SAL DE PRATA - texto inicial

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               SAL DE PRATA
               roteiro de Carlos Gerbase
               10º tratamento - 13/05/2004

               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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CENA 1. QUARTO - INTERIOR - DIA

Garota (interpretada por CASSANDRA, 30 anos) de quem só vemos o
rosto e os ombros nus, dá o texto abaixo, olhando para a câmara.
Desde o começo, é óbvio que alguma coisa estranha está
acontecendo com ela.

               GAROTA
               Nós gostaríamos muito que esse filme fosse censura
               livre, por uma questão comercial. No Brasil, as
               crianças e os jovens representam quarenta por
               cento da bilheteria. Por isso, não há cenas de
               violência.

Garota geme baixinho e fecha os olhos rapidamente.

               GAROTA
               Também não há cenas com drogas. Talvez apareça
               alguém bebendo uma cerveja, ou fumando um cigarro,
               mas isso pode, né? Ser alcoólatra e morrer de
               câncer não têm problema: o governo recolhe imposto
               e tudo.

Garota respira fundo antes de continuar.

               GAROTA
               Esse filme não tem o que a censura chama de sexo
               explícito. As cenas de nudez estão de acordo com o
               que aparece nas novelas. O roteiro tem alguns
               palavrões, mas isso faria o filme ser proibido
               para menores de doze anos, no máximo.

Garota olha para baixo, parece que vai desistir, mas volta a
encarar a câmara.

               GAROTA
               Mas tem outro problema: nós estamos, sem dúvida
               nenhuma, deturpando os valores morais e éticos da
               sociedade. Isso fará com que esse filme seja
               proibido para menores de dezesseis anos,
               prejudicando muito a nossa bilheteria.

Garota faz nova pausa e tenta sorrir.

               GAROTA
               Por isso estamos bem felizes com a presença de
               vocês assistindo ao nosso filme. Vocês são uma
               prova de que é possível fazer cinema sem pensar
               apenas em questões comerciais.

Garota interrompe o sorriso e começa a ofegar fortemente.

               GAROTA
               Sei que isso é um baita lugar-comum, mas nós
               gostaríamos que vocês tivessem o mesmo prazer
               vendo o filme que nós tivemos ao fazê-lo.

Garota fecha os olhos e abre a boca. Seus músculos faciais se
contraem, seu pescoço forma um arco. Ela coloca as costas da mão
sobre a boca, contendo um grito.

               GAROTA
               Eu amo deturpar valores éticos e morais. O cinema
               não faz o menor sentido se não deturpar valores
               éticos e morais. É ou não é? ("desmonta" a
               personagem, olha pra baixo, sorri; olha pra a
               câmara outra vez) Corta!

CENA 2. RUAS DO BAIRRO MOINHOS DE VENTO/FACHADA DO EDIFÍCIO DE
CÁTIA þ EXTERIOR þ FIM DO DIA

Créditos iniciais superpostos.

Iluminadas pelos últimos raios do sol, as ruas do bairro Moinhos
de Vento (classe média alta) estão cheias de carros e de pessoas.
No Parcão, há muita gente caminhando e correndo. Um casal se
beija, apaixonado. Na rua Padre Chagas, os cafés e bares estão
lotados.

Um carro bacana aproxima-se de um edifício residencial e entra no
acesso à garagem. CÁTIA (30 anos) pára o carro e aciona o
controle remoto. A porta da garagem começa a abrir. Toca o
celular. Cátia olha o número de quem fez a ligação e atende.

               CÁTIA
               Ôi, Cristóvão. (...) Toparam? (...) Finalmente!
               (...) Não, não posso voltar agora. (...) Tenho
               compromisso. (...) É importante, sim. (...) Eu sei
               da nossa responsabilidade. Amanhã eu faço a
               transferência.

Um carro importado pára atrás do carro de Cátia e buzina.

               CÁTIA
               Não te preocupa. (...) Olha, eu tô no trânsito.
               Depois eu te ligo. (...) Tchau.

Cátia desliga e sorri, sem muito entusiasmo.

CENA 3. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DO DIA

Créditos iniciais superpostos.

VERONESE (45 anos), vestido com certa displicência, está sentado
em sua escrivaninha, à frente de um computador portátil, que
divide o espaço da mesa com uma impressora. Veronese olha para a
tela. Batuca com os dedos no teclado. mas não escreve nada.
Pensa.

Finalmente, começa a escrever. Abre um sorriso. Clica no "Enviar"
do programa de correio eletrônico. Olha para o relógio de pulso.
Pega uma jaqueta e sai do quarto, sem desligar o computador.

CENA 4. FACHADA DO EDIFÍCIO DE VERONESE/BAIRRO CIDADE BAIXA þ
EXTERIOR þ FIM DO DIA

Créditos iniciais superpostos.

Veronese sai de um edifício antigo, mal-conservado, e fecha a
porta atrás de si. Começa a caminhar. Parece feliz. Numa parada
de ônibus, faz sinal. Um ônibus pára. Ele entra.

CENA 5. APTO. DE CÁTIA/SALA þ INTERIOR þ FIM DO DIA

Créditos iniciais superpostos.

Cátia entra na sala þ grande, bem iluminada, decorada com
elegância, mas certa frieza -, enrolada numa toalha, com os
cabelos numa touca de banho. Um celular está tocando. Ela abre
uma bolsa, em cima do sofá, olha o visor e atende.

               CÁTIA
               Ôi, Jane. (...) Eu também fiquei feliz. (...)
               Claro. Doze milhões é muito dinheiro. (...) Não
               posso sair com vocês. (...) Sei. Desculpa, Jane.
               (...) Comemorem por mim. Amanhã a gente se fala.
               (...) Tchau.

Cátia desliga e olha para a janela. A noite cai na cidade.

CENA 6. AV. GETÚLIO VARGAS þ EXTERIOR þ COMEÇO DO NOITE

Créditos iniciais superpostos.

O ônibus da cena 4 pára na avenida Getúlio Vargas. Veronese
desembarca. Um VENDEDOR DE LOTERIA (50 anos) oferece bilhetes da
Mega-Sena para Veronese, que pega um dinheiro no bolso e compra
um bilhete. Antes de sair, sorri e bate no ombro do vendedor. O
ônibus arranca.

CENA 7. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ NOITE

Créditos iniciais superpostos.

Cátia, sentada na cama, de sutiã e calcinha, está colocando uma
meia 3/4 preta. O celular toca. Ela olha para o visor e não
atende. Desliga o celular. Começa a colocar a outra meia.

CENA 8. RUA DO BAIRRO MENINO DEUS/FACHADA DA APCG - EXTERIOR -
NOITE

Créditos iniciais superpostos (final).

Veronese caminha por uma rua pouco movimentada. Entra num sobrado
de dois andares. Há duas placas na fachada. Uma maior: "SINDICATO
DOS ELETRICITÁRIOS DO RIO GRANDE DO SUL". E uma menor:
"ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL DOS CINEASTAS GAÚCHOS".

CENA 9. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ SALA þ NOITE

Cátia, já vestida e maquiada, saltos altos, olha para um espelho
de corpo inteiro e examina o figurino: sensual e elegante. Mas
não parece satisfeita. Está nervosa com alguma coisa. Senta na
cama. Olha para o espelho e começa a falar para um interlocutor
imaginário.

               CÁTIA
               Eu tô feliz. Muito feliz mesmo. Mas eu tenho uma
               coisa pra te contar. (pausa) Uma coisa importante.
               Quer dizer, não é importante em relação...
               (hesita) ...a nós. (pausa) Eu decidi te contar
               agora porque... (respira fundo) Meu amor,
               aconteceu o seguinte...

CENA 10. AUDITÓRIO - INTERIOR - NOITE

Num pequeno auditório (perto de 60 lugares), paredes decoradas
com cartazes de campanhas salariais dos eletricitários e de
filmes brasileiros da década de 80, 25 CINEASTAS (20 homens, 5
mulheres) estão reunidos.

Dois deles estão sentados atrás de uma mesa voltada para a
platéia, bem à frente, enquanto os demais espalham-se pelas
cadeiras disponíveis. Veronese está no centro da sala, de pé,
falando, um pouco irritado.

               VERONESE
               Isso já foi discutido na semana passada.

HOLMES (30 anos), com um corte de cabelo muito esquisito e óculos
de fundo de garrafa, está num canto perto da janela.

               HOLMES
               Exatamente.

JOÃO PAULO (40 anos), elegante, cabelo impecavelmente penteado
com gel, está perto de Veronese, uma fileira à frente. João Paulo
vira-se para Holmes, agressivo.

               JOÃO PAULO
               Tu não tá inscrito, Holmes.

               HOLMES
               Não tô mesmo. (pequena pausa) Mas vai te fuder,
               antes que eu me esqueça.

Cassandra, vestida com simplicidade, está duas fileiras à frente
de Veronese, no canto oposto ao de Holmes, olhando na direção da
briga. Perto dela está MIRABELA (45 anos), alta, atlética.

               CASSANDRA
               Calma, pessoal!

VALDO (40 anos), na segunda fileira, cansado e aborrecido, vira-
se para Veroness.

               VALDO
               Pode concluir o teu raciocínio, Veronese?

               VERONESE
               Num concurso com tão pouca verba, não faz sentido
               a gente impedir o uso de tecnologias que barateiam
               a produção. Era um ponto pacífico...

               VALDO
               (cortando) Mas não foi votado.

               JOÃO PAULO
               Não foi mesmo. E agora eu tô em dúvida.

               HOLMES
               (irônico) Ficou em dúvida depois de conversar com
               o Valdo?

               JOÃO PAULO
               (agressivo) Não. Depois de conversar com a tua
               mãe.

GERALDO (25 anos), um dos dois cineastas da mesa, levanta a mão,
num gesto pacificador. Olha para o seu relógio de pulso, colocado
sobre a mesa, bem à sua frente.

               GERALDO
               Chega! O Veronese ainda tem dois minutos.

               VERONESE
               (lentamente) É uma bobagem exigir que o curta seja
               feito em película. Nós podemos fazer mais
               filmes...

               JOÃO PAULO
               Um monte de filmes de merda...

               HOLMES
               Merda também se faz em trinta e cinco!

               JOÃO PAULO
               Mas o vídeo aumenta a produção de merda. O vídeo é
               o laxante do cinema.

               GERALDO
               (para João Paulo e Holmes) Chega! Conclui,
               Veronese.

Enquanto Veronese fala, CÁTIA entra pelos fundos e vai sentar-se
na última fileira, bem no canto da sala, em que não há mais
ninguém.

               VERONESE
               Achar que cinema é sinônimo de filme é o mesmo que
               achar que literatura é sinônimo de caneta.

               VALDO
               Concluiu?

               VERONESE
               Concluí.

Veronese senta.

               VALDO
               (para Geraldo) Então agora eu tenho a palavra,
               certo?

Geraldo assente com a cabeça. Valdo levanta e olha para a
platéia.

               VALDO
               Se não foi votado, não foi decidido. Esse concurso
               é de cinema, não de vídeo. Tem que filmar de
               verdade, tem que usar sal de prata. Se não, não é
               cinema.

Várias manifestações ao mesmo tempo. Confusão.

               VALDO
               (gritando) Vamos votar, pô!

               JOÃO PAULO
               (também gritando) Sal de prata! Sal de prata!

Veronese levanta-se.

               VERONESE
               Isso é manobra! Manobr...!

Veronese faz uma careta de dor, curva-se e leva a mão ao peito.
Cátia percebe que aconteceu alguma coisa e olha para ele,
apreensiva. No rosto de Veronese, surgem gotas de suor.

               VERONESE
               (quase sussurrando) Tava decidido.

               JOÃO PAULO
               Ô, Geraldo, bota ordem nessa merda.

Cátia levanta-se e caminha na direção de Veronese, preocupada.

               HOLMES
               (gritando) Vocês querem ir contra a história? Sal
               de prata já era!

               GERALDO
               Silêncio! Silêncio, por favor.

Veronese respira fundo. Está encharcado de suor. Leva outra vez a
mão ao peito e olha para os lados, confuso. Percebe que Cátia
está vindo em sua direção. Sorri para ela. No meio do sorriso,
sua boca abre, num esgar de dor. Fecha os olhos e cai.

Cátia grita e corre na direção de Veronese. Cassandra e João
Paulo notam que alguma coisa aconteceu e olham para trás.
Veronese está estendido no chão, de bruços. João Paulo levanta-
se, preocupado.

               GERALDO
               (sem entender nada) Calma, pessoal! Calma!

João Paulo, Cassandra e Cátia chegam em Veronese ao mesmo tempo e
agacham-se junto ao corpo. João Paulo tenta virar o corpo de
Veronese, que geme.

               VERONESE
               (baixinho) Tá doendo.

               CÁTIA
               Um médico... Uma ambulância, pelo amor de Deus!

Mirabela, Holmes e Valdo aproximam-se, preocupados. João Paulo
levanta-se, pega seu celular e começa a discar. Valdo ajoelha-se
ao lado de Veronese e olha para Cátia, preocupado. Cassandra
segura a mão de Veronese, gesto percebido por Cátia.

               CASSANDRA
               Veronese, o que foi?

Valdo consegue virar Veronese para uma posição mais confortável.
Ele abre os olhos. Cátia e Cassandra estão bem à sua frente. Ele
sorri para Cassandra, mas fala para Cátia.

               VERONESE
               (baixinho, quase um sussurro) Ôi, querida. (pausa;
               respira fundo) Eu te amo muito.

Veronese fecha os olhos e, outra vez, parece sentir muita dor.
Cátia começa a chorar.

CENA 11. AMBULÂNCIA - INTERIOR - NOITE

Uma maca com o corpo de Veronese é colocada rapidamente no
interior de uma ambulância. Um MÉDICO e um PARAMÉDICO sobem,
acompanhados de Cátia. Cassandra e Valdo acompanham tudo de
perto, mas não entram. O MOTORISTA fecha a porta traseira.

               MÉDICO
               (para o paramédico) Pega uma veia.

O paramédico introduz um abocat numa veia do braço de Veronese e
começa a administração de soro fisiológico. A ambulância arranca,
com a sirene ligada.

               MÉDICO
               (para Cátia) Ele tem algum problema no coração?

               CÁTIA
               Não. Acho que não.

               MÉDICO
               (para paramédico) Vamos monitorar.

Médico e paramédico colocam eletrodos no peito e um oxímetro num
dos dedos da mão de Veronese. Os monitores começam a funcionar. O
médico olha para eles.

               MÉDICO
               (para paramédico) Adrenalina.

O paramédico quebra uma ampola e injeta a droga na veia. Os dois
estão preocupados e trabalham em regime de urgência. Começamos a
ouvir os sinais dos monitores, misturados com a sirene, o motor
da ambulância e o intenso tráfego na rua.

               MÉDICO
               Ele toma algum remédio? Tem alguma alergia?

               CÁTIA
               Não. (hesita) Não tenho certeza.

               MÉDICO
               A senhora não é parente?

               CÁTIA
               Sou namorada.

               MÉDICO
               Seria bom falar com algum parente.

Cátia fica ainda mais nervosa.

               CÁTIA
               É muito grave?

               MÉDICO
               (olha para os monitores e depois para o
               paramédico) Mais adrenalina.

O paramédico quebra outra ampola.

               CÁTIA
               Não conheço os parentes dele. Eles não moram aqui.

Veronese abre os olhos. Parece estranhar, por um momento, o
ambiente da ambulância, mas sorri ao ver Cátia.

               VERONESE
               Eu já disse que te amo?

               CÁTIA
               Já, meu amor.

Veronese sorri debilmente.

               VERONESE
               Então vou dizer de novo: eu te amo. (pausa,
               respira com dificuldade) Posso te pedir um favor?

               CÁTIA
               Claro.

               VERONESE
               Eu já enviei aquele convite pra Linda. Manda outra
               mensagem, pro mesmo endereço, e diz que a gente
               talvez tenha que adiar a festa. Escreve que eu amo
               ela muito e que eu sempre pensava nela. Tu manda?

               CÁTIA
               Mando, claro.

               VERONESE
               Eu já disse que te amo?

Veronese faz uma careta de dor. O monitor cardíaco toca um alarme
e a onda adquire o aspecto de fibrilação.

               MÉDICO
               Ele tá fibrilando. (bate na parede e grita para o
               motorista) Pára!

A ambulância pára de sacudir. No monitor, a onda se transforma
numa linha reta. O médico sente o pulso de Veronese.

               MÉDICO
               Sem pulso. (para Cátia) A senhora tem que ficar lá
               no fundo.

Cátia vai sentar-se bem no fundo da ambulância e de lá,
encolhida, chorando, assiste a todo o esforço dos dois homens
para ressuscitar Veronese: três choques, massagem cardíaca,
colocação do tubo laringoscópico, ventilação, etc.

O corpo de Veronese é soqueado, eletrocutado e inundado por
drogas, mas ele parece dormir placidamente.

CENA 12. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - NOITE

Cátia e Valdo estão sentados em cantos opostos da sala. Valdo
está abatido. Cátia, com os olhos muito vermelhos.

               CÁTIA
               Será que precisa padre? O cara da funerária falou
               alguma coisa sobre um padre...

               VALDO
               Padre sempre é bom. Ele fica rezando, e aí ninguém
               precisa dizer nada. Ele era católico?

               CÁTIA
               Acho que era.

Valdo bate com a palma da mão na almofada ao seu lado, indicando
o lugar. Sorri, carinhoso.

               VALDO
               Vem aqui.

               CÁTIA
               Não.

               VALDO
               Vem.

               CÁTIA
               Eu tô bem aqui. Não te preocupa.

Valdo levanta e caminha na direção de Cátia. Quando chega ao seu
lado, ainda de pé, começa uma massagem nos ombros dela.

               VALDO
               Gozado. Ele parecia um cara saudável...

Cátia levanta, num rompante, interrompendo a frase de Valdo e
acabando com o contato das suas mãos.

               CÁTIA
               É melhor tu ir embora. Eu tenho que sair.

               VALDO
               Pra onde? Eu vou contigo.

               CÁTIA
               Não. Não vai.

Cátia caminha rápido até a entrada do apartamento e abre a porta.
Olha para Valdo, séria e definitiva.

               CÁTIA
               Tchau, Valdo. Obrigado por tudo.

Valdo vai saindo, devagar. Quando passa por Cátia, tenta dar-lhe
um beijo na boca, mas ela se vira. O beijo acaba no seu rosto.
Valdo baixa os olhos, constrangido.

               VALDO
               É ruim ficar sozinha nessas horas. Tem certeza que
               não quer que eu te leve?

Cátia assente com a cabeça. Valdo sai. Cátia fecha a porta
rapidamente. Está com os olhos cheios de lágrimas

CENA 13. RUAS DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR - NOITE

Cátia, de calça jeans e blusa, dirige. É madrugada. Quase não há
movimento na ruas. O carro de Cátia pára numa esquina. Num carro
ao lado, um jovem casal se beija, apaixonado.

CENA 14. FACHADA DO EDIFÍCIO DE VERONESE/CIDADE BAIXA -
EXTERIOR - NOITE

O carro de Cátia estaciona quase na frente do edifício. Cátia
sai, com uma blusa a tiracolo. Aciona o alarme do carro. A rua
está deserta. Começa a caminhar na direção da porta do edifício.

Um SUJEITO MAL ENCARADO, segurando uma garrafa, aparece de
repente, saído da sombra de uma marquise. Cátia hesita por um
momento, mas segue em frente. Quando está abrindo a porta com a
chave, o sujeito se aproxima.

               SUJEITO MAL ENCARADO
               Tá bem guardado, dona.

               CÁTIA
               Ótimo.

               SUJEITO MAL ENCARADO
               Se a senhora puder pagar agora... Eu tô com fome.

               CÁTIA
               Eu pago depois.

               SUJEITO MAL ENCARADO
               Melhor agora. Depois... Quem sabe o que pode
               acontecer depois? Eu posso morrer de fome.

Cátia, hesitante, leva a mão à bolsa.

CENA 15. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE

A porta abre. Cátia, bolsa a tiracolo, entra e acende a luz. A
sala é de tamanho médio, com uma decoração simples: móveis
modernos, alguns quadros, um grande sofá cheio de almofadas,
espaços vazios preenchidos por pequenas mesas. Está tudo
arrumado. Cátia olha para a sala e depois a atravessa, rumo ao
corredor.

CENA 16. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Cátia entra no quarto, que é bem diferente da sala: pequeno e
esculhambado. Prateleiras de madeira, antigas e cheias de cupins,
sustentam livros, caixas de papelão, revistas e um aparelho de
som três-em-um. Num canto, um projetor 16mm.

Cátia senta na cadeira da escrivaninha, joga a bolsa na cama e
olha para o computador portátil. Há uma mensagem na tela. Cátia
começa a ler.

CENA 17. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DE TARDE

Veronese está no computador, escrevendo. A decoração é idêntica à
da cena anterior. Cátia entra (mesmo figurino da cena 2), e dá um
beijo rápido na boca de Veronese, que sorri para ela, mas
continua escrevendo.

               CÁTIA
               Que concentração! Acabou o bloqueio?

               VERONESE
               Não é o roteiro. (olha para Cátia) Não é ficcção.
               Tô escrevendo uma carta.

Cátia senta na cama e tira os sapatos de salto alto.

               CÁTIA
               (surpresa) Carta? Que milagre!

Cátia faz massagens nos próprios pés. Usa meia-calça preta.

               VERONESE
               (lendo) Lembra daquela garota que eu te falei, a
               Cátia? Aquela que é linda, inteligente e sabe
               fazer sagu? Nós vamos morar juntos.

Cátia pára de massagear os pés e olha para Veronese, surpresa.

               CÁTIA
               Como é que é?

               VERONESE
               (ainda lendo) A gente se ama há muito tempo, e
               acho que pode dar certo. É claro que não eu mereço
               uma garota maravilhosa como a Cátia, e não tenho a
               menor idéia de porquê ela gosta de mim. Mas decidi
               arriscar. Vamos fazer uma festa, só para os amigos
               mais íntimos, e eu gostaria muito que tu viesse.

Veronese levanta e vai até a janela. Cátia olha para ele,
atônita.

               VERONESE
               Só falta acertar alguns detalhes.

Veronese fecha completamente a veneziana, diminuindo bastante a
luz do quarto. Cátia vai falar, mas Veronese ergue a mão e
continua:

               VERONESE
               (rapida e decididamente) Sei que esse apartamento
               é muito pequeno. Também sei que o banho é
               horrível.

Veronese vai até a porta, que estava entreaberta, e a fecha. O
quarto fica bastante escuro, pois as únicas luzes vêm das frestas
da veneziana e da tela do computador portátil.

               VERONESE
               Mas eu não vou me mudar.

Veronese aproxima-se de Cátia. Senta ao seu lado na cama. Ela
continua surpresa, mas agora já consegue demonstrar sua
felicidade.

               VERONESE
               Talvez eu permita que tu gaste teu dinheiro numa
               pequena reforma. (pausa) É pegar ou largar.

               CÁTIA
               Tem que trocar o fogão e a geladeira.

               VERONESE
               Tudo bem.

               CÁTIA
               E faxina duas vezes por semana!

               VERONESE
               Vou pensar.

Cátia abraça Veronese com força. Veronese joga Cátia na cama e
tenta abrir o zíper da sua saia, enquanto a beija pelo corpo
todo. Cátia, rindo, resiste.

               CÁTIA
               Pára! Eu tô toda suada. Preciso tomar banho.

               VERONESE
               O chuveiro tá queimado. Vem aqui, Catinha.

               CÁTIA
               (rindo) Não... Pára!

Cátia reúne todas as suas forças e consegue desvencilhar-se de
Veronese, empurrando-o com as pernas para fora da cama. Cátia
tenta sair correndo, mas Veronese, no chão, agarra-lhe um dos
pés. Cátia tropeça e cai. Veronese tenta abraçá-la outra vez, mas
Cátia consegue levantar-se. Aponta para o computador.

               CÁTIA
               Isso não é uma história que tu tá escrevendo?

               VERONESE
               (cortando) Eu já te disse. É uma carta.

Cátia olha para a tela do computador.

               CÁTIA
               Uma carta pra quem?

Veronese fica sério.

               VERONESE
               Para a minha filha. Ela se chama Linda. Tem
               dezoito anos.

Cátia olha para Veronese, sem esconder sua surpresa,

               VERONESE
               Ela mora no interior. Só me viu uma vez. Mês
               passado. Eu te disse que tinha que fazer uma
               pesquisa, lembra? Eu menti. Era aniversário dela.

CENA 18. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Cátia está chorando na frente do computador. Olha para o teclado.
Seus dedos percorrem as teclas, mas ela não consegue escrever.

CENA 19. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DE TARDE

Veronese e Cátia estão sentados na cama, frente a frente, ainda
na penumbra.

               VERONESE
               Ninguém mais sabe. (pausa) Se ela aceitar o
               convite, todo mundo vai ficar conhecendo. Se
               não...

               CÁTIA
               Mas... Por que...

               VERONESE
               Tenho reunião às oito e meia e ainda não terminei
               de escrever a mensagem. Quem sabe a gente janta
               juntos? Tem um restaurante novo ali perto da
               associação. Aí eu conto tudo. Tu pode me pegar?

               CÁTIA
               Claro.

               VERONESE
               (sorrindo) Também podemos trocar o chuveiro
               elétrico por um aquecedor a gás.

Cátia sorri de volta.

CENA 20. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Cátia respira fundo e começa a digitar. Pensa um pouco. Digita
mais. Manda a mensagem. Fecha o programa de correio eletrônico.
Leva o cursor do mouse até o botão "Iniciar", como se fosse
desligar o micro, mas, depois de uma breve hesitação, olha para a
tela.

Há, além dos ícones indefectíveis, uma pasta de "Roteiros". Cátia
clica sobre ela. Há vários arquivos, em ordem alfabética:
"advertência", "coincidências demais", "filme-mentira", "mil
desculpas", "mil desculpas-v2", "mil desculpas-v3", "motéis",
"motéis-v2", "um homem intenso", "vulcano e marte".

Ouvimos um trovão, seguido do barulho de chuva. Clica sobre o
arquivo "advertência". O texto aparece na tela: "Garota, de quem
só vemos o rosto e os ombros nus..." Cátia vai começar a ler.

A luz de um relâmpago invade o quarto, seguida de um trovão. As
luzes do apartamento se apagam, restando apenas a tela do
computador portátil.

Cátia levanta e fecha janela, onde a chuva, agora forte, está
batendo.

Volta ao computador e senta. A mensagem "BAIXO NÍVEL DA BATERIA"
aparece na tela, seguida de três bips e do desligamento do
computador. O quarto fica na escuridão absoluta. Um relâmpago
forte ilumina o rosto de Cátia, impassível, olhando para o nada.

CENA 21. CEMITÉRIO/CAPELA - INTERIOR - DIA

O rosto branco de Veronese no caixão. Ao lado do caixão, no fundo
da capela, estão Cátia e Holmes. Holmes olha para o rosto de
Veronese. Cátia olha para o outro lado da capela, onde estão João
Paulo, Cassandra, Mirabela e dois outros cineastas (que estavam
presentes na cena 2).

Um pouco mais afastados, estão CRISTÓVÃO (60 anos, de terno e
gravata, tão atlético quanto a sua idade permite), JANE (30 anos,
elegante, no mesmo estilo de Cátia) e LUCAS (25 anos, terno e
gravata).

Geraldo entra na capela, acompanhado de um FUNCIONÁRIO DE
FLORICULTURA, que carrega um grande arranjo de flores, com a
inscrição "Ao grande cineasta Rudi Veronese, a homenagem de seus
amigos". O funcionário coloca o arranjo ao lado do caixão e vai
embora. Geraldo beija Cátia no rosto, abraça Holmes e acena para
os que estão no fundo da capela.

               GERALDO
               (apontando para o arranjo) Que tal?

               CÁTIA
               Tá bonito.

Geraldo aproxima-se mais do caixão e segura as mãos de Veronese.
Valdo entra na capela, acompanhado de JAQUES (20 anos), que
carrega um bloquinho de notas na mão. Valdo faz um sinal,
chamando Cátia. Cátia e Holmes vão até ele.

               VALDO
               Esse é o Jaques, do Diário.

Jaques aperta as mãos de Cátia, Geraldo e Holmes.

               JAQUES
               Meus pêsames.

João Paulo, Cassandra e Mirabela também aproximam-se.

               JAQUES
               Podemos conversar ali fora?

CENA 22. CEMITÉRIO/CORREDOR - INTERIOR - DIA

Jaques está no centro da roda, tomando notas. Cassandra conversa
com alguém, um pouco afastada.

               CÁTIA
               O pai morreu há muitos anos, e a mãe foi para a
               Itália. Já é bem velhinha, e está meio doente. Não
               teve condições de viajar para o enterro.

               JAQUES
               (sempre anotando) Certo. E vocês são...? (olha
               para Valdo e sorri) O senhor eu sei quem é, claro.
               Gostei muito do seu filme...

               VALDO
               (cortando, impaciente) A Cátia era namorada. E nós
               somos amigos. O João Paulo e o Holmes também são
               diretores. A Mirabela é produtora.

               JAQUES
               É que eu tô começando no caderno de cultura. Acho
               que nunca vi um filme do... falecido, desculpe.

Cassandra se aproxima.

               MIRABELA
               A Cassandra foi atriz dos três últimos curtas do
               Veronese.

Jaques pára de anotar e olha para Cassandra.

               JAQUES
               Atriz?

               CASSANDRA
               É.

               JAQUES
               (reconhecendo) Claro! Eu vi o comercial na TV.
               (canta) "Preço baixo e qualidade, bem no centro da
               cidade..." (sente a censura dos olhares) Desculpe.
               Então vocês atuavam juntos...

               VALDO
               Não. Ela atuava nos filmes dele.

               JAQUES
               O Veroneli não era ator?

               JOÃO PAULO
               (mal-humorado) Não. É Veronese. Era diretor e
               roteirista.

               JAQUES
               Desculpe a minha ignorância. (pensa um pouco) O...
               falecido fez algum longa-metragem?

               CASSANDRA
               Não. Mas ele estava escrevendo o roteiro de um
               longa.

Cátia olha para Cassandra, surpresa.

               JAQUES
               Ótimo! É um bom gancho pra matéria. A gente
               publica um trecho. Qual era o assunto?

Todos se olham. Silêncio.

               MIRABELA
               O Veronese não gostava de falar sobre o que estava
               escrevendo.

               JAQUES
               Sobre o que era? Alguém leu? Ao menos um
               pedacinho... Qual o título?

Silêncio.

               CASSANDRA
               O roteiro deve estar no computador dele.

Jaques fecha o bloco.

               JAQUES
               Se vocês acharem, mandem pra mim.

CENA 23. CEMITÉRIO - EXTERIOR - DIA

Dois FUNCIONÁRIOS DO CEMITÉRIO estão terminando de fechar com
cimento o túmulo de Veronese. Cátia, João Paulo, Holmes, Valdo,
Cassandra e Mirabela estão bem juntos, formando um grupo triste e
coeso, perto da cova.

Geraldo, os outros cineastas e o pessoal do escritório de Cátia
estão mais atrás. Por algum tempo, só ouvimos o barulho das pás
dos funcionários. Cassandra, de repente, afasta-se, chorando mais
alto. Cátia olha para ela.

               VALDO
               (para Cátia) Ele te falou alguma coisa de um
               longa?

               CÁTIA
               Não.

Os funcionários terminam sua tarefa e se afastam. O padre olha em
volta, com um sorriso animador, e abre os braços.

               PADRE
               Vamos dar as mãos e rezar pela alma de Rudi
               Veronese.

Valdo estende sua mão para pegar a mão de Cátia, mas esta,
rapidamente, pega as mãos de João Paulo e Mirabela.

               PADRE
               Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o
               vosso nome...

Cassandra volta, ainda chorando muito. Holmes a abraça. Cátia
olha para ela.

CENA 24. FACHADA DO CEMITÉRIO þ EXTERIOR þ DIA

Cátia abre a porta do seu carro, que está estacionado na rua do
cemitério, e vai entrar, quando ouve a voz de Cristóvão.

               CRISTÓVÃO
               Cátia!

Ele, Jane e Lucas aproximam-se de Cátia.

               CRISTÓVÃO
               Nós estávamos combinando umas coisas. Acho que
               amanhã a Jane e o Lucas podem tocar a
               transferência.

               JANE
               Deixa comigo, Cátia. Se quiser ficar uns dias
               fora...

               CÁTIA
               Não. Amanhã eu vou trabalhar.

               LUCAS
               Não precisa, Cátia. A gente se vira.

               CÁTIA
               Obrigado, mas não precisam se preocupar comigo. Eu
               tô bem. (para Cristóvão) É meu investidor, e tu
               sabe disso. (para Jane e Lucas) Fiquem longe das
               minhas coisas. (aponta para o cemitério) Quando eu
               estiver ali, vocês tomam conta.

Cátia entra no carro, sob o olhar surpreso do trio.

CENA 25. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Valdo, Cátia e Mirabela estão sentados em volta do computador de
Veronese. Cassandra está no chão, lendo uma revista. Há uma
garrafa de vinho vazia e outra aberta na prateleira, além de
cálices meio cheios espalhados pelo ambiente. O aparelho de som
está ligado, em volume baixo. Valdo está com o mouse.
Coloca o cursor sobre a pasta "Roteiros".

               VALDO
               (para Cátia) É aqui?

               CÁTIA
               Não sei se o Veronese ia gostar de ver um monte de
               gente mexendo nas coisas dele.

Silêncio no quarto. Mirabela pega seu cálice.

               MIRABELA
               Ao Veronese.

Todos batem seus cálices e bebem. Valdo olha para Cátia.

               VALDO
               E aí? Posso?

               CÁTIA
               (hesitante) Não sei. (pensa mais um pouco, olha
               para Mirabela) Acho que pode.

Valdo abre a pasta "Roteiros", clica no arquivo "advertência" e
lê o título:

               VALDO
               Advertência ao espectador.

Cassandra levanta-se e olha para a tela do computador.

               CASSANDRA
               Posso ler?

Cátia olha para Cassandra, inamistosa. Mas Cassandra não percebe
e começa a leitura.

               CASSANDRA
               Uma garota (20 anos) de quem só vemos o rosto e os
               ombros nus, dá o texto abaixo, olhando para a
               câmara.

CENA 26. APTO. DE VERONESE/COZINHA - INTERIOR - NOITE

Cátia e Mirabela estão fazendo um sopão. Uma grande panela está
no fogo. Elas vão cortando verduras e jogando lá dentro. As duas
continuam bebendo vinho e suas falas são meio enroladas e
confusas.

               CÁTIA
               Mas é pra ter alguém com a tal garota?

               MIRABELA
               Acho que sim. Mas fora de quadro.

               CÁTIA
               Fora de quadro? Que quadro?

               MIRABELA
               Fora do quadro significa que alguém está ali, mas
               a câmara não mostra.

               CÁTIA
               Não mostra por quê?

               MIRABELA
               Deixa pra lá, Cátia. Tem mais cenoura na
               geladeira?

               CÁTIA
               Só me diz uma coisa: tem alguém lá com a garota?
               Quer dizer, eu entendi que tem alguém lá, fazendo
               alguma coisa com ela, não tem?

Mirabela abre a geladeira.

               MIRABELA
               Acho que é pro espectador achar que sim.

               CÁTIA
               Tem um cara lá, chupando ela, é isso?

Mirabela olhando para o interior da geladeira e pega mais
cenouras.

               MIRABELA
               É... Mas ela pode estar só fazendo de conta que
               tem alguém chupando ela. E não tem ninguém de
               verdade.

               CÁTIA
               Não entendi. É pra ter, ou é pra não ter?

               MIRABELA
               Sei lá. Dá pra filmar de várias maneiras
               diferentes.

Cátia fica chocada.

               CÁTIA
               O Veronese ia filmar mesmo aquilo?

               MIRABELA
               Não sei, Cátia. (encara Cátia, séria) Como é que
               eu vou saber? Desencana. É só um texto, uma
               bobagem.

               CÁTIA
               Mas é tão...

               MIRABELA
               Esquece, Cátia. Tá legal? Esquece. Eu, se fosse
               tu, apagava todas essas coisas do computador.

               CÁTIA
               (surpresa) Tá falando sério?

Mirabela demora um pouco pra responder.

               MIRABELA
               Não. Claro que não.

Valdo e Cassandra entram na cozinha. Valdo com seu copo de vinho
na mão; Cassandra com sua bolsa a tiracolo.

               VALDO
               Não achei a continuação. É só a tal advertência
               mesmo. (olha para a panela no fogo) Parece ótimo.

               CASSANDRA
               Cátia, eu vou pra casa. A Mirabela vai dormir aqui
               contigo, né?

               CÁTIA
               (surpresa) Não precisa.

               VALDO
               Não tem discussão. Tá decidido.

Cassandra abraça Cátia com força.

               CASSANDRA
               Qualquer coisa que tu precise... Sei lá, a gente
               podia conversar um dia desses. É só ligar. Tá
               legal?

               CÁTIA
               Claro. (desfaz o abraço) Quer que eu chame um
               táxi?

               CASSANDRA
               (sorrindo) Não precisa. Eu vou a pé. (hesita um
               pouco, depois continua) Eu moro a meia quadra
               daqui. Sabe o edifício da padaria? O de pastilhas
               brancas?

               CÁTIA
               (surpresa) Claro.

               CASSANDRA
               Terceiro andar. Fundos. (sorri outra vez) Quando
               quiser fazer uma visita...

CENA 27. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Cátia termina de colocar o pijama, apaga a luz e senta na cama.
Mas o computador, ainda ligado, com a tela do processador de
textos vazia, inunda o quarto com sua luz fantasmagórica. Cátia
olha para o monitor por algum tempo.

Então levanta, acende a luz, vai até a mesa e senta-se. Pega o
mouse e clica até ter, diante de si, o conteúdo da pasta
"Roteiros". Clica sobre "motéis". Começa a ler.

CENA 28. MOTEL 1/BANHEIRO E QUARTO - INTERIOR - NOITE

Uma MULHER (25 anos) nua está no banheiro de um quarto de motel.
Ela lentamente coloca a calcinha. A parede do banheiro é de vidro
escuro, translúcido, de modo que um HOMEM (25 anos), deitado na
cama, pode ver o contorno do corpo da mulher e observar as suas
ações. As luzes no banheiro e no quarto estão acesas. Enquanto
ela se veste, ouvimos a voz de Cátia:

               CÁTIA
               (off) Uma mulher nua está no banheiro de um quarto
               de motel. Ela lentamente coloca a calcinha. A
               parede do banheiro é de vidro escuro, translúcido,
               de modo que um homem, deitado na cama pode ver o
               contorno do corpo da mulher e observar as suas
               ações. Enquanto ela se veste, ouvimos a narração:

Depois da calcinha, a mulher vai colocando outras peças: um
sutiã, ligas, meias (que prende nas ligas). Tudo isso é observado
pelo homem no quarto.

               CÁTIA
               (off) O amor é um vestir. Ele só acontece quando o
               homem cobre a nudez da mulher com algo que sai da
               sua imaginação. A mulher que corresponde ao amor é
               aquela que se deixa vestir.

A mulher lentamente coloca sapatos de saltos altos.

               CÁTIA
               (off) O desejo por um corpo depende do que
               imaginamos
               vestir sobre ele. Toda carne é um fantasma. Todo
               amor é fantasia. Toda beleza é construída.

A mulher se observa no espelho (não vemos seu rosto) e faz os
últimos ajustes. O homem observa a mulher.

               CÁTIA
               (off) Por amor, as mulheres se transformam naquilo
               que são nas mentes dos homens por quem são amadas.

A mulher apaga a luz do banheiro e vira-se para a parede
translúcida. Na penumbra, ela diz:

               MULHER
               Apaga a luz.

CENA 29. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Cátia, chocada, olha para a frase no computador. Lemos a frase no
computador: "MULHER - Apaga a luz".

CENA 30. MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Veronese - agora vemos seu rosto - apaga a luz principal do
quarto. Ficam acesas apenas algumas lâmpadas no chão (ou um
pequeno abajur de canto). Cátia - agora também vemos seu rosto,
apesar da penumbra - sai do banheiro, mas não se aproxima da
cama.

               CÁTIA
               Apaga.

Veronese apaga a luz secundária.

               MIRABELA
               (off) Cátia.

CENA 31. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Mirabela, de pé, junto à porta entreaberta, está olhando para
Cátia.

               MIRABELA
               São duas horas. Tu não vai trabalhar amanhã?

Mirabela aproxima-se. Cátia abaixa a tampa do notebook.

               CÁTIA
               O Rudi nunca te mostrava o que ele escrevia?

               MIRABELA
               Não. Ele não mostrava pra ninguém. O Rudi tinha o
               mundinho dele. Era difícil entrar ali.

               CÁTIA
               Eu sei.

               MIRABELA
               Vamos dormir. Tá?

               CÁTIA
               (sorrindo) Tá.

Mirabela conduz Cátia até a cama e faz com que ela deite. Senta
na cama. Cobre Cátia com o lençol e dá um beijo carinhoso na sua
testa.

               MIRABELA
               Boa noite.

               CÁTIA
               Se ele não mostrava nada, pra ninguém, como a
               Cassandra sabia que ele tava escrevendo o roteiro
               de um longa? Ele nunca me falou de um longa.

               MIRABELA
               Cátia, eu conhecia o Rudi há mais de quinze anos.
               Ele sempre foi daquele jeito. Nem eu, nem a
               Cassandra, nem ninguém era capaz de entrar naquele
               mundinho. (pensa) E eu tentei bastante. Tentei até
               cansar, porque eu tava muito apaixonada. Mas não
               fica com ciúme de mim, isso foi há muito tempo. E
               não conta pra ninguém, tá? (pausa) Promete?

               CÁTIA
               (surpresa) Prometo.

               MIRABELA
               Ele te amava muito, pode ter certeza, e isso
               ninguém vai te tirar. (pausa) Vamos dormir?

Mirabela apaga a luz e sai. Cátia fecha os olhos. Pouco depois,
abre outra vez.

CENA 32. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE

Festa. Umas quinze pessoas se espremem na sala, dançando
caoticamente um rock dos anos 70. Celofanes coloridos por cima
das lâmpadas tentam criar um clima de reunião-dançante.

Presentes: Veronese, Cátia (com o cabelo diferente, bem mais
comprido), Holmes, João Paulo (com uma NAMORADA MUITO BONITA),
Mirabela, Cassandra, Geraldo e mais OITO PESSOAS (algumas estavam
na reunião de cineastas da cena 2). Todos estão bastante bêbados.

Veronese, que é o DJ, escolhe um CD e troca a música, com alguma
dificuldade (o que gera protestos), e depois fica parado ao lado
do aparelho de som, olhando para as pessoas que dançam. Pela
ordem: João Paulo beija sua namorada; Geraldo dá em cima de
Mirabela; Cassandra faz caras e bocas enquanto se sacode,
dançando sozinha.

Cátia não dança. Parece deslocada. Oferece uma bandeja com
salgadinhos para os convidados. Aproxima-se de Veronese e percebe
que ele, naquele momento, está olhando para Cassandra e sorrindo
para ela. Cátia, meio trôpega, pára, larga a bandeja, pega um
copo de cerveja e vai até Veronese.

               CÁTIA
               (voz enrolada) Eu queria falar uma coisinha
               contigo, ali no quarto.

               VERONESE
               Agora?

               CÁTIA
               (sorrindo) Agora.

CENA 33. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Veronese e Cátia entram no quarto. Cátia, com o copo de cerveja
na mão, tropeça e quase cai. Veronese consegue fazer com que ela
sente na cama.

               CÁTIA
               (sempre com a voz enrolada) Fecha a porta.

               VERONESE
               Pra que?

               CÁTIA
               (autoritária) Fecha!

Veronese, desconfiado, fecha a porta.

               CÁTIA
               (sedutora) Apaga a luz.

               VERONESE
               (sorrindo) De jeito nenhum.

               CÁTIA
               Tu gosta dela, né?

Veronese sacode a cabeça.

               VERONESE
               Vamos voltar pra sala.

               CÁTIA
               Não precisa ter medo. Conta a verdade.

               VERONESE
               A verdade é que tu tá bêbada.

               CÁTIA
               Eu te vi olhando pra ela. Tu tá a fim dela?

               VERONESE
               Pára, Cátia. Que bobagem!

               CÁTIA
               Olha... Rudi. (ri) Rudizinho. Eu sei que tu quer.
               E eu te amo. Quem sabe a gente... Chega num
               acordo. Eu sou uma mulher... (pára, não sabe como
               continuar) Eu estou disposta a tentar alguma coisa
               diferente.

               VERONESE
               Sei.

               CÁTIA
               Ela é muito bonita. (pensa um pouco) Mas será que
               ela tem alguma doença? Eu não quero pegar uma
               doença.

Veronese tenta pegar a cintura de Cátia e levantá-la da cama.

               VERONESE
               Vamos dançar, Cátia.

Cátia resiste e Veronese acaba caindo na cama.

               CÁTIA
               Não. Eu quero saber o que tu acha da minha
               proposta. Diz pra tua Catinha, diz.

               VERONESE
               (carinhoso) Não acho nada.

Cátia segura o rosto de Veronese com as duas mãos.

               CÁTIA
               Podia ser um presente...

Veronese consegue levantar-se e pega as mãos de Cátia, erguendo-
a. Dão alguns passos, até ficarem perto da mesa em que está o
notebook. Ela se apóia na mesa e baixa a cabeça.

               CÁTIA
               Eu tô tonta. Rudizinho... Acho que eu vou vomitar.

               VERONESE
               Aqui não!

Cátia sorri mais uma vez, um segundo antes de começar a vomitar
no computador.

CENA 34. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

Penumbra. Cátia, deitada na cama, debaixo dos lençóis, está com
olhos cheios de lágrimas, olhando para o notebook.

CENA 35. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA

Dois monitores de computador. As telas exibem listas infindáveis
de números e nomes de empresas. Cátia está olhando para eles.
Depois olha para Cristóvão, parado na sua frente.

               CRISTÓVÃO
               Dez milhões voltam e ficam parados, na conta dele,
               aqui no Brasil, pelo menos até sexta. Os outros
               dois deixa lá, aplicados. Tá entendido?

               CÁTIA
               Tá.

               CRISTÓVÃO
               Tem certeza que não quer uma ajuda?

               CÁTIA
               Tenho.

               CRISTÓVÃO
               Então, traz esse dinheiro de volta. E correndo.

Cristóvão sai da sala. Cátia olha para o computador e começa a
digitar alguma coisa. Mas logo pára. Os números continuam a
dançar nos monitores, mas ela não está interessada neles. Abre a
bolsa e pega um disquete.

Coloca o disquete num dos computadores. Abre o disquete no
desktop do Windows. Clica sobre o documento "moteis". Começa a
ler.

CENA 36. MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - NOITE

O barulho de um fósforo sendo riscado, seguido da sua chama. A
mão de Veronese, que segura o fósforo, se aproxima de uma vela
larga. A vela acende. A mão se afasta. Cátia, ainda na porta do
banheiro, olha para a vela, que está na cabeceira da cama, e
depois para Veronese.

               CÁTIA
               Mais longe. No outro lado.

Veronese pega a vela e a coloca na outra cabeceira.

               CÁTIA
               Obrigado.

Cátia se aproxima da cama. Veronese olha para ela e sorri. Cátia
senta na cama. Veronese estende a mão e toca na perna de Cátia,
na altura da coxa. Depois, inclinando-se para a frente, vai
descendo a mão até o tornozelo de Cátia, que envolve entre o
polegar e o indicador. Baixa ainda mais a cabeça, na direção do
pé.

               JOÃO PAULO
               (off) Cátia.

CENA 37. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA

Cátia olha para o computador. Vemos a última rubrica na tela do
computador: "...vai descendo a mão até o tornozelo da mulher, que
envolve entre o polegar e o indicador. Baixa ainda mais a cabeça,
na direção do pé."

               JOÃO PAULO
               (off, mais alto) Cátia!

Cátia levanta os olhos do computador. João Paulo está de pé, na
porta, olhando para ela.

               JOÃO PAULO
               Eu tô interrompendo alguma transação milionária?

               CÁTIA
               Não. Entra, por favor.

João Paulo entra, beija Cátia e senta-se.

               JOÃO PAULO
               Tu disse que precisava falar comigo.

Cátia pega umas dez folhas de ofício grampeadas e estende o braço
para João Paulo, que pega as folhas e dá uma olhada.

               CÁTIA
               (sem-jeito) Que bom que tu pôde vir... Tô lendo
               umas coisas do Veronese... Hoje de manhã, quando
               abri esse (aponta para o texto que está com João
               Paulo), notei que era diferente dos outros.

               JOÃO PAULO
               Diferente como?

               CÁTIA
               Eu... Não consigo entender o texto. Os outros têm
               algumas expressões estranhas, mas eu compreendo a
               história. É como ler uma peça de teatro.

               JOÃO PAULO
               (sorrindo, compreensivo) É que esse aqui tá
               decupado.

               CÁTIA
               Decupado?

               JOÃO PAULO
               Já tá dividido em planos, e têm indicações de
               câmara, de enquadramentos, de cortes...

               CÁTIA
               Eu não entendo nada disso.

João Paulo levanta, dá a volta na mesa e coloca o roteiro na
frente de Cátia.

               JOÃO PAULO
               O que tu não entende?

Cátia aponta para as indicações do plano 1: P1 - PP - trav. para
trás até PM. O quarto é muito modesto, e a cama é de solteiro, o
que dificulta as ações do CINEASTA...

               CÁTIA
               "Pê-um. Pê-pê. Trav... para trás até Pê-eme."

               JOÃO PAULO
               Plano um. Primeiro plano. Travelling para trás até
               plano médio. É o enquadramento inicial, o
               movimento da câmara e o novo enquadramento.

               CÁTIA
               (confusa) Enquadramento?

               JOÃO PAULO
               Esse roteiro tá pronto pra ser filmado. A gente
               chama de roteiro técnico. Os outros que tu pegou
               eram mais fáceis de ler porque não estavam
               decupados...

               CÁTIA
               Tu pode... (hesita, procurando a palavra) traduzir
               esse pra mim?

               JOÃO PAULO
               Traduzir? Eu posso escrever um resumo da história.

               CÁTIA
               Mas isso não vai dar muito trabalho?

João Paulo sorri. Olha para o roteiro.

               JOÃO PAULO
               Não. Deve ser divertido. Ele sempre escrevia
               bastante sacanagem.

CENA 38. MOTEL 1 - INTERIOR - NOITE

Veronese e Cátia beijam-se na cama. A vela está no fim.

               VERONESE
               É a melhor festa de aniversário que eu já tive.

               CÁTIA
               Fecha os olhos. Tá na hora do presente.

Veronese fecha.

               CÁTIA
               E não abre!

Cassandra levanta-se, vai até a sua bolsa, pega um celular e um
pequeno pedaço de pano. Aproxima-se de Veronese.

               CÁTIA
               Deita de costas e fica quietinho.

Cátia pega o pano (na verdade, é uma venda) e amarra-o sobre os
olhos de Veronese. Cátia afasta-se e aperta os botões do celular.
Veronese passa a mão sobre a venda.

               CÁTIA
               Não tira. Tu só vai ganhar se ficar quieto.

               VERONESE
               O que eu ganho se adivinhar o que é?

               CÁTIA
               (sorrindo) Se tu adivinhar, eu te mato.

Batidas na porta. Cátia veste um robe e desaparece por um
momento. Veronese continua vendado. Barulho da porta abrindo.

               VERONESE
               Cátia? Posso tirar esse negócio?

Barulho de passos.

               CÁTIA
               (off) Não. Espera.

A mão de Cátia retira a venda de Veronese. Ele olha e vê, à sua
frente, Cassandra þ vestida com sensualidade - e Cátia, sorrindo
para ele. Veronese está surpreso.

               VERONESE
               (para Cátia) O que ela tá fazendo aqui?

               CÁTIA
               Ela é o presente.

Barulho forte de porta abrindo.

CENA 39. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA

Cristóvão entra, com ar preocupado, assustando Cátia.

               CRISTÓVÃO
               O doutor Camargo acaba de ligar. Disse que o
               dinheiro ainda não apareceu na conta dele aqui no
               Brasil.

Cátia fecha o processador de texto, e a dança dos números volta a
tomar conta do monitor.

               CÁTIA
               Eu tive um pequeno problema.

Cristóvão circunda a mesa para olhar o monitor de Cátia.

               CRISTÓVÃO
               Lá, ou aqui no Brasil?

               CÁTIA
               (hesitante) Aqui.

               CRISTÓVÃO
               Olha, Cátia, é MUITO dinheiro. O que significa
               MUITA incomodação. Cadê o dinheiro do doutor
               Camargo?

               CÁTIA
               Tá lá fora, ainda.

               CRISTÓVÃO
               E por quê a transferência não foi feita?

Cátia olha para o monitor. Depois volta a encarar o chefe.

               CÁTIA
               Eu... Eu esqueci.

               CRISTÓVÃO
               (estarrecido) Esqueceu dez milhões de dólares?

Cátia começa a teclar.

               CÁTIA
               Mas eu resolvo isso num instante.

               CRISTÓVÃO
               São seis da tarde, Cátia. Tu não vai conseguir
               fazer mais nada hoje. (definitivo) Amanhã tu fica
               em casa. Descansa. É melhor pra ti e melhor pra
               empresa.

Cristóvão sai da sala. Cátia abre outra vez o roteiro na tela do
computador.

CENA 40. MOTEL 1 - INTERIOR - NOITE

Veronese, Cátia e Cassandra fazem um brinde com champanha. Os
três tomam um pouco. Cassandra olha para Veronese,
profissionalmente sedutora.

               VERONESE
               (para Cátia) Tem certeza?

               CÁTIA
               Tenho. Feliz aniversário.

Cassandra aproxima-se de Veronese e o beija de leve na boca.
Cátia sorri e assopra a vela, apagando-a.

CENA 41. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA

No computador, vemos as última linhas do roteiro:

               "HOMEM - (para a Mulher) Tem certeza?"

               "MULHER - Tenho. Feliz aniversário."

"A Outra Mulher aproxima-se do Homem e o beija de leve na boca. A
Mulher sorri e assopra a vela, apagando-a."

Está é a última linha do roteiro. Cátia tenta rolar o texto mais
para baixo. Nada.

CENA 42. LOJA DE VERONESE - INTERIOR þ NOITE

Mirabela examina um livro com registros contábeis e Cátia dá uma
olhada nas gavetas da loja de equipamentos fotográficos e
revelações de Veronese. É um estabelecimento modesto, numa
galeria popular. A porta está fechada. Elas estão sozinhas.

               MIRABELA
               Acho tá tudo certo. O Veronese recolhia o fundo de
               garantia, os salários estavam em dia. Pra despedir
               aqueles dois, só tem que pagar as férias.

               CÁTIA
               Eles vão ficar arrasados.

               MIRABELA
               Fazer o quê? Tu vai administrar isso aqui?

Cátia acha uma foto de cena de Cassandra numa gaveta. Mostra a
foto para Mirabela.

               CÁTIA
               O Veronese gostava da Cassandra, né?

Mirabela examina rapidamente a foto.

               MIRABELA
               Como atriz?

               CÁTIA
               Não. Como mulher.

               MIRABELA
               Nunca percebi nada entre os dois. Vamos? Isso aqui
               é meio deprimente.

CENA 43. APARTAMENTO DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE

As duas arrumam a sala.

               CÁTIA
               O Veronese nunca me disse que ela morava tão
               perto.

               MIRABELA
               Ela se mudou faz pouco tempo. Não pensa besteira.

               CÁTIA
               Mas é que ele escreveu...

               MIRABELA
               É ficção, Cátia. Pelo amor de Deus! Ele escrevia
               filmes. Filmes de ficção. Se não parece ficção, é
               porque ele escrevia bem. (pausa) Quanto melhor a
               ficção, mais ela tem de real. Mas ficção é ficção,
               e realidade é realidade. Bota isso na cabeça.

Cátia olha para Mirabela, abatida e triste.

CENA 44. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE

As duas arrumam os livros e as revistas nas estantes.

               CÁTIA
               Num roteiro que eu tava lendo, tem uma situação...
               É muito parecido com... Com a nossa vida. A minha
               e a do Rudi... Nunca aconteceu, mas...

               MIRABELA
               Cátia, desencana.

Cátia balança a cabeça, nervosa. Hesita.

               CÁTIA
               (finalmente toma coragem) Tem uma frase que tá num
               roteiro, essa frase ele tirou de mim...

Mirabela olha para Cátia, paciente.

               MIRABELA
               Que frase?

               CÁTIA
               (num rompante) "Apaga a luz."

               MIRABELA
               "Apaga a luz?"

               CÁTIA
               É.

               MIRABELA
               Tu tem idéia de quantos milhões de pessoas, neste
               exato momento, estão dizendo "Apaga a luz"? Os
               escritores misturam tudo: o que eles vivem, o que
               eles observam da vida das outras pessoas e o que
               eles inventam. A gente não sabe o que é uma coisa
               ou outra, e aposto que às vezes nem eles mesmos
               sabem.

               CÁTIA
               Os filmes dele... Tinham tanto sexo. Pra quê?

               MIRABELA
               Sei lá. Era o estilo dele.

               CÁTIA
               (hesita um pouco) Às vezes eu achava que não era
               estilo. Era doença. E essas fantasias...

               MIRABELA
               Eram fantasias ou realidade? Te decide.

               CÁTIA
               (nervosa) Por quê a Cassandra chorava tanto no
               enterro? Vocês também eram amigos...

Mirabela perde paciência e levanta o tom de voz.

               MIRABELA
               Ele tá morto, Cátia. Se namorou a Cassandra, que
               diferença isso faz?

Cátia praticamente grita, num rompante:

               CÁTIA
               É que eu tava namorando o Valdo!

Mirabela acusa o golpe. Olha para Cátia, meio tonta.

               CÁTIA
               Ao meio-dia. Sempre ao meio-dia. Na minha casa! Eu
               sou uma idiota! Mas eu já tinha decidido parar com
               aquela loucura e contar tudo pro Veronese.

Mirabela continua incapaz de reagir.

               CÁTIA
               Aí ele morreu! E eu nunca vou poder contar pra ele
               que eu sou uma idiota, mas que amava ele mais do
               que tudo na vida.

               MIRABELA
               E agora tu precisa saber se ele também te
               enganava. Seria um alívio.

               CÁTIA
               Seria... Seria... Maravilhoso. Dá pra entender?

               MIRABELA
               Dá.

               CÁTIA
               Jura que nunca vai contar pra ninguém. Eu me mato,
               se mais alguém souber. Jura?

               MIRABELA
               Juro.

               CÁTIA
               E jura que não sabe se o Veronese transava com a
               Cassandra?

Mirabela olha para Cátia, triste.

               CÁTIA
               Vou me mudar para esse apartamento. O Veronese
               tinha acabado de me convidar pra morar com ele.
               Isso ele não escreveu. Ele falou comigo. De
               verdade. E eu aceitei o convite.

CENA 45. EDIFÍCIO DE CÁTIA/FACHADA - EXTERIOR - DIA

Um pequeno caminhão de mudança está parado na frente do edifício
de Cátia. Enquanto os FUNCIONÁRIOS da companhia de mudança
carregam algumas caixas, Cátia coloca objetos mais delicados no
interior do seu carro, também parado na frente do edifício. Valdo
chega quando ela está se aproximando do carro com um vaso pequeno
nas mãos.

               VALDO
               Ôi.

Cátia sorri, meio amarelo.

               CÁTIA
               Ôi.

               VALDO
               A Mirabela me falou da mudança.

               CÁTIA
               É. Vou passar um tempo no apartamento do Veronese.

Valdo olha para o belo edifício de Cátia, incrédulo.

               VALDO
               Posso ajudar?

               CÁTIA
               Se quiser...

CENA 46. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA

O apartamento continua com os móveis e quase toda a decoração.
Cátia aponta para um telefone com secretária eletrônica.

               CÁTIA
               Pode pegar o telefone?

               VALDO
               Claro.

Valdo começa a desligar o telefone. Um dos funcionários da
companhia de mudança passa por eles, carregando uma caixa de
papelão, e sai. Valdo fecha a porta do apartamento e olha para
Cátia.

               CÁTIA
               O meu carro tá aberto. Eu tenho que ir.

               VALDO
               Primeiro vai conversar comigo. Cinco minutos.

Cátia tenta passar por ele, mas Valdo permanece na frente da
porta, com o telefone na mão.

               CÁTIA
               Não tenho tempo.

               VALDO
               Que loucura é essa? Primeiro, me trata como um
               desconhecido, depois vai se mudar pra um
               apartamento que é menor, pior e muito mais longe
               do teu trabalho.

Cátia faz nova tentativa para sair, agora com muito mais energia.

               CÁTIA
               O apartamento é meu. A vida é minha. Com licença.

Valdo a segura, primeiro com a mão que está livre, mas Cátia
consegue se desvencilhar. Valdo deixa cair o telefone no chão e a
segura com as duas mãos.

               CÁTIA
               Me larga!

               VALDO
               Pára, Cátia. Pára!

               CÁTIA
               Tu tá me machucando.

               VALDO
               Quer me ouvir? Tu não tem culpa de nada. Eu te
               liguei, eu insisti. Ninguém tem culpa.

               CÁTIA
               Sai da minha frente!

Cátia empurra Valdo com toda a força. Valdo quase cai. Cátia abre
a porta, mas Valdo a fecha outra vez. Estão praticamente em luta
corporal.

               CÁTIA
               Sai! Sai!

Cátia livra uma das mãos e acerta um tapa (quase um soco) no
rosto de Valdo, que cambaleia e leva a mão à altura do olho.
Cátia está chorando. Os dois se olham.

CENA 47. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA

Cátia e Valdo estão sentados, lado a lado, no sofá. Valdo segura
um guardanapo de pano com gelo sobre o supercílio.

               VALDO
               Eu tenho que te confessar uma coisa.

Cátia olha para Valdo.

               VALDO
               Naquela noite, lá no apartamento do Veronese, eu
               copiei os roteiros num disquete. Eu sei que não
               devia. Desculpa. (pausa) Não tem longa nenhum.

Cátia permanece calada.

               VALDO
               Um dos roteiros me interessou.

               CÁTIA
               Qual?

               VALDO
               "Motéis". Tá incompleto. Tu leu?

               CÁTIA
               (preocupada) Li.

               VALDO
               O que tu achou?

               CÁTIA
               Não acho nada. Eu não entendo metade, e a metade
               que eu entendo tá me fazendo mal. Decidi que não
               vou ler mais essas coisas.

               VALDO
               É uma boa história.

               CÁTIA
               (cortando, tensa) Tá pensando em filmar?

               VALDO
               Talvez. Se eu conseguir escrever um bom final...
               Será que teria algum problema?

Cátia levanta.

               CÁTIA
               Eu tenho que ir, Valdo.

               VALDO
               Tudo bem. Mas pensa nisso. E, se precisar de
               alguma coisa...

Cátia olha para Valdo e sorri pela primeira vez.

               CÁTIA
               Eu preciso ficar sozinha. Se tu quer me ajudar, me
               deixa no meu canto.

Valdo sorri e vai pegar a mão de Cátia, mas ela levanta rápido e
sai do apartamento, sem olhar para trás.

CENA 48. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - DIA

Dois funcionários da companhia de mudanças estão saindo do
apartamento. Cátia abre a bolsa, tira duas notas de cinco reais e
entrega para eles. Cátia abre a porta e os funcionários saem.

Cátia olha para a sala, que está cheia de objetos envoltos em
plástico bolha e caixas de papelão. Respira fundo e vai começar a
arrumar as coisas, mas a campainha toca. Cátia abre a porta. É
Holmes.

               HOLMES
               (falando rápido) Ôi, Cátia. Pô, que zona... Se
               precisar de uma ajuda...

               CÁTIA
               (estranhando) Obrigado

Holmes pega uma folha de ofício na sua sacola e a entrega para
Cátia. Ela segura a folha, curiosa.

               HOLMES
               É um resumo do "Filme de mentira". O João Paulo
               pediu que eu fizesse. Ele não tem muito tempo,
               sabe como é... Publicidade.

               CÁTIA
               Eu nem tava com tanta pressa.

               HOLMES
               A pressa é minha. Eu adorei o roteiro e quero
               filmar.

A campainha toca duas vezes.

               HOLMES
               É o João Paulo. Ele sabe que tô aqui e tá puto
               comigo. Mas lembra que eu pedi primeiro!

Cátia caminha até a porta.

               CÁTIA
               Pediu o quê?

               HOLMES
               Pra filmar.

Cátia abre a porta. João Paulo entra, com ar agitado, e aponta o
dedo para Holmes.

               JOÃO PAULO
               Eu chamo isso de traição.

               HOLMES
               (para Cátia) Ele tá louco. Enlouqueceu.

               JOÃO PAULO
               A Cátia sabe quem é o maluco aqui.

               CÁTIA
               Do que vocês estão falando?

               JOÃO PAULO
               A questão é a seguinte: ontem eu mandei o roteiro
               do Veronese pro Holmes e pedi um serviço pra ele.

               HOLMES
               Pediu um favor. Não um serviço.

               JOÃO PAULO
               Eu ia te pagar.

               HOLMES
               Ah, é? Quanto?

               JOÃO PAULO
               Cátia, tu deve lembrar: eu falei que gostava das
               coisas do Veronses...

               HOLMES
               Tu nem sabia qual era a história. (para Cátia) Ele
               nem leu o roteiro, só o meu resumo.

               JOÃO PAULO
               Vamos parar com essa palhaçada. Cátia: eu quero
               fazer o "Filme de mentira". Como uma homenagem ao
               Veronese.

               HOLMES
               Eu pedi primeiro.

               CÁTIA
               Mas têm outros roteiros...

               JOÃO PAULO
               Eu já convidei a Cassandra pro filme, e ela
               aceitou.

               HOLMES
               Grande merda. Eu também convidei, e ela também
               aceitou.

               CÁTIA
               Eu nem sei se esses roteiros devem ser filmados.

               JOÃO PAULO
               Esse deve, Cátia.

               HOLMES
               Eu cheguei antes!

               CÁTIA
               Eu não vou me meter nessa briga. Vocês são amigos,
               não são?

Os dois se olham, furiosos.

CENA 49. RUA - EXTERIOR - NOITE

Cátia aproxima-se de um edifício com a fachada de pastilhas e uma
padaria no térreo. A porta lateral se abre e uma MULHER RUIVA
sai. Cátia adianta-se para entrar.

CENA 50. EDIFÍCIO DE CASSANDRA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE

Cátia toca a campainha do apto. 73. Nada. Toca de novo. Nada. Vai
tocar pela terceira vez. Barulho de chave girando na fechadura. A
porta abre, revelando Cassandra, com um roupão e uma toalha
enrolada na cabeça. Seu rosto está molhado.

               CÁTIA
               (sem jeito) Desculpa. Eu devia ter telefonado
               antes.

               CASSANDRA
               Não dá nada. Entra.

CENA 51. APTO. DE CASSANDRA/SALA - INTERIOR - NOITE

O apartamento é bem modesto. Móveis velhos ou de baixa qualidade.
Cátia está sentada numa poltrona desbotada. Cassandra não está na
sala.

               CÁTIA
               (alto) Termina teu banho.

               CASSANDRA
               (off) Eu já tava terminando.

Cassandra entra na sala, ainda de roupão e tolha na cabeça, mas
com o corpo e o rosto secos. Senta na frente de Cátia.

               CÁTIA
               O Holmes e o João Paulo me disseram que querem
               filmar um dos roteiros do Veronese, e que tu vai
               ser a atriz principal.

               CASSANDRA
               Eu nem sei que roteiro é esse. Aceitei pra eles
               pararem de me encher o saco.

               CÁTIA
               (sorri) O Veronese dizia que existem dois tipos de
               pessoas: as que fazem as coisas porque gostam de
               fazer, e as que gostariam de não fazer nada, mas
               fazem para que os outros parem de encher o saco.
               (outro sorriso) Acho que ele era do segundo tipo.

               CASSANDRA
               Não acho.

Cátia fica surpresa.

               CASSANDRA
               O Rudi gostava muito de fazer filmes. Uma vez ele
               me disse que dividia as pessoas de outro jeito.

               CÁTIA
               Como?

Cassandra reluta. Levanta.

               CASSANDRA
               Deixa pra lá. É uma bobagem.

               CÁTIA
               Diz.

               CASSANDRA
               Eu... Nem lembro direito.

               CÁTIA
               (já um pouco ríspida) Por favor.

Cassandra ainda demora um pouco. Mas, frente ao olhar inamistoso
de Cátia, acaba falando.

               CASSANDRA
               Tem as pessoas que se masturbam pensando em
               alguém, e as que se masturbam pensando nelas
               mesmas. As primeiras são mais bacanas, mas as
               outras ganham muito mais dinheiro.

Cassandra ameaça um sorriso, mas, frente à cara fechada de Cátia,
respira fundo e tenta remendar.

               CASSANDRA
               Eu avisei que era uma bobagem.

               CÁTIA
               Não achei uma bobagem. Quando ele te disse isso?

               CASSANDRA
               Não faço a menor idéia.

               CÁTIA
               (mais ríspida) Tu faz de conta que não faz a menor
               idéia.

               CASSANDRA
               Calma, Cátia.

               CÁTIA
               (quase descontrolada) Calma coisa nenhuma. Tu acha
               que conhecia o Veronese? O que ele escrevia? O que
               ele pensava? O que ele vivia? Tem certeza? (pausa)
               Tu tá enganada: o Veronese tinha uma filha.

Cassandra fica surpresa.

               CÁTIA
               O nome dela é Linda. Tem 18 anos.

               CASSANDRA
               Que loucura.

               CÁTIA
               (continua olhando para Cassandra) Tu não sabia
               mesmo que ele tinha uma filha?

               CASSANDRA
               Não.

Cátia olha fixamente para Cassandra.

               CÁTIA
               Ele nunca te disse nada?

               CASSANDRA
               Não.

Cátia olha para Cassandra

CENA 52. CASA DE MIRABELA/SALA - INTERIOR - NOITE

Mirabela, de camisola e cabelo todo desarrumado, está sentada
numa poltrona com uma xícara na mão. A sala é grande e tem móveis
rústicos e pesados. As paredes são de madeira. É o interior
típico de um pequeno sítio suburbano.

Cátia, com a mesma roupa da cena anterior, também segura uma
xícara. Sobre uma mesa de centro, uma garrafa térmica.

               MIRABELA
               Que loucura...

               CÁTIA
               Eu perdi a cabeça. (pausa) Ela prometeu não dizer
               pra ninguém. Mas eu não confio nela. O Veronese
               disse que só ia contar sobre a filha se ela
               quisesse.

               MIRABELA
               Se a Cassandra prometeu...

               CÁTIA
               Por quê tu não me conta a verdade?

               MIRABELA
               Que verdade?

               CÁTIA
               Que eles eram amantes. Ele contava tudo pra ela.
               Até que eu não penso em ninguém quando me
               masturbo.

               MIRABELA
               (perplexa, ar cansado) Vamos dormir? Quanto mais a
               gente fala, mais confuso fica. Tu tá criando uma
               fantasia atrás da outra. (pausa) Tem certeza que
               essa filha existe? Ela não apareceu no enterro,
               nem respondeu a tua mensagem.

Cátia fica abalada.

               CÁTIA
               Claro que existe. O Veronese disse... Ele tava
               escrevendo pra ela.

               MIRABELA
               Tem certeza?

Cátia olha para Mirabela, séria.

CENA 53. ÔNIBUS - INTERIOR - DIA

Cátia na poltrona de um ônibus, que está em movimento.

CENA 54. AVENIDA - EXTERIOR - DIA

O ônibus passa por uma placa - "BEM VINDO A NOVA ITÁLIA"

CENA 55. CORREDOR DA SALA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA

Cátia aproxima-se de uma pequena sala com uma porta de vidro.
Dentro da sala, em frente a uma ilha de edição de tele-jornalismo
(analógica), estão LINDA (18 anos) e um REPÓRTER, 25 anos,
editando uma matéria.

Cátia olha para os dois, hesita um pouco, mas acaba batendo.
Linda olha para a porta e faz sinal para Cátia entrar. Ela entra.

CENA 56. SALA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA

Cátia aproxima-se de Linda, que está concentrada na edição. O
repórter está com cara de saco-cheio. No monitor, uma entrevista
com uma JOVEM MODELO.

               JOVEM MODELO
               Foi há dois anos. Eu estava aqui, no shopping, e
               aí me descobriram. Eu tô super feliz de desfilar
               na minha cidade, depois de dois anos em Nova
               Iorque.

Corta para o repórter encerrando a matéria com uma "cabeça".

               REPÓRTER
               Quando entrar na passarela, hoje à noite, Lisandra
               com certeza estará muito emocionada, pois viu seu
               sonho se tornar realidade. Para o Jornal da Tarde,
               José Torresini.

A matéria acaba. Linda olha para o repórter, com ar reprovador, e
depois olha para Cátia.

               LINDA
               Quer falar comigo?

               CÁTIA
               Eu sou... Eu era namorada do Rudi.

Linda continua olhando para Cátia, sem demonstrar reação. O
repórter olha para o relógio.

               REPÓRTER
               A matéria entra no ar daqui a trinta e dois
               minutos.

               LINDA
               (para Cátia) Tu pode esperar um pouco? Senta ali.

Linda aponta uma cadeira, num canto da sala.

               REPÓRTER
               (nervoso) O que tu achou?

               LINDA
               Tá ruim, Zé. Tem que botar alguma coisa no final.
               Gravaram o ensaio do desfile?

               REPÓRTER
               Gravamos. Mas tá horrível. Tinha um monte de
               criança pobre olhando.

               LINDA
               Quero ver. Cadê a fita?

               REPÓTER
               No arquivo.

Linda escreve um bilhete.

               LINDA
               Aproveita e traz essa outra fita e esse CD.

O repórter pega o bilhete e sai, apressado. Linda olha para
Cátia, que sorri, tímida.

               CÁTIA
               Obrigado por responder minha mensagem.

               LINDA
               Desculpa não ter respondido a outra. Eu não sabia
               o que dizer. Até pensei em ir no enterro, mas
               depois desisti. Não tinha sentido.

               CÁTIA
               Eu entendo.

O repórter volta, com duas fitas e um CD. Linda pega tudo.

               REPÓRTER
               (nervoso) Faltam vinte e oito minutos.

               LINDA
               Dá tempo. Sempre dá tempo, Zé.

Enfia uma fita no "player".

CENA 57. CASA DE LINDA EM NOVA ITÁLIA/SALA - INTERIOR - DIA

Na TV da casa de Linda, está acabando a matéria editada por
Linda.

               REPÓRTER
               ...pois viu seu sonho se tornar realidade. Para o
               Jornal da Tarde, José Torresini.

A edição de Linda que se segue mistura, por vinte segundos,
imagens do ensaio do desfile de Lisandra (às vezes em câmara
lenta), imagens de Nova Iorque e as crianças pobres olhando o
ensaio, com uma trilha nova-iorquina ("New York, New York",
"Rapsody in Blue", ou algo parecido).

Quando a matéria termina, uma APRESENTADORA sorridente aparece.

               APRESENTADORA
               Boa tarde.

Linda desliga a TV. Cátia e Linda estão sentadas em poltronas
confortáveis. A decoração da casa é simples, mas de bom gosto.
Uma estante grande com alguns livros ocupa uma das paredes. Há
várias fotos de família penduradas na outra parede.

Linda aponta para uma das fotos na parede: um casal sorrindo. O
homem é Rudi (20 anos). A mulher (20 anos) é parecida com Linda.
Rudi está com uma câmara super-8 na mão.

               LINDA
               Minha mãe e meu pai. Queriam fazer cinema. Ele
               dirigia, ela montava. Fizeram uns filmezinhos em
               super-8. Nessa foto, a mãe já tava grávida de mim,
               mas ele ainda não sabia. Minha vó que tirou. Dizia
               que esse foi o último dia feliz da vida deles.

               CÁTIA
               O que aconteceu?

               LINDA
               Minha mãe contou pra ele da gravidez. Meu pai
               propôs um aborto. Disse que eram jovens demais pra
               ter um filho. Minha mãe acabou concordando.

               CÁTIA
               (chocada) Mas...

               LINDA
               O pai e a mãe não tinham muita grana. Moravam
               nessa casa, com minha vó, que sempre foi muito
               pão-dura. E ela nunca gostou do Rudi.

               CÁTIA
               Mas não teve aborto nenhum.

               LINDA
               Por falta de verba. Minhã mãe descobriu que o Rudi
               tinha tirado todo o dinheiro que eles tinham no
               banco pra comprar uma câmara 16mm usada. Ele tava
               fazendo um filme com uns amigos. O Rudi dizia que
               os amigos iam pagar. Não pagaram. O filme chamava-
               se "Aurora".

               CÁTIA
               O Rudi nunca falou desse filme.

               LINDA
               A vó disse que não tinha filme nenhum. A mãe ficou
               tão braba que expulsou o Rudi de casa. Era pra ser
               uma noite só, pelo menos é o que ela me dizia. Mas
               acho que ele ficou muito chateado. Foi pra Porto
               Alegre e desapareceu.

Linda vai até a estante e pega um pequeno livro: o roteiro de
Interiores, de Woody Allen. Estende o livro para Cátia.

               LINDA
               Quando eu fiz quinze anos, ele me deu esse livro
               de presente. Pelo correio. Eu nunca tinha lido um
               roteiro na vida. E ainda por cima em espanhol.
               Minha mãe disse que ele era louco. (pausa) Eu
               tentei ler, mas achei muito complicado. Nem fui
               até o fim.

Cátia examina o livro atentamente.

               LINDA
               Mas depois o filme foi lançado em vídeo. Eu
               assisti aqui nessa sala. E, pela primeira vez na
               vida, eu senti a presença do meu pai. E entendi o
               presente.

CENA 58. CASA DE LINDA EM NOVA ITÁLIA/FACHADA/CALÇADA -
EXTERIOR - DIA

Cátia e Linda saem pelo portão e caminham juntas na calçada.
Linda está com uma bolsa.

               LINDA
               Mês passado, ele apareceu no meu aniversário de 18
               anos. Minha mãe já tinha morrido. Câncer. Nós
               conversamos um pouco, foi estranho. Não tínhamos
               muito assunto. (sorri para Cátia) De repente, ele
               disse que tava apaixonado por uma garota chamada
               Cátia. E que tava feliz. Depois recebi aquele
               convite pro casamento de vocês...

               CÁTIA
               (cortando) Não era bem um casamento.

               LINDA
               Mas parecia. Acho que ele gostava mesmo de ti.

Cátia sorri para Linda.

               CÁTIA
               E tu nunca teve vontade de conhecer ele melhor?
               Era teu pai.

               LINDA
               Tudo que eu sei dele foi através da mãe e da vó.
               Pra mim, ele nunca foi um pai. Foi um homem
               horrível, que engravidou a minha mãe, mas não
               queria que eu nascesse. Ele roubou o nosso
               dinheiro pra fazer um filme que nunca existiu. E
               depois desapareceu. Quando eu era pequena, tinha
               medo dele. Pensava que ele podia voltar e me fazer
               mal.

               CÁTIA
               Linda, isso é um absurdo. Ele era um homem
               maravilhoso. Um artista. Sensível. Doce. Generoso.
               Ele nunca fez mal a ninguém.

               LINDA
               Li alguma coisa sobre os filmes dele. Eram meio
               fortes, né? Tinham muito sexo...

               CÁTIA
               (meio embaralhada) É... Mas ele era muito
               diferente dos filmes. Quer dizer... Ele era bom,
               Linda. Não era um monstro. Ele seria um ótimo pai,
               tenho certeza.

Caminham mais algum tempo em silêncio.

               CÁTIA
               E tu, é feliz aqui?

               LINDA
               Acho que sim. Pensei em fazer a faculdade em Porto
               Alegre, mas depois decidi ficar. E alguém tinha
               que cuidar da vó. Ela morreu há seis meses.

Caminham mais um pouco. Parece que não têm mais assunto.

               CÁTIA
               Eu achei muito legal aquilo que tu fez lá na TV.
               Ficou emocionante.

               LINDA
               Eu junto os pedaços e encontro um sentido. Não é
               difícil. A mãe me ensinou. Ela trabalhava na TV.

Elas chegam na esquina, onde há dois táxis num ponto. Cátia olha
para Linda. As duas se abraçam. Cátia entra no táxi. Linda
aproxima-se, coloca a mão na bolsa, tira o livro ("Interiores") e
entrega-o para Cátia pela janela aberta.

               LINDA
               Fica com ele.

               CÁTIA
               Não.

               LINDA
               É só emprestado. Depois tu devolve. Por favor.

Cátia sorri. O táxi arranca. Linda abana. Cátia abre o livro.

CENA 59. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA

Cátia, em sua mesa, está lendo o roteiro de "Interiores". Cátia
veste-se com certa displicência e está quase sem maquilagem.

Cristóvão bate na porta e entra. Cátia coloca o livro em cima da
mesa e o esconde com uma folha de papel que apanha rapidamente.
Mas é inútil: Cristóvão percebeu.

               CRISTÓVÃO
               Esqueceu da nossa reunião?

               CÁTIA
               Claro que não.

               CRISTÓVÃO
               Claro que sim.

Cristóvão tira a folha de papel de cima do livro e lê o título.

               CRISTÓVÃO
               Tá na hora de decidir, Cátia. Ou tu volta pro
               planeta Terra, ou fica no mundo da lua.

CENA 60. GALPÃO - INTERIOR - NOITE

Uma grande porta de madeira abre-se, empurrada por Cátia. O
galpão está na penumbra, de modo que Cátia tem certa dificuldade
para se movimentar. Há uma parede de madeira bem à sua frente e
muitas tábuas espalhadas pelo chão.

Cátia segue por um corredor estreito, passando por materiais de
filmes antigos, entre eles uma grande lua cenográfica. Chega numa
área mais iluminada, ampla, em que pode divisar umas DEZ PESSOAS
trabalhando nos cenários de um filme. Uma tapadeira está sendo
pintada. Num canto, em prateleiras improvisadas, há alguns
objetos de cena. No outro canto, móveis de época.

Mirabela e SÍLVIA (30 anos), a assistente de direção - com um
cronômetro pendurado no pescoço, segurando uma prancheta com o
boletim de câmara - discutem alguma coisa. Mirabela percebe a
chegada de Cátia e acena para ela, chamando-a. Cátia se aproxima.
As três se beijam.

               CÁTIA
               Será que eu podia dar uma olhada na filmagem?

               MIRABELA
               (indecisa) Tu sabe como o João Paulo é nervoso. Há
               pouco ele deu o maior esporro na guria que tava
               fazendo a claquete. Ela foi embora chorando.

               CÁTIA
               Eu falei com ele hoje de tarde... Não vou
               atrapalhar. Eu até poderia fazer alguma coisa...
               Sei lá... Como é que se faz uma "claquete"?

CENA 61. GALPÃO/CENÁRIO (QUARTO) - INTERIOR - NOITE

Sílvia segura uma claquete e conversa com Cátia, sob o olhar
atento de Mirabela. Ao fundo, CANIÇO, o diretor de arte, e seus
DOIS ASSISTENTES dão os últimos retoques no cenário, um quarto
muito modesto, com uma cama de solteiro. EDVALDO, o diretor de
fotografia (que também opera a câmara), e o seu ASSISTENTE DE
CÂMARA conferem o foco e limpam a objetiva.

A câmara está sobre trilhos, que começam perto da cama e afastam-
se alguns metros para o fundo do cenário. O OPERADOR DE SOM e o
MICROFONISTA acertam a melhor posição para o boom. O MAQUIADOR e
João Paulo estão em volta de Cassandra e GARCIA (25 anos), um
ator simpático e musculoso.

João Paulo termina de dizer alguma coisa para Cassandra e Garcia,
que riem, deitados na cama. Depois aproxima-se da câmara,
passando pelas três mulheres.

               JOÃO PAULO
               Tamo por quem? Vamos lá! Vamos rodar!

E sai de quadro. Sílvia entrega a claquete para Cátia, que parece
nervosa.

               CÁTIA
               Será que vou fazer direito?

               MIRABELA
               Fica calma. Primeiro o João Paulo diz "som".

               SÍLVIA
               (aponta para o operador de som) Aí o operador do
               som diz "foi som".

               CÁTIA
               E aí eu leio o que tá na claquete (olhando para a
               claquete). "Cena tal. Plano tal. Tomada tal".

               MIRABELA
               O João Paulo diz "câmara".

               CÁTIA
               E eu bato a claquete e saio correndo.

               MIRABELA
               Calma. Não precisa correr. Sai rápido. E aí o João
               diz "ação". (olha para Cátia, maternal) Pronta?

               CÁTIA
               Acho que sim.

               JOÃO PAULO
               (off) Vamos filmar, Cátia? Tamo por ti.

               CÁTIA
               (surpresa) Por mim? Como "por mim"?

               MIRABELA
               Tu tem que botar a claquete na frente deles.

Cátia imediatamente vai até a frente de Cassandra e coloca a
claquete (sem os números de cena, plano e tomada) na frente dos
atores.

               CÁTIA
               (baixinho, só para Cassandra) Desculpa. Eu tava
               nervosa naquela noite.

               CASSANDRA
               (sorrindo, amistosa) Tudo bem.

               JOÃO PAULO
               (off) Não tá faltando alguma coisa?

               CÁTIA
               (já insegura) Acho que não.

Sílvia vai até Cátia e fala com ela em voz baixa. Cátia, meio
atrapalhada, cola os números na claquete.

               CÁTIA
               Agora tá pronto.

               JOÃO PAULO
               (off, quase gritando) Atenção! Vamos começar!

CENA 62. APTO. DO "CINEASTA"/QUARTO - INTERIOR - NOITE
* filmada em 35mm - atores: Garcia e Cassandra.

Ponta preta. Apenas ouvimos os sons.

               JOÃO PAULO
               (off) Vai som!

               OPERADOR DE SOM
               (off) Foi som.

               CÁTIA
               (off) Filme de mentira. Cena 2. Plano 1. Tomada 1.

               JOÃO PAULO
               (off) Câmara.

Em primeiro plano, Cátia segura a claquete, já sob o ponto de
vista da câmara do filme. Atrás da claquete, vemos Cassandra e
Garcia, na cama.

               JOÃO PAULO
               (off) Pode bater, Cátia.

Cátia bate a claquete e sai de quadro.

               JOÃO PAULO
               (off) Ação!

Garcia beija Cassandra. Os dois estão deitados numa cama de
solteiro, ele por cima dela.

               JOÃO PAULO
               (off, bem baixinho) Vai travelling.

A câmara se afasta. Enquanto continua beijando, Garcia tenta
tirar a blusa de Cassandra, mas ela dá um forte empurrão.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Eu sei o que tu quer, mas não vai levar.

               GARCIA (como CINEASTA)
               Eu só quero te amar!

               CASSANDRA (como GAROTA)
               (fazendo beicinho) Tu só quer o meu corpo.

               GARCIA (como CINEASTA)
               Quem te disse uma besteira dessas?

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Todos as pessoas que eu conheço.

Garcia/cineasta acaricia o rosto de Cassandra/garota. A câmara se
aproxima. As carícias ficam mais quentes.

               GARCIA (como CINEASTA)
               Tudo mentira. Eu já te disse: tu vai ser a atriz
               principal do meu filme.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Promete mesmo? Eu vou ser atriz?

Garcia/cineasta faz uma cruz com os dedos e a beija.

               GARCIA (como CINEASTA)
               Juro por Deus. (pequena pausa) Mas tu tem que
               superar alguns pequenos problemas.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               (preocupada) Que problemas?

               GARCIA (como CINEASTA)
               Tô te achando um pouco inibida. Uma atriz tem que
               saber seduzir o público.

Cassandra/garota livra-se do abraço do cineasta e levanta da
cama. Com um gesto rápido, levanta a blusa e mostra os seios.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Viu? Não sou envergonhada. Mas tu só vai chegar
               perto depois que eu for atriz de verdade.

Os olhos de Garcia brilham de emoção.

               JOÃO PAULO
               Corta! Muito bom!

João Paulo sorri, satisfeito. Cátia sorri, sem-jeito.

CENA 63. EDIFÍCIO DE CÁTIA/FACHADA - EXTERIOR - DIA

Um pequeno caminhão de mudança está parado na frente do edifício
de Cátia. Enquanto os funcionários da companhia de mudança
descarregam algumas caixas, Cátia retira objetos mais delicados
no interior do seu carro, também parado na frente do edifício.

Valdo chega quando ela está se preparando para descarregar o
projetor 16mm.

               VALDO
               Ôi. Posso ajudar?

               CÁTIA
               Tem certeza? É pesado.

Valdo pega o projetor no carro. Cátia pega o notebook de
Veronese. Os dois caminham juntos para a porta do edifício.

CENA 64. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA

Valdo coloca o projetor sobre mesa. Cátia coloca o notebook de
Veronese ao lado do projetor. Um dos funcionários da companhia de
mudança coloca no chão uma caixa de papelão.

               CÁTIA
               Obrigado por tudo.

Cátia passa uma gorjeta pro funcionário, que sai do apto. Cátia
fecha a porta. Valdo senta e sorri para ela.

               VALDO
               Vem aqui.

               CÁTIA
               Não.

               VALDO
               Relaxa, Cátia...

Cátia abre a porta outra vez. Olha para Valdo.

               CÁTIA
               Eu tô muito cansada. Vai embora.

CENA 65. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - NOITE

Na mesma poltrona em que estava sentado Valdo na cena anterior,
agora vemos Veronese, olhando na direção da porta (e de Cátia).
Veronese está colocando os sapatos. Há duas garrafas de vinho
vazias e dois copos sobre a mesa.

               VERONESE
               Tu tá me mandando embora? De verdade?

Cátia está terminando de colocar a blusa.

               CÁTIA
               Tô. Tu tem a tua casa, eu tenho a minha. Ou a
               gente tem uma casa, uma cama e uma vida em comum,
               ou são duas casas, duas camas e duas vidas
               separadas. Aceito uma coisa ou outra. Mas não
               aceito uma casa e meia, uma cama e meia, uma vida
               e meia.

               VERONESE
               Tudo isso só porque eu disse que tava com preguiça
               de ir pra casa?

               CÁTIA
               Não é só por causa de hoje. É por causa de
               anteontem. E da semana passada, em que eu dormi na
               tua casa, e tive que usar a mesma calcinha dois
               dias seguidos.

Veronese levanta, aproxima-se e tenta abraçar Cátia, mas ela não
deixa. Veronese desiste de abraçá-la, mas permanece bem perto de
Cátia.

               VERONESE
               Meu amor... Tá chovendo...

Veronese inclina-se para beijar Cátia, mas ela se afasta.

               CÁTIA
               Nem vem. Vai pra tua casa. Agora!

               VERONESE
               A gente se ama. É tão bom... Cada um na sua casa.

               CÁTIA
               Se a gente for morar junto vai parar de se amar?

               VERONESE
               O amor é uma coisa tão complicada...

               CÁTIA
               Pra mim, não. É bem simples. Vai pra tua casa.
               Essa aqui é a minha.

CENA 66. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA

Valdo passa por Cátia, que ainda está parada perto da porta.
Valdo dá dois beijos no rosto de Cátia.

               VALDO
               Tem certeza que é bom pra ti ficar sozinha?

               CÁTIA
               Tenho.

               VALDO
               Sabe o que eu acho? Posso dizer o que eu acho?
               Talvez seja útil.

               CÁTIA
               Acho difícil. Mas vamos lá.

               VALDO
               Eu acho que tu criou uma culpa enorme, que tá te
               fazendo sofrer de um jeito que tu não merece.

               CÁTIA
               Terminou?

               VALDO
               Não. Eu te amo.

               CÁTIA
               Sabe o que eu acho? Posso dizer o que eu acho?

               VALDO
               Pode.

               CÁTIA
               Eu tenho a minha culpa, que é grande. Mas a tua é
               muito maior. Tu não me ama. Pára de mentir. Vai
               pra tua casa. Essa aqui é a minha. (aponta para o
               projetor em cima da mesa) Tu sabe mexer naquilo?

               VALDO
               Sei.

               CÁTIA
               Ótimo. A Mirabela tentou, mas foi um desastre.
               Pode me dar umas aulas num dia desses? Isso seria
               útil.

CENA 67. PEQUENA SALA DE CINEMA - INTERIOR - DIA

Cátia, Mirabela, Cassandra, Caniço e Edvaldo estão sentados numa
sala de cinema, com as luzes ligadas. Todos os outros lugares
estão vazios. Mirabela fala no celular.

               MIRABELA
               Se tu quiser, a gente espera. (pequena pausa) Tudo
               bem. (desliga o celular) O João Paulo tá na
               produtora. Mandou a gente ver sem ele.

Mirabela faz um sinal para os fundos da sala.

               MIRABELA
               Ele tava muito estranho.

A sala fica escura. Começa o copião. Cátia segura a claquete,
abaixa um pouco, bate e depois sai. Garcia beija Cassandra, etc.
Travelling. Eles começam a falar sem som.

               CÁTIA
               Tá sem som.

               MIRABELA
               É assim mesmo. O som a gente põe depois.

Um celular toca na sala. Mirabela atende.

               MIRABELA
               Alô.

Mirabela ouve por algum tempo.

               MIRABELA
               Não. Ninguém me disse nada.

Ouve mais algum tempo, depois desliga. Está perplexa.

               CASSANDRA
               O que foi, Mira?

               MIRABELA
               Era a Sílvia. Ela tá no estúdio. O João mandou
               desmontar os nossos cenários.

CENA 68. ESTÚDIO - INTERIOR - DIA

Cátia entra no estúdio. João Paulo está comandando uma EQUIPE de
cinema que filma um comercial de refrigerante. Restos do cenário
do "Filme de mentira" estão encostados nas paredes.

No cenário principal do estúdio, decorado como se fosse um bar,
UMA DEZENA DE JOVENS toma refrigerante. Uma grande câmara está
sobre um travelling, deslizando rápido sobre os trilhos,
mostrando os jovens em plano fechado.

A ação termina numa LOURA, que dá uma piscada para o lado.

               JOÃO PAULO
               Corta!

João começa a falar com a loura, mas, quando vê Cátia, abandona o
set e aproxima-se da amiga.

               CÁTIA
               Eu posso esperar.

               JOÃO PAULO
               Eu só vou sair desse estúdio daqui a uma semana.

               CÁTIA
               Uma semana pra fazer um comercial de refrigerante?

               JOÃO PAULO
               Cinco comerciais de refrigerante. Esse é o
               primeiro, e já estou com vontade de matar aquela
               modelo. (aponta para a loura) Ela não consegue
               tomar refrigerante e piscar ao mesmo tempo. É
               terrível.

               CÁTIA
               Se é tão ruim assim, por que tu faz?

               JOÃO PAULO
               Tu não imagina quanto eu vou ganhar pra fazer
               cinco comerciais de refrigerante. (pausa) A
               Mirabela disse que tu ficou chateada. Desculpa.
               Mas aquele roteiro não tem nada a ver comigo. Eu
               tava gastando uma grana e recusando trabalhos pra
               produtora. Aí, ontem, na minha análise, descobri
               que filmar o roteiro do Veronese era uma cerimônia
               de despedida. Já me despedi. Diz isso pro Holmes.
               Ele pode terminar a obra-prima dele sem se
               preocupar comigo.

CENA 69. APARTAMENTO/SALA - INTERIOR - DIA

O set de filmagens comandado por Holmes, num apartamento vazio, é
de uma precariedade total. Além dele, estão presentes na sala o
ator AFONSO (25 anos), um OPERADOR DE CÂMARA, que segura uma
câmara DV amadora e uma ASSISTENTE, com cara de
estudante/estagiária. Cátia conversa com Holmes.

               HOLMES
               (incrédulo) Tá brincando.

               CÁTIA
               Ele parou mesmo. Desistiu. Agora o roteiro é todo
               teu. Quantos dias de filmagem ainda faltam?

               HOLMES
               Não sei. O dinheiro acabou.

               CÁTIA
               Mas tu disse que ia fazer o filme com três mil
               reais.

               HOLMES
               Fiz uma parte. Mais da metade. (barulho de porta
               abrindo; Holmes fala mais baixo) Mas a Cassandra
               tá complicando.

Cassandra entra na sala, vinda do quarto, maquiada, segurando
alguns produtos de maquiagem na mão. Está com uma cara péssima e
um humor pior ainda.

               CASSANDRA
               (para Cátia) Ôi. (para Holmes) Conseguiu a grana?

               HOLMES
               (titubeia) A grana?

               CASSANDRA
               É aquela coisa que serve pra pagar maquiagem,
               comida, aluguel. Conseguiu?

               HOLMES
               Ainda não. (pega no bolso uma fita mini-DV) Mas eu
               consegui uma mini-DV nova. Não vamos mais ter que
               refazer por causa de fita amassada. Vamos lá?

CENA 70. APTO. VAZIO - INTERIOR - DIA

* filmada em DV - atores: AFONSO (25 anos) e Cassandra. É um
plano-seqüência, com câmara na mão.

A assistente segura uma claquete improvisada na frente da câmara.
Atrás, uma porta com uma placa de "Aluga-se".

               HOLMES
               (off) Atenção. Tá gravando? Ação.

Cassandra/garota entra em quadro, com uma bolsa no ombro, e
aperta a campainha. Afonso/cineasta abre a porta, sorridente, com
um fotômetro pendurado no pescoço. Beija Cassandra/garota na
boca. Ela corresponde, mas ainda está desconfiada.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               É aqui?

               AFONSO
               Claro. Entra!

Cassandra/garota entra (a câmara entra junto) e olha em volta. O
apartamento está vazio. Há uma câmara VHS (bem usada) sobre um
tripé e um refletor de 1000 watts amarrado num cabo de vassoura,
que por sua vez está amarrado na caixa da veneziana.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Não é perfeito? Parece o "Último tango em Paris".

Cassandra/garota aponta para o fotômetro.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               O que é isso?

               AFONSO (como CINEASTA)
               Um fotômetro. Serve para medir a luz. Tem que
               considerar a ASA do filme. Sabe a ASA?

Cassandra/garota olha para a câmara VHS, desconfiada.
Afonso/cineasta acende o refletor e aproxima o fotômetro do rosto
da garota.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Perfeito! Estudou a cena?

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Onde tá o ator?

               AFONSO (como CINEASTA)
               Ele tinha um compromisso e vai chegar mais tarde.
               Por enquanto, eu vou fazer o papel dele, só pra
               gente não perder tempo. Vamos lá? É a cena do
               beijo.

Afonso abre os braços. Cassandra/garota olha outra vez para a
câmara, para Afonso/cineasta e fecha a cara.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Aquilo ali não é filmadora de cinema. Meu tio tem
               uma igual, mas a dele é mais nova. E esse teu
               radinho de pilha não engana ninguém. Adeus.

Cassandra/garota sai do quarto, furiosa.

               HOLMES
               (off) Vai atrás dela.

A câmara segue Cassandra, que, em vez de sair direto, vai para o
banheiro, onde começa a tirar a maquiagem, com a ajuda de um
pequeno espelho na parede. Holmes entra em quadro.

               HOLMES
               Era pra ter saído direto. Mas a cena ficou boa.

               CASSANDRA
               Tô indo embora.

Cátia entra em quadro e acompanha a discussão.

               CASSANDRA
               Não vou continuar pagando pra trabalhar. Sabe que
               o imbecil do João desistiu do filme dele? Sabe
               quanto tempo eu fiquei no ônibus pra vir pra cá? E
               ainda paguei a passagem. Quando tiver um saquinho
               de ficha de ônibus, me liga.

Cassandra termina de retirar a maquiagem, dá as costas para
Holmes e afasta-se dele. Depois pára e volta-se para Holmes.

               CASSANDRA
               Pensando bem, não liga.

E sai. A câmara vai para Holmes, que olha para Cátia,
constrangido.

               CÁTIA
               E aquele dinheiro que eu te emprestei?

               HOLMES
               Gastei com o meu aluguel. Tava seis meses
               atrasado. (mais baixo) Acabou o filme. (para
               Cátia) Desculpa.

Holmes olha para a câmara, brabo.

               HOLMES
               Tu tava gravando isso tudo? Desliga essa merda.

CENA 71. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA

Valdo opera o projetor 16mm. Cátia está sentada ao seu lado. No
chão há uma caixa de papelão cheia de latas, pequenas e médias,
com filmes 16mm, alguns em batoques, outros em carretéis.
Misturados, alguns rolinhos de super-8. Um filme (preto-e-branco)
está rodando no projetor. Não há som.

               VALDO
               Esse eu lembro. "O sexo errado". Tem uma trepada
               sensacional. A atriz tinha 17 anos. Deu um baita
               rolo com a mãe dela.

               CÁTIA
               Pode tirar. Eu já vi em vídeo.

Valdo pára o projetor, retira o filme e começa a rebobinar.

               CÁTIA
               O João Paulo e o Holmes desistiram dos filmes.

               VALDO
               Eu sei. Em compensação, eu começo depois de
               amanhã. Quer dar uma olhada no set?

               CÁTIA
               Posso ir mesmo?

               VALDO
               Claro. Mas não vai no primeiro dia. Sábado é
               melhor.

               CÁTIA
               (sorrindo) Então vou.

               VALDO
               Não quer ler o final que eu escrevi?

               CÁTIA
               Não.

Valdo bota outro filme pra rodar. É um copião montado com durex.
Não há créditos.

               VALDO
               Esse eu nunca vi.

Uma imagem (desbotada, riscada) da fachada da casa de Linda em
Nova Itália, com o sol nascendo. Outra imagem: apenas o sol perto
do horizonte.

               CÁTIA
               (baixinho) "Aurora"...

CENA 72. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR

Cátia entra no set, bem discretamente. Uma das ASSISTENTES DE
DIREÇÃO sorri para ela e indica uma cadeira vaga, de onde pode
ver a cama, onde o ator LÉO (40 anos) e Cassandra (de blusa, saia
e meia de seda) estão sentados numa cama redonda, com espelhos no
teto, ouvindo instruções de Valdo.

A luz simula o efeito das lâmpadas coloridas (e meio bagaceiras)
espalhadas em volta da cama, perto do chão.

               VALDO
               (para os atores) Vamos passar a cena toda. Eu vou
               dando as marcações.

Cassandra concorda com a cabeça. Valdo vira-se para sentar em sua
cadeira. Vê Cátia. Acena e sorri para ela.

               VALDO
               Vamos lá. Posição inicial.

Cassandra e Léo levantam-se e vão até a porta. Colocam-se frente
a frente.

               VALDO
               Ação!

Léo abraça e beija Cassandra, que corresponde. Léo vai empurrando
Cassandra na direção da cama, sempre beijando. Leó faz com que
ela se deite.

               VALDO
               Perfeito, agora começa a tirar a roupa dela.

Léo tenta tirar a blusa de Cassandra, mas ela resiste.

               VALDO
               Ela resiste. Mas ele não quer saber.

Cátia olha para Valdo, confusa. Com um gesto quase violento, Léo
tira a blusa de Cassandra. Ela está com um sutiã preto e semi-
transparente. Léo não pára de beijá-la. Tenta levantar a saia de
Cassandra.

               CASSANDRA
               Espera...

               VALDO
               Tem que falar mais alto, Cassandra.

               CASSANDRA
               (mais alto) Espera, eu tenho que...

               VALDO
               Isso! Pede agora.

               CASSANDRA
               (para Léo) Apaga a luz!

Cátia fica tensa.

CENA 73. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ DIA

Nas mesmas posições dos personagens da cena anterior, sobre uma
cama, com os mesmos figurinos e fazendo quase a mesma coisa,
estão Valdo e Cátia. A luz do sol entra pela janela. Valdo beija
Cátia sem parar. Cátia olha para a janela.

               CÁTIA
               (bem baixinho) Só um pouquinho... Eu vou fechar...

Valdo não ouve.

CENA 74. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR

Léo e Cassandra beijam-se, as roupas tiradas pela metade.

               CASSANDRA
               Apaga a luz, por favor.

               VALDO
               (off) Ele não quer saber de luz nenhuma. (pequena
               pausa) Agora ela tenta fugir.

Cassandra faz força para se libertar de Léo, mas ele não a deixa
escapar. Vai tirando o resto da roupa dela e encaminhando os
finalmentes da transa.

               VALDO
               Agora ela pede de novo.

               CASSANDRA
               Apaga a... Ahhh! (Léo conseguiu penetrar) ...a
               luz! Por favor... (com a boca do ouvido de Valdo)
               A luz.

               LÉO
               Mais luz?

Léo estende o braço e acende a luz principal.

               VALDO
               Ela olha pro espelho no teto.

Cassandra olha para cima, na direção do espelho. Parece
fascinada. Cátia está mais tensa ainda.

CENA 75. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ DIA

Ponto de vista do teto. Valdo e Cátia, abraçados, sob a luz forte
que entra pela janela. Cátia olha para cima, com os olhos bem
abertos.

CENA 76. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR

Cátia levanta e pega um roteiro sobre uma três-tabela. Começa a
folhear o roteiro. Olha para Valdo, abalada.

               CÁTIA
               Filho da puta!

Valdo olha para ela, sem entender o que está acontecendo. Cátia
corre para fora do cenário, sem dizer coisa alguma.

               VALDO
               (para os atores) Só um instante! (na direção de
               Cátia) Cátia! Cátia!

CENA 77. ESTÚDIO (FORA DO CENÁRIO) - INTERIOR - DIA

Cátia corre pelo estúdio, que está numa discreta penumbra. Vê o
ASSISTENTE DE CÂMARA, sentado num canto, manipulando magazines e
latas de filmes. Cátia vai até lá, pega duas latas fechadas com
fita crepe. O assistente, surpreso, não reage.

Cátia corre até um praticável alto, sobe nele e joga a escada no
chão. Lá em cima há pouca luz. Valdo, Cassandra, Edvaldo e o
assistente de câmara chegam no praticável. Cátia está tentando
abrir uma das latas.

               VALDO
               (gritando) Calma, Cátia. (para Edvaldo) Joga uma
               luz.

Edvaldo começa a ligar um fresnel, enquanto o assistente de
cãmara pega a escada e a encosta no praticável.

               CÁTIA
               Se alguém tentar subir, eu me atiro.

               CASSANDRA
               Calma, Cátia.

Edvaldo liga o fresnel, iluminando o rosto de Cátia. Ela consegue
abrir uma das latas e tira o negativo de dentro.

               EDVALDO
               Porra, ela tá velando tudo!

Valdo sobe dois degraus na escada.

               VALDO
               Chega, Cátia.

Cátia, sorridente, mostra o filme para todos.

               CÁTIA
               Eu já aprendi alguma coisa sobre cinema. Aprendi o
               que tem dentro dessas latas. (para Valdo) Se subir
               mais um degrau, eu abro a outra.

               CASSANDRA
               Vamos conversar, Cátia. Desce daí.

               CÁTIA
               (para Valdo) Como tu teve coragem de escrever
               aquilo?

               VALDO
               (confuso) Quem escreveu foi o Veronese.

               CÁTIA
               Não mente.

Cassandra aproxima-se de Valdo.

               CASSANDRA
               O teu micro taí?

               VALDO
               Ali no escritório.

Cassandra sai correndo. Valdo sobe mais um degrau. Cátia empurra
a escada, quase derrubando Valdo no chão.

               CÁTIA
               Eu li o roteiro do Veronese. Não tinha essa cena.

               VALDO
               Claro que tinha! Eu só escrevi o final.

Cassandra volta, com o notebook de Valdo na mão.

               CASSANDRA
               Cátia, tu deve ter lido a versão anterior, de
               maio. Depois o Veronese continuou. Tem o dia aqui:
               20 de junho. Essa cena é do Veronese, Cátia!

Cátia olha pra baixo, desconcertada. Olha para Valdo, depois para
Cassandra, depois para Valdo outra vez.

CENA 78. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE

Valdo e Cátia conversam, sozinhos no camarim. Cátia está com o
roteiro na mão.

               VALDO
               Como eu ia adivinhar? Nós nunca nos encontramos em
               motel. Tu nunca pediu pra apagar a luz nenhuma.

               CÁTIA
               (quase um murmúrio) Pedi. Eu queria fechar a
               janela.

               VALDO
               Se pediu, eu juro que não ouvi. Pra mim, aquilo
               tudo é ficção.

               CÁTIA
               Eu sei. Ficção. (pequena pausa) Por que tu contou
               pro Veronese sobre nós?

               VALDO
               Eu não contei nada...

               CÁTIA
               (cortando, séria) Contou. Eu sei que contou. O
               Veronese escreveu a cena depois de almoçar
               contigo, no dia em que ele morreu, 20 de junho. Eu
               tenho certeza. Não mente mais pra mim, por favor.

Valdo fica quieto por algum tempo, olhando para o lado.
Finalmente, encara Cátia.

               VALDO
               Ele sabia de uma coisa, e disse que ia te contar.
               Eu... Tive medo.

               CÁTIA
               Medo do quê?

CENA 79. RESTAURANTE JAPONÊS - INTERIOR - DIA

Valdo e Veronese almoçam em restaurante japonês. Veronese tem
certa dificuldade para usar os pauzinhos. Valdo parece manejá-los
com maestria.

               VERONESE
               Não precisa ter medo. Eu amo muito a Cátia. E vou
               continuar amando.

Valdo pega um sushi, molha-o no shoyu e coloca-o na boca. Faz
tudo isso com um sorriso nos lábios e balançando a cabeça.

               VALDO
               (sorrindo, mas já nervoso) Tira essa bobagem da
               cabeça. Eu pensei que tu queria falar sobre o
               regulamento do concurso. De onde tu tirou...

               VERONESE
               A Cassandra me disse que tu andava estranho. Eu
               pensei: vou marcar um almoço com o Valdo, faz
               tempo que a gente não conversa. Aí eu tentei
               marcar um dia. (pausa) Tu é um cara ocupado, eu
               sei, mas as tuas desculpas eram horríveis.

               VALDO
               Eu tô realmente muito ocupado. O meu longa...

               VERONESE
               Tudo bem. É o preço do sucesso. Só que, nos mesmos
               dias em que eu tentava marcar contigo, depois de
               não conseguir, eu tentava marcar com a Cátia. A
               gente almoça juntos, às vezes. (pausa) E ela
               também dava desculpas horríveis.

               VALDO
               Coincidência, Veronese. Que coisa ridícula!

               VERONESE
               Quatro vezes seguidas? Coincidência demais. Aí, tu
               me telefona e diz "amanhã eu posso". E, uma hora
               depois, a Cátia também me convida pra almoçar.

Valdo está levando outro sushi à boca. Pára, com o sushi a
centímetros dos dentes.

               VALDO
               Que paranóia. Cara, tu tá completamente enganado.

               VERONESE
               Talvez. Mas a Cassandra também me disse outra
               coisa. Que ela tá transando contigo. Há mais de um
               mês.

O sushi escapa dos hashis de Valdo em câmara lenta e mergulha no
pratinho de shoyu, gerando uma onda de molho que atinge em cheio
a camisa branca de Valdo. A sujeira é grande.

CENA 80. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE

Cátia olha para Valdo, que olha para Cátia.

               VALDO
               Me ouve até o fim! Por favor...

CENA 81. RESTAURANTE JAPONÊS - INTERIOR - DIA

Segue o diálogo entre Veronese e Valdo, este com a camisa toda
manchada. Tenta limpá-la com o guardanapo. Não dá certo.

               VALDO
               (sorri e tenta recuperar-se) Então... Eu admito.
               Tô namorando a Cassandra. A gente combinou de não
               contar pra ninguém, mas ela falou pra ti. E daí? O
               que a Cátia tem a ver com...

               VERONESE
               Tu e a Cassandra. Eu vou contar pra Cátia. Vai ser
               bom pra mim. Ela sempre sentiu ciúmes da
               Cassandra. Agora vai parar de encher o saco.

Valdo sente o golpe.

               VERONESE
               Eu sei que é melhor ficar quieto. Só preciso que
               tu me diga a verdade. É um trato. Fica tudo como
               está. Eu amo muito a Cátia. E decidi morar com
               ela. Se ela quiser, podemos casar. Tô pensando em
               ter filhos.

Valdo está vencido.

               VALDO
               Olha, Veronese... Eu e a Cátia... Eu sei que não
               devia... Foi errado. Muito errado.

               VERONESE
               Errado? Não sei. Talvez tenha sido bom. Tô falando
               sério. Me fez pensar. Me fez decidir. (pausa) Eu
               só vou fazer uma pergunta. Uma só. Tudo bem?

Valdo acente.

               VERONES
               Quando vocês transavam, ela te pedia alguma
               coisa... diferente?

               VALDO
               Como assim?

               VERONESE
               Na hora do sexo. Ela não te pedia um troço meio
               estranho?

               VALDO
               Não. Nada.

               VERONESE
               Alguma coisa com a luz.

               VALDO
               Com a luz? Não.

CENA 82. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE

Cátia olha para Valdo, com uma mistura de dor e desprezo.

               VALDO
               Eu fiquei com medo de te magoar.

               CÁTIA
               E tu também transa com a Cassandra porque tem medo
               de me magoar?

               VALDO
               Não. Com a Cassandra não é sério. Eu te amo... De
               verdade. Tu acredita em mim?

               CÁTIA
               No teu amor? Claro que não. O que tu sente é outra
               coisa. Mas tudo bem. Eu acredito no resto. Faz
               sentido. É o que interessa, né? Juntar os pedaços
               e encontrar um sentido.

CENA 83. ESTÚDIO - INTERIOR - DIA

* filmada em 35mm - atores: Garcia (cineasta) e Cassandra

Garcia/cineasta conversa com Cassandra. ROGER (25 anos) opera uma
câmara DV. Também há um ATOR (40 anos) no estúdio de paredes
descascadas, iluminado por alguns refletores.

               GARCIA (como CINEASTA)
               (apontando) O Roger, que vai fazer câmara, e o
               Camargo, que vai fazer o papel do cineasta.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Prazer.

Cassandra/garota vai direto até a câmara e a examina. Roger se
aproxima. Ela parece duvidar de tudo à sua volta.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Não parece muito uma câmara de cinema.

               ROGER
               Mas é. De cinema digital. A gente grava em vídeo,
               depois passa pra película.

               GARCIA (como CINEASTA)
               Um filme que ganhou o festival de Cannes foi feito
               com um câmara igual a essa. "Dançando no escuro".
               A Bjork, aquela cantora, faz uma cega. Chegou a
               ver?

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Não. Acontece que eu não sou cega e o público
               também não. Eu não sou cantora, sou atriz, e não
               gastei dez mil horas malhando numa academia para
               ficar dançando no escuro. Eu quero dançar no claro
               e na frente de uma câmera de cinema.

Cassandra/garota dá as costas para os homens e se afasta.
Garcia/cineasta vai atrás dela, desesperado.

               GARCIA (como CINEASTA)
               É um filme pós-moderno, que usa várias
               tecnologias. Amanhã a gente filma em 16mm. Eu
               juro.

Cassandra/garota pára e volta-se para Garcia.

               CASSANDRA
               Amanhã eu quero ver uma câmara de cinema. Cinema!
               Ou esse filme acaba antes de ter começado.

CENA 84. RUA - EXTERIOR - DIA

* filmada em DV - atores: Afonso e Cassandra

Em volta de uma câmara 16mm (sobre um tripé), estão
Afonso/cineasta, um OUTRO ATOR e um OUTRO ROGER (o operador de
câmara), além de uma pequena equipe, toda de mentira: um OPERADOR
DE SOM (com um nagra muito velho), uma ASSISTENTE DE DIREÇÃO e
uma FIGURINISTA. Há até uma claquete de verdade, em que está
escrito o título do filme: "A ÚLTIMA CHANCE". Cassandra/garota e
o ator estão frente a frente.

               AFONSO (como CINEASTA)
               (para a garota) Você se aproxima dele, diz "eu te
               amo" e o abraça.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               (nervosa) Eu abraço, entendi.

Cassandra/garota se afasta um pouco. A assistente de direção
aproxima-se com a claquete.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Atenção! Vai som.

               OPERADOR DE SOM
               Foi som.

Cassandra/garota olha na direção do Outro Roger, o operador de
câmara, e nota um sorriso maroto.

               ASSISTENTE
               (off) Cena três, plano três, tomada um.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Câmara.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Corta!

               AFONSO (como CINEASTA)
               (surpreso) Corta?

Cassandra/garota aproxima-se da câmara.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               (para Outro Roger) Abre essa câmara.

               OUTRO ROGER
               Não posso. Vai estragar o filme.

Afonso/cineasta chega na discussão. Está nervoso.

               AFONSO (como CINEASTA)
               O que aconteceu?

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Não tem filme nessa câmara. (aponta para Outro
               Roger) Ele tava rindo de mim.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Que paranóia. Claro que tem filme. Se abrir, vela.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Eu pago outro. Abre.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Impossível.

Cassandra/garota se atira na câmara, caindo e derrubando o tripé,
enquanto luta para abrir a tampa. Consegue abrir: não há filme
algum na câmara.

Ela dá um tapa bem estalado na cara Afonso/cineasta, levanta e
sai. Na porta do estúdio, ainda desabafa, em altos brados:

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Tu ainda vai ouvir falar de mim! Eu vou ser atriz!

Afonso/cineasta, com a mão sobre a bochecha em que levou o tapa,
responde, também gritando:

               AFONSO (como CINEASTA)
               Tu não é atriz e nunca vai ser!

               CASSANDRA (como GAROTA)
               E tu vai passar a vida inteira dizendo que faz
               cinema pra tentar comer as atrizes. Mas não faz
               filme nenhum! E não come ninguém!

CENA 85. ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA

O último frame do último plano de Cassandra (quando ela diz "E
não come ninguém") está congelado no monitor de uma ilha de
edição digital. Cátia e Linda estão sentadas na frente da ilha.
Cátia está sorrindo, satisfeita.

               CÁTIA
               Tá super bom. Bom mesmo! Parabéns.

               LINDA
               Mas, daqui pra frente... Não sei. Algumas cenas
               estão incompletas. E têm três cenas faltando.
               Nenhum dos dois filmou. (pequena pausa) Eu tive
               uma idéia. Não sei se vai dar certo. Cátia, eu
               nunca fiz um filme.

               CÁTIA
               Nem eu. Qual é a idéia?

               LINDA
               Logo depois dessa cena (aponta para o monitor) vem
               um letreiro, tipo: "Alguns anos depois."

CENA 86. ESTÚDIO DE TV - INTERIOR - DIA

* filmada em 35mm e DV - atores: Garcia (cineasta em 35mm),
Afonso (cineasta em DV) e Cassandra. A idéia é misturar tudo.

CARTÃO: ALGUNS ANOS DEPOIS

Cassandra/garota, com roupas e cabelo do século 19, fala com
alguém que não vemos.

               35mm - CASSANDRA (como GAROTA)
               É tão difícil saber se é mesmo amor. Mas eu tenho
               um grande desejo. Talvez "desejo" não seja uma boa
               palavra. Mas também não posso dizer que eu estou
               "apaixonada". Apaixonar-se é sentir o coração
               doendo, é ter febre, é sofrer por alguém. E isso
               eu não sinto. Talvez o problema seja essa nossa
               mania de dar nomes para tudo, de tentar que cada
               coisa seja ligada a uma determinada palavra.

Continua o monólogo, mas Cassandra está com outro figurino (muito
mais pobre) e outro penteado (muito menos sofisticado)

               DV - CASSANDRA (como GAROTA)
               Quem sabe, no dia em que nos libertarmos das
               palavras, nossos sentimentos também fiquem mais
               livres. E a gente consiga ser mais feliz. Sentir,
               apenas, sem pensar em tantas categorias. Desejo,
               amor, paixão... As palavras não nos ajudam a
               compreender o que sentimos. Será que alguém, algum
               dia, poderá dizer, com toda certeza, "isso é
               amor", "aquilo não é amor"?

               DIRETOR
               (off) Corta! Ótimo. Almoço!

35mm - Cassandra/garota abandona o set, rumo ao camarim. Enquanto
caminha, vai tirando bijuterias, roupas e peruca e entregando
tudo para uma ASSISTENTE DE FIGURINO.

               ASSISTENTE DE FIGURINO
               Tem um moço querendo falar com você.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Que moço?

A assistente aponta para Garcia/cineasta, que está quase na
frente delas, encostado numa tapadeira.

               ASSISTENTE DE FIGURINO
               Aquele ali.

Cassandra/garota olha para Garcia/cineasta, surpresa.

CENA 87. RESTAURANTE DA TV - INTERIOR - DIA

* filmada em 35mm e DV - atores: Garcia (cineasta em 35mm),
Afonso (cineasta em DV) e Cassandra. A idéia é continuar
misturando tudo, desta vez com intervalos menores.

35mm - Cassandra/garota e Garcia/cineasta conversam.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Quase cinco anos.

               GARCIA (como CINEASTA)
               Passa depressa, né?

Um FIGURANTE (20 anos) aproxima-se da mesa e estende uma folha de
papel e uma caneta.

               FIGURANTE
               É pra minha noiva. Se chama Dolores.

DV - Cassandra/garota escreve alguma coisa no papel.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Eu começo amanhã, como assistente de direção.

Pára de escrever e olha para o Afonso/cineasta.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Começa o quê?

               AFONSO (como CINEASTA)
               A trabalhar aqui na TV. Na tua novela. Fui
               selecionado há seis meses, mas só me chamaram
               agora.

Cassandra/garota termina de dar o autógrafo e beija o OUTRO
FIGURANTE, que vai embora, todo feliz.

35mm - Cassandra/garota volta a olhar para Garcia/cineasta

               CASSANDRA (como GAROTA)
               E o cinema?

               GARCIA (como CINEASTA)
               Fiz um curta. Não ficou muito bom. Vim pro Rio.
               Trabalhei como assistente de produção em
               comerciais.

DV - Afonso olha para Cassandra/garota.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Vi todos os capítulos na semana passada. Cento e
               doze. E sabe qual é a coisa mais impressionante?
               Ver como a tua personagem cresceu. Era importante
               desde o começo, mas a partir da terceira semana,
               toda a novela começou a girar em tua volta.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               A audiência sempre cresce nas minhas cenas. Dizem
               que tenho "empatia" com o público. E quanto maior
               o decote, maior a empatia.

               AFONSO (como CINEASTA)
               Bobagem. Tu é uma atriz muito talentosa.

35mm - Cassandra sorri.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Ainda não sou nada. Mas quero ser. Eu tenho que
               fazer cinema. Mas ninguém me convida.

A assistente de figurino aproxima-se da mesa

               ASSISTENTE
               Dez minutos. Temos que começar a vestir.

A assistente começa a colocar as bijuterias de volta. De repente,
Cassandra/garota segura a mão de Garcia/cineasta.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Vamos fazer um filme? Eu sei de uma boa história.

               GARCIA (como CINEASTA)
               Cinema é muito caro.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Vou te contar um segredo: vou posar pra Playboy.
               Eu não queria, sempre recusava, mas aí eles foram
               aumentando o cachê, aumentando... E eu aceitei. Um
               milhão. Vou comprar um apartamento novo, carro
               novo, roupas novas, mas também vamos fazer um
               filme. Eu vou ser a atriz principal, e tu vai
               dirigir.

DV - Afonso olha para Cassandra/garota.

               AFONSO (como CINEASTA)
               E qual é a história?

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Jovem cineasta inventa filme de mentira para
               conquistar garota ingênua que deseja ser atriz.
               Topa?

Afonso/cineasta fica embasbacado.

CENA 88. PALÁCIO DOS FESTIVAIS DE GRAMADO - INTERIOR - NOITE

35mm - ESTRELA DO CINEMA BRASILEIRO, ao lado do APRESENTADOR do
Festival de Gramado, segura um envelope. Estrela abre o envelope
e lê.

               ESTRELA
               E o Kikito de melhor atriz de curta-metragem do
               Trigésimo Segundo Festival de Gramado vai para...
               Solemara da Silva, por "Filme de mentira"!

Aplausos e gritos de "Bravo!" ecoam pelo auditório.
Cassandra/garota sobe no palco, em deslumbrante e super-decotado
vestido de noite. Assobios de admiração e gritos de "Gostosa!" se
misturam aos aplausos.

A estrela entrega o Kikito para a garota, que vai até o
microfone.

DV - Cassandra/garota chega no microfone.

               CASANDRA (como GAROTA)
               (muito emocionada) Meu Deus do Céu. Acho que vou
               desmaiar. Eu gostaria de agradecer a toda equipe
               do filme, ao Festival de Gramado... Mas tem uma
               pessoa a quem eu tenho que agradecer acima de
               tudo. E essa pessoa é o homem que eu amo, meu
               marido e diretor do filme, Volnei Sanches!

35mm - Garcia/cineasta aplaude da platéia. Alguns flashes.

DV - Afonso/cineasta aplaude da platéia.

35mm - Garcia/cineasta acena na direção do palco.

DV - Afonso/cineasta acena na direção do palco. Alguns flashes.

35 mm - Cassandra/garota continua seu discurso.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Há seis anos atrás, o Volnei me convidou para
               fazer um filme. Ele me jurava que era um filme de
               verdade. Era mentira. Sabem por quê ele mentiu?

DV - Cassandra/garota continua seu discurso.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Eu pensava que ele só queria se aproveitar de mim.
               Mas hoje eu sei: ele era capaz de fazer qualquer
               coisa pra ficar perto de mim, menos confessar que
               estava apaixonado e assumir que me queria.

35 mm - Cassandra/garota continua seu discurso, emocionada.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Era capaz de escrever uma história, com
               personagens que ele inventava, pra tentar me
               explicar o que ele sentia. Era capaz de mentir, de
               enganar, de chamar um monte de gente para fazer de
               conta que estava filmando aquela história. E eu,
               burra, não percebi que só um homem muito
               apaixonado seria capaz de tanto esforço.

DV - Cassandra/garota continua seu discurso. Está chorando.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Mas hoje eu sei, eu tenho certeza, e o nosso filme
               é sobre isso. Sobre como o amor nos leva a fazer
               as coisas mais idiotas e maravilhosas da face da
               terra. Como o amor cria a arte, como a arte nos
               faz compreender melhor o mundo e ligar pessoas que
               estão distantes umas das outras, porque não
               conseguem expressar suas emoções.

35mm - Cassandra/garota levanta o Kikito.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               Viva o amor!

DVD - Cassandra/garota sacode o Kikito.

               CASSANDRA (como GAROTA)
               E viva o cinema!

Mais aplausos. Sobe a música.

CARTÃO 1: ROTEIRO þ Rudi Veronese

CARTÃO 2: MONTAGEM - Linda Veronese e Cátia Lima

CARTÃO 3: DIREÇÃO - João Paulo Bartzen e Holmes Padilha

CENA 89. PEQUENA SALA DE CINEMA - INTERIOR - NOITE

Continua a música dos créditos. Começam a subir os
agradecimentos.

Na sala, ainda escura, estão sentados, assistindo ao roll final:
Cátia e Linda (bem no fundo); Mirabela e Cassandra (perto delas,
mas uma fila à frente); Valdo (bem na frente); Holmes (num canto,
separado dos outros); João Paulo (no meio, com uma OUTRA GAROTA
ao seu lado); e alguns integrantes das equipes dos filmes (os
dois atores que fizeram o "cineasta" - Garcia e Afonso -, outros
atores, técnicos, etc.).

A luz acende. Por alguns instantes, ninguém diz nada. Finalmente,
Valdo vira-se para trás.

               VALDO
               O filme só tem um problema, Cátia. (percebe que
               ela não está lá) Cadê a Cátia?

Todos olham pra trás. Os lugares onde estavam Cátia e Linda estão
vazios.

               MIRABELA
               Elas estavam bem aqui.

               JOÃO PAULO
               Qual é o problema, Valdo?

               VALDO
               Os créditos estão errados. O filme não é teu, nem
               do Holmes. É da Cátia e da Linda.

               JOÃO PAULO
               Por quê? Elas montaram o que eu filmei.

               HOLMES
               O que nós filmamos.

               JOÃO PAULO
               Eu filmei. Em 35. Tu gravou esse lixo em digital.

               HOLMES
               Lixo? Lixo são esses teus travellings de comercial
               de refrigerante.

               MIRABELA
               Calma, gente! Calma!

               CASSANDRA
               Vocês filmaram o que o Veronese escreveu. O filme
               é dele.

               VALDO
               Mas elas que juntaram os pedaços e deram um
               sentido. Um sentido novo. Isso é o que interessa.
               A Cátia e a Linda fizeram esse filme. Onde elas
               estão?

CENA 90. CAIS DO PORTO þ EXTERIOR þ DIA (PÔR DO SOL)

Cátia e Linda conversam na beira do rio.

               CÁTIA
               O menino cresce muito solitário, numa cidade do
               interior. O único divertimento que ele tem é ir ao
               cinema. Ele se apaixona por várias atrizes. E não
               é correspondido, claro. Isso faz com que ele fique
               meio estranho: ele não consegue lidar com as
               mulheres de verdade. Será que dá um curta?

               LINDA
               É a história do meu pai?

               CÁTIA
               Talvez, um pouco. Quem pode saber? Ninguém. Nem
               eu. O que interessa é a história. Tu gostou?

Linda sorri.

               LINDA
               Acho que sim. E a segunda idéia?

               CÁTIA
               A segunda é mais complicada. Talvez seja um longa.

               LINDA
               Sobre...

               CÁTIA
               Sobre cinema. (pensa um pouco) E também sobre
               amor. O Veronese dizia que os filmes bons são
               sempre sobre amor.

               LINDA
               Tem título?

               CÁTIA
               Tem. Sal de prata.

               LINDA
               Bonito. Sal de prata. Como é a história?

               CÁTIA
               Tô recém começando a escrever.

               LINDA
               Não enrola. Conta aí.

               CÁTIA
               (olhando em volta) Eles devem estar nos
               procurando. Vamos voltar?

               LINDA
               Só a primeira cena, Cátia.

               CÁTIA
               A primeira? Essa eu sei, foi o teu pai que
               escreveu: aparece uma garota, e a gente só vê o
               rosto dela e os ombros nus. Ela olha para a câmara
               e diz o seguinte...

Cátia "desmonta", olha para a câmara e sorri.

               CÁTIA
               Corta.

CRÉDITOS FINAIS

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(c) Carlos Gerbase, 2004-2005
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

13/05/2004

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