Jorge Furtado
"São necessários dois para falar a verdade - um para falar e outro para ouvir." Henry David Thoreau
Disseram, e acreditem porque é verdade, que eu voltei americanizado, com um bruto dum dinheiro e que estou muito rico, que não suporto mais o breque do pandeiro, mas isso é mentira. Passei o verão ouvindo tudo do Cartola, um dos maiores gênios já nascidos na terra, e lá tem breque de pandeiro de monte. Mas é fato que voltei de minha brevíssima excursão à Nova Inglaterra - região dos Estados Unidos formada por alguns dos estados mais difíceis de soletrar, Connecticut, Massachusetts, New Hampshire e Rhode Island, mais o Maine e Vermont, o nordeste americano, que em tudo se opõe ao nosso, e talvez por isso espelhe, já que o deles é muito rico e muito gelado – com a sensação de ter feito as pazes com uma velha paixão. E que elite! Isso é que é elite, e não aquilo que eu tenho lá em casa!
Uma livraria só de poesia! Já viram isso? Eu nunca tinha visto. (Glorier Poetry Book Shop, www.grolierpoetrybookshop.org) Achei traduções de Cabral e Pessoa e descobri que Paulo Henriques Britto estourou no nordeste, como o Créu por aqui. Uma das teses campeãs de 2006 em Harvard, coberta de prêmios, foi a de James Pautz, tradução dos sonetos de Britto e Glauco Mattoso. Será que a nossa elite lê poesia? Suponho, pelos discursos, que não.
Sempre gostei dos Estados Unidos, o que me levou a ouvir muitos desaforos que levei para casa e guardei, na prateleira da letra D, entre o desacato e o desprezo. Go yankes!, me diziam as bocas sob os narizes torcidos. E eu argumentava, tá bom, mas e o Vonnegut? Tentei evitar a invasão do Iraque mas o Bush não me leu na Zero Hora (1) e deu no que deu. Vi à venda relógios digitais com contagens regressivas da era Bush, eles estão literalmente contanto os segundos que faltam para que o próprio desocupe a moita.
Além da elite pensante (envergonhada pela democracia que tanto preza ter permitido oito anos de reinado de um idiota), das pessoas de bom senso (chocadas com uma guerra absurda a que foram levadas pelas mentiras lucrativas da extrema direita), dos cidadãos comuns (preocupados com o desemprego, a recessão e a deterioração do estado de bem-estar social), o governo Bush tem um novo inimigo interno: o exército. Parece que os soldados não gostaram nadinha da novidade introduzida na história americana pelo governo do Bush filho: a tortura aos prisioneiros de guerra. Os americanos se orgulhavam de dizer que, ao contrário de ingleses, franceses, alemães, japoneses, espanhóis, portugueses e outras nações colonialistas, eles se meteram em muitas guerras, invadiram muitos países, mas nunca torturaram ninguém. Num estado fundado na tradição democrática, contra a tirania, a tortura sempre foi inaceitável. Bush e CIA sepultaram esta tradição e agora os rapazes que entram armados no país dos outros estão mais preocupados, já que “pau que bate em Chico bate em Francisco” ou, como eu expliquei para eles, “wood that beat in Ali beat in Al, you know?”. Não sei se eles entenderam.
Mas os USA estão muito além de Bush e de seu grupinho pior-de-dois-mundos (direita evangélica e capitalismo selvagem). A nova esperança chama-se Obama. Jovem, brilhante, carismático, Obama parece capaz de devolver a política americana, seqüestrada pelos caipiras e pelos piratas, ao convívio dos homens de boa fé. Que bons ventos o levem, a “terra dos homens livres” bem que merece.
Foi lá, na Nova Inglaterra, que nasceu, viveu e morreu um destes homens livres, Henry David Thoreau (Concord, Massachusetts, 12 de julho de 1817 — Concord, 6 de maio de 1862). Poeta, ensaísta, político, ecologista, abolicionista, místico, herói da resistência civil, Thoreau foi preso por se recusar a pagar impostos que financiavam a guerra contra o México. Soldado das utopias, herói do individualismo ("Qualquer homem mais correto que seus vizinhos constitui uma maioria de um."), defensor das minorias ("Nunca é muito tarde para abandonarmos nossos preconceitos.”), Thoreau representa o que a América tem de melhor, tradição que foi dar no movimento beat, em Dylan e nos hippies. Só coisa boa.
Além do texto “Desobediência Civil”, um dos seus livros mais conhecidos é “Walden ou a vida nos bosques” (Editora Global, São Paulo, 1985), onde canta seu amor à natureza e seu desapego às futilidades da civilização, “como se fosse possível matar o tempo sem ferir a eternidade”. Walden, o lago entre as montanhas e florestas de Concord onde Thoreau viveu solitário por dois anos, é este que aparece congelado aí atrás. Este, que aparece congelado aí na frente, tremendo sob um frio de 8 graus negativos, sou eu. Só pela foto não dá para sentir o vento gélido que corre sobre o Walden e fustiga minha nuca e orelhas, mas que ainda traz as palavras do poeta da liberdade americana, a nos lembrar que "os sonhos são os parâmetros do nosso caráter”.
(1) Texto publicado em Zero Hora, 08.03.2003, há exatos 5 anos.
Qual a sua vice-pátria?
Eu sei, o conceito é absurdo, a própria idéia de pátria é meio estranha. Tem um personagem do Vonnegut em O Espião Americano que, ao ser perguntado em juízo se ama seu país, diz que não consegue envolver-se emocionalmente com imóveis. Um país, é claro, é mais que um imóvel, é uma memória comum, feita com uma língua e uma história.
Minha vice-pátria é os Estados Unidos. Nunca morei lá, mas não há outro país do qual eu tenha tantas boas lembranças, e olha que Paris tem um sorvete de chocolate inesquecível. Não tenho espaço aqui nem mesmo para começar uma lista dos escritores, músicos, cineastas, atores, artistas plásticos (etc, etc) americanos que fazem parte da minha educação sentimental, faça você a sua própria lista.
Todos os nascidos depois de 1914, quando o centro financeiro mundial mudou-se de Londres para Nova Iorque, cresceram sob o império americano. Impérios estabelecem suas fronteiras pelas armas, mas mantêm seu domínio com uma mistura de força, poder econômico, riqueza cultural e bom senso. Ao inventar uma guerra bem mais difícil de explicar do que a média, os americanos podem estar decretando o fim do seu império. Líderes devem saber que trocar a admiração pelo medo é sempre um mau negócio.
Sobre Henry David Thoreau
http://en.wikipedia.org/wiki/Henry_David_Thoreau
Salve Jorge! é difícil não gostar dos EUA. eles nos deram também Orson Welles e George Stoney, que está com 92 anos, fazendo filmes e subindo escadas. abração, paulo
A demonização dos americanos é uma bobagem. Lembrei de Caetano agora: Entre a delícia e a desgraça Entre o monstruoso e o sublime Americanos não são americanos São velhos homens humanos Chegando, passando, atravessando. São tipicamente americanos. Americanos sentem que algo se perdeu Algo se quebrou, está se quebrando.