Roteiro em modo texto: [ Download ]
               SAL DE PRATA
	               roteiro de Carlos Gerbase
	               10º tratamento - 13/05/2004
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1. QUARTO - INTERIOR - DIA
	Garota (interpretada por CASSANDRA, 30 anos) de quem só vemos o
	rosto e os ombros nus, dá o texto abaixo, olhando para a câmara.
	Desde o começo, é óbvio que alguma coisa estranha está
	acontecendo com ela.
	               GAROTA
	               Nós gostaríamos muito que esse filme fosse censura
	               livre, por uma questão comercial. No Brasil, as
	               crianças e os jovens representam quarenta por
	               cento da bilheteria. Por isso, não há cenas de
	               violência.
Garota geme baixinho e fecha os olhos rapidamente.
	               GAROTA
	               Também não há cenas com drogas. Talvez apareça
	               alguém bebendo uma cerveja, ou fumando um cigarro,
	               mas isso pode, né? Ser alcoólatra e morrer de
	               câncer não têm problema: o governo recolhe imposto
	               e tudo.
Garota respira fundo antes de continuar.
	               GAROTA
	               Esse filme não tem o que a censura chama de sexo
	               explícito. As cenas de nudez estão de acordo com o
	               que aparece nas novelas. O roteiro tem alguns
	               palavrões, mas isso faria o filme ser proibido
	               para menores de doze anos, no máximo.
	Garota olha para baixo, parece que vai desistir, mas volta a
	encarar a câmara.
	               GAROTA
	               Mas tem outro problema: nós estamos, sem dúvida
	               nenhuma, deturpando os valores morais e éticos da
	               sociedade. Isso fará com que esse filme seja
	               proibido para menores de dezesseis anos,
	               prejudicando muito a nossa bilheteria.
Garota faz nova pausa e tenta sorrir.
	               GAROTA
	               Por isso estamos bem felizes com a presença de
	               vocês assistindo ao nosso filme. Vocês são uma
	               prova de que é possível fazer cinema sem pensar
	               apenas em questões comerciais.
Garota interrompe o sorriso e começa a ofegar fortemente.
	               GAROTA
	               Sei que isso é um baita lugar-comum, mas nós
	               gostaríamos que vocês tivessem o mesmo prazer
	               vendo o filme que nós tivemos ao fazê-lo.
	Garota fecha os olhos e abre a boca. Seus músculos faciais se
	contraem, seu pescoço forma um arco. Ela coloca as costas da mão
	sobre a boca, contendo um grito.
	               GAROTA
	               Eu amo deturpar valores éticos e morais. O cinema
	               não faz o menor sentido se não deturpar valores
	               éticos e morais. É ou não é? ("desmonta" a
	               personagem, olha pra baixo, sorri; olha pra a
	               câmara outra vez) Corta!
	CENA 2. RUAS DO BAIRRO MOINHOS DE VENTO/FACHADA DO EDIFÍCIO DE
	CÁTIA þ EXTERIOR þ FIM DO DIA
Créditos iniciais superpostos.
	Iluminadas pelos últimos raios do sol, as ruas do bairro Moinhos
	de Vento (classe média alta) estão cheias de carros e de pessoas.
	No Parcão, há muita gente caminhando e correndo. Um casal se
	beija, apaixonado. Na rua Padre Chagas, os cafés e bares estão
	lotados.
	Um carro bacana aproxima-se de um edifício residencial e entra no
	acesso à garagem. CÁTIA (30 anos) pára o carro e aciona o
	controle remoto. A porta da garagem começa a abrir. Toca o
	celular. Cátia olha o número de quem fez a ligação e atende.
	               CÁTIA
	               Ôi, Cristóvão. (...) Toparam? (...) Finalmente!
	               (...) Não, não posso voltar agora. (...) Tenho
	               compromisso. (...) É importante, sim. (...) Eu sei
	               da nossa responsabilidade. Amanhã eu faço a
	               transferência.
Um carro importado pára atrás do carro de Cátia e buzina.
	               CÁTIA
	               Não te preocupa. (...) Olha, eu tô no trânsito.
	               Depois eu te ligo. (...) Tchau.
Cátia desliga e sorri, sem muito entusiasmo.
CENA 3. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DO DIA
Créditos iniciais superpostos.
	VERONESE (45 anos), vestido com certa displicência, está sentado
	em sua escrivaninha, à frente de um computador portátil, que
	divide o espaço da mesa com uma impressora. Veronese olha para a
	tela. Batuca com os dedos no teclado. mas não escreve nada.
	Pensa.
	Finalmente, começa a escrever. Abre um sorriso. Clica no "Enviar"
	do programa de correio eletrônico. Olha para o relógio de pulso.
	Pega uma jaqueta e sai do quarto, sem desligar o computador.
	CENA 4. FACHADA DO EDIFÍCIO DE VERONESE/BAIRRO CIDADE BAIXA þ
	EXTERIOR þ FIM DO DIA
Créditos iniciais superpostos.
	Veronese sai de um edifício antigo, mal-conservado, e fecha a
	porta atrás de si. Começa a caminhar. Parece feliz. Numa parada
	de ônibus, faz sinal. Um ônibus pára. Ele entra.
CENA 5. APTO. DE CÁTIA/SALA þ INTERIOR þ FIM DO DIA
Créditos iniciais superpostos.
	Cátia entra na sala þ grande, bem iluminada, decorada com
	elegância, mas certa frieza -, enrolada numa toalha, com os
	cabelos numa touca de banho. Um celular está tocando. Ela abre
	uma bolsa, em cima do sofá, olha o visor e atende.
	               CÁTIA
	               Ôi, Jane. (...) Eu também fiquei feliz. (...)
	               Claro. Doze milhões é muito dinheiro. (...) Não
	               posso sair com vocês. (...) Sei. Desculpa, Jane.
	               (...) Comemorem por mim. Amanhã a gente se fala.
	               (...) Tchau.
Cátia desliga e olha para a janela. A noite cai na cidade.
CENA 6. AV. GETÚLIO VARGAS þ EXTERIOR þ COMEÇO DO NOITE
Créditos iniciais superpostos.
	O ônibus da cena 4 pára na avenida Getúlio Vargas. Veronese
	desembarca. Um VENDEDOR DE LOTERIA (50 anos) oferece bilhetes da
	Mega-Sena para Veronese, que pega um dinheiro no bolso e compra
	um bilhete. Antes de sair, sorri e bate no ombro do vendedor. O
	ônibus arranca.
CENA 7. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ NOITE
Créditos iniciais superpostos.
	Cátia, sentada na cama, de sutiã e calcinha, está colocando uma
	meia 3/4 preta. O celular toca. Ela olha para o visor e não
	atende. Desliga o celular. Começa a colocar a outra meia.
	CENA 8. RUA DO BAIRRO MENINO DEUS/FACHADA DA APCG - EXTERIOR -
	NOITE
Créditos iniciais superpostos (final).
	Veronese caminha por uma rua pouco movimentada. Entra num sobrado
	de dois andares. Há duas placas na fachada. Uma maior: "SINDICATO
	DOS ELETRICITÁRIOS DO RIO GRANDE DO SUL". E uma menor:
	"ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL DOS CINEASTAS GAÚCHOS".
CENA 9. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ SALA þ NOITE
	Cátia, já vestida e maquiada, saltos altos, olha para um espelho
	de corpo inteiro e examina o figurino: sensual e elegante. Mas
	não parece satisfeita. Está nervosa com alguma coisa. Senta na
	cama. Olha para o espelho e começa a falar para um interlocutor
	imaginário.
	               CÁTIA
	               Eu tô feliz. Muito feliz mesmo. Mas eu tenho uma
	               coisa pra te contar. (pausa) Uma coisa importante.
	               Quer dizer, não é importante em relação...
	               (hesita) ...a nós. (pausa) Eu decidi te contar
	               agora porque... (respira fundo) Meu amor,
	               aconteceu o seguinte...
CENA 10. AUDITÓRIO - INTERIOR - NOITE
	Num pequeno auditório (perto de 60 lugares), paredes decoradas
	com cartazes de campanhas salariais dos eletricitários e de
	filmes brasileiros da década de 80, 25 CINEASTAS (20 homens, 5
	mulheres) estão reunidos.
	Dois deles estão sentados atrás de uma mesa voltada para a
	platéia, bem à frente, enquanto os demais espalham-se pelas
	cadeiras disponíveis. Veronese está no centro da sala, de pé,
	falando, um pouco irritado.
	               VERONESE
	               Isso já foi discutido na semana passada.
	HOLMES (30 anos), com um corte de cabelo muito esquisito e óculos
	de fundo de garrafa, está num canto perto da janela.
	               HOLMES
	               Exatamente.
	JOÃO PAULO (40 anos), elegante, cabelo impecavelmente penteado
	com gel, está perto de Veronese, uma fileira à frente. João Paulo
	vira-se para Holmes, agressivo.
	               JOÃO PAULO
	               Tu não tá inscrito, Holmes.
	               HOLMES
	               Não tô mesmo. (pequena pausa) Mas vai te fuder,
	               antes que eu me esqueça.
	Cassandra, vestida com simplicidade, está duas fileiras à frente
	de Veronese, no canto oposto ao de Holmes, olhando na direção da
	briga. Perto dela está MIRABELA (45 anos), alta, atlética.
	               CASSANDRA
	               Calma, pessoal!
	VALDO (40 anos), na segunda fileira, cansado e aborrecido, vira-
	se para Veroness.
	               VALDO
	               Pode concluir o teu raciocínio, Veronese?
	               VERONESE
	               Num concurso com tão pouca verba, não faz sentido
	               a gente impedir o uso de tecnologias que barateiam
	               a produção. Era um ponto pacífico...
	               VALDO
	               (cortando) Mas não foi votado.
	               JOÃO PAULO
	               Não foi mesmo. E agora eu tô em dúvida.
	               HOLMES
	               (irônico) Ficou em dúvida depois de conversar com
	               o Valdo?
	               JOÃO PAULO
	               (agressivo) Não. Depois de conversar com a tua
	               mãe.
	GERALDO (25 anos), um dos dois cineastas da mesa, levanta a mão,
	num gesto pacificador. Olha para o seu relógio de pulso, colocado
	sobre a mesa, bem à sua frente.
	               GERALDO
	               Chega! O Veronese ainda tem dois minutos.
	               VERONESE
	               (lentamente) É uma bobagem exigir que o curta seja
	               feito em película. Nós podemos fazer mais
	               filmes...
	               JOÃO PAULO
	               Um monte de filmes de merda...
	               HOLMES
	               Merda também se faz em trinta e cinco!
	               JOÃO PAULO
	               Mas o vídeo aumenta a produção de merda. O vídeo é
	               o laxante do cinema.
	               GERALDO
	               (para João Paulo e Holmes) Chega! Conclui,
	               Veronese.
	Enquanto Veronese fala, CÁTIA entra pelos fundos e vai sentar-se
	na última fileira, bem no canto da sala, em que não há mais
	ninguém.
	               VERONESE
	               Achar que cinema é sinônimo de filme é o mesmo que
	               achar que literatura é sinônimo de caneta.
	               VALDO
	               Concluiu?
	               VERONESE
	               Concluí.
Veronese senta.
	               VALDO
	               (para Geraldo) Então agora eu tenho a palavra,
	               certo?
	Geraldo assente com a cabeça. Valdo levanta e olha para a
	platéia.
	               VALDO
	               Se não foi votado, não foi decidido. Esse concurso
	               é de cinema, não de vídeo. Tem que filmar de
	               verdade, tem que usar sal de prata. Se não, não é
	               cinema.
Várias manifestações ao mesmo tempo. Confusão.
	               VALDO
	               (gritando) Vamos votar, pô!
	               JOÃO PAULO
	               (também gritando) Sal de prata! Sal de prata!
Veronese levanta-se.
	               VERONESE
	               Isso é manobra! Manobr...!
	Veronese faz uma careta de dor, curva-se e leva a mão ao peito.
	Cátia percebe que aconteceu alguma coisa e olha para ele,
	apreensiva. No rosto de Veronese, surgem gotas de suor.
	               VERONESE
	               (quase sussurrando) Tava decidido.
	               JOÃO PAULO
	               Ô, Geraldo, bota ordem nessa merda.
Cátia levanta-se e caminha na direção de Veronese, preocupada.
	               HOLMES
	               (gritando) Vocês querem ir contra a história? Sal
	               de prata já era!
	               GERALDO
	               Silêncio! Silêncio, por favor.
	Veronese respira fundo. Está encharcado de suor. Leva outra vez a
	mão ao peito e olha para os lados, confuso. Percebe que Cátia
	está vindo em sua direção. Sorri para ela. No meio do sorriso,
	sua boca abre, num esgar de dor. Fecha os olhos e cai.
	Cátia grita e corre na direção de Veronese. Cassandra e João
	Paulo notam que alguma coisa aconteceu e olham para trás.
	Veronese está estendido no chão, de bruços. João Paulo levanta-
	se, preocupado.
	               GERALDO
	               (sem entender nada) Calma, pessoal! Calma!
	João Paulo, Cassandra e Cátia chegam em Veronese ao mesmo tempo e
	agacham-se junto ao corpo. João Paulo tenta virar o corpo de
	Veronese, que geme.
	               VERONESE
	               (baixinho) Tá doendo.
	               CÁTIA
	               Um médico... Uma ambulância, pelo amor de Deus!
	Mirabela, Holmes e Valdo aproximam-se, preocupados. João Paulo
	levanta-se, pega seu celular e começa a discar. Valdo ajoelha-se
	ao lado de Veronese e olha para Cátia, preocupado. Cassandra
	segura a mão de Veronese, gesto percebido por Cátia.
	               CASSANDRA
	               Veronese, o que foi?
	Valdo consegue virar Veronese para uma posição mais confortável.
	Ele abre os olhos. Cátia e Cassandra estão bem à sua frente. Ele
	sorri para Cassandra, mas fala para Cátia.
	               VERONESE
	               (baixinho, quase um sussurro) Ôi, querida. (pausa;
	               respira fundo) Eu te amo muito.
	Veronese fecha os olhos e, outra vez, parece sentir muita dor.
	Cátia começa a chorar.
CENA 11. AMBULÂNCIA - INTERIOR - NOITE
	Uma maca com o corpo de Veronese é colocada rapidamente no
	interior de uma ambulância. Um MÉDICO e um PARAMÉDICO sobem,
	acompanhados de Cátia. Cassandra e Valdo acompanham tudo de
	perto, mas não entram. O MOTORISTA fecha a porta traseira.
	               MÉDICO
	               (para o paramédico) Pega uma veia.
	O paramédico introduz um abocat numa veia do braço de Veronese e
	começa a administração de soro fisiológico. A ambulância arranca,
	com a sirene ligada.
	               MÉDICO
	               (para Cátia) Ele tem algum problema no coração?
	               CÁTIA
	               Não. Acho que não.
	               MÉDICO
	               (para paramédico) Vamos monitorar.
	Médico e paramédico colocam eletrodos no peito e um oxímetro num
	dos dedos da mão de Veronese. Os monitores começam a funcionar. O
	médico olha para eles.
	               MÉDICO
	               (para paramédico) Adrenalina.
	O paramédico quebra uma ampola e injeta a droga na veia. Os dois
	estão preocupados e trabalham em regime de urgência. Começamos a
	ouvir os sinais dos monitores, misturados com a sirene, o motor
	da ambulância e o intenso tráfego na rua.
	               MÉDICO
	               Ele toma algum remédio? Tem alguma alergia?
	               CÁTIA
	               Não. (hesita) Não tenho certeza.
	               MÉDICO
	               A senhora não é parente?
	               CÁTIA
	               Sou namorada.
	               MÉDICO
	               Seria bom falar com algum parente.
Cátia fica ainda mais nervosa.
	               CÁTIA
	               É muito grave?
	               MÉDICO
	               (olha para os monitores e depois para o
	               paramédico) Mais adrenalina.
O paramédico quebra outra ampola.
	               CÁTIA
	               Não conheço os parentes dele. Eles não moram aqui.
	Veronese abre os olhos. Parece estranhar, por um momento, o
	ambiente da ambulância, mas sorri ao ver Cátia.
	               VERONESE
	               Eu já disse que te amo?
	               CÁTIA
	               Já, meu amor.
Veronese sorri debilmente.
	               VERONESE
	               Então vou dizer de novo: eu te amo. (pausa,
	               respira com dificuldade) Posso te pedir um favor?
	               CÁTIA
	               Claro.
	               VERONESE
	               Eu já enviei aquele convite pra Linda. Manda outra
	               mensagem, pro mesmo endereço, e diz que a gente
	               talvez tenha que adiar a festa. Escreve que eu amo
	               ela muito e que eu sempre pensava nela. Tu manda?
	               CÁTIA
	               Mando, claro.
	               VERONESE
	               Eu já disse que te amo?
	Veronese faz uma careta de dor. O monitor cardíaco toca um alarme
	e a onda adquire o aspecto de fibrilação.
	               MÉDICO
	               Ele tá fibrilando. (bate na parede e grita para o
	               motorista) Pára!
	A ambulância pára de sacudir. No monitor, a onda se transforma
	numa linha reta. O médico sente o pulso de Veronese.
	               MÉDICO
	               Sem pulso. (para Cátia) A senhora tem que ficar lá
	               no fundo.
	Cátia vai sentar-se bem no fundo da ambulância e de lá,
	encolhida, chorando, assiste a todo o esforço dos dois homens
	para ressuscitar Veronese: três choques, massagem cardíaca,
	colocação do tubo laringoscópico, ventilação, etc.
	O corpo de Veronese é soqueado, eletrocutado e inundado por
	drogas, mas ele parece dormir placidamente.
CENA 12. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - NOITE
	Cátia e Valdo estão sentados em cantos opostos da sala. Valdo
	está abatido. Cátia, com os olhos muito vermelhos.
	               CÁTIA
	               Será que precisa padre? O cara da funerária falou
	               alguma coisa sobre um padre...
	               VALDO
	               Padre sempre é bom. Ele fica rezando, e aí ninguém
	               precisa dizer nada. Ele era católico?
	               CÁTIA
	               Acho que era.
	Valdo bate com a palma da mão na almofada ao seu lado, indicando
	o lugar. Sorri, carinhoso.
	               VALDO
	               Vem aqui.
	               CÁTIA
	               Não.
	               VALDO
	               Vem.
	               CÁTIA
	               Eu tô bem aqui. Não te preocupa.
	Valdo levanta e caminha na direção de Cátia. Quando chega ao seu
	lado, ainda de pé, começa uma massagem nos ombros dela.
	               VALDO
	               Gozado. Ele parecia um cara saudável...
	Cátia levanta, num rompante, interrompendo a frase de Valdo e
	acabando com o contato das suas mãos.
	               CÁTIA
	               É melhor tu ir embora. Eu tenho que sair.
	               VALDO
	               Pra onde? Eu vou contigo.
	               CÁTIA
	               Não. Não vai.
	Cátia caminha rápido até a entrada do apartamento e abre a porta.
	Olha para Valdo, séria e definitiva.
	               CÁTIA
	               Tchau, Valdo. Obrigado por tudo.
	Valdo vai saindo, devagar. Quando passa por Cátia, tenta dar-lhe
	um beijo na boca, mas ela se vira. O beijo acaba no seu rosto.
	Valdo baixa os olhos, constrangido.
	               VALDO
	               É ruim ficar sozinha nessas horas. Tem certeza que
	               não quer que eu te leve?
	Cátia assente com a cabeça. Valdo sai. Cátia fecha a porta
	rapidamente. Está com os olhos cheios de lágrimas
CENA 13. RUAS DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR - NOITE
	Cátia, de calça jeans e blusa, dirige. É madrugada. Quase não há
	movimento na ruas. O carro de Cátia pára numa esquina. Num carro
	ao lado, um jovem casal se beija, apaixonado.
	CENA 14. FACHADA DO EDIFÍCIO DE VERONESE/CIDADE BAIXA -
	EXTERIOR - NOITE
	O carro de Cátia estaciona quase na frente do edifício. Cátia
	sai, com uma blusa a tiracolo. Aciona o alarme do carro. A rua
	está deserta. Começa a caminhar na direção da porta do edifício.
	Um SUJEITO MAL ENCARADO, segurando uma garrafa, aparece de
	repente, saído da sombra de uma marquise. Cátia hesita por um
	momento, mas segue em frente. Quando está abrindo a porta com a
	chave, o sujeito se aproxima.
	               SUJEITO MAL ENCARADO
	               Tá bem guardado, dona.
	               CÁTIA
	               Ótimo.
	               SUJEITO MAL ENCARADO
	               Se a senhora puder pagar agora... Eu tô com fome.
	               CÁTIA
	               Eu pago depois.
	               SUJEITO MAL ENCARADO
	               Melhor agora. Depois... Quem sabe o que pode
	               acontecer depois? Eu posso morrer de fome.
Cátia, hesitante, leva a mão à bolsa.
CENA 15. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE
	A porta abre. Cátia, bolsa a tiracolo, entra e acende a luz. A
	sala é de tamanho médio, com uma decoração simples: móveis
	modernos, alguns quadros, um grande sofá cheio de almofadas,
	espaços vazios preenchidos por pequenas mesas. Está tudo
	arrumado. Cátia olha para a sala e depois a atravessa, rumo ao
	corredor.
CENA 16. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Cátia entra no quarto, que é bem diferente da sala: pequeno e
	esculhambado. Prateleiras de madeira, antigas e cheias de cupins,
	sustentam livros, caixas de papelão, revistas e um aparelho de
	som três-em-um. Num canto, um projetor 16mm.
	Cátia senta na cadeira da escrivaninha, joga a bolsa na cama e
	olha para o computador portátil. Há uma mensagem na tela. Cátia
	começa a ler.
CENA 17. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DE TARDE
	Veronese está no computador, escrevendo. A decoração é idêntica à
	da cena anterior. Cátia entra (mesmo figurino da cena 2), e dá um
	beijo rápido na boca de Veronese, que sorri para ela, mas
	continua escrevendo.
	               CÁTIA
	               Que concentração! Acabou o bloqueio?
	               VERONESE
	               Não é o roteiro. (olha para Cátia) Não é ficcção.
	               Tô escrevendo uma carta.
Cátia senta na cama e tira os sapatos de salto alto.
	               CÁTIA
	               (surpresa) Carta? Que milagre!
Cátia faz massagens nos próprios pés. Usa meia-calça preta.
	               VERONESE
	               (lendo) Lembra daquela garota que eu te falei, a
	               Cátia? Aquela que é linda, inteligente e sabe
	               fazer sagu? Nós vamos morar juntos.
Cátia pára de massagear os pés e olha para Veronese, surpresa.
	               CÁTIA
	               Como é que é?
	               VERONESE
	               (ainda lendo) A gente se ama há muito tempo, e
	               acho que pode dar certo. É claro que não eu mereço
	               uma garota maravilhosa como a Cátia, e não tenho a
	               menor idéia de porquê ela gosta de mim. Mas decidi
	               arriscar. Vamos fazer uma festa, só para os amigos
	               mais íntimos, e eu gostaria muito que tu viesse.
	Veronese levanta e vai até a janela. Cátia olha para ele,
	atônita.
	               VERONESE
	               Só falta acertar alguns detalhes.
	Veronese fecha completamente a veneziana, diminuindo bastante a
	luz do quarto. Cátia vai falar, mas Veronese ergue a mão e
	continua:
	               VERONESE
	               (rapida e decididamente) Sei que esse apartamento
	               é muito pequeno. Também sei que o banho é
	               horrível.
	Veronese vai até a porta, que estava entreaberta, e a fecha. O
	quarto fica bastante escuro, pois as únicas luzes vêm das frestas
	da veneziana e da tela do computador portátil.
	               VERONESE
	               Mas eu não vou me mudar.
	Veronese aproxima-se de Cátia. Senta ao seu lado na cama. Ela
	continua surpresa, mas agora já consegue demonstrar sua
	felicidade.
	               VERONESE
	               Talvez eu permita que tu gaste teu dinheiro numa
	               pequena reforma. (pausa) É pegar ou largar.
	               CÁTIA
	               Tem que trocar o fogão e a geladeira.
	               VERONESE
	               Tudo bem.
	               CÁTIA
	               E faxina duas vezes por semana!
	               VERONESE
	               Vou pensar.
	Cátia abraça Veronese com força. Veronese joga Cátia na cama e
	tenta abrir o zíper da sua saia, enquanto a beija pelo corpo
	todo. Cátia, rindo, resiste.
	               CÁTIA
	               Pára! Eu tô toda suada. Preciso tomar banho.
	               VERONESE
	               O chuveiro tá queimado. Vem aqui, Catinha.
	               CÁTIA
	               (rindo) Não... Pára!
	Cátia reúne todas as suas forças e consegue desvencilhar-se de
	Veronese, empurrando-o com as pernas para fora da cama. Cátia
	tenta sair correndo, mas Veronese, no chão, agarra-lhe um dos
	pés. Cátia tropeça e cai. Veronese tenta abraçá-la outra vez, mas
	Cátia consegue levantar-se. Aponta para o computador.
	               CÁTIA
	               Isso não é uma história que tu tá escrevendo?
	               VERONESE
	               (cortando) Eu já te disse. É uma carta.
Cátia olha para a tela do computador.
	               CÁTIA
	               Uma carta pra quem?
Veronese fica sério.
	               VERONESE
	               Para a minha filha. Ela se chama Linda. Tem
	               dezoito anos.
Cátia olha para Veronese, sem esconder sua surpresa,
	               VERONESE
	               Ela mora no interior. Só me viu uma vez. Mês
	               passado. Eu te disse que tinha que fazer uma
	               pesquisa, lembra? Eu menti. Era aniversário dela.
CENA 18. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Cátia está chorando na frente do computador. Olha para o teclado.
	Seus dedos percorrem as teclas, mas ela não consegue escrever.
CENA 19. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - FIM DE TARDE
	Veronese e Cátia estão sentados na cama, frente a frente, ainda
	na penumbra.
	               VERONESE
	               Ninguém mais sabe. (pausa) Se ela aceitar o
	               convite, todo mundo vai ficar conhecendo. Se
	               não...
	               CÁTIA
	               Mas... Por que...
	               VERONESE
	               Tenho reunião às oito e meia e ainda não terminei
	               de escrever a mensagem. Quem sabe a gente janta
	               juntos? Tem um restaurante novo ali perto da
	               associação. Aí eu conto tudo. Tu pode me pegar?
	               CÁTIA
	               Claro.
	               VERONESE
	               (sorrindo) Também podemos trocar o chuveiro
	               elétrico por um aquecedor a gás.
Cátia sorri de volta.
CENA 20. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Cátia respira fundo e começa a digitar. Pensa um pouco. Digita
	mais. Manda a mensagem. Fecha o programa de correio eletrônico.
	Leva o cursor do mouse até o botão "Iniciar", como se fosse
	desligar o micro, mas, depois de uma breve hesitação, olha para a
	tela.
	Há, além dos ícones indefectíveis, uma pasta de "Roteiros". Cátia
	clica sobre ela. Há vários arquivos, em ordem alfabética:
	"advertência", "coincidências demais", "filme-mentira", "mil
	desculpas", "mil desculpas-v2", "mil desculpas-v3", "motéis",
	"motéis-v2", "um homem intenso", "vulcano e marte".
	Ouvimos um trovão, seguido do barulho de chuva. Clica sobre o
	arquivo "advertência". O texto aparece na tela: "Garota, de quem
	só vemos o rosto e os ombros nus..." Cátia vai começar a ler.
	A luz de um relâmpago invade o quarto, seguida de um trovão. As
	luzes do apartamento se apagam, restando apenas a tela do
	computador portátil.
	Cátia levanta e fecha janela, onde a chuva, agora forte, está
	batendo.
	Volta ao computador e senta. A mensagem "BAIXO NÍVEL DA BATERIA"
	aparece na tela, seguida de três bips e do desligamento do
	computador. O quarto fica na escuridão absoluta. Um relâmpago
	forte ilumina o rosto de Cátia, impassível, olhando para o nada.
CENA 21. CEMITÉRIO/CAPELA - INTERIOR - DIA
	O rosto branco de Veronese no caixão. Ao lado do caixão, no fundo
	da capela, estão Cátia e Holmes. Holmes olha para o rosto de
	Veronese. Cátia olha para o outro lado da capela, onde estão João
	Paulo, Cassandra, Mirabela e dois outros cineastas (que estavam
	presentes na cena 2).
	Um pouco mais afastados, estão CRISTÓVÃO (60 anos, de terno e
	gravata, tão atlético quanto a sua idade permite), JANE (30 anos,
	elegante, no mesmo estilo de Cátia) e LUCAS (25 anos, terno e
	gravata).
	Geraldo entra na capela, acompanhado de um FUNCIONÁRIO DE
	FLORICULTURA, que carrega um grande arranjo de flores, com a
	inscrição "Ao grande cineasta Rudi Veronese, a homenagem de seus
	amigos". O funcionário coloca o arranjo ao lado do caixão e vai
	embora. Geraldo beija Cátia no rosto, abraça Holmes e acena para
	os que estão no fundo da capela.
	               GERALDO
	               (apontando para o arranjo) Que tal?
	               CÁTIA
	               Tá bonito.
	Geraldo aproxima-se mais do caixão e segura as mãos de Veronese.
	Valdo entra na capela, acompanhado de JAQUES (20 anos), que
	carrega um bloquinho de notas na mão. Valdo faz um sinal,
	chamando Cátia. Cátia e Holmes vão até ele.
	               VALDO
	               Esse é o Jaques, do Diário.
Jaques aperta as mãos de Cátia, Geraldo e Holmes.
	               JAQUES
	               Meus pêsames.
João Paulo, Cassandra e Mirabela também aproximam-se.
	               JAQUES
	               Podemos conversar ali fora?
CENA 22. CEMITÉRIO/CORREDOR - INTERIOR - DIA
	Jaques está no centro da roda, tomando notas. Cassandra conversa
	com alguém, um pouco afastada.
	               CÁTIA
	               O pai morreu há muitos anos, e a mãe foi para a
	               Itália. Já é bem velhinha, e está meio doente. Não
	               teve condições de viajar para o enterro.
	               JAQUES
	               (sempre anotando) Certo. E vocês são...? (olha
	               para Valdo e sorri) O senhor eu sei quem é, claro.
	               Gostei muito do seu filme...
	               VALDO
	               (cortando, impaciente) A Cátia era namorada. E nós
	               somos amigos. O João Paulo e o Holmes também são
	               diretores. A Mirabela é produtora.
	               JAQUES
	               É que eu tô começando no caderno de cultura. Acho
	               que nunca vi um filme do... falecido, desculpe.
Cassandra se aproxima.
	               MIRABELA
	               A Cassandra foi atriz dos três últimos curtas do
	               Veronese.
Jaques pára de anotar e olha para Cassandra.
	               JAQUES
	               Atriz?
	               CASSANDRA
	               É.
	               JAQUES
	               (reconhecendo) Claro! Eu vi o comercial na TV.
	               (canta) "Preço baixo e qualidade, bem no centro da
	               cidade..." (sente a censura dos olhares) Desculpe.
	               Então vocês atuavam juntos...
	               VALDO
	               Não. Ela atuava nos filmes dele.
	               JAQUES
	               O Veroneli não era ator?
	               JOÃO PAULO
	               (mal-humorado) Não. É Veronese. Era diretor e
	               roteirista.
	               JAQUES
	               Desculpe a minha ignorância. (pensa um pouco) O...
	               falecido fez algum longa-metragem?
	               CASSANDRA
	               Não. Mas ele estava escrevendo o roteiro de um
	               longa.
Cátia olha para Cassandra, surpresa.
	               JAQUES
	               Ótimo! É um bom gancho pra matéria. A gente
	               publica um trecho. Qual era o assunto?
Todos se olham. Silêncio.
	               MIRABELA
	               O Veronese não gostava de falar sobre o que estava
	               escrevendo.
	               JAQUES
	               Sobre o que era? Alguém leu? Ao menos um
	               pedacinho... Qual o título?
Silêncio.
	               CASSANDRA
	               O roteiro deve estar no computador dele.
Jaques fecha o bloco.
	               JAQUES
	               Se vocês acharem, mandem pra mim.
CENA 23. CEMITÉRIO - EXTERIOR - DIA
	Dois FUNCIONÁRIOS DO CEMITÉRIO estão terminando de fechar com
	cimento o túmulo de Veronese. Cátia, João Paulo, Holmes, Valdo,
	Cassandra e Mirabela estão bem juntos, formando um grupo triste e
	coeso, perto da cova.
	Geraldo, os outros cineastas e o pessoal do escritório de Cátia
	estão mais atrás. Por algum tempo, só ouvimos o barulho das pás
	dos funcionários. Cassandra, de repente, afasta-se, chorando mais
	alto. Cátia olha para ela.
	               VALDO
	               (para Cátia) Ele te falou alguma coisa de um
	               longa?
	               CÁTIA
	               Não.
	Os funcionários terminam sua tarefa e se afastam. O padre olha em
	volta, com um sorriso animador, e abre os braços.
	               PADRE
	               Vamos dar as mãos e rezar pela alma de Rudi
	               Veronese.
	Valdo estende sua mão para pegar a mão de Cátia, mas esta,
	rapidamente, pega as mãos de João Paulo e Mirabela.
	               PADRE
	               Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o
	               vosso nome...
	Cassandra volta, ainda chorando muito. Holmes a abraça. Cátia
	olha para ela.
CENA 24. FACHADA DO CEMITÉRIO þ EXTERIOR þ DIA
	Cátia abre a porta do seu carro, que está estacionado na rua do
	cemitério, e vai entrar, quando ouve a voz de Cristóvão.
	               CRISTÓVÃO
	               Cátia!
Ele, Jane e Lucas aproximam-se de Cátia.
	               CRISTÓVÃO
	               Nós estávamos combinando umas coisas. Acho que
	               amanhã a Jane e o Lucas podem tocar a
	               transferência.
	               JANE
	               Deixa comigo, Cátia. Se quiser ficar uns dias
	               fora...
	               CÁTIA
	               Não. Amanhã eu vou trabalhar.
	               LUCAS
	               Não precisa, Cátia. A gente se vira.
	               CÁTIA
	               Obrigado, mas não precisam se preocupar comigo. Eu
	               tô bem. (para Cristóvão) É meu investidor, e tu
	               sabe disso. (para Jane e Lucas) Fiquem longe das
	               minhas coisas. (aponta para o cemitério) Quando eu
	               estiver ali, vocês tomam conta.
Cátia entra no carro, sob o olhar surpreso do trio.
CENA 25. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Valdo, Cátia e Mirabela estão sentados em volta do computador de
	Veronese. Cassandra está no chão, lendo uma revista. Há uma
	garrafa de vinho vazia e outra aberta na prateleira, além de
	cálices meio cheios espalhados pelo ambiente. O aparelho de som
	está ligado, em volume baixo. Valdo está com o mouse.
	Coloca o cursor sobre a pasta "Roteiros".
	               VALDO
	               (para Cátia) É aqui?
	               CÁTIA
	               Não sei se o Veronese ia gostar de ver um monte de
	               gente mexendo nas coisas dele.
Silêncio no quarto. Mirabela pega seu cálice.
	               MIRABELA
	               Ao Veronese.
Todos batem seus cálices e bebem. Valdo olha para Cátia.
	               VALDO
	               E aí? Posso?
	               CÁTIA
	               (hesitante) Não sei. (pensa mais um pouco, olha
	               para Mirabela) Acho que pode.
	Valdo abre a pasta "Roteiros", clica no arquivo "advertência" e
	lê o título:
	               VALDO
	               Advertência ao espectador.
Cassandra levanta-se e olha para a tela do computador.
	               CASSANDRA
	               Posso ler?
	Cátia olha para Cassandra, inamistosa. Mas Cassandra não percebe
	e começa a leitura.
	               CASSANDRA
	               Uma garota (20 anos) de quem só vemos o rosto e os
	               ombros nus, dá o texto abaixo, olhando para a
	               câmara.
CENA 26. APTO. DE VERONESE/COZINHA - INTERIOR - NOITE
	Cátia e Mirabela estão fazendo um sopão. Uma grande panela está
	no fogo. Elas vão cortando verduras e jogando lá dentro. As duas
	continuam bebendo vinho e suas falas são meio enroladas e
	confusas.
	               CÁTIA
	               Mas é pra ter alguém com a tal garota?
	               MIRABELA
	               Acho que sim. Mas fora de quadro.
	               CÁTIA
	               Fora de quadro? Que quadro?
	               MIRABELA
	               Fora do quadro significa que alguém está ali, mas
	               a câmara não mostra.
	               CÁTIA
	               Não mostra por quê?
	               MIRABELA
	               Deixa pra lá, Cátia. Tem mais cenoura na
	               geladeira?
	               CÁTIA
	               Só me diz uma coisa: tem alguém lá com a garota?
	               Quer dizer, eu entendi que tem alguém lá, fazendo
	               alguma coisa com ela, não tem?
Mirabela abre a geladeira.
	               MIRABELA
	               Acho que é pro espectador achar que sim.
	               CÁTIA
	               Tem um cara lá, chupando ela, é isso?
	Mirabela olhando para o interior da geladeira e pega mais
	cenouras.
	               MIRABELA
	               É... Mas ela pode estar só fazendo de conta que
	               tem alguém chupando ela. E não tem ninguém de
	               verdade.
	               CÁTIA
	               Não entendi. É pra ter, ou é pra não ter?
	               MIRABELA
	               Sei lá. Dá pra filmar de várias maneiras
	               diferentes.
Cátia fica chocada.
	               CÁTIA
	               O Veronese ia filmar mesmo aquilo?
	               MIRABELA
	               Não sei, Cátia. (encara Cátia, séria) Como é que
	               eu vou saber? Desencana. É só um texto, uma
	               bobagem.
	               CÁTIA
	               Mas é tão...
	               MIRABELA
	               Esquece, Cátia. Tá legal? Esquece. Eu, se fosse
	               tu, apagava todas essas coisas do computador.
	               CÁTIA
	               (surpresa) Tá falando sério?
Mirabela demora um pouco pra responder.
	               MIRABELA
	               Não. Claro que não.
	Valdo e Cassandra entram na cozinha. Valdo com seu copo de vinho
	na mão; Cassandra com sua bolsa a tiracolo.
	               VALDO
	               Não achei a continuação. É só a tal advertência
	               mesmo. (olha para a panela no fogo) Parece ótimo.
	               CASSANDRA
	               Cátia, eu vou pra casa. A Mirabela vai dormir aqui
	               contigo, né?
	               CÁTIA
	               (surpresa) Não precisa.
	               VALDO
	               Não tem discussão. Tá decidido.
Cassandra abraça Cátia com força.
	               CASSANDRA
	               Qualquer coisa que tu precise... Sei lá, a gente
	               podia conversar um dia desses. É só ligar. Tá
	               legal?
	               CÁTIA
	               Claro. (desfaz o abraço) Quer que eu chame um
	               táxi?
	               CASSANDRA
	               (sorrindo) Não precisa. Eu vou a pé. (hesita um
	               pouco, depois continua) Eu moro a meia quadra
	               daqui. Sabe o edifício da padaria? O de pastilhas
	               brancas?
	               CÁTIA
	               (surpresa) Claro.
	               CASSANDRA
	               Terceiro andar. Fundos. (sorri outra vez) Quando
	               quiser fazer uma visita...
CENA 27. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Cátia termina de colocar o pijama, apaga a luz e senta na cama.
	Mas o computador, ainda ligado, com a tela do processador de
	textos vazia, inunda o quarto com sua luz fantasmagórica. Cátia
	olha para o monitor por algum tempo.
	Então levanta, acende a luz, vai até a mesa e senta-se. Pega o
	mouse e clica até ter, diante de si, o conteúdo da pasta
	"Roteiros". Clica sobre "motéis". Começa a ler.
CENA 28. MOTEL 1/BANHEIRO E QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Uma MULHER (25 anos) nua está no banheiro de um quarto de motel.
	Ela lentamente coloca a calcinha. A parede do banheiro é de vidro
	escuro, translúcido, de modo que um HOMEM (25 anos), deitado na
	cama, pode ver o contorno do corpo da mulher e observar as suas
	ações. As luzes no banheiro e no quarto estão acesas. Enquanto
	ela se veste, ouvimos a voz de Cátia:
	               CÁTIA
	               (off) Uma mulher nua está no banheiro de um quarto
	               de motel. Ela lentamente coloca a calcinha. A
	               parede do banheiro é de vidro escuro, translúcido,
	               de modo que um homem, deitado na cama pode ver o
	               contorno do corpo da mulher e observar as suas
	               ações. Enquanto ela se veste, ouvimos a narração:
	Depois da calcinha, a mulher vai colocando outras peças: um
	sutiã, ligas, meias (que prende nas ligas). Tudo isso é observado
	pelo homem no quarto.
	               CÁTIA
	               (off) O amor é um vestir. Ele só acontece quando o
	               homem cobre a nudez da mulher com algo que sai da
	               sua imaginação. A mulher que corresponde ao amor é
	               aquela que se deixa vestir.
A mulher lentamente coloca sapatos de saltos altos.
	               CÁTIA
	               (off) O desejo por um corpo depende do que
	               imaginamos
	               vestir sobre ele. Toda carne é um fantasma. Todo
	               amor é fantasia. Toda beleza é construída.
	A mulher se observa no espelho (não vemos seu rosto) e faz os
	últimos ajustes. O homem observa a mulher.
	               CÁTIA
	               (off) Por amor, as mulheres se transformam naquilo
	               que são nas mentes dos homens por quem são amadas.
	A mulher apaga a luz do banheiro e vira-se para a parede
	translúcida. Na penumbra, ela diz:
	               MULHER
	               Apaga a luz.
CENA 29. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Cátia, chocada, olha para a frase no computador. Lemos a frase no
	computador: "MULHER - Apaga a luz".
CENA 30. MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Veronese - agora vemos seu rosto - apaga a luz principal do
	quarto. Ficam acesas apenas algumas lâmpadas no chão (ou um
	pequeno abajur de canto). Cátia - agora também vemos seu rosto,
	apesar da penumbra - sai do banheiro, mas não se aproxima da
	cama.
	               CÁTIA
	               Apaga.
Veronese apaga a luz secundária.
	               MIRABELA
	               (off) Cátia.
CENA 31. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Mirabela, de pé, junto à porta entreaberta, está olhando para
	Cátia.
	               MIRABELA
	               São duas horas. Tu não vai trabalhar amanhã?
Mirabela aproxima-se. Cátia abaixa a tampa do notebook.
	               CÁTIA
	               O Rudi nunca te mostrava o que ele escrevia?
	               MIRABELA
	               Não. Ele não mostrava pra ninguém. O Rudi tinha o
	               mundinho dele. Era difícil entrar ali.
	               CÁTIA
	               Eu sei.
	               MIRABELA
	               Vamos dormir. Tá?
	               CÁTIA
	               (sorrindo) Tá.
	Mirabela conduz Cátia até a cama e faz com que ela deite. Senta
	na cama. Cobre Cátia com o lençol e dá um beijo carinhoso na sua
	testa.
	               MIRABELA
	               Boa noite.
	               CÁTIA
	               Se ele não mostrava nada, pra ninguém, como a
	               Cassandra sabia que ele tava escrevendo o roteiro
	               de um longa? Ele nunca me falou de um longa.
	               MIRABELA
	               Cátia, eu conhecia o Rudi há mais de quinze anos.
	               Ele sempre foi daquele jeito. Nem eu, nem a
	               Cassandra, nem ninguém era capaz de entrar naquele
	               mundinho. (pensa) E eu tentei bastante. Tentei até
	               cansar, porque eu tava muito apaixonada. Mas não
	               fica com ciúme de mim, isso foi há muito tempo. E
	               não conta pra ninguém, tá? (pausa) Promete?
	               CÁTIA
	               (surpresa) Prometo.
	               MIRABELA
	               Ele te amava muito, pode ter certeza, e isso
	               ninguém vai te tirar. (pausa) Vamos dormir?
	Mirabela apaga a luz e sai. Cátia fecha os olhos. Pouco depois,
	abre outra vez.
CENA 32. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE
	Festa. Umas quinze pessoas se espremem na sala, dançando
	caoticamente um rock dos anos 70. Celofanes coloridos por cima
	das lâmpadas tentam criar um clima de reunião-dançante.
	Presentes: Veronese, Cátia (com o cabelo diferente, bem mais
	comprido), Holmes, João Paulo (com uma NAMORADA MUITO BONITA),
	Mirabela, Cassandra, Geraldo e mais OITO PESSOAS (algumas estavam
	na reunião de cineastas da cena 2). Todos estão bastante bêbados.
	Veronese, que é o DJ, escolhe um CD e troca a música, com alguma
	dificuldade (o que gera protestos), e depois fica parado ao lado
	do aparelho de som, olhando para as pessoas que dançam. Pela
	ordem: João Paulo beija sua namorada; Geraldo dá em cima de
	Mirabela; Cassandra faz caras e bocas enquanto se sacode,
	dançando sozinha.
	Cátia não dança. Parece deslocada. Oferece uma bandeja com
	salgadinhos para os convidados. Aproxima-se de Veronese e percebe
	que ele, naquele momento, está olhando para Cassandra e sorrindo
	para ela. Cátia, meio trôpega, pára, larga a bandeja, pega um
	copo de cerveja e vai até Veronese.
	               CÁTIA
	               (voz enrolada) Eu queria falar uma coisinha
	               contigo, ali no quarto.
	               VERONESE
	               Agora?
	               CÁTIA
	               (sorrindo) Agora.
CENA 33. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Veronese e Cátia entram no quarto. Cátia, com o copo de cerveja
	na mão, tropeça e quase cai. Veronese consegue fazer com que ela
	sente na cama.
	               CÁTIA
	               (sempre com a voz enrolada) Fecha a porta.
	               VERONESE
	               Pra que?
	               CÁTIA
	               (autoritária) Fecha!
Veronese, desconfiado, fecha a porta.
	               CÁTIA
	               (sedutora) Apaga a luz.
	               VERONESE
	               (sorrindo) De jeito nenhum.
	               CÁTIA
	               Tu gosta dela, né?
Veronese sacode a cabeça.
	               VERONESE
	               Vamos voltar pra sala.
	               CÁTIA
	               Não precisa ter medo. Conta a verdade.
	               VERONESE
	               A verdade é que tu tá bêbada.
	               CÁTIA
	               Eu te vi olhando pra ela. Tu tá a fim dela?
	               VERONESE
	               Pára, Cátia. Que bobagem!
	               CÁTIA
	               Olha... Rudi. (ri) Rudizinho. Eu sei que tu quer.
	               E eu te amo. Quem sabe a gente... Chega num
	               acordo. Eu sou uma mulher... (pára, não sabe como
	               continuar) Eu estou disposta a tentar alguma coisa
	               diferente.
	               VERONESE
	               Sei.
	               CÁTIA
	               Ela é muito bonita. (pensa um pouco) Mas será que
	               ela tem alguma doença? Eu não quero pegar uma
	               doença.
Veronese tenta pegar a cintura de Cátia e levantá-la da cama.
	               VERONESE
	               Vamos dançar, Cátia.
Cátia resiste e Veronese acaba caindo na cama.
	               CÁTIA
	               Não. Eu quero saber o que tu acha da minha
	               proposta. Diz pra tua Catinha, diz.
	               VERONESE
	               (carinhoso) Não acho nada.
Cátia segura o rosto de Veronese com as duas mãos.
	               CÁTIA
	               Podia ser um presente...
	Veronese consegue levantar-se e pega as mãos de Cátia, erguendo-
	a. Dão alguns passos, até ficarem perto da mesa em que está o
	notebook. Ela se apóia na mesa e baixa a cabeça.
	               CÁTIA
	               Eu tô tonta. Rudizinho... Acho que eu vou vomitar.
	               VERONESE
	               Aqui não!
	Cátia sorri mais uma vez, um segundo antes de começar a vomitar
	no computador.
CENA 34. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	Penumbra. Cátia, deitada na cama, debaixo dos lençóis, está com
	olhos cheios de lágrimas, olhando para o notebook.
CENA 35. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA
	Dois monitores de computador. As telas exibem listas infindáveis
	de números e nomes de empresas. Cátia está olhando para eles.
	Depois olha para Cristóvão, parado na sua frente.
	               CRISTÓVÃO
	               Dez milhões voltam e ficam parados, na conta dele,
	               aqui no Brasil, pelo menos até sexta. Os outros
	               dois deixa lá, aplicados. Tá entendido?
	               CÁTIA
	               Tá.
	               CRISTÓVÃO
	               Tem certeza que não quer uma ajuda?
	               CÁTIA
	               Tenho.
	               CRISTÓVÃO
	               Então, traz esse dinheiro de volta. E correndo.
	Cristóvão sai da sala. Cátia olha para o computador e começa a
	digitar alguma coisa. Mas logo pára. Os números continuam a
	dançar nos monitores, mas ela não está interessada neles. Abre a
	bolsa e pega um disquete.
	Coloca o disquete num dos computadores. Abre o disquete no
	desktop do Windows. Clica sobre o documento "moteis". Começa a
	ler.
CENA 36. MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	O barulho de um fósforo sendo riscado, seguido da sua chama. A
	mão de Veronese, que segura o fósforo, se aproxima de uma vela
	larga. A vela acende. A mão se afasta. Cátia, ainda na porta do
	banheiro, olha para a vela, que está na cabeceira da cama, e
	depois para Veronese.
	               CÁTIA
	               Mais longe. No outro lado.
Veronese pega a vela e a coloca na outra cabeceira.
	               CÁTIA
	               Obrigado.
	Cátia se aproxima da cama. Veronese olha para ela e sorri. Cátia
	senta na cama. Veronese estende a mão e toca na perna de Cátia,
	na altura da coxa. Depois, inclinando-se para a frente, vai
	descendo a mão até o tornozelo de Cátia, que envolve entre o
	polegar e o indicador. Baixa ainda mais a cabeça, na direção do
	pé.
	               JOÃO PAULO
	               (off) Cátia.
CENA 37. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA
	Cátia olha para o computador. Vemos a última rubrica na tela do
	computador: "...vai descendo a mão até o tornozelo da mulher, que
	envolve entre o polegar e o indicador. Baixa ainda mais a cabeça,
	na direção do pé."
	               JOÃO PAULO
	               (off, mais alto) Cátia!
	Cátia levanta os olhos do computador. João Paulo está de pé, na
	porta, olhando para ela.
	               JOÃO PAULO
	               Eu tô interrompendo alguma transação milionária?
	               CÁTIA
	               Não. Entra, por favor.
João Paulo entra, beija Cátia e senta-se.
	               JOÃO PAULO
	               Tu disse que precisava falar comigo.
	Cátia pega umas dez folhas de ofício grampeadas e estende o braço
	para João Paulo, que pega as folhas e dá uma olhada.
	               CÁTIA
	               (sem-jeito) Que bom que tu pôde vir... Tô lendo
	               umas coisas do Veronese... Hoje de manhã, quando
	               abri esse (aponta para o texto que está com João
	               Paulo), notei que era diferente dos outros.
	               JOÃO PAULO
	               Diferente como?
	               CÁTIA
	               Eu... Não consigo entender o texto. Os outros têm
	               algumas expressões estranhas, mas eu compreendo a
	               história. É como ler uma peça de teatro.
	               JOÃO PAULO
	               (sorrindo, compreensivo) É que esse aqui tá
	               decupado.
	               CÁTIA
	               Decupado?
	               JOÃO PAULO
	               Já tá dividido em planos, e têm indicações de
	               câmara, de enquadramentos, de cortes...
	               CÁTIA
	               Eu não entendo nada disso.
	João Paulo levanta, dá a volta na mesa e coloca o roteiro na
	frente de Cátia.
	               JOÃO PAULO
	               O que tu não entende?
	Cátia aponta para as indicações do plano 1: P1 - PP - trav. para
	trás até PM. O quarto é muito modesto, e a cama é de solteiro, o
	que dificulta as ações do CINEASTA...
	               CÁTIA
	               "Pê-um. Pê-pê. Trav... para trás até Pê-eme."
	               JOÃO PAULO
	               Plano um. Primeiro plano. Travelling para trás até
	               plano médio. É o enquadramento inicial, o
	               movimento da câmara e o novo enquadramento.
	               CÁTIA
	               (confusa) Enquadramento?
	               JOÃO PAULO
	               Esse roteiro tá pronto pra ser filmado. A gente
	               chama de roteiro técnico. Os outros que tu pegou
	               eram mais fáceis de ler porque não estavam
	               decupados...
	               CÁTIA
	               Tu pode... (hesita, procurando a palavra) traduzir
	               esse pra mim?
	               JOÃO PAULO
	               Traduzir? Eu posso escrever um resumo da história.
	               CÁTIA
	               Mas isso não vai dar muito trabalho?
João Paulo sorri. Olha para o roteiro.
	               JOÃO PAULO
	               Não. Deve ser divertido. Ele sempre escrevia
	               bastante sacanagem.
CENA 38. MOTEL 1 - INTERIOR - NOITE
Veronese e Cátia beijam-se na cama. A vela está no fim.
	               VERONESE
	               É a melhor festa de aniversário que eu já tive.
	               CÁTIA
	               Fecha os olhos. Tá na hora do presente.
Veronese fecha.
	               CÁTIA
	               E não abre!
	Cassandra levanta-se, vai até a sua bolsa, pega um celular e um
	pequeno pedaço de pano. Aproxima-se de Veronese.
	               CÁTIA
	               Deita de costas e fica quietinho.
	Cátia pega o pano (na verdade, é uma venda) e amarra-o sobre os
	olhos de Veronese. Cátia afasta-se e aperta os botões do celular.
	Veronese passa a mão sobre a venda.
	               CÁTIA
	               Não tira. Tu só vai ganhar se ficar quieto.
	               VERONESE
	               O que eu ganho se adivinhar o que é?
	               CÁTIA
	               (sorrindo) Se tu adivinhar, eu te mato.
	Batidas na porta. Cátia veste um robe e desaparece por um
	momento. Veronese continua vendado. Barulho da porta abrindo.
	               VERONESE
	               Cátia? Posso tirar esse negócio?
Barulho de passos.
	               CÁTIA
	               (off) Não. Espera.
	A mão de Cátia retira a venda de Veronese. Ele olha e vê, à sua
	frente, Cassandra þ vestida com sensualidade - e Cátia, sorrindo
	para ele. Veronese está surpreso.
	               VERONESE
	               (para Cátia) O que ela tá fazendo aqui?
	               CÁTIA
	               Ela é o presente.
Barulho forte de porta abrindo.
CENA 39. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA
Cristóvão entra, com ar preocupado, assustando Cátia.
	               CRISTÓVÃO
	               O doutor Camargo acaba de ligar. Disse que o
	               dinheiro ainda não apareceu na conta dele aqui no
	               Brasil.
	Cátia fecha o processador de texto, e a dança dos números volta a
	tomar conta do monitor.
	               CÁTIA
	               Eu tive um pequeno problema.
Cristóvão circunda a mesa para olhar o monitor de Cátia.
	               CRISTÓVÃO
	               Lá, ou aqui no Brasil?
	               CÁTIA
	               (hesitante) Aqui.
	               CRISTÓVÃO
	               Olha, Cátia, é MUITO dinheiro. O que significa
	               MUITA incomodação. Cadê o dinheiro do doutor
	               Camargo?
	               CÁTIA
	               Tá lá fora, ainda.
	               CRISTÓVÃO
	               E por quê a transferência não foi feita?
Cátia olha para o monitor. Depois volta a encarar o chefe.
	               CÁTIA
	               Eu... Eu esqueci.
	               CRISTÓVÃO
	               (estarrecido) Esqueceu dez milhões de dólares?
Cátia começa a teclar.
	               CÁTIA
	               Mas eu resolvo isso num instante.
	               CRISTÓVÃO
	               São seis da tarde, Cátia. Tu não vai conseguir
	               fazer mais nada hoje. (definitivo) Amanhã tu fica
	               em casa. Descansa. É melhor pra ti e melhor pra
	               empresa.
	Cristóvão sai da sala. Cátia abre outra vez o roteiro na tela do
	computador.
CENA 40. MOTEL 1 - INTERIOR - NOITE
	Veronese, Cátia e Cassandra fazem um brinde com champanha. Os
	três tomam um pouco. Cassandra olha para Veronese,
	profissionalmente sedutora.
	               VERONESE
	               (para Cátia) Tem certeza?
	               CÁTIA
	               Tenho. Feliz aniversário.
	Cassandra aproxima-se de Veronese e o beija de leve na boca.
	Cátia sorri e assopra a vela, apagando-a.
CENA 41. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA
No computador, vemos as última linhas do roteiro:
"HOMEM - (para a Mulher) Tem certeza?"
"MULHER - Tenho. Feliz aniversário."
	"A Outra Mulher aproxima-se do Homem e o beija de leve na boca. A
	Mulher sorri e assopra a vela, apagando-a."
	Está é a última linha do roteiro. Cátia tenta rolar o texto mais
	para baixo. Nada.
CENA 42. LOJA DE VERONESE - INTERIOR þ NOITE
	Mirabela examina um livro com registros contábeis e Cátia dá uma
	olhada nas gavetas da loja de equipamentos fotográficos e
	revelações de Veronese. É um estabelecimento modesto, numa
	galeria popular. A porta está fechada. Elas estão sozinhas.
	               MIRABELA
	               Acho tá tudo certo. O Veronese recolhia o fundo de
	               garantia, os salários estavam em dia. Pra despedir
	               aqueles dois, só tem que pagar as férias.
	               CÁTIA
	               Eles vão ficar arrasados.
	               MIRABELA
	               Fazer o quê? Tu vai administrar isso aqui?
	Cátia acha uma foto de cena de Cassandra numa gaveta. Mostra a
	foto para Mirabela.
	               CÁTIA
	               O Veronese gostava da Cassandra, né?
Mirabela examina rapidamente a foto.
	               MIRABELA
	               Como atriz?
	               CÁTIA
	               Não. Como mulher.
	               MIRABELA
	               Nunca percebi nada entre os dois. Vamos? Isso aqui
	               é meio deprimente.
CENA 43. APARTAMENTO DE VERONESE/SALA - INTERIOR - NOITE
As duas arrumam a sala.
	               CÁTIA
	               O Veronese nunca me disse que ela morava tão
	               perto.
	               MIRABELA
	               Ela se mudou faz pouco tempo. Não pensa besteira.
	               CÁTIA
	               Mas é que ele escreveu...
	               MIRABELA
	               É ficção, Cátia. Pelo amor de Deus! Ele escrevia
	               filmes. Filmes de ficção. Se não parece ficção, é
	               porque ele escrevia bem. (pausa) Quanto melhor a
	               ficção, mais ela tem de real. Mas ficção é ficção,
	               e realidade é realidade. Bota isso na cabeça.
Cátia olha para Mirabela, abatida e triste.
CENA 44. APTO. DE VERONESE/QUARTO - INTERIOR - NOITE
As duas arrumam os livros e as revistas nas estantes.
	               CÁTIA
	               Num roteiro que eu tava lendo, tem uma situação...
	               É muito parecido com... Com a nossa vida. A minha
	               e a do Rudi... Nunca aconteceu, mas...
	               MIRABELA
	               Cátia, desencana.
Cátia balança a cabeça, nervosa. Hesita.
	               CÁTIA
	               (finalmente toma coragem) Tem uma frase que tá num
	               roteiro, essa frase ele tirou de mim...
Mirabela olha para Cátia, paciente.
	               MIRABELA
	               Que frase?
	               CÁTIA
	               (num rompante) "Apaga a luz."
	               MIRABELA
	               "Apaga a luz?"
	               CÁTIA
	               É.
	               MIRABELA
	               Tu tem idéia de quantos milhões de pessoas, neste
	               exato momento, estão dizendo "Apaga a luz"? Os
	               escritores misturam tudo: o que eles vivem, o que
	               eles observam da vida das outras pessoas e o que
	               eles inventam. A gente não sabe o que é uma coisa
	               ou outra, e aposto que às vezes nem eles mesmos
	               sabem.
	               CÁTIA
	               Os filmes dele... Tinham tanto sexo. Pra quê?
	               MIRABELA
	               Sei lá. Era o estilo dele.
	               CÁTIA
	               (hesita um pouco) Às vezes eu achava que não era
	               estilo. Era doença. E essas fantasias...
	               MIRABELA
	               Eram fantasias ou realidade? Te decide.
	               CÁTIA
	               (nervosa) Por quê a Cassandra chorava tanto no
	               enterro? Vocês também eram amigos...
Mirabela perde paciência e levanta o tom de voz.
	               MIRABELA
	               Ele tá morto, Cátia. Se namorou a Cassandra, que
	               diferença isso faz?
Cátia praticamente grita, num rompante:
	               CÁTIA
	               É que eu tava namorando o Valdo!
Mirabela acusa o golpe. Olha para Cátia, meio tonta.
	               CÁTIA
	               Ao meio-dia. Sempre ao meio-dia. Na minha casa! Eu
	               sou uma idiota! Mas eu já tinha decidido parar com
	               aquela loucura e contar tudo pro Veronese.
Mirabela continua incapaz de reagir.
	               CÁTIA
	               Aí ele morreu! E eu nunca vou poder contar pra ele
	               que eu sou uma idiota, mas que amava ele mais do
	               que tudo na vida.
	               MIRABELA
	               E agora tu precisa saber se ele também te
	               enganava. Seria um alívio.
	               CÁTIA
	               Seria... Seria... Maravilhoso. Dá pra entender?
	               MIRABELA
	               Dá.
	               CÁTIA
	               Jura que nunca vai contar pra ninguém. Eu me mato,
	               se mais alguém souber. Jura?
	               MIRABELA
	               Juro.
	               CÁTIA
	               E jura que não sabe se o Veronese transava com a
	               Cassandra?
Mirabela olha para Cátia, triste.
	               CÁTIA
	               Vou me mudar para esse apartamento. O Veronese
	               tinha acabado de me convidar pra morar com ele.
	               Isso ele não escreveu. Ele falou comigo. De
	               verdade. E eu aceitei o convite.
CENA 45. EDIFÍCIO DE CÁTIA/FACHADA - EXTERIOR - DIA
	Um pequeno caminhão de mudança está parado na frente do edifício
	de Cátia. Enquanto os FUNCIONÁRIOS da companhia de mudança
	carregam algumas caixas, Cátia coloca objetos mais delicados no
	interior do seu carro, também parado na frente do edifício. Valdo
	chega quando ela está se aproximando do carro com um vaso pequeno
	nas mãos.
	               VALDO
	               Ôi.
Cátia sorri, meio amarelo.
	               CÁTIA
	               Ôi.
	               VALDO
	               A Mirabela me falou da mudança.
	               CÁTIA
	               É. Vou passar um tempo no apartamento do Veronese.
Valdo olha para o belo edifício de Cátia, incrédulo.
	               VALDO
	               Posso ajudar?
	               CÁTIA
	               Se quiser...
CENA 46. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA
	O apartamento continua com os móveis e quase toda a decoração.
	Cátia aponta para um telefone com secretária eletrônica.
	               CÁTIA
	               Pode pegar o telefone?
	               VALDO
	               Claro.
	Valdo começa a desligar o telefone. Um dos funcionários da
	companhia de mudança passa por eles, carregando uma caixa de
	papelão, e sai. Valdo fecha a porta do apartamento e olha para
	Cátia.
	               CÁTIA
	               O meu carro tá aberto. Eu tenho que ir.
	               VALDO
	               Primeiro vai conversar comigo. Cinco minutos.
	Cátia tenta passar por ele, mas Valdo permanece na frente da
	porta, com o telefone na mão.
	               CÁTIA
	               Não tenho tempo.
	               VALDO
	               Que loucura é essa? Primeiro, me trata como um
	               desconhecido, depois vai se mudar pra um
	               apartamento que é menor, pior e muito mais longe
	               do teu trabalho.
Cátia faz nova tentativa para sair, agora com muito mais energia.
	               CÁTIA
	               O apartamento é meu. A vida é minha. Com licença.
	Valdo a segura, primeiro com a mão que está livre, mas Cátia
	consegue se desvencilhar. Valdo deixa cair o telefone no chão e a
	segura com as duas mãos.
	               CÁTIA
	               Me larga!
	               VALDO
	               Pára, Cátia. Pára!
	               CÁTIA
	               Tu tá me machucando.
	               VALDO
	               Quer me ouvir? Tu não tem culpa de nada. Eu te
	               liguei, eu insisti. Ninguém tem culpa.
	               CÁTIA
	               Sai da minha frente!
	Cátia empurra Valdo com toda a força. Valdo quase cai. Cátia abre
	a porta, mas Valdo a fecha outra vez. Estão praticamente em luta
	corporal.
	               CÁTIA
	               Sai! Sai!
	Cátia livra uma das mãos e acerta um tapa (quase um soco) no
	rosto de Valdo, que cambaleia e leva a mão à altura do olho.
	Cátia está chorando. Os dois se olham.
CENA 47. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA
	Cátia e Valdo estão sentados, lado a lado, no sofá. Valdo segura
	um guardanapo de pano com gelo sobre o supercílio.
	               VALDO
	               Eu tenho que te confessar uma coisa.
Cátia olha para Valdo.
	               VALDO
	               Naquela noite, lá no apartamento do Veronese, eu
	               copiei os roteiros num disquete. Eu sei que não
	               devia. Desculpa. (pausa) Não tem longa nenhum.
Cátia permanece calada.
	               VALDO
	               Um dos roteiros me interessou.
	               CÁTIA
	               Qual?
	               VALDO
	               "Motéis". Tá incompleto. Tu leu?
	               CÁTIA
	               (preocupada) Li.
	               VALDO
	               O que tu achou?
	               CÁTIA
	               Não acho nada. Eu não entendo metade, e a metade
	               que eu entendo tá me fazendo mal. Decidi que não
	               vou ler mais essas coisas.
	               VALDO
	               É uma boa história.
	               CÁTIA
	               (cortando, tensa) Tá pensando em filmar?
	               VALDO
	               Talvez. Se eu conseguir escrever um bom final...
	               Será que teria algum problema?
Cátia levanta.
	               CÁTIA
	               Eu tenho que ir, Valdo.
	               VALDO
	               Tudo bem. Mas pensa nisso. E, se precisar de
	               alguma coisa...
Cátia olha para Valdo e sorri pela primeira vez.
	               CÁTIA
	               Eu preciso ficar sozinha. Se tu quer me ajudar, me
	               deixa no meu canto.
	Valdo sorri e vai pegar a mão de Cátia, mas ela levanta rápido e
	sai do apartamento, sem olhar para trás.
CENA 48. APTO. DE VERONESE/SALA - INTERIOR - DIA
	Dois funcionários da companhia de mudanças estão saindo do
	apartamento. Cátia abre a bolsa, tira duas notas de cinco reais e
	entrega para eles. Cátia abre a porta e os funcionários saem.
	Cátia olha para a sala, que está cheia de objetos envoltos em
	plástico bolha e caixas de papelão. Respira fundo e vai começar a
	arrumar as coisas, mas a campainha toca. Cátia abre a porta. É
	Holmes.
	               HOLMES
	               (falando rápido) Ôi, Cátia. Pô, que zona... Se
	               precisar de uma ajuda...
	               CÁTIA
	               (estranhando) Obrigado
	Holmes pega uma folha de ofício na sua sacola e a entrega para
	Cátia. Ela segura a folha, curiosa.
	               HOLMES
	               É um resumo do "Filme de mentira". O João Paulo
	               pediu que eu fizesse. Ele não tem muito tempo,
	               sabe como é... Publicidade.
	               CÁTIA
	               Eu nem tava com tanta pressa.
	               HOLMES
	               A pressa é minha. Eu adorei o roteiro e quero
	               filmar.
A campainha toca duas vezes.
	               HOLMES
	               É o João Paulo. Ele sabe que tô aqui e tá puto
	               comigo. Mas lembra que eu pedi primeiro!
Cátia caminha até a porta.
	               CÁTIA
	               Pediu o quê?
	               HOLMES
	               Pra filmar.
	Cátia abre a porta. João Paulo entra, com ar agitado, e aponta o
	dedo para Holmes.
	               JOÃO PAULO
	               Eu chamo isso de traição.
	               HOLMES
	               (para Cátia) Ele tá louco. Enlouqueceu.
	               JOÃO PAULO
	               A Cátia sabe quem é o maluco aqui.
	               CÁTIA
	               Do que vocês estão falando?
	               JOÃO PAULO
	               A questão é a seguinte: ontem eu mandei o roteiro
	               do Veronese pro Holmes e pedi um serviço pra ele.
	               HOLMES
	               Pediu um favor. Não um serviço.
	               JOÃO PAULO
	               Eu ia te pagar.
	               HOLMES
	               Ah, é? Quanto?
	               JOÃO PAULO
	               Cátia, tu deve lembrar: eu falei que gostava das
	               coisas do Veronses...
	               HOLMES
	               Tu nem sabia qual era a história. (para Cátia) Ele
	               nem leu o roteiro, só o meu resumo.
	               JOÃO PAULO
	               Vamos parar com essa palhaçada. Cátia: eu quero
	               fazer o "Filme de mentira". Como uma homenagem ao
	               Veronese.
	               HOLMES
	               Eu pedi primeiro.
	               CÁTIA
	               Mas têm outros roteiros...
	               JOÃO PAULO
	               Eu já convidei a Cassandra pro filme, e ela
	               aceitou.
	               HOLMES
	               Grande merda. Eu também convidei, e ela também
	               aceitou.
	               CÁTIA
	               Eu nem sei se esses roteiros devem ser filmados.
	               JOÃO PAULO
	               Esse deve, Cátia.
	               HOLMES
	               Eu cheguei antes!
	               CÁTIA
	               Eu não vou me meter nessa briga. Vocês são amigos,
	               não são?
Os dois se olham, furiosos.
CENA 49. RUA - EXTERIOR - NOITE
	Cátia aproxima-se de um edifício com a fachada de pastilhas e uma
	padaria no térreo. A porta lateral se abre e uma MULHER RUIVA
	sai. Cátia adianta-se para entrar.
CENA 50. EDIFÍCIO DE CASSANDRA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE
	Cátia toca a campainha do apto. 73. Nada. Toca de novo. Nada. Vai
	tocar pela terceira vez. Barulho de chave girando na fechadura. A
	porta abre, revelando Cassandra, com um roupão e uma toalha
	enrolada na cabeça. Seu rosto está molhado.
	               CÁTIA
	               (sem jeito) Desculpa. Eu devia ter telefonado
	               antes.
	               CASSANDRA
	               Não dá nada. Entra.
CENA 51. APTO. DE CASSANDRA/SALA - INTERIOR - NOITE
	O apartamento é bem modesto. Móveis velhos ou de baixa qualidade.
	Cátia está sentada numa poltrona desbotada. Cassandra não está na
	sala.
	               CÁTIA
	               (alto) Termina teu banho.
	               CASSANDRA
	               (off) Eu já tava terminando.
	Cassandra entra na sala, ainda de roupão e tolha na cabeça, mas
	com o corpo e o rosto secos. Senta na frente de Cátia.
	               CÁTIA
	               O Holmes e o João Paulo me disseram que querem
	               filmar um dos roteiros do Veronese, e que tu vai
	               ser a atriz principal.
	               CASSANDRA
	               Eu nem sei que roteiro é esse. Aceitei pra eles
	               pararem de me encher o saco.
	               CÁTIA
	               (sorri) O Veronese dizia que existem dois tipos de
	               pessoas: as que fazem as coisas porque gostam de
	               fazer, e as que gostariam de não fazer nada, mas
	               fazem para que os outros parem de encher o saco.
	               (outro sorriso) Acho que ele era do segundo tipo.
	               CASSANDRA
	               Não acho.
Cátia fica surpresa.
	               CASSANDRA
	               O Rudi gostava muito de fazer filmes. Uma vez ele
	               me disse que dividia as pessoas de outro jeito.
	               CÁTIA
	               Como?
Cassandra reluta. Levanta.
	               CASSANDRA
	               Deixa pra lá. É uma bobagem.
	               CÁTIA
	               Diz.
	               CASSANDRA
	               Eu... Nem lembro direito.
	               CÁTIA
	               (já um pouco ríspida) Por favor.
	Cassandra ainda demora um pouco. Mas, frente ao olhar inamistoso
	de Cátia, acaba falando.
	               CASSANDRA
	               Tem as pessoas que se masturbam pensando em
	               alguém, e as que se masturbam pensando nelas
	               mesmas. As primeiras são mais bacanas, mas as
	               outras ganham muito mais dinheiro.
	Cassandra ameaça um sorriso, mas, frente à cara fechada de Cátia,
	respira fundo e tenta remendar.
	               CASSANDRA
	               Eu avisei que era uma bobagem.
	               CÁTIA
	               Não achei uma bobagem. Quando ele te disse isso?
	               CASSANDRA
	               Não faço a menor idéia.
	               CÁTIA
	               (mais ríspida) Tu faz de conta que não faz a menor
	               idéia.
	               CASSANDRA
	               Calma, Cátia.
	               CÁTIA
	               (quase descontrolada) Calma coisa nenhuma. Tu acha
	               que conhecia o Veronese? O que ele escrevia? O que
	               ele pensava? O que ele vivia? Tem certeza? (pausa)
	               Tu tá enganada: o Veronese tinha uma filha.
Cassandra fica surpresa.
	               CÁTIA
	               O nome dela é Linda. Tem 18 anos.
	               CASSANDRA
	               Que loucura.
	               CÁTIA
	               (continua olhando para Cassandra) Tu não sabia
	               mesmo que ele tinha uma filha?
	               CASSANDRA
	               Não.
Cátia olha fixamente para Cassandra.
	               CÁTIA
	               Ele nunca te disse nada?
	               CASSANDRA
	               Não.
Cátia olha para Cassandra
CENA 52. CASA DE MIRABELA/SALA - INTERIOR - NOITE
	Mirabela, de camisola e cabelo todo desarrumado, está sentada
	numa poltrona com uma xícara na mão. A sala é grande e tem móveis
	rústicos e pesados. As paredes são de madeira. É o interior
	típico de um pequeno sítio suburbano.
	Cátia, com a mesma roupa da cena anterior, também segura uma
	xícara. Sobre uma mesa de centro, uma garrafa térmica.
	               MIRABELA
	               Que loucura...
	               CÁTIA
	               Eu perdi a cabeça. (pausa) Ela prometeu não dizer
	               pra ninguém. Mas eu não confio nela. O Veronese
	               disse que só ia contar sobre a filha se ela
	               quisesse.
	               MIRABELA
	               Se a Cassandra prometeu...
	               CÁTIA
	               Por quê tu não me conta a verdade?
	               MIRABELA
	               Que verdade?
	               CÁTIA
	               Que eles eram amantes. Ele contava tudo pra ela.
	               Até que eu não penso em ninguém quando me
	               masturbo.
	               MIRABELA
	               (perplexa, ar cansado) Vamos dormir? Quanto mais a
	               gente fala, mais confuso fica. Tu tá criando uma
	               fantasia atrás da outra. (pausa) Tem certeza que
	               essa filha existe? Ela não apareceu no enterro,
	               nem respondeu a tua mensagem.
Cátia fica abalada.
	               CÁTIA
	               Claro que existe. O Veronese disse... Ele tava
	               escrevendo pra ela.
	               MIRABELA
	               Tem certeza?
Cátia olha para Mirabela, séria.
CENA 53. ÔNIBUS - INTERIOR - DIA
Cátia na poltrona de um ônibus, que está em movimento.
CENA 54. AVENIDA - EXTERIOR - DIA
O ônibus passa por uma placa - "BEM VINDO A NOVA ITÁLIA"
CENA 55. CORREDOR DA SALA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA
	Cátia aproxima-se de uma pequena sala com uma porta de vidro.
	Dentro da sala, em frente a uma ilha de edição de tele-jornalismo
	(analógica), estão LINDA (18 anos) e um REPÓRTER, 25 anos,
	editando uma matéria.
	Cátia olha para os dois, hesita um pouco, mas acaba batendo.
	Linda olha para a porta e faz sinal para Cátia entrar. Ela entra.
CENA 56. SALA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA
	Cátia aproxima-se de Linda, que está concentrada na edição. O
	repórter está com cara de saco-cheio. No monitor, uma entrevista
	com uma JOVEM MODELO.
	               JOVEM MODELO
	               Foi há dois anos. Eu estava aqui, no shopping, e
	               aí me descobriram. Eu tô super feliz de desfilar
	               na minha cidade, depois de dois anos em Nova
	               Iorque.
Corta para o repórter encerrando a matéria com uma "cabeça".
	               REPÓRTER
	               Quando entrar na passarela, hoje à noite, Lisandra
	               com certeza estará muito emocionada, pois viu seu
	               sonho se tornar realidade. Para o Jornal da Tarde,
	               José Torresini.
	A matéria acaba. Linda olha para o repórter, com ar reprovador, e
	depois olha para Cátia.
	               LINDA
	               Quer falar comigo?
	               CÁTIA
	               Eu sou... Eu era namorada do Rudi.
	Linda continua olhando para Cátia, sem demonstrar reação. O
	repórter olha para o relógio.
	               REPÓRTER
	               A matéria entra no ar daqui a trinta e dois
	               minutos.
	               LINDA
	               (para Cátia) Tu pode esperar um pouco? Senta ali.
Linda aponta uma cadeira, num canto da sala.
	               REPÓRTER
	               (nervoso) O que tu achou?
	               LINDA
	               Tá ruim, Zé. Tem que botar alguma coisa no final.
	               Gravaram o ensaio do desfile?
	               REPÓRTER
	               Gravamos. Mas tá horrível. Tinha um monte de
	               criança pobre olhando.
	               LINDA
	               Quero ver. Cadê a fita?
	               REPÓTER
	               No arquivo.
Linda escreve um bilhete.
	               LINDA
	               Aproveita e traz essa outra fita e esse CD.
	O repórter pega o bilhete e sai, apressado. Linda olha para
	Cátia, que sorri, tímida.
	               CÁTIA
	               Obrigado por responder minha mensagem.
	               LINDA
	               Desculpa não ter respondido a outra. Eu não sabia
	               o que dizer. Até pensei em ir no enterro, mas
	               depois desisti. Não tinha sentido.
	               CÁTIA
	               Eu entendo.
O repórter volta, com duas fitas e um CD. Linda pega tudo.
	               REPÓRTER
	               (nervoso) Faltam vinte e oito minutos.
	               LINDA
	               Dá tempo. Sempre dá tempo, Zé.
Enfia uma fita no "player".
CENA 57. CASA DE LINDA EM NOVA ITÁLIA/SALA - INTERIOR - DIA
	Na TV da casa de Linda, está acabando a matéria editada por
	Linda.
	               REPÓRTER
	               ...pois viu seu sonho se tornar realidade. Para o
	               Jornal da Tarde, José Torresini.
	A edição de Linda que se segue mistura, por vinte segundos,
	imagens do ensaio do desfile de Lisandra (às vezes em câmara
	lenta), imagens de Nova Iorque e as crianças pobres olhando o
	ensaio, com uma trilha nova-iorquina ("New York, New York",
	"Rapsody in Blue", ou algo parecido).
Quando a matéria termina, uma APRESENTADORA sorridente aparece.
	               APRESENTADORA
	               Boa tarde.
	Linda desliga a TV. Cátia e Linda estão sentadas em poltronas
	confortáveis. A decoração da casa é simples, mas de bom gosto.
	Uma estante grande com alguns livros ocupa uma das paredes. Há
	várias fotos de família penduradas na outra parede.
	Linda aponta para uma das fotos na parede: um casal sorrindo. O
	homem é Rudi (20 anos). A mulher (20 anos) é parecida com Linda.
	Rudi está com uma câmara super-8 na mão.
	               LINDA
	               Minha mãe e meu pai. Queriam fazer cinema. Ele
	               dirigia, ela montava. Fizeram uns filmezinhos em
	               super-8. Nessa foto, a mãe já tava grávida de mim,
	               mas ele ainda não sabia. Minha vó que tirou. Dizia
	               que esse foi o último dia feliz da vida deles.
	               CÁTIA
	               O que aconteceu?
	               LINDA
	               Minha mãe contou pra ele da gravidez. Meu pai
	               propôs um aborto. Disse que eram jovens demais pra
	               ter um filho. Minha mãe acabou concordando.
	               CÁTIA
	               (chocada) Mas...
	               LINDA
	               O pai e a mãe não tinham muita grana. Moravam
	               nessa casa, com minha vó, que sempre foi muito
	               pão-dura. E ela nunca gostou do Rudi.
	               CÁTIA
	               Mas não teve aborto nenhum.
	               LINDA
	               Por falta de verba. Minhã mãe descobriu que o Rudi
	               tinha tirado todo o dinheiro que eles tinham no
	               banco pra comprar uma câmara 16mm usada. Ele tava
	               fazendo um filme com uns amigos. O Rudi dizia que
	               os amigos iam pagar. Não pagaram. O filme chamava-
	               se "Aurora".
	               CÁTIA
	               O Rudi nunca falou desse filme.
	               LINDA
	               A vó disse que não tinha filme nenhum. A mãe ficou
	               tão braba que expulsou o Rudi de casa. Era pra ser
	               uma noite só, pelo menos é o que ela me dizia. Mas
	               acho que ele ficou muito chateado. Foi pra Porto
	               Alegre e desapareceu.
	Linda vai até a estante e pega um pequeno livro: o roteiro de
	Interiores, de Woody Allen. Estende o livro para Cátia.
	               LINDA
	               Quando eu fiz quinze anos, ele me deu esse livro
	               de presente. Pelo correio. Eu nunca tinha lido um
	               roteiro na vida. E ainda por cima em espanhol.
	               Minha mãe disse que ele era louco. (pausa) Eu
	               tentei ler, mas achei muito complicado. Nem fui
	               até o fim.
Cátia examina o livro atentamente.
	               LINDA
	               Mas depois o filme foi lançado em vídeo. Eu
	               assisti aqui nessa sala. E, pela primeira vez na
	               vida, eu senti a presença do meu pai. E entendi o
	               presente.
	CENA 58. CASA DE LINDA EM NOVA ITÁLIA/FACHADA/CALÇADA -
	EXTERIOR - DIA
	Cátia e Linda saem pelo portão e caminham juntas na calçada.
	Linda está com uma bolsa.
	               LINDA
	               Mês passado, ele apareceu no meu aniversário de 18
	               anos. Minha mãe já tinha morrido. Câncer. Nós
	               conversamos um pouco, foi estranho. Não tínhamos
	               muito assunto. (sorri para Cátia) De repente, ele
	               disse que tava apaixonado por uma garota chamada
	               Cátia. E que tava feliz. Depois recebi aquele
	               convite pro casamento de vocês...
	               CÁTIA
	               (cortando) Não era bem um casamento.
	               LINDA
	               Mas parecia. Acho que ele gostava mesmo de ti.
Cátia sorri para Linda.
	               CÁTIA
	               E tu nunca teve vontade de conhecer ele melhor?
	               Era teu pai.
	               LINDA
	               Tudo que eu sei dele foi através da mãe e da vó.
	               Pra mim, ele nunca foi um pai. Foi um homem
	               horrível, que engravidou a minha mãe, mas não
	               queria que eu nascesse. Ele roubou o nosso
	               dinheiro pra fazer um filme que nunca existiu. E
	               depois desapareceu. Quando eu era pequena, tinha
	               medo dele. Pensava que ele podia voltar e me fazer
	               mal.
	               CÁTIA
	               Linda, isso é um absurdo. Ele era um homem
	               maravilhoso. Um artista. Sensível. Doce. Generoso.
	               Ele nunca fez mal a ninguém.
	               LINDA
	               Li alguma coisa sobre os filmes dele. Eram meio
	               fortes, né? Tinham muito sexo...
	               CÁTIA
	               (meio embaralhada) É... Mas ele era muito
	               diferente dos filmes. Quer dizer... Ele era bom,
	               Linda. Não era um monstro. Ele seria um ótimo pai,
	               tenho certeza.
Caminham mais algum tempo em silêncio.
	               CÁTIA
	               E tu, é feliz aqui?
	               LINDA
	               Acho que sim. Pensei em fazer a faculdade em Porto
	               Alegre, mas depois decidi ficar. E alguém tinha
	               que cuidar da vó. Ela morreu há seis meses.
Caminham mais um pouco. Parece que não têm mais assunto.
	               CÁTIA
	               Eu achei muito legal aquilo que tu fez lá na TV.
	               Ficou emocionante.
	               LINDA
	               Eu junto os pedaços e encontro um sentido. Não é
	               difícil. A mãe me ensinou. Ela trabalhava na TV.
	Elas chegam na esquina, onde há dois táxis num ponto. Cátia olha
	para Linda. As duas se abraçam. Cátia entra no táxi. Linda
	aproxima-se, coloca a mão na bolsa, tira o livro ("Interiores") e
	entrega-o para Cátia pela janela aberta.
	               LINDA
	               Fica com ele.
	               CÁTIA
	               Não.
	               LINDA
	               É só emprestado. Depois tu devolve. Por favor.
Cátia sorri. O táxi arranca. Linda abana. Cátia abre o livro.
CENA 59. ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA
	Cátia, em sua mesa, está lendo o roteiro de "Interiores". Cátia
	veste-se com certa displicência e está quase sem maquilagem.
	Cristóvão bate na porta e entra. Cátia coloca o livro em cima da
	mesa e o esconde com uma folha de papel que apanha rapidamente.
	Mas é inútil: Cristóvão percebeu.
	               CRISTÓVÃO
	               Esqueceu da nossa reunião?
	               CÁTIA
	               Claro que não.
	               CRISTÓVÃO
	               Claro que sim.
Cristóvão tira a folha de papel de cima do livro e lê o título.
	               CRISTÓVÃO
	               Tá na hora de decidir, Cátia. Ou tu volta pro
	               planeta Terra, ou fica no mundo da lua.
CENA 60. GALPÃO - INTERIOR - NOITE
	Uma grande porta de madeira abre-se, empurrada por Cátia. O
	galpão está na penumbra, de modo que Cátia tem certa dificuldade
	para se movimentar. Há uma parede de madeira bem à sua frente e
	muitas tábuas espalhadas pelo chão.
	Cátia segue por um corredor estreito, passando por materiais de
	filmes antigos, entre eles uma grande lua cenográfica. Chega numa
	área mais iluminada, ampla, em que pode divisar umas DEZ PESSOAS
	trabalhando nos cenários de um filme. Uma tapadeira está sendo
	pintada. Num canto, em prateleiras improvisadas, há alguns
	objetos de cena. No outro canto, móveis de época.
	Mirabela e SÍLVIA (30 anos), a assistente de direção - com um
	cronômetro pendurado no pescoço, segurando uma prancheta com o
	boletim de câmara - discutem alguma coisa. Mirabela percebe a
	chegada de Cátia e acena para ela, chamando-a. Cátia se aproxima.
	As três se beijam.
	               CÁTIA
	               Será que eu podia dar uma olhada na filmagem?
	               MIRABELA
	               (indecisa) Tu sabe como o João Paulo é nervoso. Há
	               pouco ele deu o maior esporro na guria que tava
	               fazendo a claquete. Ela foi embora chorando.
	               CÁTIA
	               Eu falei com ele hoje de tarde... Não vou
	               atrapalhar. Eu até poderia fazer alguma coisa...
	               Sei lá... Como é que se faz uma "claquete"?
CENA 61. GALPÃO/CENÁRIO (QUARTO) - INTERIOR - NOITE
	Sílvia segura uma claquete e conversa com Cátia, sob o olhar
	atento de Mirabela. Ao fundo, CANIÇO, o diretor de arte, e seus
	DOIS ASSISTENTES dão os últimos retoques no cenário, um quarto
	muito modesto, com uma cama de solteiro. EDVALDO, o diretor de
	fotografia (que também opera a câmara), e o seu ASSISTENTE DE
	CÂMARA conferem o foco e limpam a objetiva.
	A câmara está sobre trilhos, que começam perto da cama e afastam-
	se alguns metros para o fundo do cenário. O OPERADOR DE SOM e o
	MICROFONISTA acertam a melhor posição para o boom. O MAQUIADOR e
	João Paulo estão em volta de Cassandra e GARCIA (25 anos), um
	ator simpático e musculoso.
	João Paulo termina de dizer alguma coisa para Cassandra e Garcia,
	que riem, deitados na cama. Depois aproxima-se da câmara,
	passando pelas três mulheres.
	               JOÃO PAULO
	               Tamo por quem? Vamos lá! Vamos rodar!
	E sai de quadro. Sílvia entrega a claquete para Cátia, que parece
	nervosa.
	               CÁTIA
	               Será que vou fazer direito?
	               MIRABELA
	               Fica calma. Primeiro o João Paulo diz "som".
	               SÍLVIA
	               (aponta para o operador de som) Aí o operador do
	               som diz "foi som".
	               CÁTIA
	               E aí eu leio o que tá na claquete (olhando para a
	               claquete). "Cena tal. Plano tal. Tomada tal".
	               MIRABELA
	               O João Paulo diz "câmara".
	               CÁTIA
	               E eu bato a claquete e saio correndo.
	               MIRABELA
	               Calma. Não precisa correr. Sai rápido. E aí o João
	               diz "ação". (olha para Cátia, maternal) Pronta?
	               CÁTIA
	               Acho que sim.
	               JOÃO PAULO
	               (off) Vamos filmar, Cátia? Tamo por ti.
	               CÁTIA
	               (surpresa) Por mim? Como "por mim"?
	               MIRABELA
	               Tu tem que botar a claquete na frente deles.
	Cátia imediatamente vai até a frente de Cassandra e coloca a
	claquete (sem os números de cena, plano e tomada) na frente dos
	atores.
	               CÁTIA
	               (baixinho, só para Cassandra) Desculpa. Eu tava
	               nervosa naquela noite.
	               CASSANDRA
	               (sorrindo, amistosa) Tudo bem.
	               JOÃO PAULO
	               (off) Não tá faltando alguma coisa?
	               CÁTIA
	               (já insegura) Acho que não.
	Sílvia vai até Cátia e fala com ela em voz baixa. Cátia, meio
	atrapalhada, cola os números na claquete.
	               CÁTIA
	               Agora tá pronto.
	               JOÃO PAULO
	               (off, quase gritando) Atenção! Vamos começar!
	CENA 62. APTO. DO "CINEASTA"/QUARTO - INTERIOR - NOITE
	* filmada em 35mm - atores: Garcia e Cassandra.
Ponta preta. Apenas ouvimos os sons.
	               JOÃO PAULO
	               (off) Vai som!
	               OPERADOR DE SOM
	               (off) Foi som.
	               CÁTIA
	               (off) Filme de mentira. Cena 2. Plano 1. Tomada 1.
	               JOÃO PAULO
	               (off) Câmara.
	Em primeiro plano, Cátia segura a claquete, já sob o ponto de
	vista da câmara do filme. Atrás da claquete, vemos Cassandra e
	Garcia, na cama.
	               JOÃO PAULO
	               (off) Pode bater, Cátia.
Cátia bate a claquete e sai de quadro.
	               JOÃO PAULO
	               (off) Ação!
	Garcia beija Cassandra. Os dois estão deitados numa cama de
	solteiro, ele por cima dela.
	               JOÃO PAULO
	               (off, bem baixinho) Vai travelling.
	A câmara se afasta. Enquanto continua beijando, Garcia tenta
	tirar a blusa de Cassandra, mas ela dá um forte empurrão.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Eu sei o que tu quer, mas não vai levar.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Eu só quero te amar!
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               (fazendo beicinho) Tu só quer o meu corpo.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Quem te disse uma besteira dessas?
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Todos as pessoas que eu conheço.
	Garcia/cineasta acaricia o rosto de Cassandra/garota. A câmara se
	aproxima. As carícias ficam mais quentes.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Tudo mentira. Eu já te disse: tu vai ser a atriz
	               principal do meu filme.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Promete mesmo? Eu vou ser atriz?
Garcia/cineasta faz uma cruz com os dedos e a beija.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Juro por Deus. (pequena pausa) Mas tu tem que
	               superar alguns pequenos problemas.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               (preocupada) Que problemas?
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Tô te achando um pouco inibida. Uma atriz tem que
	               saber seduzir o público.
	Cassandra/garota livra-se do abraço do cineasta e levanta da
	cama. Com um gesto rápido, levanta a blusa e mostra os seios.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Viu? Não sou envergonhada. Mas tu só vai chegar
	               perto depois que eu for atriz de verdade.
Os olhos de Garcia brilham de emoção.
	               JOÃO PAULO
	               Corta! Muito bom!
João Paulo sorri, satisfeito. Cátia sorri, sem-jeito.
CENA 63. EDIFÍCIO DE CÁTIA/FACHADA - EXTERIOR - DIA
	Um pequeno caminhão de mudança está parado na frente do edifício
	de Cátia. Enquanto os funcionários da companhia de mudança
	descarregam algumas caixas, Cátia retira objetos mais delicados
	no interior do seu carro, também parado na frente do edifício.
	Valdo chega quando ela está se preparando para descarregar o
	projetor 16mm.
	               VALDO
	               Ôi. Posso ajudar?
	               CÁTIA
	               Tem certeza? É pesado.
	Valdo pega o projetor no carro. Cátia pega o notebook de
	Veronese. Os dois caminham juntos para a porta do edifício.
CENA 64. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA
	Valdo coloca o projetor sobre mesa. Cátia coloca o notebook de
	Veronese ao lado do projetor. Um dos funcionários da companhia de
	mudança coloca no chão uma caixa de papelão.
	               CÁTIA
	               Obrigado por tudo.
	Cátia passa uma gorjeta pro funcionário, que sai do apto. Cátia
	fecha a porta. Valdo senta e sorri para ela.
	               VALDO
	               Vem aqui.
	               CÁTIA
	               Não.
	               VALDO
	               Relaxa, Cátia...
Cátia abre a porta outra vez. Olha para Valdo.
	               CÁTIA
	               Eu tô muito cansada. Vai embora.
CENA 65. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - NOITE
	Na mesma poltrona em que estava sentado Valdo na cena anterior,
	agora vemos Veronese, olhando na direção da porta (e de Cátia).
	Veronese está colocando os sapatos. Há duas garrafas de vinho
	vazias e dois copos sobre a mesa.
	               VERONESE
	               Tu tá me mandando embora? De verdade?
Cátia está terminando de colocar a blusa.
	               CÁTIA
	               Tô. Tu tem a tua casa, eu tenho a minha. Ou a
	               gente tem uma casa, uma cama e uma vida em comum,
	               ou são duas casas, duas camas e duas vidas
	               separadas. Aceito uma coisa ou outra. Mas não
	               aceito uma casa e meia, uma cama e meia, uma vida
	               e meia.
	               VERONESE
	               Tudo isso só porque eu disse que tava com preguiça
	               de ir pra casa?
	               CÁTIA
	               Não é só por causa de hoje. É por causa de
	               anteontem. E da semana passada, em que eu dormi na
	               tua casa, e tive que usar a mesma calcinha dois
	               dias seguidos.
	Veronese levanta, aproxima-se e tenta abraçar Cátia, mas ela não
	deixa. Veronese desiste de abraçá-la, mas permanece bem perto de
	Cátia.
	               VERONESE
	               Meu amor... Tá chovendo...
Veronese inclina-se para beijar Cátia, mas ela se afasta.
	               CÁTIA
	               Nem vem. Vai pra tua casa. Agora!
	               VERONESE
	               A gente se ama. É tão bom... Cada um na sua casa.
	               CÁTIA
	               Se a gente for morar junto vai parar de se amar?
	               VERONESE
	               O amor é uma coisa tão complicada...
	               CÁTIA
	               Pra mim, não. É bem simples. Vai pra tua casa.
	               Essa aqui é a minha.
CENA 66. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA
	Valdo passa por Cátia, que ainda está parada perto da porta.
	Valdo dá dois beijos no rosto de Cátia.
	               VALDO
	               Tem certeza que é bom pra ti ficar sozinha?
	               CÁTIA
	               Tenho.
	               VALDO
	               Sabe o que eu acho? Posso dizer o que eu acho?
	               Talvez seja útil.
	               CÁTIA
	               Acho difícil. Mas vamos lá.
	               VALDO
	               Eu acho que tu criou uma culpa enorme, que tá te
	               fazendo sofrer de um jeito que tu não merece.
	               CÁTIA
	               Terminou?
	               VALDO
	               Não. Eu te amo.
	               CÁTIA
	               Sabe o que eu acho? Posso dizer o que eu acho?
	               VALDO
	               Pode.
	               CÁTIA
	               Eu tenho a minha culpa, que é grande. Mas a tua é
	               muito maior. Tu não me ama. Pára de mentir. Vai
	               pra tua casa. Essa aqui é a minha. (aponta para o
	               projetor em cima da mesa) Tu sabe mexer naquilo?
	               VALDO
	               Sei.
	               CÁTIA
	               Ótimo. A Mirabela tentou, mas foi um desastre.
	               Pode me dar umas aulas num dia desses? Isso seria
	               útil.
CENA 67. PEQUENA SALA DE CINEMA - INTERIOR - DIA
	Cátia, Mirabela, Cassandra, Caniço e Edvaldo estão sentados numa
	sala de cinema, com as luzes ligadas. Todos os outros lugares
	estão vazios. Mirabela fala no celular.
	               MIRABELA
	               Se tu quiser, a gente espera. (pequena pausa) Tudo
	               bem. (desliga o celular) O João Paulo tá na
	               produtora. Mandou a gente ver sem ele.
Mirabela faz um sinal para os fundos da sala.
	               MIRABELA
	               Ele tava muito estranho.
	A sala fica escura. Começa o copião. Cátia segura a claquete,
	abaixa um pouco, bate e depois sai. Garcia beija Cassandra, etc.
	Travelling. Eles começam a falar sem som.
	               CÁTIA
	               Tá sem som.
	               MIRABELA
	               É assim mesmo. O som a gente põe depois.
Um celular toca na sala. Mirabela atende.
	               MIRABELA
	               Alô.
Mirabela ouve por algum tempo.
	               MIRABELA
	               Não. Ninguém me disse nada.
Ouve mais algum tempo, depois desliga. Está perplexa.
	               CASSANDRA
	               O que foi, Mira?
	               MIRABELA
	               Era a Sílvia. Ela tá no estúdio. O João mandou
	               desmontar os nossos cenários.
CENA 68. ESTÚDIO - INTERIOR - DIA
	Cátia entra no estúdio. João Paulo está comandando uma EQUIPE de
	cinema que filma um comercial de refrigerante. Restos do cenário
	do "Filme de mentira" estão encostados nas paredes.
	No cenário principal do estúdio, decorado como se fosse um bar,
	UMA DEZENA DE JOVENS toma refrigerante. Uma grande câmara está
	sobre um travelling, deslizando rápido sobre os trilhos,
	mostrando os jovens em plano fechado.
A ação termina numa LOURA, que dá uma piscada para o lado.
	               JOÃO PAULO
	               Corta!
	João começa a falar com a loura, mas, quando vê Cátia, abandona o
	set e aproxima-se da amiga.
	               CÁTIA
	               Eu posso esperar.
	               JOÃO PAULO
	               Eu só vou sair desse estúdio daqui a uma semana.
	               CÁTIA
	               Uma semana pra fazer um comercial de refrigerante?
	               JOÃO PAULO
	               Cinco comerciais de refrigerante. Esse é o
	               primeiro, e já estou com vontade de matar aquela
	               modelo. (aponta para a loura) Ela não consegue
	               tomar refrigerante e piscar ao mesmo tempo. É
	               terrível.
	               CÁTIA
	               Se é tão ruim assim, por que tu faz?
	               JOÃO PAULO
	               Tu não imagina quanto eu vou ganhar pra fazer
	               cinco comerciais de refrigerante. (pausa) A
	               Mirabela disse que tu ficou chateada. Desculpa.
	               Mas aquele roteiro não tem nada a ver comigo. Eu
	               tava gastando uma grana e recusando trabalhos pra
	               produtora. Aí, ontem, na minha análise, descobri
	               que filmar o roteiro do Veronese era uma cerimônia
	               de despedida. Já me despedi. Diz isso pro Holmes.
	               Ele pode terminar a obra-prima dele sem se
	               preocupar comigo.
CENA 69. APARTAMENTO/SALA - INTERIOR - DIA
	O set de filmagens comandado por Holmes, num apartamento vazio, é
	de uma precariedade total. Além dele, estão presentes na sala o
	ator AFONSO (25 anos), um OPERADOR DE CÂMARA, que segura uma
	câmara DV amadora e uma ASSISTENTE, com cara de
	estudante/estagiária. Cátia conversa com Holmes.
	               HOLMES
	               (incrédulo) Tá brincando.
	               CÁTIA
	               Ele parou mesmo. Desistiu. Agora o roteiro é todo
	               teu. Quantos dias de filmagem ainda faltam?
	               HOLMES
	               Não sei. O dinheiro acabou.
	               CÁTIA
	               Mas tu disse que ia fazer o filme com três mil
	               reais.
	               HOLMES
	               Fiz uma parte. Mais da metade. (barulho de porta
	               abrindo; Holmes fala mais baixo) Mas a Cassandra
	               tá complicando.
	Cassandra entra na sala, vinda do quarto, maquiada, segurando
	alguns produtos de maquiagem na mão. Está com uma cara péssima e
	um humor pior ainda.
	               CASSANDRA
	               (para Cátia) Ôi. (para Holmes) Conseguiu a grana?
	               HOLMES
	               (titubeia) A grana?
	               CASSANDRA
	               É aquela coisa que serve pra pagar maquiagem,
	               comida, aluguel. Conseguiu?
	               HOLMES
	               Ainda não. (pega no bolso uma fita mini-DV) Mas eu
	               consegui uma mini-DV nova. Não vamos mais ter que
	               refazer por causa de fita amassada. Vamos lá?
CENA 70. APTO. VAZIO - INTERIOR - DIA
	* filmada em DV - atores: AFONSO (25 anos) e Cassandra. É um
	plano-seqüência, com câmara na mão.
	A assistente segura uma claquete improvisada na frente da câmara.
	Atrás, uma porta com uma placa de "Aluga-se".
	               HOLMES
	               (off) Atenção. Tá gravando? Ação.
	Cassandra/garota entra em quadro, com uma bolsa no ombro, e
	aperta a campainha. Afonso/cineasta abre a porta, sorridente, com
	um fotômetro pendurado no pescoço. Beija Cassandra/garota na
	boca. Ela corresponde, mas ainda está desconfiada.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               É aqui?
	               AFONSO
	               Claro. Entra!
	Cassandra/garota entra (a câmara entra junto) e olha em volta. O
	apartamento está vazio. Há uma câmara VHS (bem usada) sobre um
	tripé e um refletor de 1000 watts amarrado num cabo de vassoura,
	que por sua vez está amarrado na caixa da veneziana.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Não é perfeito? Parece o "Último tango em Paris".
Cassandra/garota aponta para o fotômetro.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               O que é isso?
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Um fotômetro. Serve para medir a luz. Tem que
	               considerar a ASA do filme. Sabe a ASA?
	Cassandra/garota olha para a câmara VHS, desconfiada.
	Afonso/cineasta acende o refletor e aproxima o fotômetro do rosto
	da garota.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Perfeito! Estudou a cena?
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Onde tá o ator?
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Ele tinha um compromisso e vai chegar mais tarde.
	               Por enquanto, eu vou fazer o papel dele, só pra
	               gente não perder tempo. Vamos lá? É a cena do
	               beijo.
	Afonso abre os braços. Cassandra/garota olha outra vez para a
	câmara, para Afonso/cineasta e fecha a cara.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Aquilo ali não é filmadora de cinema. Meu tio tem
	               uma igual, mas a dele é mais nova. E esse teu
	               radinho de pilha não engana ninguém. Adeus.
Cassandra/garota sai do quarto, furiosa.
	               HOLMES
	               (off) Vai atrás dela.
	A câmara segue Cassandra, que, em vez de sair direto, vai para o
	banheiro, onde começa a tirar a maquiagem, com a ajuda de um
	pequeno espelho na parede. Holmes entra em quadro.
	               HOLMES
	               Era pra ter saído direto. Mas a cena ficou boa.
	               CASSANDRA
	               Tô indo embora.
Cátia entra em quadro e acompanha a discussão.
	               CASSANDRA
	               Não vou continuar pagando pra trabalhar. Sabe que
	               o imbecil do João desistiu do filme dele? Sabe
	               quanto tempo eu fiquei no ônibus pra vir pra cá? E
	               ainda paguei a passagem. Quando tiver um saquinho
	               de ficha de ônibus, me liga.
	Cassandra termina de retirar a maquiagem, dá as costas para
	Holmes e afasta-se dele. Depois pára e volta-se para Holmes.
	               CASSANDRA
	               Pensando bem, não liga.
	E sai. A câmara vai para Holmes, que olha para Cátia,
	constrangido.
	               CÁTIA
	               E aquele dinheiro que eu te emprestei?
	               HOLMES
	               Gastei com o meu aluguel. Tava seis meses
	               atrasado. (mais baixo) Acabou o filme. (para
	               Cátia) Desculpa.
Holmes olha para a câmara, brabo.
	               HOLMES
	               Tu tava gravando isso tudo? Desliga essa merda.
CENA 71. APTO. DE CÁTIA/SALA - INTERIOR - DIA
	Valdo opera o projetor 16mm. Cátia está sentada ao seu lado. No
	chão há uma caixa de papelão cheia de latas, pequenas e médias,
	com filmes 16mm, alguns em batoques, outros em carretéis.
	Misturados, alguns rolinhos de super-8. Um filme (preto-e-branco)
	está rodando no projetor. Não há som.
	               VALDO
	               Esse eu lembro. "O sexo errado". Tem uma trepada
	               sensacional. A atriz tinha 17 anos. Deu um baita
	               rolo com a mãe dela.
	               CÁTIA
	               Pode tirar. Eu já vi em vídeo.
Valdo pára o projetor, retira o filme e começa a rebobinar.
	               CÁTIA
	               O João Paulo e o Holmes desistiram dos filmes.
	               VALDO
	               Eu sei. Em compensação, eu começo depois de
	               amanhã. Quer dar uma olhada no set?
	               CÁTIA
	               Posso ir mesmo?
	               VALDO
	               Claro. Mas não vai no primeiro dia. Sábado é
	               melhor.
	               CÁTIA
	               (sorrindo) Então vou.
	               VALDO
	               Não quer ler o final que eu escrevi?
	               CÁTIA
	               Não.
	Valdo bota outro filme pra rodar. É um copião montado com durex.
	Não há créditos.
	               VALDO
	               Esse eu nunca vi.
	Uma imagem (desbotada, riscada) da fachada da casa de Linda em
	Nova Itália, com o sol nascendo. Outra imagem: apenas o sol perto
	do horizonte.
	               CÁTIA
	               (baixinho) "Aurora"...
CENA 72. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR
	Cátia entra no set, bem discretamente. Uma das ASSISTENTES DE
	DIREÇÃO sorri para ela e indica uma cadeira vaga, de onde pode
	ver a cama, onde o ator LÉO (40 anos) e Cassandra (de blusa, saia
	e meia de seda) estão sentados numa cama redonda, com espelhos no
	teto, ouvindo instruções de Valdo.
	A luz simula o efeito das lâmpadas coloridas (e meio bagaceiras)
	espalhadas em volta da cama, perto do chão.
	               VALDO
	               (para os atores) Vamos passar a cena toda. Eu vou
	               dando as marcações.
	Cassandra concorda com a cabeça. Valdo vira-se para sentar em sua
	cadeira. Vê Cátia. Acena e sorri para ela.
	               VALDO
	               Vamos lá. Posição inicial.
	Cassandra e Léo levantam-se e vão até a porta. Colocam-se frente
	a frente.
	               VALDO
	               Ação!
	Léo abraça e beija Cassandra, que corresponde. Léo vai empurrando
	Cassandra na direção da cama, sempre beijando. Leó faz com que
	ela se deite.
	               VALDO
	               Perfeito, agora começa a tirar a roupa dela.
Léo tenta tirar a blusa de Cassandra, mas ela resiste.
	               VALDO
	               Ela resiste. Mas ele não quer saber.
	Cátia olha para Valdo, confusa. Com um gesto quase violento, Léo
	tira a blusa de Cassandra. Ela está com um sutiã preto e semi-
	transparente. Léo não pára de beijá-la. Tenta levantar a saia de
	Cassandra.
	               CASSANDRA
	               Espera...
	               VALDO
	               Tem que falar mais alto, Cassandra.
	               CASSANDRA
	               (mais alto) Espera, eu tenho que...
	               VALDO
	               Isso! Pede agora.
	               CASSANDRA
	               (para Léo) Apaga a luz!
Cátia fica tensa.
CENA 73. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ DIA
	Nas mesmas posições dos personagens da cena anterior, sobre uma
	cama, com os mesmos figurinos e fazendo quase a mesma coisa,
	estão Valdo e Cátia. A luz do sol entra pela janela. Valdo beija
	Cátia sem parar. Cátia olha para a janela.
	               CÁTIA
	               (bem baixinho) Só um pouquinho... Eu vou fechar...
Valdo não ouve.
CENA 74. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR
Léo e Cassandra beijam-se, as roupas tiradas pela metade.
	               CASSANDRA
	               Apaga a luz, por favor.
	               VALDO
	               (off) Ele não quer saber de luz nenhuma. (pequena
	               pausa) Agora ela tenta fugir.
	Cassandra faz força para se libertar de Léo, mas ele não a deixa
	escapar. Vai tirando o resto da roupa dela e encaminhando os
	finalmentes da transa.
	               VALDO
	               Agora ela pede de novo.
	               CASSANDRA
	               Apaga a... Ahhh! (Léo conseguiu penetrar) ...a
	               luz! Por favor... (com a boca do ouvido de Valdo)
	               A luz.
	               LÉO
	               Mais luz?
Léo estende o braço e acende a luz principal.
	               VALDO
	               Ela olha pro espelho no teto.
	Cassandra olha para cima, na direção do espelho. Parece
	fascinada. Cátia está mais tensa ainda.
CENA 75. APTO. DE CÁTIA/QUARTO þ INTERIOR þ DIA
	Ponto de vista do teto. Valdo e Cátia, abraçados, sob a luz forte
	que entra pela janela. Cátia olha para cima, com os olhos bem
	abertos.
CENA 76. ESTÚDIO/QUARTO DE MOTEL 2(CENÁRIO) - INTERIOR
	Cátia levanta e pega um roteiro sobre uma três-tabela. Começa a
	folhear o roteiro. Olha para Valdo, abalada.
	               CÁTIA
	               Filho da puta!
	Valdo olha para ela, sem entender o que está acontecendo. Cátia
	corre para fora do cenário, sem dizer coisa alguma.
	               VALDO
	               (para os atores) Só um instante! (na direção de
	               Cátia) Cátia! Cátia!
CENA 77. ESTÚDIO (FORA DO CENÁRIO) - INTERIOR - DIA
	Cátia corre pelo estúdio, que está numa discreta penumbra. Vê o
	ASSISTENTE DE CÂMARA, sentado num canto, manipulando magazines e
	latas de filmes. Cátia vai até lá, pega duas latas fechadas com
	fita crepe. O assistente, surpreso, não reage.
	Cátia corre até um praticável alto, sobe nele e joga a escada no
	chão. Lá em cima há pouca luz. Valdo, Cassandra, Edvaldo e o
	assistente de câmara chegam no praticável. Cátia está tentando
	abrir uma das latas.
	               VALDO
	               (gritando) Calma, Cátia. (para Edvaldo) Joga uma
	               luz.
	Edvaldo começa a ligar um fresnel, enquanto o assistente de
	cãmara pega a escada e a encosta no praticável.
	               CÁTIA
	               Se alguém tentar subir, eu me atiro.
	               CASSANDRA
	               Calma, Cátia.
	Edvaldo liga o fresnel, iluminando o rosto de Cátia. Ela consegue
	abrir uma das latas e tira o negativo de dentro.
	               EDVALDO
	               Porra, ela tá velando tudo!
Valdo sobe dois degraus na escada.
	               VALDO
	               Chega, Cátia.
Cátia, sorridente, mostra o filme para todos.
	               CÁTIA
	               Eu já aprendi alguma coisa sobre cinema. Aprendi o
	               que tem dentro dessas latas. (para Valdo) Se subir
	               mais um degrau, eu abro a outra.
	               CASSANDRA
	               Vamos conversar, Cátia. Desce daí.
	               CÁTIA
	               (para Valdo) Como tu teve coragem de escrever
	               aquilo?
	               VALDO
	               (confuso) Quem escreveu foi o Veronese.
	               CÁTIA
	               Não mente.
Cassandra aproxima-se de Valdo.
	               CASSANDRA
	               O teu micro taí?
	               VALDO
	               Ali no escritório.
	Cassandra sai correndo. Valdo sobe mais um degrau. Cátia empurra
	a escada, quase derrubando Valdo no chão.
	               CÁTIA
	               Eu li o roteiro do Veronese. Não tinha essa cena.
	               VALDO
	               Claro que tinha! Eu só escrevi o final.
Cassandra volta, com o notebook de Valdo na mão.
	               CASSANDRA
	               Cátia, tu deve ter lido a versão anterior, de
	               maio. Depois o Veronese continuou. Tem o dia aqui:
	               20 de junho. Essa cena é do Veronese, Cátia!
	Cátia olha pra baixo, desconcertada. Olha para Valdo, depois para
	Cassandra, depois para Valdo outra vez.
CENA 78. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE
	Valdo e Cátia conversam, sozinhos no camarim. Cátia está com o
	roteiro na mão.
	               VALDO
	               Como eu ia adivinhar? Nós nunca nos encontramos em
	               motel. Tu nunca pediu pra apagar a luz nenhuma.
	               CÁTIA
	               (quase um murmúrio) Pedi. Eu queria fechar a
	               janela.
	               VALDO
	               Se pediu, eu juro que não ouvi. Pra mim, aquilo
	               tudo é ficção.
	               CÁTIA
	               Eu sei. Ficção. (pequena pausa) Por que tu contou
	               pro Veronese sobre nós?
	               VALDO
	               Eu não contei nada...
	               CÁTIA
	               (cortando, séria) Contou. Eu sei que contou. O
	               Veronese escreveu a cena depois de almoçar
	               contigo, no dia em que ele morreu, 20 de junho. Eu
	               tenho certeza. Não mente mais pra mim, por favor.
	Valdo fica quieto por algum tempo, olhando para o lado.
	Finalmente, encara Cátia.
	               VALDO
	               Ele sabia de uma coisa, e disse que ia te contar.
	               Eu... Tive medo.
	               CÁTIA
	               Medo do quê?
CENA 79. RESTAURANTE JAPONÊS - INTERIOR - DIA
	Valdo e Veronese almoçam em restaurante japonês. Veronese tem
	certa dificuldade para usar os pauzinhos. Valdo parece manejá-los
	com maestria.
	               VERONESE
	               Não precisa ter medo. Eu amo muito a Cátia. E vou
	               continuar amando.
	Valdo pega um sushi, molha-o no shoyu e coloca-o na boca. Faz
	tudo isso com um sorriso nos lábios e balançando a cabeça.
	               VALDO
	               (sorrindo, mas já nervoso) Tira essa bobagem da
	               cabeça. Eu pensei que tu queria falar sobre o
	               regulamento do concurso. De onde tu tirou...
	               VERONESE
	               A Cassandra me disse que tu andava estranho. Eu
	               pensei: vou marcar um almoço com o Valdo, faz
	               tempo que a gente não conversa. Aí eu tentei
	               marcar um dia. (pausa) Tu é um cara ocupado, eu
	               sei, mas as tuas desculpas eram horríveis.
	               VALDO
	               Eu tô realmente muito ocupado. O meu longa...
	               VERONESE
	               Tudo bem. É o preço do sucesso. Só que, nos mesmos
	               dias em que eu tentava marcar contigo, depois de
	               não conseguir, eu tentava marcar com a Cátia. A
	               gente almoça juntos, às vezes. (pausa) E ela
	               também dava desculpas horríveis.
	               VALDO
	               Coincidência, Veronese. Que coisa ridícula!
	               VERONESE
	               Quatro vezes seguidas? Coincidência demais. Aí, tu
	               me telefona e diz "amanhã eu posso". E, uma hora
	               depois, a Cátia também me convida pra almoçar.
	Valdo está levando outro sushi à boca. Pára, com o sushi a
	centímetros dos dentes.
	               VALDO
	               Que paranóia. Cara, tu tá completamente enganado.
	               VERONESE
	               Talvez. Mas a Cassandra também me disse outra
	               coisa. Que ela tá transando contigo. Há mais de um
	               mês.
	O sushi escapa dos hashis de Valdo em câmara lenta e mergulha no
	pratinho de shoyu, gerando uma onda de molho que atinge em cheio
	a camisa branca de Valdo. A sujeira é grande.
CENA 80. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE
Cátia olha para Valdo, que olha para Cátia.
	               VALDO
	               Me ouve até o fim! Por favor...
CENA 81. RESTAURANTE JAPONÊS - INTERIOR - DIA
	Segue o diálogo entre Veronese e Valdo, este com a camisa toda
	manchada. Tenta limpá-la com o guardanapo. Não dá certo.
	               VALDO
	               (sorri e tenta recuperar-se) Então... Eu admito.
	               Tô namorando a Cassandra. A gente combinou de não
	               contar pra ninguém, mas ela falou pra ti. E daí? O
	               que a Cátia tem a ver com...
	               VERONESE
	               Tu e a Cassandra. Eu vou contar pra Cátia. Vai ser
	               bom pra mim. Ela sempre sentiu ciúmes da
	               Cassandra. Agora vai parar de encher o saco.
Valdo sente o golpe.
	               VERONESE
	               Eu sei que é melhor ficar quieto. Só preciso que
	               tu me diga a verdade. É um trato. Fica tudo como
	               está. Eu amo muito a Cátia. E decidi morar com
	               ela. Se ela quiser, podemos casar. Tô pensando em
	               ter filhos.
Valdo está vencido.
	               VALDO
	               Olha, Veronese... Eu e a Cátia... Eu sei que não
	               devia... Foi errado. Muito errado.
	               VERONESE
	               Errado? Não sei. Talvez tenha sido bom. Tô falando
	               sério. Me fez pensar. Me fez decidir. (pausa) Eu
	               só vou fazer uma pergunta. Uma só. Tudo bem?
Valdo acente.
	               VERONES
	               Quando vocês transavam, ela te pedia alguma
	               coisa... diferente?
	               VALDO
	               Como assim?
	               VERONESE
	               Na hora do sexo. Ela não te pedia um troço meio
	               estranho?
	               VALDO
	               Não. Nada.
	               VERONESE
	               Alguma coisa com a luz.
	               VALDO
	               Com a luz? Não.
CENA 82. ESTÚDIO/CAMARIM - INTERIOR - NOITE
Cátia olha para Valdo, com uma mistura de dor e desprezo.
	               VALDO
	               Eu fiquei com medo de te magoar.
	               CÁTIA
	               E tu também transa com a Cassandra porque tem medo
	               de me magoar?
	               VALDO
	               Não. Com a Cassandra não é sério. Eu te amo... De
	               verdade. Tu acredita em mim?
	               CÁTIA
	               No teu amor? Claro que não. O que tu sente é outra
	               coisa. Mas tudo bem. Eu acredito no resto. Faz
	               sentido. É o que interessa, né? Juntar os pedaços
	               e encontrar um sentido.
CENA 83. ESTÚDIO - INTERIOR - DIA
* filmada em 35mm - atores: Garcia (cineasta) e Cassandra
	Garcia/cineasta conversa com Cassandra. ROGER (25 anos) opera uma
	câmara DV. Também há um ATOR (40 anos) no estúdio de paredes
	descascadas, iluminado por alguns refletores.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               (apontando) O Roger, que vai fazer câmara, e o
	               Camargo, que vai fazer o papel do cineasta.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Prazer.
	Cassandra/garota vai direto até a câmara e a examina. Roger se
	aproxima. Ela parece duvidar de tudo à sua volta.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Não parece muito uma câmara de cinema.
	               ROGER
	               Mas é. De cinema digital. A gente grava em vídeo,
	               depois passa pra película.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Um filme que ganhou o festival de Cannes foi feito
	               com um câmara igual a essa. "Dançando no escuro".
	               A Bjork, aquela cantora, faz uma cega. Chegou a
	               ver?
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Não. Acontece que eu não sou cega e o público
	               também não. Eu não sou cantora, sou atriz, e não
	               gastei dez mil horas malhando numa academia para
	               ficar dançando no escuro. Eu quero dançar no claro
	               e na frente de uma câmera de cinema.
	Cassandra/garota dá as costas para os homens e se afasta.
	Garcia/cineasta vai atrás dela, desesperado.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               É um filme pós-moderno, que usa várias
	               tecnologias. Amanhã a gente filma em 16mm. Eu
	               juro.
Cassandra/garota pára e volta-se para Garcia.
	               CASSANDRA
	               Amanhã eu quero ver uma câmara de cinema. Cinema!
	               Ou esse filme acaba antes de ter começado.
CENA 84. RUA - EXTERIOR - DIA
* filmada em DV - atores: Afonso e Cassandra
	Em volta de uma câmara 16mm (sobre um tripé), estão
	Afonso/cineasta, um OUTRO ATOR e um OUTRO ROGER (o operador de
	câmara), além de uma pequena equipe, toda de mentira: um OPERADOR
	DE SOM (com um nagra muito velho), uma ASSISTENTE DE DIREÇÃO e
	uma FIGURINISTA. Há até uma claquete de verdade, em que está
	escrito o título do filme: "A ÚLTIMA CHANCE". Cassandra/garota e
	o ator estão frente a frente.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               (para a garota) Você se aproxima dele, diz "eu te
	               amo" e o abraça.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               (nervosa) Eu abraço, entendi.
	Cassandra/garota se afasta um pouco. A assistente de direção
	aproxima-se com a claquete.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Atenção! Vai som.
	               OPERADOR DE SOM
	               Foi som.
	Cassandra/garota olha na direção do Outro Roger, o operador de
	câmara, e nota um sorriso maroto.
	               ASSISTENTE
	               (off) Cena três, plano três, tomada um.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Câmara.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Corta!
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               (surpreso) Corta?
Cassandra/garota aproxima-se da câmara.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               (para Outro Roger) Abre essa câmara.
	               OUTRO ROGER
	               Não posso. Vai estragar o filme.
Afonso/cineasta chega na discussão. Está nervoso.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               O que aconteceu?
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Não tem filme nessa câmara. (aponta para Outro
	               Roger) Ele tava rindo de mim.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Que paranóia. Claro que tem filme. Se abrir, vela.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Eu pago outro. Abre.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Impossível.
	Cassandra/garota se atira na câmara, caindo e derrubando o tripé,
	enquanto luta para abrir a tampa. Consegue abrir: não há filme
	algum na câmara.
	Ela dá um tapa bem estalado na cara Afonso/cineasta, levanta e
	sai. Na porta do estúdio, ainda desabafa, em altos brados:
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Tu ainda vai ouvir falar de mim! Eu vou ser atriz!
	Afonso/cineasta, com a mão sobre a bochecha em que levou o tapa,
	responde, também gritando:
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Tu não é atriz e nunca vai ser!
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               E tu vai passar a vida inteira dizendo que faz
	               cinema pra tentar comer as atrizes. Mas não faz
	               filme nenhum! E não come ninguém!
CENA 85. ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR - DIA
	O último frame do último plano de Cassandra (quando ela diz "E
	não come ninguém") está congelado no monitor de uma ilha de
	edição digital. Cátia e Linda estão sentadas na frente da ilha.
	Cátia está sorrindo, satisfeita.
	               CÁTIA
	               Tá super bom. Bom mesmo! Parabéns.
	               LINDA
	               Mas, daqui pra frente... Não sei. Algumas cenas
	               estão incompletas. E têm três cenas faltando.
	               Nenhum dos dois filmou. (pequena pausa) Eu tive
	               uma idéia. Não sei se vai dar certo. Cátia, eu
	               nunca fiz um filme.
	               CÁTIA
	               Nem eu. Qual é a idéia?
	               LINDA
	               Logo depois dessa cena (aponta para o monitor) vem
	               um letreiro, tipo: "Alguns anos depois."
CENA 86. ESTÚDIO DE TV - INTERIOR - DIA
	* filmada em 35mm e DV - atores: Garcia (cineasta em 35mm),
	Afonso (cineasta em DV) e Cassandra. A idéia é misturar tudo.
CARTÃO: ALGUNS ANOS DEPOIS
	Cassandra/garota, com roupas e cabelo do século 19, fala com
	alguém que não vemos.
	               35mm - CASSANDRA (como GAROTA)
	               É tão difícil saber se é mesmo amor. Mas eu tenho
	               um grande desejo. Talvez "desejo" não seja uma boa
	               palavra. Mas também não posso dizer que eu estou
	               "apaixonada". Apaixonar-se é sentir o coração
	               doendo, é ter febre, é sofrer por alguém. E isso
	               eu não sinto. Talvez o problema seja essa nossa
	               mania de dar nomes para tudo, de tentar que cada
	               coisa seja ligada a uma determinada palavra.
	Continua o monólogo, mas Cassandra está com outro figurino (muito
	mais pobre) e outro penteado (muito menos sofisticado)
	               DV - CASSANDRA (como GAROTA)
	               Quem sabe, no dia em que nos libertarmos das
	               palavras, nossos sentimentos também fiquem mais
	               livres. E a gente consiga ser mais feliz. Sentir,
	               apenas, sem pensar em tantas categorias. Desejo,
	               amor, paixão... As palavras não nos ajudam a
	               compreender o que sentimos. Será que alguém, algum
	               dia, poderá dizer, com toda certeza, "isso é
	               amor", "aquilo não é amor"?
	               DIRETOR
	               (off) Corta! Ótimo. Almoço!
	35mm - Cassandra/garota abandona o set, rumo ao camarim. Enquanto
	caminha, vai tirando bijuterias, roupas e peruca e entregando
	tudo para uma ASSISTENTE DE FIGURINO.
	               ASSISTENTE DE FIGURINO
	               Tem um moço querendo falar com você.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Que moço?
	A assistente aponta para Garcia/cineasta, que está quase na
	frente delas, encostado numa tapadeira.
	               ASSISTENTE DE FIGURINO
	               Aquele ali.
Cassandra/garota olha para Garcia/cineasta, surpresa.
CENA 87. RESTAURANTE DA TV - INTERIOR - DIA
	* filmada em 35mm e DV - atores: Garcia (cineasta em 35mm),
	Afonso (cineasta em DV) e Cassandra. A idéia é continuar
	misturando tudo, desta vez com intervalos menores.
35mm - Cassandra/garota e Garcia/cineasta conversam.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Quase cinco anos.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Passa depressa, né?
	Um FIGURANTE (20 anos) aproxima-se da mesa e estende uma folha de
	papel e uma caneta.
	               FIGURANTE
	               É pra minha noiva. Se chama Dolores.
DV - Cassandra/garota escreve alguma coisa no papel.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Eu começo amanhã, como assistente de direção.
Pára de escrever e olha para o Afonso/cineasta.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Começa o quê?
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               A trabalhar aqui na TV. Na tua novela. Fui
	               selecionado há seis meses, mas só me chamaram
	               agora.
	Cassandra/garota termina de dar o autógrafo e beija o OUTRO
	FIGURANTE, que vai embora, todo feliz.
35mm - Cassandra/garota volta a olhar para Garcia/cineasta
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               E o cinema?
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Fiz um curta. Não ficou muito bom. Vim pro Rio.
	               Trabalhei como assistente de produção em
	               comerciais.
DV - Afonso olha para Cassandra/garota.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Vi todos os capítulos na semana passada. Cento e
	               doze. E sabe qual é a coisa mais impressionante?
	               Ver como a tua personagem cresceu. Era importante
	               desde o começo, mas a partir da terceira semana,
	               toda a novela começou a girar em tua volta.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               A audiência sempre cresce nas minhas cenas. Dizem
	               que tenho "empatia" com o público. E quanto maior
	               o decote, maior a empatia.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               Bobagem. Tu é uma atriz muito talentosa.
35mm - Cassandra sorri.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Ainda não sou nada. Mas quero ser. Eu tenho que
	               fazer cinema. Mas ninguém me convida.
A assistente de figurino aproxima-se da mesa
	               ASSISTENTE
	               Dez minutos. Temos que começar a vestir.
	A assistente começa a colocar as bijuterias de volta. De repente,
	Cassandra/garota segura a mão de Garcia/cineasta.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Vamos fazer um filme? Eu sei de uma boa história.
	               GARCIA (como CINEASTA)
	               Cinema é muito caro.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Vou te contar um segredo: vou posar pra Playboy.
	               Eu não queria, sempre recusava, mas aí eles foram
	               aumentando o cachê, aumentando... E eu aceitei. Um
	               milhão. Vou comprar um apartamento novo, carro
	               novo, roupas novas, mas também vamos fazer um
	               filme. Eu vou ser a atriz principal, e tu vai
	               dirigir.
DV - Afonso olha para Cassandra/garota.
	               AFONSO (como CINEASTA)
	               E qual é a história?
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Jovem cineasta inventa filme de mentira para
	               conquistar garota ingênua que deseja ser atriz.
	               Topa?
Afonso/cineasta fica embasbacado.
CENA 88. PALÁCIO DOS FESTIVAIS DE GRAMADO - INTERIOR - NOITE
	35mm - ESTRELA DO CINEMA BRASILEIRO, ao lado do APRESENTADOR do
	Festival de Gramado, segura um envelope. Estrela abre o envelope
	e lê.
	               ESTRELA
	               E o Kikito de melhor atriz de curta-metragem do
	               Trigésimo Segundo Festival de Gramado vai para...
	               Solemara da Silva, por "Filme de mentira"!
	Aplausos e gritos de "Bravo!" ecoam pelo auditório.
	Cassandra/garota sobe no palco, em deslumbrante e super-decotado
	vestido de noite. Assobios de admiração e gritos de "Gostosa!" se
	misturam aos aplausos.
	A estrela entrega o Kikito para a garota, que vai até o
	microfone.
DV - Cassandra/garota chega no microfone.
	               CASANDRA (como GAROTA)
	               (muito emocionada) Meu Deus do Céu. Acho que vou
	               desmaiar. Eu gostaria de agradecer a toda equipe
	               do filme, ao Festival de Gramado... Mas tem uma
	               pessoa a quem eu tenho que agradecer acima de
	               tudo. E essa pessoa é o homem que eu amo, meu
	               marido e diretor do filme, Volnei Sanches!
35mm - Garcia/cineasta aplaude da platéia. Alguns flashes.
DV - Afonso/cineasta aplaude da platéia.
35mm - Garcia/cineasta acena na direção do palco.
DV - Afonso/cineasta acena na direção do palco. Alguns flashes.
35 mm - Cassandra/garota continua seu discurso.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Há seis anos atrás, o Volnei me convidou para
	               fazer um filme. Ele me jurava que era um filme de
	               verdade. Era mentira. Sabem por quê ele mentiu?
DV - Cassandra/garota continua seu discurso.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Eu pensava que ele só queria se aproveitar de mim.
	               Mas hoje eu sei: ele era capaz de fazer qualquer
	               coisa pra ficar perto de mim, menos confessar que
	               estava apaixonado e assumir que me queria.
35 mm - Cassandra/garota continua seu discurso, emocionada.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Era capaz de escrever uma história, com
	               personagens que ele inventava, pra tentar me
	               explicar o que ele sentia. Era capaz de mentir, de
	               enganar, de chamar um monte de gente para fazer de
	               conta que estava filmando aquela história. E eu,
	               burra, não percebi que só um homem muito
	               apaixonado seria capaz de tanto esforço.
DV - Cassandra/garota continua seu discurso. Está chorando.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Mas hoje eu sei, eu tenho certeza, e o nosso filme
	               é sobre isso. Sobre como o amor nos leva a fazer
	               as coisas mais idiotas e maravilhosas da face da
	               terra. Como o amor cria a arte, como a arte nos
	               faz compreender melhor o mundo e ligar pessoas que
	               estão distantes umas das outras, porque não
	               conseguem expressar suas emoções.
35mm - Cassandra/garota levanta o Kikito.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               Viva o amor!
DVD - Cassandra/garota sacode o Kikito.
	               CASSANDRA (como GAROTA)
	               E viva o cinema!
Mais aplausos. Sobe a música.
CARTÃO 1: ROTEIRO þ Rudi Veronese
CARTÃO 2: MONTAGEM - Linda Veronese e Cátia Lima
CARTÃO 3: DIREÇÃO - João Paulo Bartzen e Holmes Padilha
CENA 89. PEQUENA SALA DE CINEMA - INTERIOR - NOITE
	Continua a música dos créditos. Começam a subir os
	agradecimentos.
	Na sala, ainda escura, estão sentados, assistindo ao roll final:
	Cátia e Linda (bem no fundo); Mirabela e Cassandra (perto delas,
	mas uma fila à frente); Valdo (bem na frente); Holmes (num canto,
	separado dos outros); João Paulo (no meio, com uma OUTRA GAROTA
	ao seu lado); e alguns integrantes das equipes dos filmes (os
	dois atores que fizeram o "cineasta" - Garcia e Afonso -, outros
	atores, técnicos, etc.).
	A luz acende. Por alguns instantes, ninguém diz nada. Finalmente,
	Valdo vira-se para trás.
	               VALDO
	               O filme só tem um problema, Cátia. (percebe que
	               ela não está lá) Cadê a Cátia?
	Todos olham pra trás. Os lugares onde estavam Cátia e Linda estão
	vazios.
	               MIRABELA
	               Elas estavam bem aqui.
	               JOÃO PAULO
	               Qual é o problema, Valdo?
	               VALDO
	               Os créditos estão errados. O filme não é teu, nem
	               do Holmes. É da Cátia e da Linda.
	               JOÃO PAULO
	               Por quê? Elas montaram o que eu filmei.
	               HOLMES
	               O que nós filmamos.
	               JOÃO PAULO
	               Eu filmei. Em 35. Tu gravou esse lixo em digital.
	               HOLMES
	               Lixo? Lixo são esses teus travellings de comercial
	               de refrigerante.
	               MIRABELA
	               Calma, gente! Calma!
	               CASSANDRA
	               Vocês filmaram o que o Veronese escreveu. O filme
	               é dele.
	               VALDO
	               Mas elas que juntaram os pedaços e deram um
	               sentido. Um sentido novo. Isso é o que interessa.
	               A Cátia e a Linda fizeram esse filme. Onde elas
	               estão?
CENA 90. CAIS DO PORTO þ EXTERIOR þ DIA (PÔR DO SOL)
Cátia e Linda conversam na beira do rio.
	               CÁTIA
	               O menino cresce muito solitário, numa cidade do
	               interior. O único divertimento que ele tem é ir ao
	               cinema. Ele se apaixona por várias atrizes. E não
	               é correspondido, claro. Isso faz com que ele fique
	               meio estranho: ele não consegue lidar com as
	               mulheres de verdade. Será que dá um curta?
	               LINDA
	               É a história do meu pai?
	               CÁTIA
	               Talvez, um pouco. Quem pode saber? Ninguém. Nem
	               eu. O que interessa é a história. Tu gostou?
Linda sorri.
	               LINDA
	               Acho que sim. E a segunda idéia?
	               CÁTIA
	               A segunda é mais complicada. Talvez seja um longa.
	               LINDA
	               Sobre...
	               CÁTIA
	               Sobre cinema. (pensa um pouco) E também sobre
	               amor. O Veronese dizia que os filmes bons são
	               sempre sobre amor.
	               LINDA
	               Tem título?
	               CÁTIA
	               Tem. Sal de prata.
	               LINDA
	               Bonito. Sal de prata. Como é a história?
	               CÁTIA
	               Tô recém começando a escrever.
	               LINDA
	               Não enrola. Conta aí.
	               CÁTIA
	               (olhando em volta) Eles devem estar nos
	               procurando. Vamos voltar?
	               LINDA
	               Só a primeira cena, Cátia.
	               CÁTIA
	               A primeira? Essa eu sei, foi o teu pai que
	               escreveu: aparece uma garota, e a gente só vê o
	               rosto dela e os ombros nus. Ela olha para a câmara
	               e diz o seguinte...
Cátia "desmonta", olha para a câmara e sorri.
	               CÁTIA
	               Corta.
CRÉDITOS FINAIS
*************************************************************
	(c) Carlos Gerbase, 2004-2005
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
13/05/2004
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