. André toma um refrigerante.
	ANDRÉ (VS)
	No outro dia, na escola, eu disse para o Mairoldi,
	um gordinho que tinha uma mancha vermelha na cara,
	que eu achava que o meu pai não ia mais voltar.
	ANDRÉ
	Eu acho que o meu pai não vai mais voltar.
	MAIROLDI
	Ele viajou?
Crianças passam jogando bola.
	ANDRÉ
	É.
	MAIROLDI
	Quando?
	ANDRÉ
	Faz sete anos.
Mairoldi sorri. Ri. Gargalha.
	ANDRÉ
	Ele começou a rir, a rir muito.
	André quebra a garrafa de refrigerante na cara de Mairoldi.
	Sangue, professores em pânico, ambulância.
	ANDRÉ (VS)
	Então eu peguei uma garrafa e quebrei na cara
	dele. Ele ficou cego de um olho. Essa foi a parte
	da burrice.
André se afasta da escola.
	ANDRÉ (VS)
	Foi meu último dia na escola. Eles me expulsaram,
	e eu também não queria mais ir.
André faz uma fogueira na área de serviço do apartamento.
	ANDRÉ (VS)
	Eu queimei tudo no tanque, fez uma fumaceira, a
	vizinha de cima reclamou.
André vê umas cartas parcialmente queimadas, dentro de uma caixa.
	ANDRÉ (VS)
	Guardei só umas que eram cartas mesmo.
CENA 29 - QUARTO/SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André da uma espiada na sala. Sua mãe vê tv. Ele volta ao quarto,
	senta e começa a desenhar.
	ANDRÉ (VS)
	Enquanto minha mãe vê novela eu fico no quarto,
	lendo ou desenhando.
CENA 30 - QUADRINHOS
	Quadrinhos de André com os personagens Zeca Olho e Vó Doutrina.
	Zeca Olho tem um olho só, bem grande. Vó Doutrina é uma colagem
	de desenho e foto, com a cara da Eleanor Roosevelt.
	ANDRÉ (VS)
	Zeca Olho mora com Vó Doutrina.
	VÓ DOUTRINA
	Você tem que prestar atenção na aula. Preste
	atenção no que os professores ensinam. Se você não
	entender, pergunte, pergunte!
	PROFESSOR
	Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil no dia 22
	de abril de 1500.
	ZECA OLHO
	Por quê?
Todo mundo morre de rir dele.
	GAROTA
	Dãããã...
CENA 31 - QUARTO, SALA E COZINHA - INTERIOR/NOITE
	A Mãe se movimenta pela casa, arrastando o chinelo. Mexe na
	geladeira.
	ANDRÉ (VS)
	Minha mãe arrasta o chinelo do banheiro para a
	cozinha. Schlac, schlac, schlac, schlac. Abre o
	armário, pega um copo, põe o copo na pia, fecha o
	armário, abre a geladeira, pega a garrafa d'água,
	fecha a geladeira, enche o copo, não todo, a
	metade, abre a geladeira, guarda a garrafa, pega o
	copo, abre o filtro, enche o copo, fecha o filtro,
	arrasta o chinelo da cozinha para o quarto e diz;
	boa noite, meu filho, eu vou deitar. Televisão me
	dá um sono...
A Mãe passa pela porta do quarto. André desenha.
	MÃE
	Boa noite, filho, eu vou me deitar. Televisão me
	dá um sono...
	ANDRÉ
	Boa noite, mãe.
André vai até a cozinha.
	ANDRÉ (VS)
	Aí eu vou na cozinha, pego alguma coisa na
	geladeira e vou para a sala. Ligo a tevê e fico
	zapeando, vendo bem pouco de tudo. Quase só tem
	chatice. Vejo futebol, uns filmes, nada que eu me
	lembre depois. Lembro mais das cópias que eu leio.
	Tevê a gente esquece logo.
André senta no sofá da sala e fica desenhando.
	ANDRÉ (VS)
	Tiro o som e fico desenhando, com aquela tevê
	ligada. É como se fosse uma lareira, ou um aquário
	iluminado. Só aquela luz e movimento.
CENA 32 - SALA E QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André apaga a luz do quarto e senta em frente a janela, binóculos
	na mão. Apoia os cotovelos sobre o parapeito da janela.
	ANDRÉ (VS)
	Onze horas eu desligo, vou para o quarto e pego o
	binóculo. Uma coisa que eu descobri, olhando os
	vizinhos, é que gordos dormem tarde. Não sei
	porque, é só uma estatística. Entre os últimos
	caras a dormir, pelas duas da manhã, sempre tem
	pelo menos um gordo.
CENA 33 - QUARTO DO GORDO/BINÓCULO - INTERIOR/NOITE
Um Gordão, sem camisa, dançando na sala de um apartamento.
	ANDRÉ (VS)
	Tem um gordão no Montes Claros que não dorme antes
	da uma da manhã. Ele fica de pé, balançando de um
	lado para o outro, ouvindo música. Queria saber
	que música ele ouve.
CENA 34 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
A fresta da janela do quarto de Sílvia se ilumina.
	ANDRÉ (VS)
	Outra coisa importante que eu descobri, além do
	fato dos gordos dormirem tarde, é que, se você
	quer ver alguma coisa de binóculo, não adianta
	ficar pulando de uma janela para a outra, atrás da
	ação. Você tem que se fixar numa janela e esperar.
	É como pescar.
	Sílvia passa rapidamente, de calcinha e sutiã, pela fresta da
	janela.
	ANDRÉ (VS)
	O máximo que eu já vi foi um pedaço da perna dela,
	de calcinha. Ela só passou.
Sílvia passa outra vez, em câmera lenta.
	ANDRÉ (VS)
	Eu estava esperando há quase uma hora e ela
	passou. Acho que durou uns... dois segundos. Valeu
	a pena.
CENA 35 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
André tira cópias na máquina.
	ANDRÉ (VS)
	Quando a gente faz alguma coisa que não precisa
	pensar muito acaba usando o tempo para pensar
	outras coisas. Eu gosto de ficar pensando naqueles
	dois segundos, em câmera lenta.
CENA 36 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
Sílvia passa, em câmera lenta.
CENA 37 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA
André empacota compras num supermercado, o mesmo da cena 1.
	ANDRÉ (VS)
	Teve uma época, isso foi antes da loja, quando eu
	trabalhava de empacotador no supermercado, que é
	outra coisa que não precisa pensar muito, que eu
	só pensava em ser famoso. Normalmente eu pensava
	em ser famoso jogando futebol. Ficava imaginando
	mil gols maravilhosos que eu fazia, um mais
	decisivo que o outro.
CENA 38 - ARQUIVO/DESENHOS
	André jogando futebol, torcida vibrando num estádio lotado.
	Desenhos dos esquemas dos gols.
	ANDRÉ (VS)
	Um gol em que eu driblava quatro caras e encobria
	o goleiro era um dos meus preferidos. Outro era um
	gol de cabeça, bem no finzinho do jogo. Também
	gostava muito de um sem-pulo, o cara cruzava e eu
	dava um chutão, de peito de pé, de primeira, bem
	no ângulo, sem chances para o goleiro. A bola
	batia no alto da rede. A rede estufava e a bola
	caía, lá no fundo. Aí eu corria, de braços
	abertos, quarenta e quatro do segundo tempo, a
	torcida delirando. Acho legal correr de braços
	abertos, dá um desequilíbrio, a gente quase cai,
	ao mesmo tempo que parece que você quer abraçar
	todo mundo.
CENA 39 - ARQUIVO
	Imagens de arquivo: Pelé comemorando vários gols. Reinaldo
	comemorando um gol. Romário comemorando um gol.
	ANDRÉ (VS)
	Aquele pulinho com um soco no ar do Pelé eu nunca
	imaginei. Só dava certo com o Pelé, se outro cara
	vai fazer parece uma bichice. Eu gostava também do
	jeito que o Romário e o Reinaldo, um que jogava no
	Atlético, comemoravam os gols: parados, com o
	braço erguido, dentro da área do adversário.
	Legal.
Uma mulher aparece no meio do campo de futebol.
	MULHER
	Você podia tirar o azeite de cima das frutas?
CENA 40 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA
André no supermercado, no caixa. A sua frente, a Mulher irritada.
	ANDRÉ
	Como?
	MULHER
	A lata de azeite. É pesada, você colocou em cima
	das frutas. Põe o azeite junto com as caixas.
	ANDRÉ
	Desculpe.
	MULHER
	Depois as frutas chegam todas amassadas.
	ANDRÉ
	Eu já pedi desculpas.
	MULHER
	Não precisa se irritar. Não é você que paga as
	frutas.
	ANDRÉ
	Eu já pedi desculpas, já troquei o saco do azeite,
	o que mais a senhora quer que eu faça?
O Gerente se aproxima.
	GERENTE
	Qual é o problema?
	MULHER
	Este menino colocou o azeite em cima das minhas
	frutas, eu reclamei e ele ficou irritado.
	ANDRÉ
	Eu já pedi desculpas.
	GERENTE
	A senhora desculpe, ele é assim meio irritadinho.
	Não se preocupe, não vai acontecer outra vez.
CENA 41 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
André tira cópias.
	ANDRÉ (VS)
	Foi até melhor, eu tinha que pegar o ônibus para
	chegar no supermercado. Aqui eu ganho o mesmo e
	não preciso ficar o dia inteiro de pé, não preciso
	fazer força e ainda leio todas aquelas coisas.
	André folheia uma revista com fotos de gente famosa em suas casas
	maravilhosas.
	ANDRÉ (VS)
	Eu não penso em ser famoso jogando futebol. Só as
	vezes, quando eu estou caminhando pela rua. Agora
	eu penso muito mais em ganhar dinheiro, muito
	dinheiro. Também nem quero mais ser famoso. Não
	tem nada mais idiota do que estes ricos que ficam
	mostrando suas casas nas revistas para todo mundo
	ficar babando. Sempre que eu vejo estes ricos de
	revista eu penso que os ricos mesmo não iam se
	mostrar em revista nenhuma. Eu sonho em ser rico
	mesmo, não estes de revista.
André larga a revista para atender um cliente.
CENA 42 - SEQ. DE MONTAGEM: RUAS TABLE-TOP
	André vê num trabalho de faculdade os desenhos de Keith Harring.
	Detalhes de seringas. Travestis fazendo ponto na Farrapos.
	ANDRÉ (VS)
	Eu li que um cara que desenhava uns bonecos vendeu
	os desenhos dele por um monte de dinheiro. Só que
	ele só ficou bem famoso depois de morto.
André vê num trabalho de faculdade os desenhos de Van Gogh.
	ANDRÉ (VS)
	O cara se rala trabalhando a vida inteira para
	deixar a grana para sei lá quem, que nem filho o
	sujeito teve tempo para ter. O negócio é ficar
	rico logo, o mais rápido possível, e se mandar. O
	problema é: como?
CENA 43 - SEQ. DE MONTAGEM
	Letras desenhadas por André: "Agarre se puder". Imagens de
	arquivo do programa de televisão.
	ANDRÉ (VS)
	Eu lembro de um programa na televisão. Chamava
	"Agarre se puder". Uma criança tinha um minuto
	para segurar todos os brinquedos que conseguisse.
	Uns deixavam a bicicleta para o final, outros
	pegavam logo no começo.
	André no programa "Agarre se puder". Ele segura uma pilha de
	brinquedos numa mão e, com a mão livre, ergue uma bicicleta do
	chão.
	ANDRÉ (VS)
	Eu deixaria para o final, depois de pegar o
	autorama e os outros jogos, empilhados em ordem
	crescente do tamanho das caixas. E quando faltasse
	dez segundos eu levantaria a bicicleta, com a mão
	livre. Isso, é claro, se eu tomasse Nescau,
	colecionasse os rótulos, mandasse pelo correio e
	minha carta fosse sorteada no meio daquela
	montanha.
CENA 44 - ANIMAÇÃO
	Letras desenhadas por André: Ficar rico logo, o mais rápido
	possível, e se mandar.
	ANDRÉ (VS)
	Mandei uma história do Zeca Olho e da Vó Doutrina
	para uma revista.
	VÓ DOUTRINA
	Você não pode ficar fazendo só o que quer. Você
	tem que fazer uma coisa que lhe dê dinheiro!
	ZECA OLHO
	Por quê?
	VÓ DOUTRINA
	Porque sem dinheiro não dá para fazer nada do que
	você quer!
André desenha.
	ANDRÉ (VS)
	Eles nunca responderam. Mandei mais uma vez, com
	uma carta dizendo para eles me responderem ou
	então me devolverem logo, que tinha outras
	revistas interessadas. Até agora, nada.
CENA 45 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
André desenha um carro.
	ANDRÉ (VS)
	Depois que eu acabar de pagar a televisão vão me
	sobrar cinqüenta e cinco reais por mês. Se eu não
	gastar nada, em um ano eu tenho seiscentos e
	sessenta. Em dez anos eu tenho seis mil e
	sessenta, já dá para comprar um carro usado, daqui
	a dez anos, se eu não gastar nada.
André desenha uma arma. Colagem de fotos de armas.
	ANDRÉ (VS)
	Mais fácil é comprar uma arma.
CENA 46 - CAIS DO PORTO - EXTERIOR/NOITE
	André e FEITOSA, 30 anos, caminham pelos túneis sob uma avenida
	na zona portuária.
	FEITOSA
	Comprando cinqüenta reais de maconha tu pode
	revender por cem, cento e cinqüenta, dependendo do
	estado do otário. Uma vez eu vendi dez reais de
	maconha, misturado com um monte de tempero verde
	seco por cem reais. E o cara que comprou ainda
	achou ótimo, pediu mais. Experimentei, para ver.
	Tinha gosto de pizza. Juntando uns quinhentos
	reais tu pode comprar uma roupa mais legal para
	vender cocaína. Pó dá muita grana, principalmente
	se você tem um acerto com a polícia. Tu tá
	marcando passo naquela loja.
André e Feitosa se aproximam da escadaria da ponte do Gauíba.
	ANDRÉ (VS)
	Pode ser. Só que eu não estou nem um pouco a fim
	de ser preso, como ele já foi, várias vezes, nem
	estou a fim de usar cocaína. Ele cheira todo dia.
	O Feitosa diz que eu sou um cagalhão.
	FEITOSA
	Otário e cagalhão.
CENA 47 - ESCADARIAS DA PONTE - EXTERIOR/NOITE
	André e Feitosa, de pé na escada da ponte do Guaíba, olham para
	um monte de areia, lá embaixo. Os outros dois caras estão lá
	embaixo, olhando para eles.
	ANDRÉ
	Daqui está bom.
	FEITOSA
	Vamos subir mais uma.
	ANDRÉ
	Não. Daqui está bom.
	FEITOSA
	Eu vou subir mais uma.
	Feitosa sobe mais um lance da escada. Olha André lá de cima.
	André pula.
	André cai sobre o monte de areia, enterrando-se até o joelho.
	Desce do monte e olha para cima.
	ANDRÉ
	É muito alto.
	FEITOSA
	Tu é muito cagalhão.
Feitosa pula, gritando.
	FEITOSA
	Cagalhão!
	Feitosa cai sobre o monte de areia, se enterrando quase até a
	cintura. Desce da areia sem problemas.
	FEITOSA
	(olha para cima) Dá para pular lá da ponte.
	ANDRÉ
	Tá maluco?
Um homem que trabalha nas dragas vê os dois.
	HOMEM DAS DRAGAS
	Ei!
	André sai, apressado, quase correndo. Feitosa se afasta mais
	devagar.
	FEITOSA
	Te arrumo uma arma por trezentos reais.
	Quinhentos, se você quiser uma pistola, (mostra a
	arma) mais fácil de atirar.
CENA 48 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE - ARQUIVO
	André assiste televisão, um programa de colunismo social, sem
	som. O programa mostra uma festa.
	ANDRÉ (VS)
	Com uma arma eu podia assaltar alguém e conseguir
	uma grana. Só que isso não resolve o problema, a
	não ser que eu assaltasse alguém com muita grana,
	para poder assaltar uma vez só. Quando você começa
	a assaltar todo dia, é óbvio que uma hora dessas
	você dança. O negócio é fazer um grande assalto só
	e cair fora. O bom mesmo é roubar um banco.
	CENA 49 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA
	em paralelo com
	CENA 50 - FRENTE DO BANCO - EXTERIOR/DIA - BINÓCULO
André no binóculo observa o banco.
	ANDRÉ (VS)
	Da minha janela, eu vejo os fundos de um banco.
	Antes de trabalhar na loja, depois que eu saí do
	supermercado, eu passava um tempão em casa. Sabia
	todos os horários do banco, a hora e os dias em
	que o carro forte chegava, os guardas, tudo.
Os guardas descarregam malotes de dinheiro do carro forte.
	ANDRÉ (VS)
	É perigoso, mas um cara armado, esperando no
	estacionamento, podia fugir com um saco daqueles.
	Ou dois. Quanto será que tem de grana num saco
	daqueles? Talvez um dia eu descubra.
	CENA 51 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA
	em paralelo com
	CENA 52 - SALA DE SÍLVIA - INTERIOR/DIA - BINÓCULO
	André olha pelo binóculo a casa de Silvia. Silvia toma café da
	manhã.
	ANDRÉ (VS)
	Eu me desinteressei pelos horários do banco quando
	descobri a Sílvia. Teve um domingo que ela tomou
	café de pijama de flanela. Ela comia bolacha maria
	e tomava café com leite. Ela molhava a bolacha
	maria no café e comia. O pijama estava um pouco
	aberto. Me apaixonei.
CENA 53 - FRENTE DO PRÉDIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/DIA
André sai do seu prédio.
	ANDRÉ (VS)
	Eu passei a olhar para a casa da Silvia todos os
	dias. Sabia a hora em que ela acordava e chegava.
André atravessa a rua.
	ANDRÉ (VS)
	Um dia eu resolvi descobrir onde ela trabalhava.
André caminha pelas calçadas lotadas de gente.
	ANDRÉ (VS)
	Existem pessoas que não saem na rua, nunca. Chama
	síndrome do pânico, acho que era um trabalho de
	faculdade. Elas ficam em casa porque não conseguem
	sair na rua. É ao contrário de "ficar rico logo e
	se mandar, o mais rápido possível".
	Um Velho muito velho, amparado num andador, arrasta os pés pela
	calçada.
	ANDRÉ (VS)
	O problema que você acaba ficando velho. Melhor
	enfrentar a rua.
CENA 54 - FRENTE DO PRÉDIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/DIA
André se aproxima do prédio de Sílvia.
	ANDRÉ (VS)
	Eu esperei na frente do prédio dela, o nome do
	edifício é Santa Cecília.
	CENA 55 - SEQ. DE MONTAGEM: TABLE-TOP RUAS - EXTERIOR-
	INTERIOR/DIA
	Ilustrações da vida de Santa Cecília, na máquina fotocopiadora.
	Fachada da fábrica de móveis Santa Cecília. Igreja.
	ANDRÉ (VS)
	Os romanos cozinharam Santa Cecília numa sala com
	vapor mas ela não morreu. Aí eles cortaram a
	cabeça dela, não conseguiram pensar em nada mais
	divertido.
CENA 56 - FRENTE DO PRÉDIO DE SÍLVIA - EXTERIOR/DIA
	Sílvia sai do prédio, apressada. André a segue de longe. Ela
	corre para a parada de ônibus. Ele a segue.
	ANDRÉ (VS)
	Achei melhor ficar do outro lado da rua, perto de
	uma banca de revistas. Ela saiu na hora de sempre,
	comendo alguma coisa e correndo. Tive que correr
	também para pegar o mesmo ônibus.
CENA 57 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA
André procura um lugar para sentar no ônibus.
	ANDRÉ (VS)
	Ela passou a roleta. Eu sentei atrás, para não dar
	muita bandeira. Ela nem me viu, ficou lendo uma
	coisa, acho que de um cursinho.
	Sílvia pára de ler, André passa na roleta. Ela levanta e toca a
	campainha. Ele passa na frente dela.
	ANDRÉ (VS)
	A pessoa nunca vai achar que está sendo seguida se
	você estiver na frente dela, eu vi isso num filme.
	O cara do filme tinha uns óculos especiais, com
	uns espelhos. Eu tinha que ficar dando umas
	viradinhas de pescoço, mas tudo bem.
CENA 58 - RUA - EXTERIOR/DIA
André caminha pela calçada, olha vitrines.
	ANDRÉ (VS)
	Desci antes dela e fiquei me fazendo de perdido,
	com um papel na mão. Ela saiu caminhando,
	apressada. Eu fui atrás. Ela entrou numa loja que
	ainda não estava aberta ao público. Loja Silvia.
	Eu ainda não sabia que era uma coincidência.
CENA 59 - BAR/CAFÉ - EXTERIOR/DIA
André toma um café no balcão de um bar, em frente a Loja Sílvia.
	ANDRÉ (VS)
	Esperei num bar. Tomei só um cafezinho. A loja
	abriu, paguei o cafezinho, cinqüenta centavos.
	Entrei.
CENA 60 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA
André entra na loja. Procura por Sílvia. Uma MULHER se aproxima.
	MULHER
	Pois não?
	ANDRÉ
	Eu... estou só dando uma olhada.
	MULHER
	Se precisar de ajuda...
	ANDRÉ
	Obrigado.
André caminha pela loja, examina um rolo de tecido.
	ANDRÉ (VS)
	Talvez ela trabalhe no estoque, escritório, estas
	coisas. Só se o dono da loja for muito idiota para
	deixar ela no estoque e essa outra atendendo. Essa
	outra nem é feia, mas usa muita maquiagem e
	perfume. Será que ela usa perfume?
Sílvia se aproxima.
	SÍLVIA
	Já foi atendido?
	ANDRÉ
	Eu? Não, eu não.
	SÍLVIA
	Posso lhe ajudar?
	ANDRÉ
	É. Pode ser.
	SÍLVIA
	É um presente para a namorada?
	ANDRÉ
	Não, é para mim...
André olha em torno. É uma loja de lingerie e artigos femininos.
	ANDRÉ
	... nha mãe.
	SÍLVIA
	Uma camisola, um chambre. Aniversário?
	ANDRÉ
	É. Pode ser.
	SÍLVIA
	Esse chambre está com um preço ótimo, trinta e
	oito reais. Olha que bonito. É de chenile.
	ANDRÉ
	É, bonito. Como é o seu nome?
	SÍLVIA
	O meu? Silvia.
	ANDRÉ
	Silvia?
	SÍLVIA
	Não, eu não sou a dona da loja. Quando eu vim
	trabalhar aqui a loja já se chamava Silvia.
	ANDRÉ
	Ah. Coincidência. Olha, obrigado, mas eu vou dar
	mais uma volta, dependendo... eu volto aqui. Achei
	bonito este chambre.
	SÍLVIA
	Você não quer ver as camisolas?
	ANDRÉ
	Não, obrigado. Vou ver se eu não encontro assim,
	uma coisa para a casa.
	SÍLVIA
	Você pode me dar dois pré-datados pelo chambre.
	ANDRÉ
	É? Hmm, legal. De repente... eu volto. Obrigado,
	hein?
	SÍLVIA
	Obrigado a você.
	CENA 61 - SEQ. DE MONTAGEM: RUAS TABLE-TOP VITRINES -
	EXTERIOR-INTERIOR/DIA
André caminha pela calçada.
	ANDRÉ (VS)
	Obrigado a você. Ela já disse aquilo dobrando o
	chambre, foi uma coisa assim, automática. Obrigado
	a você. Dezoito reais, ela deve ganhar dez por
	cento, um e oitenta.
Cálculos num caderno, mão de André.
	ANDRÉ (VS)
	Digamos que ela venda dez coisas por dia, mais ou
	menos neste preço. Dezoito reais. Por mês, dezoito
	vezes trinta, se fosse vinte era seiscentos, menos
	dois vezes trinta, sessenta, quinhentos e
	quarenta, só em comissão.
André caminha pela calçada.
	ANDRÉ (VS)
	Se bem que não é vezes trinta, que ela não
	trabalha domingo. Vamos deixar por quinhentos.
	Talvez ela não venda dez coisas por dia, e talvez
	as coisas que ela venda não sejam tão caras como
	este chambre.
Roupas numa vitrine, etiquetas de preço.
	ANDRÉ (VS)
	Calcinha, camiseta, estas coisas, devem ser bem
	mais baratas.
CENA 62 - BAR MAMA GRAVE - EXTERIOR/DIA
André conversa com DIRCEU, 40 anos, no balcão de um bar.
	ANDRÉ
	Quanto custa uma calcinha?
	DIRCEU
	Uma calcinha? Sei lá. Por quê?
	ANDRÉ
	Só para saber. Obrigado pelos convites.
CENA 63 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
André tira cópias. Marinês, que lê revistas ao seu lado.
	ANDRÉ (VS)
	Digamos que ela ganha quatrocentos. Fora o
	salário, que deve ser no mínimo igual ao meu,
	duzentos e pouco. Seiscentos e pouco, por mês.
	Razoável.
André troca o papel da máquina.
	ANDRÉ
	Eu recebi uns convites para inauguração de um bar.
	Você quer?
	MARINÊS
	Que bar é?
	ANDRÉ
	De um amigo meu. Chama Mama Grave. Tem direito a
	duas cervejas.
	MARINÊS
	Posso levar um amigo?
	ANDRÉ
	Pode. Te dou dois convites.
	MARINÊS
	Você vai com alguém?
	ANDRÉ
	Ainda não sei.
CENA 64 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA
André dá uma conferida no seu visual no reflexo de uma vitrine.
	ANDRÉ (VS)
	Não deu certo com a Marinês. Eu nem queria ir com
	ela mesmo.
Entra na loja.
	ANDRÉ
	Sílvia?
	SÍLVIA
	Sim?
	ANDRÉ
	Lembra de mim? Eu estive aqui outro dia, vendo um
	presente para a minha mãe.
	SÍLVIA
	Ah. Lembrei. Encontrou?
	ANDRÉ
	Encontrei. Mas depois me arrependi, devia ter
	comprado aquele chambre que você me mostrou. Você
	já vendeu?
	SÍLVIA
	Não. Quer dar uma olhada?
	ANDRÉ
	Não, não, era só para saber se ainda tinha.
	SÍLVIA
	Tem.
	ANDRÉ
	Que bom. Caso eu resolva comprar, eu volto aqui.
	SÍLVIA
	Tá certo.
	ANDRÉ
	Você gosta de cerveja?
	SÍLVIA
	Eu?
	ANDRÉ
	É.
	SÍLVIA
	Não muito. Por quê?
	ANDRÉ
	Não. Por nada. Só para saber.
	SÍLVIA
	Ah.
	ANDRÉ
	Bom... Então eu vou indo. Meu horário de almoço.
CENA 65 - RUA - EXTERIOR/DIA
André caminha pela calçada. Inserts da cena anterior.
	ANDRÉ
	Você gosta de cerveja?
	SÍLVIA
	Cerveja? Sou louca por cerveja.
CENA 66 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA
Cena de um programa de televisão, em vídeo.
	ANDRÉ (VS)
	E o prêmio de idiota do mês vai para: André!
André recebe uma torta na cara.
CENA 67 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE
	André, Marinês e CARDOSO, 30 anos, se encontram no Mamaïs Grave.
	Algumas mesinhas circundam uma pista de dança.
	MARINÊS
	Esse é o André, da loja, que me arrumou o convite.
	Esse é o Cardoso.
	CARDOSO
	Prazer, André. Cardoso.
	ANDRÉ
	E aí?
André, Marinês e Cardoso na mesa.
	MARINÊS
	Eu vou gastar a minha primeira cerveja. Com
	licença.
Marinês sai.
	CARDOSO
	Interessante aqui. Eu não gosto é destas mesinhas
	de lata.
	ANDRÉ
	É.
	CARDOSO
	Uma vez eu larguei um copo de uísque numa mesa de
	lata, tava molhada, o copo começou a andar
	sozinho. Sabe quando fica aquela camadinha de água
	entre o vidro e o copo e o copo anda sozinho? As
	vezes acontece em casa, no inox da pia, até com o
	copo virado de boca para baixo. É um fenômeno
	físico, tem a ver com atrito.
	ANDRÉ
	Sei como é.
	CARDOSO
	Pois então. O meu copo de uísque começou a andar,
	eu achei que estava bêbado, não fiz nada, fiquei
	só olhando. Eu estava mesmo.
	ANDRÉ
	O quê?
	CARDOSO
	Bêbado. Mas nem tanto. O copo TAVA andando
	sozinho. Caiu no chão e quebrou. Coisa triste é
	ver uísque derramado no chão.
	ANDRÉ
	É.
	CARDOSO
	Não gosto destas mesinhas de lata. E esse nome?
	Mama Grave?
	ANDRÉ
	É.
	CARDOSO
	O pessoal tem mania de botar nome em inglês em
	bar. Você faz o quê?
	ANDRÉ
	Eu? Eu sou operador de fotocopiadora.
Pausa.
	ANDRÉ
	Xerox. Trabalho no xerox.
	CARDOSO
	Da loja?
	ANDRÉ
	Da loja.
	CARDOSO
	Ah. Legal.
	ANDRÉ
	E você?
	CARDOSO
	Eu? Eu trabalho com antiguidades. Peças de
	mobiliário, porcelana, estas coisas. Pena que aqui
	não tenha uma mesinhas na calçada.
	ANDRÉ
	É que passa ônibus, muita fumaça. Você tem que
	trabalhar de gravata?
Cardoso observa Marinês, no balcão.
	CARDOSO
	Não. E você e a Marinês...
	ANDRÉ
	Gostosa, não é?
	CARDOSO
	Nossa senhora! Vocês...
	ANDRÉ
	Não, não. A gente trabalha na loja, só isso.
	CARDOSO
	Sei.
	ANDRÉ
	E você...
	CARDOSO
	Acho que vou dar uma conferida. Mas não pode dar
	mole. Mulher gostosa assim tem sempre um monte de
	cara babando no pescoço delas. Elas enjoam.
	Gostosa assim tem que dar um gelo.
Marinês chega.
	MARINÊS
	Trouxe três copos. Essa primeira é minha, a
	próxima é de vocês.
	ANDRÉ
	Eu já tomei uma, antes de vocês chegarem. Só tenho
	mais uma.
	MARINÊS
	Saúde.
	CARDOSO
	Saúde.
	ANDRÉ
	Saúde.
	CARDOSO
	Acabou a bateria do meu celular. Eu vou ali dar um
	telefonema para uma amiga minha, já volto.
Cardoso sai. Marinês e André ficam alguns segundos sem assunto.
	ANDRÉ
	Legal, o Cardoso.
	MARINÊS
	Usa perfume. É mais baixo que eu. E aquela camisa
	dele...
	ANDRÉ
	É. Fora isso...
Cardoso se aproxima.
	MARINÊS
	(para André) Vamos dançar?
Marinês arrasta André para a pista.
	Marinês e André dançam. Cardoso fica olhando. André não dança
	muito bem mas se solta logo. Marinês dança muito bem, exagera nos
	trejeitos sensuais da dança, provocando Cardoso.
Cardoso se aproxima dos dois, ensaiando uma dança.
	CARDOSO
	Querem cerveja?
	MARINÊS
	Sua vez de buscar.
Cardoso mostra o ticket e sai.
Marinês e André continuam dançando.
Cardoso volta com as cervejas. André e Marinês pegam os copos.
	CARDOSO
	Saúde.
Os três bebem. Marinês entrega o seu copo a Cardoso.
	MARINÊS
	Põe ali na mesa para mim?
	André também dá seu copo a Cardoso. Continuam dançando. Cardoso
	larga os copos na mesa, volta dançando. Começa uma música lenta.
	Marinês abraça André. Marinês fala ao ouvido de André.
	MARINÊS
	Ele se acha o máximo.
	ANDRÉ
	Quem?
	MARINÊS
	O Cardoso. O sapato dele já foi reformado. A sola
	é mais nova que o resto. Você viu?
	ANDRÉ
	Não reparei.
	MARINÊS
	Vamos sentar.
Marinês e André vêm para a mesa.
	CARDOSO
	Deve estar choca.
André e Marinês bebem.
	MARINÊS
	É mesmo.
	CARDOSO
	(para André) Sua vez.
André sai.
	MARINÊS
	E sua amiga?
	CARDOSO
	Que amiga?
	MARINÊS
	Você não foi telefonar para uma amiga?
	CARDOSO
	Ah... Fui. Tudo bem. Ela estava meio doente.
	MARINÊS
	Ah.
	CARDOSO
	(olha em torno) Mais ou menos isso aqui.
	MARINÊS
	Achei legal.
	CARDOSO
	Não estou muito para dança hoje.
	MARINÊS
	Pois eu vou dançar até me acabar.
	CARDOSO
	Normalmente eu gosto de dançar. É que esse lugar
	aqui... Eu comprei uma coleção de cds, Rock
	Greatest Hits, muito boa. Chuck Berry, Little
	Richards. Mais tarde, se você quiser, a gente
	passa lá em casa e eu te mostro.
	MARINÊS
	Tem My Ding A Ling?
	CARDOSO
	O quê?
	MARINÊS
	Na coleção. Aquela música do Chuck Berry: (canta)
	My, Ding a Ling...
	CARDOSO
	Deve ter. São quatro cds. Uma caixinha, super
	legal.
	MARINÊS
	Eu vou lá com você.
	CARDOSO
	Vai?
	MARINÊS
	Vou. Mas eu quero deixar bem claro que eu não vou
	dar para você.
	CARDOSO
	Como é?
	MARINÊS
	Nós não vamos transar.
	CARDOSO
	Bom... Isso a gente nunca sabe.
	MARINÊS
	Você não entendeu, é isso que eu estou tentando
	dizer. EU sei. Em primeiro lugar, você fuma. Não é
	nem pela fumaça, nem pelo câncer, essas coisas. É
	que eu detesto gosto de cigarro na hora do beijo.
	CARDOSO
	Bom... Eu estou pensando em parar.
	MARINÊS
	Você é legal, mas é um duro. Como eu. Não tenho
	nada contra, mas acontece que... eu não vou sentir
	tesão. Não o suficiente para transar.
	CARDOSO
	Ah, entendi. Você só dá se o cara for rico.
	MARINÊS
	Não. Ainda não encontrei o cara. Eu sou virgem.
	CARDOSO
	Você é virgem?
	MARINÊS
	Sou.
	CARDOSO
	Tá bom.
	MARINÊS
	Não precisa acreditar. Muita gente não acredita.
	CARDOSO
	Você nunca...
	MARINÊS
	Não. Nunca. O resto todo eu já fiz.
	CARDOSO
	Sei.
	MARINÊS
	Só vou dar pro cara que mudar a minha vida. Ou um
	lindão maravilhoso, brilhante, engraçado,
	romântico, um que me faça esquecer de tudo e me
	transformar numa idiota. Como o personagem do
	George Clooney naquele filme com a Michelle
	Pfeifer, eu vi em vídeo, esqueci o nome. Desculpe
	a franqueza, mas não é o seu caso.
	CARDOSO
	Não, tudo bem..
	MARINÊS
	Ou um cara que vai me dar a vida que eu quero.
	CARDOSO
	Mas você... não sente vontade?
	MARINÊS
	Claro que sim.
	CARDOSO
	E aí?
	MARINÊS
	Eu faço como você. Eu me masturbo. Quer dançar?
	Marinês levanta, arrastando Cardoso para a pista. André chega com
	três copos.
CENA 68 - RUA - EXTERIOR/NOITE
André caminha pela rua.
	ANDRÉ (VS)
	Tomei a minha cerveja e eles continuavam dançando.
	Tomei a segunda, já estava meio choca. Saí. Eram
	dez para as onze.
CENA 69 - ÔNIBUS - EXTERIOR/NOITE
André entra no ônibus, quase vazio. Sílvia está lá.
	ANDRÉ (VS)
	Entrei no ônibus, ela estava lá. O ônibus estava
	um pouco vazio, não dava para eu sentar do lado
	dela. Se eu sentasse atrás, ela não ia me ver.
	Passei, sentei um pouco na frente. Dei uma
	olhadinha rápida e voltei a olhar, como se tivesse
	levado alguns segundo para me dar conta que ela
	era ela.
	ANDRÉ
	Oi. Tá lembrando de mim?
	SÍLVIA
	Acho que sim.
	ANDRÉ
	Estive na sua loja hoje.
	SÍLVIA
	Ah...
	ANDRÉ
	Vou passar lá amanhã para comprar a camisola
	SÍLVIA
	Não era o chambre que você queria?
	ANDRÉ
	Chambre, isso. Se não der amanhã, até o final da
	semana.
	SÍLVIA
	Tudo bem.
André senta. Vê Sílvia pelo reflexo do vidro dianteiro do ônibus.
	ANDRÉ (VS)
	Não sei pra que eu fui dizer uma merda daquelas.
	Acho que foi porque ela disse aquilo, "não era o
	chambre que você queria?" com um jeito de quem não
	estava acreditando muito quer eu fosse aparecer lá
	e pagar trinta e oito reais pelo chambre. Agora eu
	ia ter que conseguir trinta e oito reais e comprar
	o chambre ou esquecer para sempre que a Sílvia
	existe. Só que eu não tinha trinta e oito reais
	sobrando nem tinha onde conseguir, não até o final
	da semana.
CENA 70 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André, na frente da televisão sem som, desenha uma nota de cem
	dólares.
	ANDRÉ (VS)
	Pensei em pedir ao Bolha, mas ia ter que dizer pra
	que eu precisava do dinheiro. Se dissesse que era
	para comprar um chambre para a minha mãe, que
	estava de aniversário, ele talvez emprestasse. E
	se ele encontrasse a minha mãe por aí e
	cumprimentasse pelo aniversário. O que eu ia fazer
	com um chambre?
A Mãe de André passa em direção ao quarto.
	ANDRÉ (VS)
	Minha mãe ia achar que eu estava louco, dando um
	chambre assim para ela, sem mais nem menos. Melhor
	era esconder o chambre até o aniversário dela
	mesmo.
CENA 71 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/DIA
André faz cópias de um trabalho de química. Observa Marinês.
	ANDRÉ (VS)
	Pensei em pedir para a Marinês, mas era muito
	humilhante. Nunca mais ia poder me masturbar
	pensando nela colocando aquela calça justa, de
	pernas para cima, sem calcinha, sabendo que eu
	devia trinta e oito reais para ela. E ela também
	não devia ter trinta e oito reais sobrando assim,
	no meio do mês.
CENA 72 - PONTE - EXTERIOR/DIA
André, sentado na escada da ponte, come um cachorro quente.
	ANDRÉ (VS)
	Pensei em pedir para o Feitosa. Ele não ia me
	emprestar, mas talvez pudesse me dar alguma
	maconha para vender. Era só eu misturar com
	tempero verde e vender para algum otário pelo
	dobro do preço. Só que eu não conheço nenhum
	otário interessado em maconha com tempero verde.
CENA 73 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/DIA
André faz cópias de um trabalho sobre os incas.
	ANDRÉ (VS)
	Foi ai que eu me lembrei do Cardoso. Ele tinha
	grana, poderia estar interessado em maconha ou
	poderia me emprestar trinta e oito reais até o
	final do mês. Foi o plano de conseguir trinta e
	oito reais com mais chance de dar certo que eu
	pude inventar numa tarde, enquanto tirava cópias
	de um trabalho sobre os incas, uma tribo que
	dominava o Peru.
	Ilustrações da cultura inca e do massacre dos incas pelos
	espanhóis.
	ANDRÉ (VS)
	Eram doze milhões de pessoas, que falavam vinte
	línguas diferentes. A palavra inca quer dizer
	"chefe". Os espanhóis é que chamavam os incas de
	incas, mas ninguém sabe como eles mesmos se
	chamavam ou se eles se chamavam de alguma coisa.
	Morreram todos.
CENA 74 - RUA DO BRIC - EXTERIOR/DIA
	Um desenho Asteca, entre outras quinquilharias, na vitrine de uma
	loja. André confere o endereço.
	ANDRÉ (VS)
	A Marinês me deu o telefone da loja onde o Cardoso
	trabalhava, que eu disse que queria convidar para
	jogar futebol, só para ela não ficar perguntando.
Um bric, cheio de velharias e móveis em mal estado.
	ANDRÉ (VS)
	Achei o endereço. Voltei e olhei bem, para ver se
	eu não tinha me enganado. Eu não tinha me
	enganado. Entrei.
CENA 75 - BRIC - INTERIOR/DIA
	Cardoso está catalogando coisas da loja, velho liquidificadores,
	computadores velhos, panelas.
	ANDRÉ
	Cardoso?
	CARDOSO
	Sim?
	ANDRÉ
	Tá lembrando de mim?
	CARDOSO
	Não.
	ANDRÉ
	Eu sou amigo da Marinês. Ela nos apresentou, lá no
	Mama Grave.
	CARDOSO
	Ah, sim. Lembrei. Você trabalha na loja com ela,
	não é?
	ANDRÉ
	Trabalho. E você...
	CARDOSO
	Só um momento.
Cardoso experimenta tampas numa panela.
	ANDRÉ
	Você me disse que trabalhava... como era mesmo?
	CARDOSO
	Ô... como é mesmo o seu nome?
	ANDRÉ
	André.
	CARDOSO
	André, você podia me dar um minutinho para eu
	terminar isso aqui?
	ANDRÉ
	Tudo bem.
	ANDRÉ (VS)
	Antiguidades. Não eram muito antigas. Ele deve
	ganhar o mesmo que eu, talvez um pouco mais.
Cardoso encontra uma tampa que serve na panela.
	CARDOSO
	Você quer o quê?
	ANDRÉ
	Você disse que trabalhava com antiguidades.
	CARDOSO
	Tá vendo alguma coisa nova por aqui?
	ANDRÉ
	Não.
	CARDOSO
	Então? O que você quer?
	ANDRÉ
	Nada, estava só passando. Pode sair para tomar um
	café?
	CARDOSO
	Você paga?
	ANDRÉ
	Não dá.
Cardoso tenta encaixar copos num velho liquidificador.
	CARDOSO
	Melhor não. Parei de fumar.
	ANDRÉ
	Ah, é?
	CARDOSO
	Parei. Não fumei um cigarro hoje.
	ANDRÉ
	Hoje?
	CARDOSO
	Parei ontem. Engraçado que eu não estou sentindo
	falta nenhuma. Mas é melhor não provocar. Cigarro
	é um vício desgraçado. Aquela coisa na mão, a
	fumaça, o cigarro na boca depois de um cafezinho.
	Também, que mal tem eu tomar um cafezinho? Não
	posso deixar de fazer tudo que eu gosto só porque
	parei de fumar. Eu também adoro fumar depois de
	trepar, por exemplo. E aí? Já imaginou? A guria
	querendo dar pra ti e tu, "não posso, desculpe,
	vai me dar vontade de fumar". Vamos tomar um
	cafezinho. Eu pago. O meu.
CENA 76 - BAR - INTERIOR/DIA
Cardoso e André no balcão, tomam café.
	ANDRÉ
	Achei que você tinha grana.
	CARDOSO
	Por quê?
	ANDRÉ
	É que do jeito que você falou, que trabalhava com
	antiguidades.
	CARDOSO
	E você quer que eu diga para uma mulher gostosa
	daquelas que eu trabalho numa loja que vende ferro
	de passar usado? E não foi você que veio com um
	papo de operador de sei-lá-o-quê?
	ANDRÉ
	Fotocopiadora.
	CARDOSO
	Ela me disse que você tira xerox.
	ANDRÉ
	É isso aí. Mas é melhor do que ficar...
	CARDOSO
	Já sei. Você está a fim dela. É isso?
	ANDRÉ
	Eu? Eu não.
	CARDOSO
	Então porque é que você tá botando areia?
	ANDRÉ
	Não estou botando areia nenhuma. Você é que quis
	dar uma, de terno e gravata.
	CARDOSO
	Tudo bem, tudo bem. Mas se você não tá a fim dela,
	podia me ajudar. Vai dizer que você nunca aplicou
	aquela de operador de fotocopiadora para cima de
	nenhuma garota.
	ANDRÉ
	Já tentei.
	CARDOSO
	Pois então. Se você quiser, te apresento uma
	garota, a gente pode até sair os quatro juntos.
	ANDRÉ
	Não, obrigado. Meu problema é outro.
	CARDOSO
	Qual?
	ANDRÉ
	Eu preciso de trinta e oito reais.
	CARDOSO
	É para isso que você veio aqui. Para me pedir
	dinheiro.
	ANDRÉ
	Achei que você tinha.
	CARDOSO
	Trinta e oito? Não sai.
	Um HOMEM acende um cigarro ao lado de Cardoso. Ele fica
	fissurado, tentando aspirar a fumaça.
	ANDRÉ
	Tudo bem. Eu dou um jeito.
	CARDOSO
	Um jeito de quê?
	ANDRÉ
	De conseguir o dinheiro.
	CARDOSO
	Para que você precisa?
	ANDRÉ
	Para comprar um chambre.
	CARDOSO
	Um chambre?
	ANDRÉ
	De chenile.
	CARDOSO
	Para quem?
	ANDRÉ
	Minha mãe.
	CARDOSO
	Aniversário?
	ANDRÉ
	Mais ou menos.
	CARDOSO
	Preciso parar de fumar.
	ANDRÉ
	E eu preciso de trinta e oito reais.
	CARDOSO
	Paga o meu café que eu resolvo o teu problema.
CENA 77 - BRIC - INTERIOR/DIA
Cardoso tira do armário um anjinho barroco e entrega para André.
	CARDOSO
	Dez reais, pode me pagar no fim do mês.
	ANDRÉ
	Não dá. Tem que ser o chambre.
	CARDOSO
	Mãe se amarra em anjo. Muito mais que chambre.
	Chambre é presente pra vó.
	ANDRÉ
	Eu preciso de trinta e oito reais.
	CARDOSO
	Leva o anjo. Se ela não gostar, me devolve.
André observa o anjo.
	ANDRÉ
	Que anjo é este?
	CARDOSO
	Acho que é o anjo da guarda. Olha a espada.
CENA 78 - ÔNIBUS - INTERIOR/DIA
André examina o anjo.
	ANDRÉ (VS)
	Simpatizei com o anjo. Fiz um pedido. Trinta e
	oito reais. Eu preciso de trinta e oito reais.
CENA 79 - FRENTE DA PAPELARIA - EXTERIOR/DIA
Um caminhão descarrega uma grande caixa.
	ANDRÉ (VS)
	O milagre estava descendo do caminhão quando eu
	cheguei na loja.
André pára na porta da loja. Marinês se aproxima.
	ANDRÉ
	O que é isso?
	MARINÊS
	Xerox colorido. Você vai ter que usar avental.
Seu Gomide se aproxima.
	GOMIDE
	Para proteger sua roupa. Fica mais profissional.
	ANDRÉ
	Claro.
CENA 80 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	André, de avental, experimenta a máquina colorida. Lê o manual.
	Faz as primeiras cópias coloridas.
	ANDRÉ (VS)
	Essa é um pouco mais complicada. Não é só deixar
	sempre no meio, é cheia de regulagens. O avental é
	horrível, quente, pinica no pescoço. Mas a máquina
	é ótima. Dá até para fazer dinheiro. Trinta e oito
	reais. Podia copiar uma nota de cinqüenta. Se eu
	tivesse uma nota de cinqüenta não precisaria
	copiar. Posso pedir emprestado. Não o dinheiro, só
	a nota.
	CENA 81 - SEQ. DE MONTAGEM: FRENTE DE UM COLÉGIO TABLE-TOP
	DESENHOS - EXTERIOR/DIA
Desenho e colagem: Mairoldi segurando uma nota de dez, novinha.
	ANDRÉ (VS)
	Uma vez o Mairoldi me emprestou 10 cruzeiros, no
	colégio.
André é arrastado pela mãe pela calçada.
	ANDRÉ (VS)
	Minha mãe me deu o dinheiro para pagar a dívida,
	duas notas de cinco.
Notas de cinco e dez cruzeiros.
	ANDRÉ (VS)
	Acontece que ele tinha me emprestado uma nota de
	dez, e eu expliquei para a minha mãe que eu tinha
	que devolver uma de dez e não duas de cinco.
André é arrastado pela mãe pela calçada.
	ANDRÉ (VS)
	Ela me disse que não fazia a menor diferença, mas
	para mim fazia toda a diferença.
CENA 82 - ANIMAÇÃO
	Vó Doutrina tenta enfiar um pulôver em Zeca Olho. O pulôver
	tranca no meio do olho dele.
	ZECA OLHO
	(aos gritos) Ele me emprestou uma nota de dez,
	azul! Eu não vou devolver duas notas velhas e
	vermelhas!
	VÓ DOUTRINA
	Cinco mais cinco é dez! O que é que te ensinam em
	matemática?
	ZECA OLHO
	Eu não quero ir a aula!
	VÓ DOUTRINA
	Eu ligo para a Dona Hirsuta e explico.
	Aparece a Dona Hirsuta, uma velha horrível, peluda, com Mairoldi
	ao seu lado.
	ZECA OLHO
	Não! A Dona Hirsuta não! Não liga! Eu não quero ir
	a aula.
André continua sendo arrastado.
	ANDRÉ (VS)
	Minha mãe foi comigo até o colégio.
CENA 83 - ANIMAÇÃO
Mairoldi, mancha na cara de bobo, pega o dinheiro.
	ANDRÉ (VS)
	Entregou as duas notas para o Mairoldi, na minha
	frente.
	VÓ DOUTRINA
	O dinheiro que ele estava te devendo.
	MAIROLDI
	Tudo bem.
	VÓ DOUTRINA
	Eu não disse?
Mairoldi fica rindo, sem entender.
	ANDRÉ (VS)
	O Mairoldi é um idiota.
CENA 84 - ANIMAÇÃO
	Seu Gomide se aproxima de André com uma nota de cinqüenta e uma
	conta de luz.
	GOMIDE
	Pague para mim, amanhã, antes de vir para a loja.
	ANDRÉ
	Claro.
	GOMIDE
	Vamos embora. São seis e cinco.
	Gomide fecha a máquina registradora, pega os jornais, uma revista
	e começa a fechar a loja. André fica olhando para a nota.
	ANDRÉ
	Seu Gomide?
	GOMIDE
	Sim.
	ANDRÉ
	Se o senhor não se importar que eu feche a loja,
	eu podia ficar até mais tarde hoje, para aprender
	a usar melhor a máquina, ler o manual.
	GOMIDE
	Chegue mais cedo amanhã e leia.
	ANDRÉ
	Tenho que passar no banco, para pagar sua conta.
Gomide vê o anjo na mão de André.
	GOMIDE
	O que é isso?
	ANDRÉ
	Um anjo. Comprei para minha mãe.
	GOMIDE
	Aniversário?
	ANDRÉ
	Não, não. Achei que ela ia gostar. É um anjo da
	guarda.
	GOMIDE
	Parece o anjo Gabriel. Olha a espada.
	ANDRÉ
	É? Bom, ela vai gostar assim mesmo.
	GOMIDE
	Claro.
Gomide entrega a chave para André.
	GOMIDE
	Pode fechar a loja. Não vá sair muito tarde.
	Depois das dez fica cheio de veado aqui na frente.
	Cuidado.
	ANDRÉ
	Claro, pode deixar.
	André fica com a chave, a nota de cinqüenta e o anjo na mão.
	Gomide sai. André fecha a porta da loja.
CENA 85 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/NOITE
	Loja. André faz várias tentativas de copiar a nota. Examina as
	cópias e guarda todas, mesmo as defeituosas, numa pasta de
	papelão.
	ANDRÉ (VS)
	A maior dificuldade de fazer uma nota de dinheiro
	aqui é que você tem que imprimir dos dois lados e
	é muito difícil ficar certinho, uma nota em cima
	da outra. Outro problema é o papel. O papel do
	dinheiro é mais grosso, mais áspero. Procurei um
	tipo de papel mais parecido, experimentei passar
	uma lixa antes de imprimir, levei umas cinco horas
	fazendo isso. Consegui uma nota bem parecida com a
	verdadeira.
André observa a nota.
	ANDRÉ (VS)
	Claro que se você olhasse com atenção percebia
	logo que era uma cópia.
CENA 86 - RUAS - EXTERIOR/NOITE
André fecha a loja.
	ANDRÉ (VS)
	Eu não posso pagar a Sílvia com a nota falsa. Ela
	pode se dar mal. Ou eu posso ser descoberto na
	loja dela, ser preso, e aí acabou tudo.
André caminha pela calçada. Passa por um travesti.
	CENA 87 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 88 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO
	Quarto de André. Ele observa Silvia pelo binóculo. Larga o
	binóculo e examina as duas notas de cinqüenta, a verdadeira e a
	falsa.
	ANDRÉ (VS)
	Tenho que trocar o dinheiro. O problema é onde
	trocar o dinheiro.
CENA 89 - BANCO - INTERIOR/DIA
	André está na fila do caixa. Segura na mão direita a conta e a
	nota de cinqüenta. Troca a conta e mão e, na esquerda, tem outra
	nota de cinqüenta. Olha para a mulher do caixa. Ela conta
	dinheiro com habilidade, rapidamente.
	A fila anda. Ainda há uma Senhora e um Homem na frente de André.
	Ele segura outra vez a conta com a mão direita. Olha para as duas
	notas. Olha para a mulher do caixa. A Senhora paga uma conta e
	sai. O Homem está sendo atendido. André troca outra vez a conta
	de mão. Segura as duas notas na mão esquerda e a conta na
	direita. O Homem paga uma conta. A Mulher do Caixa examina com
	atenção uma nota de cem reais que o Homem lhe deu. André dá mais
	uma olhadinha para as suas duas notas. O Homem pega o recibo e
	sai. André se aproxima do caixa.
	André sorri para a mulher e lhe entrega a conta. A Mulher do
	Caixa examina a conta. André segura as duas notas com as duas
	mão. Fecha os olhos e "embaralha" as notas na mão. De olhos
	fechados, André põe uma das notas no bolso da jaqueta e outra
	sobre o balcão.
	A Mulher do Caixa pega a nota e, sem qualquer exame, a coloca no
	caixa. Dá o troco para André, seis reais.
	André agradece com um sorriso e se afasta lentamente do caixa.
	Guarda a conta num bolso e tira do outro, junto com o anjo, a
	nota de cinqüenta que ficou com ele. É a nota falsa.
	ANDRÉ (VS)
	Acho que foi o anjo que me fez entregar a nota
	verdadeira. Banco é o pior lugar para tentar
	trocar esse dinheiro.
CENA 90 - RUAS - EXTERIOR/DIA
	André caminha pela calçada, observando as lojas. Dá uma olhada
	num boteco. Há um homem na caixa.
	ANDRÉ (VS)
	Posso tentar neste bar. Vou sacanear o cara, um
	duro como eu. E dinheiro grande eles não gostam.
	Se ele resolve examinar?
CENA 91 - CASA LOTÉRICA - INTERIOR/DIA
	Casa lotérica. André vê uma fila de gente com dinheiro na mão.
	Uma placa indica: sena acumulada, último dia para apostar. Ele
	entra na loja, finge que examina os resultados e observa como os
	caras do caixa lidam com dinheiro.
	ANDRÉ (VS)
	O dinheiro vai para uma caixa única, mistura tudo
	rapidinho. Todo mundo com pressa. E nenhuma prova
	de que fui eu que entreguei aquela nota. Posso
	fazer um jogo de 9 reais e levar 41 de troco,
	dinheiro de verdade.
	André pega um volante da sena e faz o jogo rapidamente,
	escolhendo alguns números, entra na fila. Olha para a cara da
	menina no caixa, troca de fila. Há três pessoas na sua frente.
	ANDRÉ (VS)
	Tenho que perguntar alguma coisa para ela na hora
	de entregar o dinheiro. Alguma coisa para distrair
	a atenção dela, eu vi isto num filme. Já usei com
	porteiro e deu certo. Sabe em quanto está
	acumulado o prêmio? A que horas é o sorteio?
	André examina a nota. Confere o volante. Olha para a menina do
	caixa. Ela recolhe e guarda o dinheiro de um OFFICE-BOY sem
	prestar muita atenção no que faz, conversando com a menina da
	caixa ao lado. O Office-Boy sai.
	André chega ao balcão. Entrega o volante e a nota. Tira o anjo do
	bolso e põe sobre o balcão.
	ANDRÉ
	Você entende de anjo?
	MENINA
	Como é?
	ANDRÉ
	É que eu comprei este anjo para a minha mãe, de
	aniversário, e o cara da loja diz que é o anjo da
	guarda. Mas o meu chefe diz que é o anjo Gabriel,
	por causa da espada.
A Menina examina o anjo.
	MENINA
	Não entendo muito de anjo não. Parece mais um
	arcanjo.
	MENINA DO OUTRO CAIXA
	Acho que é São Miguel.
	ANDRÉ
	Qual a diferença?
	MENINA DO OUTRO CAIXA
	Olha a armadura.
	ANDRÉ
	Não tinha reparado.
	MENINA
	Sua mãe vai gostar.
	ANDRÉ
	Obrigado.
	MENINA
	Seguinte.
A Menina lhe entrega os 41 reais de troco.
	André sai carregando o anjo e os quarenta e um reais. Põe o
	dinheiro no bolso, fica com o anjo na mão, sai da loja.
CENA 92 - RUAS - EXTERIOR/DIA
	André caminha pela calçada. Caminha cada vez mais rápido, quase
	corre. Pára na esquina. Vê que o ônibus está na parada e corre
	para alcançá-lo. Sobe no ônibus.
	ANDRÉ (VS)
	Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador...
CENA 93 - RUAS - EXTERIOR/DIA
André senta no fundo do ônibus.
	ANDRÉ (VS)
	... se a ti me confiou, a piedade divina sempre me
	rege, me guarde, governe...
CENA 94 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA
Loja. André entra, vê Sílvia atrás do balcão.
	ANDRÉ (VS)
	...ilumine. Amém.
	ANDRÉ
	Oi.
	SÍLVIA
	Oi.
	ANDRÉ
	Vim buscar o chambre.
	SÍLVIA
	Ah, claro. Para sua mãe.
Sílvia pega o chambre, abre sobre o balcão.
	SÍLVIA
	Tem azul e bege.
	ANDRÉ
	Qual você acha melhor?
	SÍLVIA
	Gosto do azul.
	ANDRÉ
	Eu levo o azul então.
	SÍLVIA
	Quer ver mais alguma coisa?
	ANDRÉ
	Não, hoje não. É só o chambre mesmo.
	SÍLVIA
	Vai pagar à vista?
	ANDRÉ
	Quanto é mesmo?
	SÍLVIA
	Trinta e oito.
	ANDRÉ
	À vista.
André põe os quarenta reais sobre o balcão.
	SÍLVIA
	Você pode pagar no caixa. Retira ao lado.
	ANDRÉ
	Claro. André recolhe o dinheiro.
	SÍLVIA
	Vou fazer para presente.
	André vai até o caixa. Paga enquanto observa Sílvia escolher o
	papel e fazer o pacote.
André entrega a nota para Sílvia e ela lhe entrega o pacote.
	ANDRÉ
	Bonito.
	SÍLVIA
	Se precisar trocar, é só trazer a notinha.
	ANDRÉ
	Obrigado.
	SÍLVIA
	Imagina. Obrigado a você.
CENA 95 - RUAS - EXTERIOR/DIA
André caminha pela calçada.
	ANDRÉ (VS)
	Imagina. Obrigado a você. Este foi totalmente
	diferente, ela disse obrigado a você me olhando
	nos olhos. Ela me olhou e me chamou de você. Mas o
	melhor foi aquele imagina.
	CENA 96 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 97 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO
	André esconde o pacote com o chambre no fundo do seu armário.
	Pega o binóculo e olha para o apartamento de Sílvia. Ela está
	chegando em casa.
CENA 98 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
Sílvia olha diretamente para a câmera e diz.
	SÍLVIA
	Imagina.
CENA 99 - QUADRINHOS
Uma história em quadrinhos. O título é:
IMAGINA
	ANDRÉ (VS)
	Imagina um monte de dinheiro.
Um cara deitado num monte de dinheiro.
	ANDRÉ (VS)
	Imagina um monte de coisas que dá para comprar com
	esse dinheiro.
	Um cara deitado num monte de dinheiro cercado de livros, discos,
	gibis, eletrodomésticos.
	ANDRÉ (VS)
	Imagina como as pessoas vão tratar você depois que
	comprar esse monte de coisas.
	Um cara deitado num monte de dinheiro cercado de livros, discos,
	gibis, eletrodomésticos, cercado de gente babando em volta dele,
	especialmente mulheres bonitas.
CENA 100 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
André desenhando o quadrinho.
	ANDRÉ (VS)
	E agora imagina que você é um otário imaginando um
	monte de coisas.
CENA 101 - RUA - EXTERIOR/DIA
	Frente da loja Sílvia. André, com um saquinho de papel na mão,
	espera do outro lado da rua, finge olhar uma vitrine. É uma loja
	de brinquedos. André se distrai, viaja olhando os brinquedos. A
	vitrine está claramente dividida em dois. De um lado, os
	brinquedos de meninos. Carrinhos, monstros, armas, brinquedos de
	aventura. Do outro, brinquedos de menina. Casinhas, panelinhas,
	eletrodomésticos, bonecas. Refletida na vitrine, no meio das
	bonecas, Sílvia sai da loja.
André se vira e a segue.
Sílvia entra num restaurante.
CENA 102 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA
	André no restaurante, com um prato já servido na mão, procura
	lugar para sentar. Sílvia está no balcão. André senta na outra
	ponta. Silvia está comendo e lendo um livro. Um cara senta lado
	de André, encobrindo a visão de Sílvia. Ele muda de lugar. Uma
	mulher senta, ele troca de lugar de novo. Há apenas um banco vago
	entre os dois, mas ela está bastante concentrada no livro. Um
	sujeito senta entre os dois.
	ANDRÉ
	Me passa o sal?
Sílvia olha para ele.
	ANDRÉ
	Oi.
	SÍLVIA
	Oi. (passa o sal)
	ANDRÉ
	Obrigado.
Comem.
	ANDRÉ
	Você almoça sempre por aqui?
	SÍLVIA
	Seguido.
	ANDRÉ
	É bom aqui. Barato.
	SÍLVIA
	E limpo.
	ANDRÉ
	É. Comia num lugar aqui perto que era meio sujo.
	SÍLVIA
	Não era um por peso?
	ANDRÉ
	Perto do ponto de táxi?
	SÍLVIA
	Ai! Aquilo é um nojo!
	ANDRÉ
	E mais caro que aqui.
	SÍLVIA
	Você acredita que lá uma vez eu fui me servir de
	feijão e tinha uma bruxa boiando?
	ANDRÉ
	Uma bruxa.
	SÍLVIA
	Bruxinha. Sabe estas mariposas?
	ANDRÉ
	Sei.
	SÍLVIA
	Eu reclamei com o cara ele me disse: "Caiu, o que
	é que você quer que eu faça?". E ficou parado! Eu
	disse: "Quero que o senhor troque o feijão". Sabe
	o que ele fez? Pegou a concha, tirou a bruxa do
	feijão, jogou na pia e botou a concha no feijão de
	novo. Nem lavou a concha! Dava para ver aquele
	pozinho que elas soltam boiando no feijão, junto
	com a linguiça. Você acredita?
	ANDRÉ
	Acredito.
	SÍLVIA
	Imagina se eu como uma coisa daquelas? Pode ser
	até venenoso.
	ANDRÉ
	Acho que essas não são. Essas que vivem na cidade.
	SÍLVIA
	É, acho que não. Mas no feijão...
	ANDRÉ
	É, no feijão não dá.
	SÍLVIA
	Viva! Imagina aquela gosma na sua boca?
	O homem que estava sentado entre os dois pega o prato e muda de
	lugar. André e Sílvia acompanham a saída do cara, mas não mudam
	de lugar. Comem em silêncio. André esboça um sorriso. Sílvia
	sorri. Param de rir. Comem em silêncio.
	SÍLVIA
	Você trabalha aqui perto?
	ANDRÉ
	Mais ou menos.
Comem.
	SÍLVIA
	O que você faz?
	ANDRÉ
	Eu... faço ilustrações. Desenho.
	SÍLVIA
	Hmm. Legal.
Ela termina de comer.
	SÍLVIA
	Bom...
	ANDRÉ
	Eu terminei também.
	SÍLVIA
	Tenho que voltar.
Caixa. Ela paga com vale refeição. Ele paga em dinheiro. Saem.
	SÍLVIA
	Você vai para lá?
	ANDRÉ
	Não, para lá. (abre o saquinho, tira um figo).
	Você quer um?
	SÍLVIA
	Obrigado. Eu não sou muito de figo.
André guarda o figo.
	SÍLVIA
	Tchau.
	ANDRÉ
	Tchau.
CENA 103 - RUA - EXTERIOR/DIA
André caminha.
	ANDRÉ (VS)
	Ela não usa perfume, não é muito de figo, tem nojo
	de bruxa no feijão e um brilho nos olhos, quando
	ri. Isso tudo não dá para ver de binóculo.
CENA 104 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE
	Mama Grave. André e Cardoso numa mesa. Cardoso tem uma semente no
	lóbulo da orelha.
	CARDOSO
	Convida ela para sair, nós quatro.
	ANDRÉ
	Tô sem dinheiro.
	CARDOSO
	Só um cinema. Vá que a gente convença as duas a ir
	lá para casa, pedir uma pizza.
	ANDRÉ
	Tô sem dinheiro nenhum.
	CARDOSO
	Uma pizza, cinema. Não vai dar mais que 15 reais
	para cada um.
	ANDRÉ
	Não dá.
	CARDOSO
	Você é duro mesmo.
	ANDRÉ
	Agora que você reparou. O que é isso na sua
	orelha?
	CARDOSO
	Uma semente.
	ANDRÉ
	De que?
	CARDOSO
	Isso não importa. O importante é a semente. É para
	parar de fumar. Te falei que eu parei de fumar?
	ANDRÉ
	Falou.
	CARDOSO
	A semente pressiona um ponto na orelha, passa a
	vontade de fumar. Não tô sentindo falta nenhuma.
	Impressionante. Antes eu subia uma escada, passava
	mal. Agora, sem problema. E o sabor dos alimentos?
	É outra coisa.
	ANDRÉ
	Quantos dias faz que você parou?
	CARDOSO
	Quatro. Mas já faz diferença. Pra não dizer que eu
	não sinto falta nenhuma, nenhuma, depois do
	almoço, me dá uma vontadezinha, pouca. Aquele
	cigarrinho, sabe como é? Aquele cigarrinho.
	ANDRÉ
	Sei.
	CARDOSO
	Sabe nada! Você não fuma! Você não sabe o que é um
	cigarrinho, depois do almoço. Um cafezinho. Ou
	numa festa, tomando um chopinho. Aquele
	cigarrinho.
	ANDRÉ
	É, não sei mesmo.
	CARDOSO
	Não sei porque eu fui parar de fumar. Mulher é uma
	merda! E ela nem é tão gostosa assim.
	ANDRÉ
	Ela não disse que o cara precisava ser rico e não
	fumante?
	CARDOSO
	Disse.
	ANDRÉ
	Porque você não espera ficar rico para parar de
	fumar?
	CARDOSO
	É que tem um detalhe: quando eu perguntei se ela
	nunca tinha dado mesmo ela disse: "Nunca. Mas o
	resto todo eu já fiz". "O resto todo". Eu fiquei
	pensando que resto todo é esse que ela já fez.
	Parei de fumar para conferir. Vá que no meio do
	resto todo, dependendo do que for, ela se empolgue
	e eu pá!
	ANDRÉ
	Entendi.
	CARDOSO
	Convida a sua amiga. De duas elas se soltam mais,
	ficam tentando se exibir uma para outra, para
	mostrar que são gostosas, a gente pega o rastro.
	ANDRÉ
	Vou pensar.
CENA 105 - BAR - INTERIOR/DIA
André e Sílvia, sentados lado a lado, comem.
	ANDRÉ
	Você gosta de quadrinhos?
	SÍLVIA
	Tipo gibi?
	ANDRÉ
	É.
	SÍLVIA
	Quando eu era pequena gostava. Gosto mais de
	livro.
	ANDRÉ
	Você sabe o que é hirsuta?
	SÍLVIA
	Hirsuta? Com agá?
	ANDRÉ
	É.
	SÍLVIA
	Não. Como era a frase?
	ANDRÉ
	A barba hirsuta e branca.
	SÍLVIA
	Hirsuta e branca. Não sei. Tem que olhar no
	dicionário.
	ANDRÉ
	Tem uns quadrinhos de adulto.
	SÍLVIA
	De adulto como?
	ANDRÉ
	Para adulto. As histórias.
	SÍLVIA
	Assim, de sexo?
	ANDRÉ
	Bom... Alguns sim. Mas não só. Você conhece esse
	aqui? (entrega uma revista em quadrinhos a ela)
	SÍLVIA
	Não. O desenho é legal.
	ANDRÉ
	Eu empresto para você.
	SÍLVIA
	Você já leu?
	ANDRÉ
	Já. Umas três vezes.
	SÍLVIA
	É tão bom assim?
	ANDRÉ
	Eu acho.
	SÍLVIA
	Legal. E os seus desenhos?
	ANDRÉ
	O que é que tem?
	SÍLVIA
	Não vai me mostrar?
	ANDRÉ
	Não tenho nenhum assim, muito bom, pronto.
	SÍLVIA
	Faz um para mim?
	ANDRÉ
	Agora?
	SÍLVIA
	É.
	ANDRÉ
	Não, aqui não dá.
	SÍLVIA
	Por que não?
	ANDRÉ
	Porque não. Eu faço um desenho para você.
	SÍLVIA
	Vai fazer mesmo?
	ANDRÉ
	Claro. O que você quer que eu desenhe?
	SÍLVIA
	Você é que sabe. Uma coisa que você goste, que
	seja boa de ficar olhando.
	ANDRÉ
	Tá bom.
	CENA 106 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 107 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO
André vê Sílvia chegando em casa.
	ANDRÉ (VS)
	Ela entrou em casa levando na mão a revista que eu
	emprestei. Acho que veio lendo no ônibus. Ela
	entrou em casa, na casa dela, com a minha revista.
	Ela caminhou até a cozinha, voltou comendo uma
	coisa e lendo a minha revista
CENA 108 - QUADRINHOS
Folha de papel em branco sobre a mesa de André.
	ANDRÉ (VS)
	Uma coisa boa de ficar olhando.
André faz alguns desenhos.
Uma paisagem.
Um rosto.
Um peixe.
André põe de lado o desenho do peixe. Pensa. Pega uma nova folha.
CENA 109 - RESTAURANTE
Sílvia devolve a revista em quadrinhos que André lhe emprestou.
	SÍLVIA
	Obrigado.
	ANDRÉ
	Você gostou?
	SÍLVIA
	Muito legal. Olha o que eu trouxe para você.
	(lendo) Hirsuto, de pêlos longos, duros e
	espessos; cerdoso. "Ao sorrir mostrava através da
	barba hirsuta de mulato uns dentes brancos,
	pontudos". Ribeiro Couto, Largo da Matriz e Outras
	Histórias, página 47.
CENA 110 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE
	ANDRÉ
	Você quer casar comigo e sair daqui?
	SÍLVIA
	Claro que sim.
Beijam-se.
CENA 111 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA
	ANDRÉ
	Obrigado.
	SÍLVIA
	De nada. Barba hirsuta é uma barba de pelos
	longos. De onde você tirou aquela frase, a barba
	hirsuta e branca?
	ANDRÉ
	De um poema. Do Shakespeare. Um livro de sonetos.
	SÍLVIA
	Você gosta?
	ANDRÉ
	Só li este. Quando a hora dobra em triste e tardo
	toque. Parece o som de um relógio.
	SÍLVIA
	É. Como é que a barba entra no poema?
	ANDRÉ
	Não sei. Não entendi nada. Nem li até o fim. Tenho
	um presente para você também.
	André lhe entrega um papel. É um desenho de uma menina em seu
	quarto. Lembra bastante o quarto dela.
	SÍLVIA
	O meu desenho! Bonito. Sou eu? No meu quarto?
	ANDRÉ
	Parece?
	SÍLVIA
	Mais ou menos. Tenho uma foto grudada no vidro,
	assim.
	ANDRÉ
	Eu sei. Sei como é. Que foto é?
	SÍLVIA
	Um cartão postal. Do Rio. E no meu quarto não tem
	televisão.
	ANDRÉ
	Não?
	SÍLVIA
	Não. E eu tenho um aquário. O resto é parecido.
	Cama, abajur, armário. Legal, obrigado. É o meu
	presente de aniversário.
	ANDRÉ
	Você está de aniversário?
	SÍLVIA
	Fiz semana passada.
	ANDRÉ
	Parabéns.
	CENA 112 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 113 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO
	Sílvia cola o desenho de André no vidro, ao lado do cartão
	postal. A luz do quarto torna o papel transparente e o desenho
	visível. Por alguns segundos André fica observando Sílvia em seu
	quarto vendo o desenho que André fez de Sílvia em seu quarto.
CENA 114 - BRIC - INTERIOR/DIA
	Cardoso transforma rapidamente uma caixinha nova numa caixinha
	velha.
	CARDOSO
	Você emprestou um quadrinhos de sacanagem para
	ela, ela gostou e pediu outros? Ela tá a fim.
	ANDRÉ
	Não é de sacanagem. Tem umas cenas de sexo.
Cardoso dá uma olhada no gibi.
	CARDOSO
	Olha aqui! Nossa senhora! Pelo amor de deus, é
	óbvio que ela tá a fim!
	ANDRÉ
	Quero comprar um presente para ela. Ela fez
	aniversário.
	CARDOSO
	Eu tenho uma coisa que ela vai adorar.
Cardoso abre um armário e tira uma caixa de papelão.
	ANDRÉ
	O que é isso?
	CARDOSO
	Olha só...
	Cardoso tira da caixa, com exagerado cuidado, uma caixinha de
	madeira.
	CARDOSO
	Cuidado...
	ANDRÉ
	Uma caixinha.
	CARDOSO
	Para guardar coisinhas. Mulher adora uma caixinha
	para guardar coisinhas. Isso é uma antiguidade
	mesmo, nada a ver com essas porcarias aqui.
	(mostra uma caixinha velha que ele acabou de
	fazer) Português, do século passado, mil
	oitocentos e pouco. Te vendo por 100 reais.
	ANDRÉ
	O quê? Acha que eu vou dar 100 reais por uma
	caixinha deste tamanho?
	CARDOSO
	Deixa de ser ignorante, rapaz! O que tem o tamanho
	a ver com o presente? Eu posso vender isso aí por
	150, até 200. Te faço por oitenta.
	ANDRÉ
	Só posso gastar trinta.
	CARDOSO
	Trinta nem pensar. Setenta.
	ANDRÉ
	Tenho que ir.
	CARDOSO
	Tudo bem. Sessenta.
CENA 115 - PAPELARIA - INTERIOR/NOITE
André faz cópias das sobras das cópias da nota de cinqüenta.
	ANDRÉ (VS)
	Eu não tinha mais uma nota de cinqüenta, só umas
	cópias, de um lado e de outro. A cópia da cópia
	não fica tão boa.
CENA 116 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE
Cardoso está no balcão, bebendo. André se aproxima.
	ANDRÉ (VS)
	Esperei a gente se encontrar num lugar sem muita
	luz.
	ANDRÉ
	Cinqüenta.
	CARDOSO
	O quê?
	ANDRÉ
	Te dou cinqüenta pela caixinha.
	CARDOSO
	Cinqüenta? Fora de questão. O mínimo é oitenta.
	ANDRÉ
	Você já tinha chegado a sessenta.
	CARDOSO
	Já?
	ANDRÉ
	Já.
	CARDOSO
	Sessenta é o mínimo.
	ANDRÉ
	Só tenho cinqüenta. (mostra a nota)
Cardoso olha a nota, olha para André. Pega a nota.
	CARDOSO
	Tudo bem. Passa lá amanhã que eu te dou a
	caixinha. Quer uma cerveja?
Cardoso vai até o bar.
	CARDOSO
	Ô Dirceu, vê duas cervejas aí. Desconta os vinte e
	quatro que eu te devia.
	André se aproxima para interromper Cardoso mas ele põe a nota de
	50 sobre o balcão.
	CARDOSO
	E vê meu troco.
	Dirceu pega a nota, põe no caixa sem nem olhar para ela e dá o
	troco a Cardoso.
	ANDRÉ
	Dirceu...
Um bêbado apressado chega ao balcão com uma nota de cem.
	BÊBADO APRESSADO
	O meu, troca cem aí?
Dirceu pega duas notas de cinqüenta e dá ao cara que sai.
	Cardoso pega as cervejas. André pega a sua cerveja e tenta seguir
	o homem que pegou o troco. O sujeito sai do bar, entra num carro
	e parte.
CENA 117 - BRIC - INTERIOR/DIA
André se aproxima de Cardoso.
	CARDOSO
	Vamos lá para trás.
Cardoso entrega a caixa a André.
	CARDOSO
	Olha, eu não tou a fim de te sacanear. Quando você
	me pagou cinqüenta pela caixinha, eu tive que me
	controlar para não rir na sua cara. Essa caixinha
	não é antiguidade porra nenhuma, tem duzentas no
	depósito. Te vendo por dez. Tá aqui os teus
	quarenta de troco. Eu não vou me aproveitar da tua
	ingenuidade te passando um negócio falso.
André fica olhando os quarenta reais e a caixinha.
	ANDRÉ
	É que, tem uma coisa.
	CARDOSO
	O quê?
André puxa Cardoso para um canto da loja.
	ANDRÉ
	Aquela nota que eu te dei ontem, cinqüenta reais?
	CARDOSO
	O que é que tem?
	ANDRÉ
	Era falsa.
	CARDOSO
	Como assim? Como é que você sabe?
	ANDRÉ
	Fui eu que fiz. Na máquina.
	CARDOSO
	Você tá maluco?
	ANDRÉ
	Eu só queria saber se você ia cair. Não sabia que
	você ia pagar a cerveja.
	CARDOSO
	Se o cara descobre... Você que fez? Tem mais?
	ANDRÉ
	Não, só aquele.
	CARDOSO
	Nem reparei. É parecido.
	ANDRÉ
	Mais ou menos. Assim, sem olhar muito de perto.
	CARDOSO
	Você pode fazer mais?
	ANDRÉ
	É difícil.
	CARDOSO
	Difícil por quê?
	ANDRÉ
	Gasta muito papel. E tem que ser à noite, não dá
	para demorar muito. E eu também não tenho notas de
	cinqüenta para ficar copiando.
	CARDOSO
	Por que você não faz cópias das cópias?
	ANDRÉ
	Já experimentei. Não fica tão bom.
	CARDOSO
	Eu te consigo as notas.
	ANDRÉ
	Como?
	CARDOSO
	Eu consigo. Você pode amanhã de noite?
CENA 118 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
Loja. Cardoso tira da carteira seis notas de cinqüenta.
	CARDOSO
	Pedi emprestado para devolver amanhã.
	André junta as seis notas, com durex, põe na máquina. Fazem
	várias experiências até conseguir uma cópia com registro. Cortam
	as notas. André põe as seis notas de cinqüenta, sobre a mesa.
	CARDOSO
	Metade para cada um?
	ANDRÉ
	Tudo bem.
Experimentam o tato, examinam, comparam com as verdadeiras.
	CARDOSO
	O que você vai fazer com a sua parte?
	ANDRÉ
	Comprar um presente.
	CARDOSO
	Numa loja.
	ANDRÉ
	Vou trocar o dinheiro antes.
	CARDOSO
	Como?
CENA 119 - CASA LOTÉRICA - INTERIOR/DIA
Fila de pagamento das aposta de uma casa lotérica.
	CARDOSO
	Que números você escolheu?
	ANDRÉ
	Os primeiros.
	CARDOSO
	Como assim?
	ANDRÉ
	Um, dois, três, quatro, cinco, seis.
	CARDOSO
	Tá brincando?
	ANDRÉ
	Por quê?
	CARDOSO
	Ela vai desconfiar!
	ANDRÉ
	Desconfiar por quê?
	CARDOSO
	Porque é absurdo jogar assim! Ninguém joga assim,
	seis números seguidos. Não tem chance alguma de
	dar seis números seguidos.
	ANDRÉ
	A mesma chance de dar qualquer número. A chance é
	mínima, de todo jeito.
	CARDOSO
	Mas com seis números seguidos é menor.
	ANDRÉ
	É igual.
	CARDOSO
	É impossível dar seis números seguidos.
	ANDRÉ
	Tão impossível como dar qualquer outros números.
	CARDOSO
	Eu não vou discutir uma coisa tão óbvia assim. O
	que você vai fazer com o seu dinheiro?
	CENA 120 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 121 - APARTAMENTOS - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO
	André olha pelo binóculo a sala iluminada de um apartamento. Ele
	pode ver detalhes da sala, através de uma cortina japonesa
	fechada: um som, discos, livros.
	ANDRÉ (VS)
	Imagina tudo que você pode comprar com 123 reais.
	Um walkman. Roupas. Cds.
André fica olhando para a sala alguns segundos.
	ANDRÉ (VS)
	Melhor.
CENA 122 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA
Sílvia abre um pacote. É uma cortina japonesa.
	ANDRÉ
	É uma cortina, japonesa.
	SÍLVIA
	Cortina?
	ANDRÉ
	Para o seu quarto.
	SÍLVIA
	Deve ter sido caro.
	ANDRÉ
	Não. Troquei por umas ilustrações que eu fiz.
	SÍLVIA
	Obrigado. Muito legal. Quando é o seu aniversário?
	ANDRÉ
	Já foi.
	SÍLVIA
	Vou te dar um presente também.
	ANDRÉ
	Faz tempo, não precisa.
	SÍLVIA
	Eu quero. Tenho que voltar. Obrigado.
	ANDRÉ
	De nada.
	CENA 123 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 124 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO
	André olha o apartamento de Sílvia de binóculo. O pai está na
	sala, vendo tevê. A cortina já está colocada no quarto dela, mas
	a luz está apagada.
	ANDRÉ (VS)
	Ela levou uma semana para instalar a cortina.
	Devia ter pago a instalação também. Mas não deve
	ser difícil, só prender com uns preguinhos. Acho
	que ela mesma pregou.
	Sílvia entra em casa. (Trilha: Mozart, Sinfonia 41 "Jupiter",
	Sexto Movimento, Andante Cantabile) Sílvia pega uma
	correspondência, dá uma olhada, larga. Vai até a cozinha, examina
	a geladeira. Fecha a geladeira. Sílvia caminha para o quarto.
	Pára no corredor, lendo a correspondência.
	A luz se acende revelando, pela primeira vez, o quarto inteiro: o
	aquário sobre uma cômoda com muitos livros, um quadro de
	fotografias com desenhos, uma cadeira com roupas. André se
	maravilha com os detalhes revelados. O quebra-cabeças do quarto
	se completa, luminoso. Sílvia larga suas coisas, vai até o
	banheiro, liga o chuveiro. Volta para o quarto e começa a tirar a
	roupa. Tira a camisa, fica lendo alguma coisa no caderno, só de
	sutiã e saia. Abre a saia, sem parar de ler. Fica de calcinha e
	sutiã. Começa a soltar o sutiã enquanto vai para o banheiro.
	Fecha a porta do banheiro enquanto tira o sutiã.
André respira, abaixa o binóculo. Volta a olhar para o quarto.
	André examina os detalhes do quarto. As fotos no mural. Um
	calendário atrás da porta. O trinco da porta se move.
	O pai de Sílvia entra no quarto. Abre a bolsa de Sílvia e pega
	algum dinheiro. Fecha a bolsa. Aproxima-se da porta do banheiro.
	Abaixa-se e, abrindo a calça, espia pelo buraco da fechadura do
	banheiro. A calça desce um pouco, revelando o rego de uma bunda
	peluda e a barra de uma cueca velha.
	André larga o binóculo. Levanta-se. Fica parado alguns segundos
	no meio do quarto. Calça os tênis. Pega a chave e a carteira. Sai
	do quarto.
CENA 125 - RUAS - EXTERIOR/NOITE
	André caminha decidido pela rua, sem olhar para os lados.
	Atravessa uma avenida sem prestar muita atenção no trânsito.
	Caminha em passos rápidos. Vê o edifício de Sílvia, Santa
	Cecília.
CENA 126 - DESENHO ANIMADO
	André cozinha o pai de Sílvia, como nas ilustrações da vida de
	Santa Cecília. André corta a cabeça do pai de Sílvia.
CENA 127 - RUAS - EXTERIOR/NOITE
	André diminui o passo ao se aproximar da portaria. Pára. Fica
	olhando para o porteiro eletrônico. É um prédio de muitos
	apartamentos. André fica olhando para cima, para as várias
	janelas iluminadas. Um porteiro se aproxima. André olha para o
	porteiro. Afasta-se da portaria. Caminha pela calçada, mãos nos
	bolsos.
CENA 128 - BRIC - INTERIOR/NOITE
	Cardoso transforma caixinhas de madeiras novas em caixinhas de
	madeiras antigas. André observa.
	CARDOSO
	O que você vai fazer?
	ANDRÉ
	Não sei.
	CARDOSO
	Você não pode dizer para a guria que o pai dela é
	um tarado. Até pode, mas ela vai perguntar como é
	que você sabe.
	ANDRÉ
	É.
	CARDOSO
	"Eu sei que o seu pai é um tarado porque eu também
	sou". Melhor não. Você talvez possa sugerir que
	tem muito pai tarado, mais do que a gente imagina,
	e que ela devia tapar o buraco da fechadura do
	banheiro, só por precaução. Mas ela vai achar
	estranho.
	ANDRÉ
	Vai.
	CARDOSO
	Você pode dar uma surra no cara, dizer para ele
	que sabe que ele é um tarado. Aí ele é que vai
	achar estranho. Não resolve muito.
	ANDRÉ
	Não.
	CARDOSO
	Ou você pode pedir ela em casamento. E tirar ela
	de lá.
	ANDRÉ
	É.
	CARDOSO
	Mas para isso você precisa ter para onde ir.
	Precisa de dinheiro.
	ANDRÉ
	Eu sei.
	CARDOSO
	Bastante dinheiro. É melhor que seja dinheiro de
	verdade.
	ANDRÉ
	É.
	CARDOSO
	E você tem alguma idéia de onde conseguir bastante
	dinheiro de verdade?
	ANDRÉ
	Tenho.
CENA 129 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA
	André observa o banco. Três guardas descem do carro forte,
	carregando os malotes com dinheiro. André faz um desenho do
	banco, com anotações de horários.
CENA 130 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
Marinês tira o avental e entrega para André.
	MARINÊS
	Você vai me dar metade do seu salário?
	ANDRÉ
	Desculpe. Tive que levar minha mãe ao médico.
	MARINÊS
	Tem um monte de trabalho aí. Dois livros grandes.
	Tudo para amanhã de manhã.
	ANDRÉ
	Eu fico até mais tarde. Obrigado.
André começa a fazer cópias.
CENA 131 - PAPELARIA - INTERIOR/NOITE
	A loja já está fechada. André faz cópias de notas de cinqüenta.
	Seis notas. Examina as notas. Amassa as notas, dobra ao meio.
	Enrola o dinheiro com uma borracha. Põe no bolso.
CENA 132 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA
Sílvia está almoçando. André chega.
	SÍLVIA
	Oi! Tá sumido.
	ANDRÉ
	Trabalhando muito. Você já almoçou?
	SÍLVIA
	Tô terminando. Mas eu te acompanho.
	ANDRÉ
	Já comi. Quero conversar com você. Não aqui. Você
	pode se atrasar um pouco, depois do almoço?
CENA 133 - PRAÇA NA BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA
André e Sílvia caminham, perto do rio.
	SÍLVIA
	Quanto tempo?
	ANDRÉ
	Não sei ainda. Depende do trabalho.
	SÍLVIA
	Mais que... um ano?
	ANDRÉ
	Não. Seis meses, no máximo.
	SÍLVIA
	Eu sempre quis conhecer o Rio.
	ANDRÉ
	Quem sabe você me visita? Nas férias?
	SÍLVIA
	Falta ainda.
Caminham em silêncio. Ela lhe entrega um livro.
	SÍLVIA
	Seu presente. É o livro de sonetos, do
	Shakespeare. Você leva na viagem. Está marcado na
	página daquele que você leu. (lê) "Quando a hora
	dobra em triste e tardo toque".
	ANDRÉ
	Você entendeu?
	SÍLVIA
	Entendi. É bonito.
	ANDRÉ
	(lendo) "Quando a hora dobra em triste e tardo
	toque e em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
	quando vejo esvair-se a violeta..."
	SÍLVIA
	A flor. Esvair-se é evaporar. Murchar. Morrer.
	ANDRÉ
	"Ou que a prata a preta têmpora assedia".
	SÍLVIA
	Sabe a prata escurecendo?
	ANDRÉ
	"Quando vejo sem folha o tronco antigo que ao
	rebanho estendia a sobra franca".
	SÍLVIA
	A árvore sem folhas, onde os bois e as vacas
	tomavam sombra, quando ela tinha folhas.
	ANDRÉ
	"E em feixe atado, agora o verde trigo, seguir no
	carro, a barba hirsuta e branca." O trigo cortado,
	indo embora numa carroça.
	SÍLVIA
	A barba hirsuta e branca. É tudo sobre o tempo. O
	tempo passando.
	ANDRÉ
	"Sobre a tua beleza então questiono, que há de
	sofrer do tempo a dura prova".
	SÍLVIA
	Isso é...
	ANDRÉ
	Eu entendi. "Pois as graças do mundo em abandono
	morrem ao ver nascer a graça nova. Contra a foice
	do tempo é vão combate, salvo a prole, que o
	enfrenta se te abate". O que é isso?
	SÍLVIA
	É o jeito de ganhar do tempo, de enganar a morte.
	A prole. Os filhos.
	ANDRÉ
	Entendi. É bonito mesmo. Obrigado.
	SÍLVIA
	Eu tenho que ir trabalhar.
	ANDRÉ
	Claro.
Pausa.
	ANDRÉ
	Você me espera?
	SÍLVIA
	Espero.
	ANDRÉ
	Você quer casar comigo e sair daqui?
	SÍLVIA
	Claro que sim.
Beijam-se.
	ANDRÉ
	Pode demorar, uns seis meses.
	SÍLVIA
	Eu espero. Espero mais até. Te cuida.
Ela sai. André fica parado alguns segundos. Olha o relógio.
CENA 134 - ESCADAS DA PONTE - EXTERIOR/NOITE
	André entrega o rolinho de dinheiro para Feitosa. Ele guarda
	rapidamente no bolso. Feitos tira do bolso um revólver. Faz mira.
	Entrega uma arma para André. André pega a arma com um saco
	plástico, sem tocá-la.
	FEITOSA
	Boa idéia. Olha o que você vai fazer com isso.
	ANDRÉ
	E as balas?
	FEITOSA
	Dentro. Tem seis.
Feitosa vai saindo.
	ANDRÉ
	Só seis?
	FEITOSA
	Se tu precisar mais que seis, tu tá ferrado. Acho
	até que se tu precisar de uma tu já tá ferrado.
Feitosa se afasta.
CENA 135 - FRENTE DO BANCO - EXTERIOR/DIA
	Cardoso está parado na frente do banco, de costas para a rua.
	Olha para os lados. André sai rapidamente de uma lavanderia ao
	lado do banco e toca as costas de Cardoso. Ele se vira.
	CARDOSO
	Onde é que você estava?
	ANDRÉ
	Na lavanderia. Você nem me viu chegar. Vamos sair
	daqui.
André e Cardoso saem caminhando pela calçada.
	CARDOSO
	E o outro cara?
	ANDRÉ
	Eu vou estar com uma arma, apontando para as
	costas de um. O outro não vai atirar.
	CARDOSO
	E se ele atirar?
	ANDRÉ
	Eu atiro também.
	CARDOSO
	Você vai matar o cara?
	ANDRÉ
	Espero que não.
Dobram a esquina.
	CARDOSO
	Eu não sei de nada desta história. Só vou dirigir
	o carro. Se der problema eu digo que te dei uma
	carona e não sabia o que tinha na sacola.
	ANDRÉ
	Certo.
	CARDOSO
	E se der tiro, eu me mando.
	ANDRÉ
	Certo. Você vai ficar estacionado aqui.
	CARDOSO
	E se der certo, metade da grana é minha.
	ANDRÉ
	Certo.
	CARDOSO
	Quando?
	ANDRÉ
	Amanhã. Consegue o carro.
	CENA 136 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 137 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	André, de binóculo, vê o pai de Sílvia entrando no quarto. Larga
	o binóculo. Volta a desenhar. É um desenho de Zeca Olho, com uma
	arma na mão, atirando. Examina a arma, dentro do saco plástico.
	Desenha vários furos de balas em Zeca Olho, a roupa toda manchada
	de sangue.
CENA 138 - LAVANDERIA - INTERIOR/NOITE
	André vê a roupa que gira dentro de uma máquina. André está de
	jaqueta. Com a mão esquerda, segura uma grande sacola vazia. A
	mão direita está no bolso da jaqueta. André vê, ao seu lado, o
	Gordo dançarino do edifício Montes Claros.
	(INSERT: QUARTO DO GORDO, INTERIOR/NOITE.
	Gordo do Montes Claros, dançando.)
	O Gordo está tirando as roupas lavadas da máquina. André se
	aproxima.
	ANDRÉ
	Bom dia. Eu estou fazendo uma pesquisa.
	GORDO
	O quê?
	ANDRÉ
	Uma pesquisa. Para o colégio. Sobre música.
	GORDO
	Que pesquisa?
	ANDRÉ
	Sobre o tipo de música que as pessoas preferem. O
	senhor poderia me responder algumas perguntas?
	GORDO
	Sobre o tipo de música que eu prefiro?
	ANDRÉ
	É
	GORDO
	Rock.
	ANDRÉ
	Rock. Alguma banda preferida?
	GORDO
	Credence. Conhece?
	ANDRÉ
	Acho que sim. Obrigado.
	GORDO
	De nada.
O Gordo pega as roupas e se afasta.
	(INSERT: QUARTO DO GORDO/BINÓCULO, INTERIOR/NOITE.
	Gordo do Montes Claros, dançando agora ao som de "Travellin'
	Band", do Credence, música que segue nas próximas cenas, do
	assalto.)
	André dá uma olhada na calçada e vê que o carro forte já chegou.
	Olha para os lados. Tira as mãos do bolso, está com luvas de
	borracha, azuis. Pega uma meia. Olha para os lados. Sai da
	lavanderia enquanto põe a meia na cabeça.
CENA 139 - FRENTE DO BANCO - EXTERIOR/DIA
	André se aproxima do guarda pela costas do guarda. Sua figura, de
	meia na cabeça e luvas azuis, é um tanto ridícula.
André tira a arma do bolso. A arma tranca e dispara.
	Os dois guardas se voltam para André, se apavoram e largam as
	armas.
	ANDRÉ
	Larguem as armas!
	Os guardas ficam parados até que André perceba que eles já
	largaram as armas.
	ANDRÉ
	Entra no carro! E deixa o dinheiro aí no chão!
	Os guardas largam a sacola de dinheiro no chão e entram no carro-
	forte.
	André pega a sacola, tenta fechar a porta do carro-forte, segurar
	a sacola e a arma, tudo ao mesmo tempo. Se atrapalha.
	Um homem chega por trás de André e arranca a meia de sua cabeça.
	André se vira.
O homem é ANTUNES, 60 anos, o pai de Sílvia. André olha para ele.
(INSERT: Antunes acocorado em frente ao banheiro de Sílvia).
	André atira. Antunes faz uma cara de dor e cai. André deixa cair
	a arma. Pessoas correm pela calçada. Antunes, com a mão segurando
	a perna que sangra, olha para André.
	André põe a sacola de dinheiro dentro da sua sacola vazia e sai
	correndo.
CENA 140 - RUA - EXTERIOR/DIA
	André, tirando a luva, dobra a esquina. Algumas pessoas saem das
	lojas, para ver o que aconteceu. Cruzam com André, sem reparar
	nele.
CENA 141 - GALERIA - INTERIOR/DIA
	André entra numa galeria com algum movimento. Dobra uma esquina
	da galeria.
CENA 142 - RUA - EXTERIOR/DIA
	André sai da galeria. Aproxima-se de Cardoso, que está parado do
	lado de fora do carro. Cardoso faz gestos para André. André
	percebe que há um GUARDA MUNICIPAL multando o carro de Cardoso.
	André encara Cardoso.
	CARDOSO
	Era zona de parquímetro, eu não tinha moeda.
Um ônibus pára na frente deles. Eles olham para o ônibus.
CENA 143 - ÔNIBUS - INTERIOR/DIA
	André e Cardoso entram no ônibus. Ninguém dá atenção a eles. Eles
	param na roleta, ofegantes.
	O COBRADOR tira os olhos do jornal e fica olhando para os dois.
	Cardoso põe a mão no bolso, pega a carteira, Está vazia. Olha
	para André. André, com a cabeça, faz sinal que não. Cardoso olha
	para o saco e para André. André olha para o saco e para Cardoso.
	Faz outra vez sinal que não. Cardoso faz um gesto com a cabeça:
	alguma outra idéia? André suspira, abre um pouco o zíper da
	sacola, enfia a mão, procura algo. O Cobrador segue olhando para
	os dois. Cardoso sorri ao cobrador. O Cobrador volta a ler o
	jornal. André tira da sacola uma nota de cem reais. O Cobrador
	fica olhando para a nota, com cara de tédio. André guarda a nota
	de cem e procura outra. Acha uma de cinqüenta. Dá ao cobrador com
	uma expressão de quem pede desculpas. O cobrador suspira, pega a
	nota de cinqüenta, dá o troco ao dois. Eles passam na roleta.
	Sentam. Cardoso dá uma olhadinha para trás. Vê que o cobrador já
	voltou a ler o jornal.
André toca a campainha para descer. Levanta-se.
	ANDRÉ
	Volta mais tarde lá para pegar o carro.
	CARDOSO
	Tô sem dinheiro pro táxi.
	André dá uma olhada em torno, mete a mão na sacola e tira um
	punhado de notas de cinqüenta e cem. Põe na mão de Cardoso. Ele
	fica bobo olhando para as notas.
	CARDOSO
	E depois?
	ANDRÉ
	Depois a gente vê.
CENA 144 - RUA - EXTERIOR/DIA
André desce do ônibus. Vê Cardoso, na janela, se afastar.
CENA 145 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André, deitado em sua cama, coberta de dinheiro. O chão também
	está coberto de dinheiro. O quarto todo está coberto de dinheiro,
	notas de cinqüenta e cem reais.
CENA 146 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
Marinês lê o jornal. André se aproxima.
	ANDRÉ
	Deixa eu dar uma olhada?
	André folheia rapidamente o jornal, páginas policiais. Vê um
	retrato falado sob o título: Assaltante foge a pé com 2 milhões.
	O retrato falado não é nem vagamente parecido com ele. André lê a
	matéria enquanto Marinês fala.
	MARINÊS
	Pensei em cortar o meu cabelo assim, bem curto, e
	vender o resto. Os caras pagam até quinhentos
	reais por uma cabelo assim como o meu. Já me
	ofereceram 300, mas eu não topei. Só vendo por
	seiscentos. Fiz a conta: meu cabelo leva uns três
	meses para crescer, se eu cortar na lua certa e
	comer bastante cenoura e pepino. Vendo por
	seiscentos, dá duzentos por mês. Duzentos por mês,
	só para criar cabelo. É mais do que ele me paga
	aqui. Já pensou? Profissão: jardim de cabelo.
	André vê uma outra notícia: Traficante preso com dinheiro falso.
	Uma foto de Feitosa.
André fica parado, olhando o jornal.
CENA 147 - BRIC - INTERIOR/DIA
Cardoso lê o jornal. André está sentado a sua frente.
	CARDOSO
	Qual é o problema? Não é nem parecido contigo.
	Parece o Romário.
	ANDRÉ
	A notícia do lado.
	CARDOSO
	Resultado da sena?
	ANDRÉ
	A outra!
	CARDOSO
	Traficante preso com dinheiro falso.
	ANDRÉ
	Essa.
	CARDOSO
	Jerfeson Antonio Feitosa, o Feitosa, foi preso
	ontem ao tentar passar uma nota falsa de cinqüenta
	reais na boate Frequence, na avenida Farrapos.
	Jerfeson? O traficante estava de posse de mais
	cinco notas falsas de cinqüenta, vários
	papelotes...
Pausa.
	CARDOSO
	Seis notas de cinqüenta?
André faz um sinal de positivo com a cabeça.
	CARDOSO
	A arma que você comprou.
André faz um sinal de positivo com a cabeça.
	CARDOSO
	E as impressões digitais na arma... são dele.
André faz um sinal de positivo com a cabeça.
	CARDOSO
	Se a polícia comparar as impressões digitais dele
	com a da arma...
	ANDRÉ
	Eles não têm porque ligar uma coisa com a outra.
Pausa.
	CARDOSO
	Tem cartão de telefone?
CENA 148 - BAR - INTERIOR/DIA
André está numa mesa, ao fundo de um bar. Cardoso chega.
	ANDRÉ
	Ligou?
	CARDOSO
	Liguei.
	ANDRÉ
	E disse o quê?
	CARDOSO
	Que eu vi a foto dele no jornal e que parecia o
	cara que eu vi correndo do assalto no banco.
	ANDRÉ
	Eles não perguntaram teu nome?
	CARDOSO
	Perguntaram.
	ANDRÉ
	E você disse o quê?
	CARDOSO
	Nada. Desliguei. Viu que no jornal dizem que as
	notas eram "falsificações grosseiras"?
	ANDRÉ
	Não.
	CARDOSO
	Na legenda do foto, aqui: Falsificações grosseiras
	levam traficante à prisão.
André olha o jornal e fica paralisado.
	CARDOSO
	Sem a minha ajuda, seu desempenho de falsário cai
	muito.
André não se move.
	CARDOSO
	O que foi?
André mostra outra notícia a Cardoso.
Cardoso pega o jornal e lê:
	CARDOSO
	Sena saiu para oito apostadores, um de Porto
	Alegre. Os números sorteados foram uma incrível
	sequência: um, dois, três, quatro, cinco e seis.
Cardoso e André ficam parados, se olhando.
Cardoso vai gritar. André tapa sua boca.
	ANDRÉ
	Aqui não.
CENA 149 - BEIRA DO RIO - EXTERIOR/FIM DE TARDE
André e Cardoso gritam, pulam e gritam.
CENA 150 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André e Cardoso estão sentados, cercados de dinheiro por todos os
	lados.
	CARDOSO
	E se a gente devolver o dinheiro do assalto?
	ANDRÉ
	Como?
	CARDOSO
	Pelo correio.
	ANDRÉ
	O que adianta? Roubei um banco. Dei um tiro no
	cara. Já imaginou, minha foto no jornal, o novo
	milionário da sena?
	CARDOSO
	Só tem um jeito. É você dar o bilhete para alguém.
	Alguém que saiba lidar com dinheiro, que aja
	naturalmente, com classe. Alguém em que você
	confia. Alguém que você tem certeza absoluta que
	não vai te sacanear.
	ANDRÉ
	Tem razão.
CENA 151 - BANCO - INTERIOR/DIA
	Um GERENTE de banco termina de assinar alguns papéis. Sorri e põe
	um cartão e um talão de cheque sobre a mesa.
	GERENTE
	Você quer algum dinheiro vivo? Para as despesas
	menores?
	MARINÊS
	Seis mil reais. Só para as despesas menores.
CENA 152 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE
André examina os papéis do banco. Cardoso conta dinheiro.
	ANDRÉ
	Acho que está tudo certo.
	MARINÊS
	Não, não está nada certo. Eu quero saber
	exatamente TUDO que vocês fizeram.
André e Cardoso olham para ela alguns segundos.
CENA 153 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André e Cardoso olham para Marinês, sentada na cama com todo o
	dinheiro do banco. Cardoso olha para ela, fascinado.
	MARINÊS
	O que você vão fazer com esse dinheiro?
	CARDOSO
	Com esse, nada. Eles devem ter o número das notas.
	MARINÊS
	E com o do prêmio?
	ANDRÉ
	Gastar.
CENA 154 - SEQUÊNCIA DE MONTAGEM/SHOPING - INTERIOR/DIA
André, Cardoso e Marinês sobem as escadas rolantes de um shoping.
Marinês entra num salão de beleza.
	Cardoso entra numa loja de artigos e roupas esportivas. É um
	santuário de marcas famosas, Nike, Umbro, Adidas, Reebok.
	Marinês, já com o cabelo cortado, entra numa loja de roupas,
	aparentemente muito caras. DUAS VENDEDORAS metidíssimas olham
	para ela de cima a baixo. Ela sorri.
	André está numa grande livraria. Escolhe caixas de pastel, tinta,
	canetas.
	Marinês sai da loja, seguida das duas vendedoras que carregam
	sacolas. Entra noutra loja.
	Cardoso, um verdadeiro mostruário ambulante de marcas, passeia
	entre os carros de uma revenda. Para ao lado de um modelo
	esportivo preto. O vendedor dá a ficha do carro.
	VENDEDOR
	Motor dois ponto zero, dezesseis válvulas
	independentes, quatro air bags frontal e lateral,
	freios abs, bancos de couro auto reguláveis,
	computador de bordo, sistema de som para oito cds.
Cardoso examina o carro.
	CARDOSO
	Tem azul?
	Estacionamento. Cardoso estaciona o carro, azul. Abre o porta-
	malas. André põe as caixas de suas compras no porta-malas. Entre
	elas, uma grande luneta, com tripé.
	Cardoso liga o som do carro, num volume altíssimo. Os dois tentam
	diminuir o volume mas não conseguem. Cardoso consegue desligar o
	som. Param, olhando para frente, boquiabertos:
	Marinês, maravilhosa numa roupa muito chique, está parada na
	frente do carro, sacolas de compras pelo chão. Marinês olha para
	o carro.
	MARINÊS
	(expressão de desdém) Azul? Não tinha preto?
Cardoso ainda não conseguiu fechar a boca.
Os três, no carro, saem do estacionamento.
CENA 155 - FRENTE DA LOJA SÍLVIA - EXTERIOR/DIA
André desce do carro.
	ANDRÉ
	Você vai dizer o que para o Bolha?
	MARINÊS
	Que eu vou me casar, na Holanda. E você vai junto,
	para ser meu padrinho.
	ANDRÉ
	Diz para ele que eu passo lá, para me despedir.
	Tenho que resolver uns assuntos.
	CARDOSO
	Nós também temos que resolver uns assuntos.
	Cardoso liga o som do carro e parte. Marinês abana para André.
	André olha para a loja.
CENA 156 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA
André e Sílvia, na loja.
	ANDRÉ
	Oi.
	SÍLVIA
	Oi... Quando foi que você voltou?
	ANDRÉ
	Hoje. Você pode sair para o almoço?
CENA 157 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA
Sílvia e André comem.
	SÍLVIA
	Como é o Rio? Bonito?
	ANDRÉ
	É. Quero que você vá para lá, comigo.
	SÍLVIA
	Meu pai não vai deixar a gente sair assim. Ele vai
	atrás.
	ANDRÉ
	A gente casa.
	SÍLVIA
	Mesmo assim.
	ANDRÉ
	Qual é o problema? Eu falo com ele.
	SÍLVIA
	Fala?
Pausa.
	ANDRÉ
	Falo.
	CENA 158 - INTERIOR/NOITE
	Saguão de um hotel de luxo. Cardoso e Marinês se aproximam do
	guichê de reservas. O RECEPCIONISTA do hotel, um senhor de 60
	anos, sorri, amigavelmente.
	CARDOSO
	Boa tarde.
	RECEPCIONISTA
	Boa tarde.
	CARDOSO
	Você tem um suíte presidencial?
	RECEPCIONISTA
	Não senhor. O senhor fez reserva?
	CARDOSO
	Não. Mas posso fazer agora.
	RECEPCIONISTA
	Eu acho que não vai ser necessário. Nós temos três
	tipos de quarto, todos muito bons.
	CARDOSO
	Que tipos?
	RECEPCIONISTA
	Temos o apartamento luxo, gran luxo e a suíte gran
	luxo especial.
	CARDOSO
	Nós queremos uma suíte gran luxo especial.
	RECEPCIONISTA
	Pois não. Quanto tempo vocês vão ficar?
Cardoso e Marinês se olham.
	CARDOSO
	Quais são as opções?
	RECEPCIONISTA
	Um dia, dois, três...
	CARDOSO
	Um dia. Para começar.
	RECEPCIONISTA
	Boa idéia.
O recepcionista entrega uma ficha para Cardoso preencher.
	RECEPCIONISTA
	Fumantes?
	CARDOSO
	Não senhor. Eu não ponho um cigarro na boca há
	quatorze dias!
	RECEPCIONISTA
	Bem que o senhor faz.
O recepcionista entrega a chave a Cardoso.
	RECEPCIONISTA
	O senhor tem bagagem?
	CARDOSO
	No carro. Um azul bem escuro, praticamente preto.
	RECEPCIONISTA
	Perfeitamente. (entrega a chave) A bagagem sobe em
	seguida. O apartamento é o onze zero dois. Boa
	estadia.
	CARDOSO
	A cama é de casal?
	RECEPCIONISTA
	Duplo casal.
	CARDOSO
	Duplo casal?
	RECEPCIONISTA
	Duplo casal. É bem grande.
	CARDOSO
	(um pouco assustado) Obrigado.
CENA 159 - QUARTO DE HOTEL - INTERIOR/NOITE
	Carsoso, deitado nu sob os lençóis de uma cama enorme. Afofa os
	travesseiros. Ergue-se e examina os dentes na superfície
	espelhada de uma luminária. Volta a deitar. Respira fundo. A
	porta do banheiro se abre. Marinês, ainda de camisa e calça
	jeans, sai do banheiro. Pára na frente da cama, encarando
	Cardoso. Marinês abre a calça jeans. Tira a calça jeans, ficando
	só de camisa. Cardoso está petrificado. Marinês puxa o lençol,
	descobrindo Cardoso. Ela abre a camisa. Tira. Fica só de sutiã,
	sem calcinha, parada na frente de Cardoso. Ela sorri para ele.
	Ele não consegue mover um músculo.
	CARDOSO
	Posso tomar uma aguinha?
	MARINÊS
	Não.
Ela avança sobre a cama.
CENA 160 - RESTAURANTE CHIC - INTERIOR/NOITE
	Sílvia e André estão numa mesa, há um lugar pronto para mais uma
	pessoa.
	ANDRÉ
	Será que ele vai simpatizar comigo?
	SÍLVIA
	Espero que não.
	ANDRÉ
	Por quê?
	SÍLVIA
	Ele é um cretino.
	ANDRÉ
	Seu pai?
	SÍLVIA
	Puxei a minha mãe.
	ANDRÉ
	Que tipo de cretino?
	SÍLVIA
	O pior tipo.
	Antunes entra no restaurante. André o encara. Antunes se
	aproxima. Sílvia olha para o pai. Antunes não tira os olhos de
	André.
	SÍLVIA
	Este é o André.
André levanta-se para cumprimentar Antunes.
	ANTUNES
	Mas você... é... muito jovem.
Antunes cumprimenta André, sorridente.
	ANDRÉ
	Nem tanto.
	ANTUNES
	Que idade você tem?
	ANDRÉ
	Dezoito.
	ANTUNES
	Você trabalha em quê?
	SÍLVIA
	O André desenha. Para revistas. Desenha super bem.
	ANTUNES
	Pelo restaurante, parece que isso dá dinheiro.
	ANDRÉ
	As vezes.
	ANTUNES
	Vocês se conheceram como?
	SÍLVIA
	Na loja. Ele foi comprar um presente. Para a mãe
	dele.
	ANTUNES
	(examinando o cardápio) Vamos beber o quê?
	ANDRÉ
	O senhor que sabe.
CENA 161 - QUARTO DE HOTEL - INTERIOR/NOITE
	Marinês dorme sob os lençóis. Sentado na cama, ao seu lado,
	Cardoso "fuma" uma caneta bic amarela, soltando longas baforadas
	imaginárias.
CENA 162 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE
	O garçon retira do balde uma garrafa de vinho vazia e coloca
	outra. Serve o copo de Antunes. Vai servir o de André, mas ele
	faz sinal que não quer. Sílvia está bebendo água.
	ANTUNES
	Quinhentos anos de quê? Isso é só mais uma coisa
	que inventaram para ganhar dinheiro, para tirar
	dinheiro dos otários como nós. Nem foram os
	portugueses que descobriram! O espanhol aquele já
	tinha chegado aqui muito antes. É verdade, eu li
	numa revista. Tá provado. Só que os portugueses se
	deram bem aqui, escreveram os livros e não se fala
	mais nisso. É que nem os vikings. Os vikings já
	tinham chegado na américa muito antes que o
	Colombo. Muito antes!
	ANDRÉ
	Viking quer dizer assaltante.
	ANTUNES
	É?
	ANDRÉ
	É. Em Dinamarquês. Pirata, assaltante. Mas também
	pode querer dizer baía, uma baía de mar. Ou
	acampamento. Ou soldado.
	ANTUNES
	É?
	ANDRÉ
	É.
	ANTUNES
	Você fala dinamarquês?
	ANDRÉ
	Eu? Não. Eu li isso.
	ANTUNES
	Ah.
	SÍLVIA
	Eu vou no banheiro.
Sílvia sai.
	ANTUNES
	Como é seu nome mesmo?
	ANDRÉ
	André.
	ANTUNES
	Olha aqui, André. Eu sei muito bem que foi você
	quem assaltou aquele banco. Foi você que me deu
	aquele tiro, na perna. Eu posso te entregar e você
	vai ficar quinze anos no presídio central. Só que
	isso para mim não ia ajudar em nada. Eu sei que
	você está com o dinheiro. E eu nem quero todo. Se
	você quiser casar com a Sílvia o azar é o seu. Se
	eu tivesse a tua idade e a tua grana procurava
	coisa melhor.
Sílvia volta. Senta.
	SÍLVIA
	Eu não posso dormir muito tarde.
	ANTUNES
	Vamos pedir a conta?
Antunes faz sinal para um garçon.
CENA 163 - FRENTE DO RESTAURANTE - EXTERIOR/NOITE
	André vê Sílvia e Feitosa se afastando na calçada. Ela dá uma
	olhadinha para trás e abana. Ele abana. Ele se vira para ir
	embora e dá de cara com Feitosa.
	FEITOSA
	E aí André? Roupa nova.
André vê que Feitosa tem uma arma na cintura.
	FEITOSA
	(olhando para Sílvia, que se afasta) É sua
	namorada?
	ANDRÉ
	Não. Amiga.
	FEITOSA
	Não? Melhor... Posso dar uma conferida.
	Gostosinha. Ela mora no Santa Cecília, não é? É
	perto da sua casa.
Feitosa arrasta André para um canto da rua, sem muita luz.
	ANDRÉ
	Li no jornal que você estava preso.
	FEITOSA
	Saí logo. Quem tem amigos, tem tudo.
	ANDRÉ
	É.
	FEITOSA
	Por exemplo... você. Você era meu amigo. Foi por
	isso que eu te vendi aquela arma, baratinho. Seis
	notas de cinqüenta, lembra?
	ANDRÉ
	Eu precisava muito da arma.
	FEITOSA
	Eu fiquei sabendo. Dois milhões. Sabe, eu achei
	incrível eles ligarem meu nome com aquela arma do
	assalto. Perguntei para uns amigos, me disseram
	que foi um telefonema, vê só. Tem gente ruim neste
	mundo.
	ANDRÉ
	O que você quer?
	FEITOSA
	O dinheiro do assalto, claro. Por que você acha
	que ainda tá vivo?
	ANDRÉ
	Eu te dou.
	FEITOSA
	Eu sei que sim. Vamos na sua casa buscar.
	ANDRÉ
	O dinheiro não está na minha casa. Acha que eu sou
	otário?
	FEITOSA
	Acho. Otário e cagalhão.
	ANDRÉ
	Está na casa de um amigo. Não dá para buscar
	agora. Eu te entrego amanhã.
	FEITOSA
	Você acha que EU sou otário?
	ANDRÉ
	Você acha que eu vou fugir? Você sabe onde eu
	moro, onde minha mãe mora.
	FEITOSA
	Onde a sua amiga mora.
	ANDRÉ
	Pois é. Eu não vou fugir. Te dou o dinheiro
	amanhã.
	FEITOSA
	Lá na ponte, na escada.
	ANDRÉ
	Não. Deste lado passa muita gente. É uma mala de
	dinheiro. Do outro lado. Na ponte, do outro lado.
	FEITOSA
	Que horas?
	ANDRÉ
	Nove da noite. Nove e quinze, no máximo.
	FEITOSA
	Te espero até nove e meia. Se você não aparecer,
	eu te busco. Busco todo mundo. Você, sua mãe e sua
	amiguinha.
	ANDRÉ
	Eu vou estar lá.
	FEITOSA
	Eu sei que sim. Você sempre foi cagalhão. Otário e
	cagalhão.
	Feitosa sorri para André e se afasta. André fica parado na
	calçada.
CENA 164 - APARTAMENTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	André entra em casa. Sua mãe está vendo televisão. André pega uma
	correspondência sobre a mesa e examina.
	ANDRÉ
	Mãe...
	APRESENTADORA
	Um lobo marinho pesando mais de meia tonelada foi
	a atração da praia no Cassino nesta quinta-feira.
Imagens do lobo encalhado, banhistas em volta.
	APRESENTADORA (VS)
	Pescadores acreditam que ele se perdeu numa
	corrente ou ficou trancado em alguma rede.
	ANDRÉ
	Mãe, eu vou viajar.
	APRESENTADORA (VS)
	Banhistas mantiveram a pele do visitante protegida
	do sol até a chegada dos bombeiros.
	MÃE
	Quando?
	ANDRÉ
	Amanhã.
	MÃE
	Para onde?
	APRESENTADORA (VS)
	Com cordas e tábuas, e muito esforço, pescadores e
	banhistas devolveram o morador a sua casa.
	ANDRÉ
	Para a Holanda. Tudo pago, vou ser padrinho de
	casamento da Marinês, lá da loja. O noivo dela
	mandou as passagens, ele é muito rico.
	MÃE
	Você volta quando?
	ANDRÉ
	Volto logo. São só uns dias. Mas eu vou deixar
	dinheiro para a senhora. Para o aluguel.
	PESCADOR
	Nossa senhora! O bicho tá precisando de um regime!
	MÃE
	E você tem roupa?
	APRESENTADORA
	(sorrindo) Boa noite.
	ANDRÉ
	Tenho.
Mãe se ergue, sai arrastando chinelo.
	MÃE
	Na Holanda é muito frio.
	ANDRÉ
	Eu tenho roupa.
	MÃE
	Você faz supermercado para mim, antes de viajar?
	ANDRÉ
	Faço.
	MÃE
	Esponja para lavar pratos, detergente, leite, pão,
	margarina, fósforos. Fiz uma lista, está na
	geladeira.
	ANDRÉ
	Eu compro.
	MÃE
	Boa noite, meu filho. Vou me deitar. Televisão me
	dá um sono.
	ANDRÉ
	Boa noite, mãe.
	CENA 165 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
	em paralelo com
	CENA 166 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO
	André, em sua mesa, termina de fazer um desenho. Um desenho de um
	triângulo com riscos verticais.
	André fica examinando o desenho. Larga o desenho. Pega a luneta e
	olha para o apartamento de Sílvia.
	Ela está sentada na cama, escrevendo alguma coisa com uma
	canetinha colorida.
	André tira o olho da luneta e abre a correspondência. É um
	cheque, de 50 reais. Junto com o cheque, uma carta e uma revista.
	A revista tem uma página marcada. Ele abre e vê, publicado, o
	desenho que ele fez do quarto de Sílvia, o desenho que ele deu de
	presente a ela.
André fica examinando o cheque, feliz. Pega outra vez a luneta.
	Sílvia larga a canetinha. Ergue o papel e olha diretamente para a
	câmera. No papel está escrito:
eu sei tudo
	André leva um susto, fecha sua janela, apaga a luz e esconde a
	luneta.
Fica parado alguns segundos. Volta a olhar pela janela.
Sílvia abana para ele. Mostra outro papel.
André pega a luneta. Olha. No papel está escrito:
	quero te ver
	agora
Sílvia troca o papel.
	Posso ir aí?
	Sim: pisque sua luz 3 vezes
	Não: pisque sua luz 15 vezes
André sorri, pensa um pouco. Se aproxima do interruptor.
CENA 167 - EDIFÍCIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/NOITE
	Entre dezenas de janelas, acesas e apagadas, a luz do quarto de
	André pisca três vezes.
	A rua está quase deserta. Um táxi passa, vazio. Um ônibus passa,
	quase vazio. Outro ônibus se aproxima e pára. Desce um casal. Se
	despedem de outro casal, que segue no ônibus. O casal que desceu
	do ônibus atravessa a rua, se afasta na direção do edifício de
	Sílvia. Sílvia se aproxima. Atravessa a rua. André está na
	calçada, esperando por ela. Eles sorriem. Se beijam.
CENA 168 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
André e Sílvia estão na cama de André. Silvia conta dinheiro.
	ANDRÉ
	Ele te contou? Ou você descobriu?
	SÍLVIA
	Ele me contou.
	ANDRÉ
	O que ele disse?
	SÍLVIA
	Que você era o assaltante. O cara que deu o tiro
	na perna dele.
	ANDRÉ
	E você?
Ela vai até a janela e, pela luneta, vê seu pai vendo televisão.
	SÍLVIA
	Não disse nada. Foi aí que eu entendi a sua cara,
	lá no restaurante. Ele te falou que sabia, não
	falou?
	ANDRÉ
	Falou.
	SÍLVIA
	Ele vai ficar atrás de nós. Não adianta fugir.
	ANDRÉ
	É melhor dar o dinheiro para ele.
	SÍLVIA
	Ele vai gastar o dinheiro, vai acabar sendo preso
	e te entregando.
	ANDRÉ
	Não tô falando do dinheiro do assalto. A gente
	pode dar o dinheiro do prêmio.
Ficam se olhando, alguns segundos.
	SÍLVIA
	Eu prefiro matar ele.
	ANDRÉ
	Ele é seu pai.
	SÍLVIA
	E aí?
	ANDRÉ
	Como, e aí? Você não pode matar seu pai.
	SÍLVIA
	Por que não?
	ANDRÉ
	Porque ele é seu pai. Sem ele, você não existia.
	SÍLVIA
	Gratidão. É isso? Eu tenho que ser eternamente
	grata a ele por ter dormido com a minha mãe, há
	trinta anos. Ele nem queria que ela me tivesse. E
	ela queria que eu não fosse dele. Ela era louca
	por outro cara, um lindo. Ela tinha uma foto dele,
	que ela recortou do jornal. Ele era artista. Se
	mudou para o Rio. Minha mãe achava que eu era
	filha dele. Eu também acho. Mas ele foi embora.
	Ela estava noiva. Casou. Ela morreu moça, quarenta
	e dois. Fumava muito. Ele é um escroto. Você
	acredita que ele me espia pelo buraco da fechadura
	quando eu entro no banho?
	ANDRÉ
	Acredito.
	SÍLVIA
	E eu posso matar ele, sim.
Sílvia volta para a cama.
	SÍLVIA
	Esse dinheiro é seu. Vamos matar ele e fugir. Para
	o Rio. O que é que você faz? Além de desenhar e
	assaltar bancos.
	ANDRÉ
	Eu sou operador de fotocopiadora.
	SÍLVIA
	Hummm... que bonito. Você quer casar comigo? Eu
	sempre sonhei em me casar com um operador de
	fotocopiadora.
	ANDRÉ
	Caso.
	SÍLVIA
	Quando?
	ANDRÉ
	Depois de amanhã.
	SÍLVIA
	Por que não amanhã?
	ANDRÉ
	Amanhã tenho que resolver um problema.
CENA 169 - ESCADARIAS DA PONTE - EXTERIOR/NOITE
	André está parado em frente a uma placa. Tem uma sacola na mão.
	Olha a placa. Olha o relógio. Sai caminhando, começa a subir as
	escadas. Na placa se lê:
	horários de abertura da ponte:
	06:30 / 11:30 / 16:30 / 21:30
CENA 170 - PONTE, LADO DE GUAÍBA - EXTERIOR/NOITE
	André caminha pela ponte. Se aproxima da cabeceira da ponte. Vê
	Feitosa, escondido perto de um mato. Olha para os lados e se
	aproxima de Feitosa.
	FEITOSA
	Você está atrasado.
	ANDRÉ
	Achei que tinha alguém me seguindo.
	FEITOSA
	Trouxe?
	ANDRÉ
	Quer conferir?
	FEITOSA
	Claro.
	Feitosa pega a bolsa com o dinheiro. Abre. Examina, mas o local é
	um pouco escuro.
	ANDRÉ
	Está tudo aí. Eu vou embora.
André começa a se afastar.
	FEITOSA
	Calma aí.
	Feitosa examina o dinheiro. Um navio se aproxima pelo rio. O
	navio apita.
	ANDRÉ
	Eu tenho que ir.
	FEITOSA
	Aqui não têm dois milhões.
André sai correndo.
	FEITOSA
	Ei!
	Feitosa sai correndo atrás dele. Feitosa atrasa-se fechando a
	mala. Volta a correr.
	As cancelas da ponte abaixam. André ganhou uma boa dianteira e
	continua correndo. O navio está próximo da ponte, que começa a
	subir.
	Feitosa pega a arma. Vê o vigia da ponte, ao longe. Feitosa
	guarda a arma.
	André pula a primeira cancela. O vigia põe a cara para fora da
	janela. André pula sobre o vão móvel da ponte, que continua
	subindo.
Feitosa pula a primeira cancela.
André salta do vão erguido da ponte, do outro lado.
	Feitosa salta e consegue subir no vão, que continua subindo.
	André pula a cancela do outro lado.
André corre na direção da escada.
	Feitosa salta do vão móvel, deixa cair a sacola. O navio passa
	sob a ponte e apita. Feitosa recolhe a sacola.
André chega na escada. Começa a descer, correndo.
Feitosa chega na escada, já com a arma em punho.
	André continua descendo mas ainda não chegou nem no meio da
	escada.
	Feitosa vê o monte de areia, lá embaixo. Feitosa olha para André
	e sorri. Feitosa olha para o monte de areia e salta.
André pára de correr e olha para Feitosa.
Feitosa, enquanto cai, olha para André e sorri.
	André, sério, olha para Feitosa e para o monte de areia. André
	olha outra vez para Feitosa.
	Feitosa fica sério e olha para o monte de areia. Volta a olhar,
	sério, para André.
André olha para Feitosa.
Feitosa grita:
	FEITOSA
	Cagalhão!
CENA 171 - QUADRINHOS
	Insert do desenho de André, o monte de areia, recheado de varas
	de madeira (aquele triângulo com listas verticais) visto de lado
	e de cima. Mairoldi está espetado nas varas, morto, o sangue
	jorrando, misturado com o dinheiro.
CENA 172 - PONTE, LADO DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR/NOITE
	André caminha, mãos no bolso. Na escada da ponte, ao fundo, o
	vigia desce as escadas.
	ANDRÉ (VS)
	Cagalhão eu até posso ser, mas otário eu não sou.
	Eu disse que era perigoso pular. Mesmo sem as
	varas dentro da areia, era perigoso pular. Ele
	pulou porque quis.
CENA 173 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE
	André, Sílvia e Marinês estão sentados. Cardoso chega, mascando
	um chiclete.
	CARDOSO
	Não achava um lugar para estacionar.
Marinês puxa-o pela manga. Ela cheira a boca dele.
	CARDOSO
	Que foi?
	MARINÊS
	Faz assim: Rááh... (ela abre a boca e exala o ar
	sobre o nariz dele).
	CARDOSO
	Para quê?
	MARINÊS
	Faz!
	Ele solta o ar, pela boca, sobre o nariz dela. Ela cheira,
	desconfiada.
	ANDRÉ
	Essa é a Sílvia.
	CARDOSO
	Oi.
	SÍLVIA
	Oi.
	CARDOSO
	Você fuma?
	SÍLVIA
	Não.
	CARDOSO
	Nem eu. Vinte dias, amanhã.
	SÍLVIA
	Parabéns.
	CARDOSO
	Obrigado.
	ANDRÉ
	Eu tenho um plano. Não é muito bom. Mas eu não
	consegui pensar em nada melhor.
	CARDOSO
	Por que a gente simplesmente não dá o dinheiro
	para o pai dela? Não o nosso dinheiro. O dinheiro
	do banco.
	ANDRÉ
	Metade eu nem tenho mais.
	MARINÊS
	E a polícia tem o número das notas. Se ele começa
	a gastar, acabam prendendo ele.
	CARDOSO
	Me desculpe, mas... e aí? A gente já vai estar
	longe.
	ANDRÉ
	E é claro que ele me entrega, se for preso. Não
	quero ficar fugindo. A outra opção é dar a ele
	parte do nosso dinheiro. O dinheiro do prêmio.
	CARDOSO
	Não.
	SÍLVIA
	Nem pensar. Ele vai querer mais. Vai querer tudo.
Pausa.
	MARINÊS
	Como é o seu plano?
CENA 174 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/DIA
	Silvia escreve uma carta. Cardoso põe a carta num envelope, fecha
	o envelope, escreve um bilhete e põe tudo dentro de um outro
	envelope. André põe o envelope no correio.
	ANDRÉ (VS)
	A Silvia escreve uma carta para o pai dela, como
	se estivesse no Rio. A gente põe a carta num
	envelope, fecha o envelope, ela escreve um bilhete
	para um amigo no Rio mandar a carta de lá, para
	ter o carimbo do correio do Rio, com a data.
CENA 175 - CASA DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA
	André pega algumas cópias ruins do dinheiro falso. Mistura o
	dinheiro falso ao dinheiro roubado do banco que ainda resta e põe
	tudo numa sacola.
	ANDRÉ (VS)
	Eu pego algumas cópias bem ruins do dinheiro
	falso. Misturo o dinheiro falso com um pouco do
	dinheiro roubado do banco.
CENA 176 - TERRENO BALDIO - EXTERIOR/DIA
	Despeja o dinheiro no chão. Derrama álcool sobre o dinheiro e
	acende um fósforo. O dinheiro queima.
	ANDRÉ (VS)
	O resto do dinheiro roubado eu queimo.
CENA 177 - LOJA DE CARDOSO - INTERIOR/DIA
Cardoso põe dinheiro numa maleta. Pega uma galinha.
	ANDRÉ (VS)
	O Cardoso põe o dinheiro numa maleta. E consegue
	uma galinha.
	CARDOSO (VS)
	Pra que essa galinha?
	ANDRÉ (VS)
	Calma.
CENA 178 - BAR - INTERIOR/FIM DE TARDE
	Marinês veste uma roupa ultra sexy e conversa com Antunes no bar.
	Ele faz menção de ir embora mas ela o detém.
	ANDRÉ (VS)
	A Marinês segura o velho no bar o maior tempo
	possível.
CENA 179 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/FIM DE TARDE
	Sílvia abre a porta do apartamento para Cardoso e André. Os dois
	estão de luvas. Sílvia, na cozinha de sua casa, esvazia a
	geladeira. André experimenta o botão que acende a luz da
	geladeira. Liga e desliga a luz. Desliga a geladeira da tomada e
	quebra a lâmpada. Cardoso vai até o fogão, desliga o registro do
	botijão de gás e corta o cano plástico que liga o botijão ao
	fogão. Cardoso e André pegam o botijão e põe dentro da geladeira.
	Silvia abre o registro do botijão, fecha bem a geladeira. André,
	com cuidado, liga a geladeira na tomada.
	ANDRÉ (VS)
	Sílvia abre a porta para nós e esvazia a
	geladeira. Eu preparo a bomba. O Cardoso corta o
	cano do botijão. A gente põe o botijão dentro da
	geladeira, abre o registro do botijão, fecha bem a
	geladeira. E liga a geladeira na tomada. Com
	cuidado.
	Silvia esconde todo o conteúdo da geladeira na máquina de lavar
	roupas, menos uma lata de cerveja que ela coloca no chão, bem em
	frente à porta. Cardoso põe a galinha dentro do armário da sala.
	André e Cardoso saem. Sílvia dá uma última olhadinha para a sala
	e cospe no sofá de Antunes. sai e fecha a porta.
	ANDRÉ (VS)
	Tudo que está na geladeira a gente esconde na
	máquina de lavar. Menos uma coisa qualquer que ele
	goste, que a gente deixa na frente da geladeira,
	no chão. A gente põe a galinha na sala, dentro do
	armário. E vai embora.
	CARDOSO (VS)
	Para que a galinha?
	ANDRÉ (VS)
	Você vai ver.
CENA 180 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	Antunes chega em casa, entra na cozinha e fareja o cheiro de gás.
	Vai até o fogão, mas todos os registros parecem fechados.
CENA 181 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE
	André, Cardoso, Sílvia e Marinês se encontram na frente do
	prédio.
	ANDRÉ (VS)
	A gente se encontra os quatro na frente do prédio
	e liga para os bombeiros.
Na frente do prédio, André fala num telefone e público.
	ANDRÉ
	... um cheiro de gás fortíssimo! (...) Obrigado.
Os quatro se aproximam do carro.
	ANDRÉ (VS)
	E aí a gente se manda para o Rio.
	MARINÊS
	Deixa que eu dirijo.
	CARDOSO
	A chave está com você.
	MARINÊS
	Não, a chave está na sua bolsa, junto com a sua
	carteira.
Eles param e se olham. Ninguém carrega bolsa nenhuma.
CENA 182 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	Antunes vê a lata de cerveja no chão, ao lado da bolsa de
	Cardoso. Estranha e examina a lata e a bolsa. Vai abrir a
	geladeira. Toca o interfone.
Ele vai até o interfone. Atende.
	CARDOSO (VS)
	Não faça nada! Não se mova!
	ANTUNES
	Quem é?
	CARDOSO (VS)
	É o Cardoso, o senhor não me conhece. A Sílvia
	está subindo. Não saia do interfone. Fique parado!
	ANTUNES
	Por quê?
	Sílvia entra correndo na cozinha, seguida de André. Antunes
	desliga o interfone.
	ANTUNES
	O que está acontecendo?
	SÍLVIA
	Vamos para a sala.
	ANDRÉ
	Nós precisamos conversar. Os três.
Cardoso e Marinês chegam.
	CARDOSO
	Minha bolsa.
Cardoso pega a bolsa.
	ANDRÉ
	Os cinco. Desculpa, eu não lhe apresentei o
	Cardoso e a Marinês. Eles são meus... sócios.
	ANTUNES
	O que vocês querem?
	ANDRÉ
	Uma cerveja. A gente esqueceu esta cerveja. Junto
	com a bolsa. E o Cardoso esqueceu a geladeira
	ligada.
	ANTUNES
	A geladeira ligada?
	ANDRÉ
	Exatamente. A gente viu que a geladeira está com
	um problema.
	ANTUNES
	Que tipo de problema?
	ANDRÉ
	Um problema no motor, tem que deixar ela
	desligada. A geladeira está vazando gás. Não
	sentiu o cheiro? E é por isso que a gente voltou.
	Para pegar a cerveja, a bolsa. E para o Cardoso
	desligar a geladeira. Com cuidado.
	CARDOSO
	Eu?
	ANDRÉ
	É. Com cuidado.
	Cardoso, sem alternativa, se abaixa para desligar a geladeira.
	Segura a flecha, junto a tomada. Fecha os olhos. Puxa o fio,
	desligando a geladeira. O motor pára. Cardoso suspira aliviado
André pega a cerveja e a bolsa e vai saindo.
	ANDRÉ
	É melhor deixar assim, desligada, e chamar a
	assistência técnica. Nós vamos indo. Vamos?
Os quatro vão saindo.
	ANTUNES
	E quando é que a gente resolve aquele nosso
	assunto?
	ANDRÉ
	Amanhã. Amanhã sem falta. Boa noite.
	SÍLVIA
	(para Antunes) Não precisa me esperar.
CENA 183 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE
Os quatro se aproximam do carro.
	ANDRÉ
	(para Sílvia) Como é que você vai explicar que a
	comida foi parar dentro da máquina de lavar...
CENA 184 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	Antunes entra na cozinha, com a lata de cerveja na mão. Aproxima-
	se da geladeira.
	ANDRÉ (VS)
	...e o botijão de gás dentro da geladeira?
CENA 185 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE
Os quatro se acomodam no carro.
	CARDOSO
	E a galinha?
	SÍLVIA
	Eu não vou explicar nada. Liguei a geladeira outra
	vez.
CENA 186 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	O fio da tomada, ligado. Antunes abre a geladeira. A luz,
	quebrada, acende e incendeia.
CENA 187 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE
Uma grande explosão, ao fundo, destrói o apartamento.
	SÍLVIA
	Vamos embora?
O carro se afasta, cruzando com os bombeiros que se aproximam.
CENA 188 - APARTAMENTO DE SÍLVIA/INTERIOR - DIA
	O inspetor Cecílio verifica a cena do crime, um apartamento
	completamente destruído.
	CARDOSO (VS)
	"Segundo o inspetor Cecílio, foi encontrado no
	local parte do dinheiro roubado na agência da
	Presidente Roosevelt, além de falsificações de
	cinqüenta reais e uma galinha. A galinha, que
	estava dentro do armário da sala, sobreviveu a
	explosão". Eles falam mais da galinha que do
	morto.
	ANDRÉ (VS)
	Eles adoram história com bicho.
CENA 189 - ALTO DO CORCOVADO - INTERIOR/DIA
	Cardoso fecha o jornal. Os quatro ficam parados, lado a lado,
	olhando para frente alguns segundos.
	CARDOSO
	O que você achou? Legal, né?
	MARINÊS
	Interessante. Um pouco ventoso.
	ANDRÉ
	Vamos embora?
	Os quatro estão no alto do Corcovado, o Rio numa tarde de sol ao
	fundo. Eles sobem as escadas na direção da estátua. Sílvia fica
	para trás. André olha para cima, para o Cristo. Nuvens esparsas
	cruzam o céu por trás do Redentor, braços abertos sobre a
	Guanabara.
Fade-Out.
Letreiro: A História de Sílvia em Seis Minutos.
CENA 190 - ALTO DO CORCOVADO - INTERIOR/DIA
Sílvia caminha no alto do Corcovado, olhando para cima.
	SÍLVIA (VS)
	Meu nome é Sílvia Maria, mas o Maria eu não uso.
CENA 191 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	Sílvia de pijama, em sua sala, luz apagada. Ela vê André na
	janela do seu quarto, de binóculo.
	SÍLVIA (VS)
	A primeira vez que eu vi o André ele estava me
	espiando da janela do quarto dele. Eu fui até a
	sala, no escuro, e vi que ele estava na janela, de
	binóculo, olhando para o meu quarto.
CENA 192 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
Sílvia em seu quarto, desfila de calcinha e sutiã.
	SÍLVIA (VS)
	Voltei para o quarto, abri uma fresta na janela,
	botei uma calcinha nova e passei na fresta, bem
	devagar. Depois corri para a sala para ver se ele
	tinha visto. Ele tava durinho na janela.
CENA 193 - FRENTE DO PRÉDIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/DIA
Sílvia na rua, seguindo André, que sai de seu prédio.
	SÍLVIA (VS)
	No outro dia acordei cedo e fiquei esperando ele
	sair do prédio. Segui ele até a papelaria.
CENA 194 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA
	André está fazendo cópias e lendo algo. Marinês vem atender
	Sílvia, mas ela finge que olha uma revista e sai.
	SÍLVIA (VS)
	Entrei, mas ele não me viu. Estava lendo,
	concentrado. Achei bonitinho. Fui embora.
CENA 195 - FRENTE DO PRÉDIO DE SÍLVIA - EXTERIOR/DIA
Sílvia vê que André a segue pela rua.
	SÍLVIA (VS)
	Uns dias depois achei que ele estava me seguindo
	na rua. Corri para pegar o ônibus, só para
	confirmar.
CENA 196 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA
Sílvia percebe que André a segue dentro do ônibus.
	SÍLVIA (VS)
	Estava mesmo. Subi um pouco a saia e abri um botão
	da blusa. Passei roçando nele.
CENA 197 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA
	Sílvia, através da vitrine da loja, vê André rondando pela
	calçada.
	SÍLVIA (VS)
	Ele me seguiu até a loja. Ficou horas fazendo
	volta para entrar.
Sílvia atende André na loja.
	SÍLVIA (VS)
	Acabou entrando e inventando um presente para a
	mãe. Achei mais bonitinho ainda.
	SÍLVIA
	Você pode me dar dois pré-datados pelo chambre.
	ANDRÉ
	É? Hmm, legal. De repente... eu volto. Silvia, não
	é?
	SÍLVIA
	Isso.
	ANDRÉ
	Tá bom. Obrigado, hein?
	SÍLVIA
	Obrigado a você.
	SÍLVIA (VS)
	Ele disse um "Obrigado" assim, automático, sem
	olhar para mim. Tive certeza que ele não ia
	aparecer nunca mais. Respondi "Obrigado a você",
	assim olhando para baixo, para ele não perceber
	que eu estava interessada.
CENA 198 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA
Sílvia vê André pelo reflexo da vitrine e entra no restaurante.
	SÍLVIA (VS)
	Passei a almoçar perto da loja, para ele poder me
	seguir até o restaurante.
CENA 199 - ÔNIBUS - EXTERIOR/NOITE
	Sílvia vê que André está entrando no ônibus e disfarça, finge que
	está lendo um livro.
	SÍLVIA (VS)
	Troquei de ônibus, para ver se me encontrava com
	ele. Deu certo
CENA 200 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
Sílvia, em sua cama, lê.
	SÍLVIA (VS)
	Eu queria namorar alguém que me tirasse daquela
	casa. Minha mãe morreu quando eu tinha onze anos.
Sílvia, entra no banheiro. O pai se aproxima para espiar.
	SÍLVIA (VS)
	Meu pai era tarado e ficava me olhando no banho.
CENA 201 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	Ponto de vista de Antunes, pelo buraco da fechadura, parece ser
	uma mulher nua. Na verdade, é a mão fechada de Sílvia, muito
	próxima da fechadura.
	SÍLVIA (VS)
	Felizmente ele era bastante míope.
Sílvia cobre a fechadura com uma toalha.
	SÍLVIA (VS)
	O pior é que ele pegava dinheiro na minha bolsa.
CENA 202 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
Sílvia, na loja, vê a foto de Paulo no jornal..
	SÍLVIA (VS)
	Minha mãe tinha um namorado, que eu queria que
	tivesse sido o meu pai. Para mim ele foi.
CENA 203 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
	Sílvia, na janela de seu quarto, olha o cartão postal do
	Corcovado.
	SÍLVIA (VS)
	Acho que para ela também. Ele mora no Rio.
CENA 204 - PRAÇA NA BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA
Sílvia e André se beijam na beira do rio.
	SÍLVIA (VS)
	Tudo o que eu queria é que o André tivesse
	dinheiro para me tirar dali e me levar para o Rio.
CENA 205 - RESTAURANTE CHIC - INTERIOR/NOITE
André - Sílvia e Antunes jantam no restaurante.
	SÍLVIA (VS)
	Aí aconteceram três coisas ótimas: o André
	assaltou um banco, deu um tiro na perna do meu pai
	e me convidou para ir para o Rio.
CENA 206 - FRENTE DO RESTAURANTE - EXTERIOR/NOITE
	Antunes e Sílvia - na calçada do restaurante, se afastam de
	André. Sílvia se vira, chega a ver Feitosa que se aproxima de
	André, ao fundo.
	SÍLVIA (VS)
	Aí ele quis tirar o dinheiro do André.
CENA 207 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE
Sílvia e André na cama.
	SÍLVIA (VS)
	Eu disse para o André que sabia de tudo, mas não
	contei que já sabia que ele era operador de
	fotocopiadora. Ele me contou do assalto e que
	ganhou na loteria. Pedi ele em casamento. Ele
	aceitou.
CENA 208 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
Sílvia escreve o bilhete para Paulo.
	SÍLVIA (VS)
	Escrevi para o namorado da minha mãe. Marquei com
	ele no Rio, no alto do Corcovado, para não dar
	desencontro.
CENA 209 - ALTO DO CORCOVADO - INTERIOR/DIA
Sílvia caminha no alto do Corcovado. PAULO, 60 anos, se aproxima.
	SÍLVIA (VS)
	Achei que ele não vinha mais.
	PAULO
	Sílvia?
	SÍLVIA
	Paulo.
Se abraçam, carinhosos.
	PAULO
	Menina, você é a cara da sua mãe!
	SÍLVIA
	Ela falava muito do senhor.
	PAULO
	Senhor não, pelo amor de deus. (aponta para o
	Cristo) Senhor é ele.
	SÍLVIA
	Ela tinha uma foto sua. Eu guardei.
Mostra a velha foto de Paulo no jornal.
	PAULO
	Olha como eu tinha cabelo, que beleza!
André, Cardoso e Marinês se aproximam.
	SÍLVIA
	Esse é o André, meu namorado. Este é o Paulo,
	amigo da minha mãe que eu te falei. Esta é a
	Marinês... e o Cardoso.
	CARDOSO
	Tudo bem?
	PAULO
	Chegaram quando?
	MARINÊS
	Ontem.
	PAULO
	Estão com fome?
	CARDOSO
	Um pouco.
	PAULO
	Querem comer o quê? Gostam de peixe?
	Os cinco descem as escadas na direção do estacionamento. Nuvens
	esparsas cruzam o céu por trás do Redentor, braços abertos sobre
	a Guanabara.
FIM
*******************************************************************
	(c) Jorge Furtado, 2001-2003
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
01/01/2001
| Anexo | Tamanho | 
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