No ótimo documentário “Narciso em férias”, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, Caetano Veloso narra sua própria vida com o brilhantismo que, em prosa, se aproxima daquele que atinge com seus versos. O filme tem, entre muitos méritos, o de reorganizar o passado e, assim, nos dar elementos para entender o agora.
Não há no filme muitas novidades factuais para quem leu “Verdade Tropical”, Caetano narra sua prisão em dezembro de 1968, que durou quase dois meses, seguidos de quatro meses de reclusão em casa e dois anos e meio de exílio. Como o próprio Caetano diz, citando seu amigo Rogério Duarte, preso e barbaramente torturado pela ditadura militar: “Quem é preso, é preso para sempre”.'
Ditaduras e tiranos não precisam de qualquer justificativa para exercer sua desumanidade, mas os militares brasileiros que prenderam Caetano e Gil em 1968, com sua obsessão por registros, atas e pareceres, deixaram por escrito os motivos alegados para a prisão, carimbaram e assinaram as provas de sua estultice. Os documentos do caso vão do trágico ao hilário em corte seco, os carcereiros de Caetano e Gil eram cruéis e tolos.'
Os supostos motivos da prisão foram, em resumo, duas notícias falsas, que na época ainda não se chamavam fake news. A primeira é que Caetano teria cantado, num show na boate Sucata, o Hino Nacional com a letra alterada, com palavrões, “com a letra da Tropicália”. O que de fato aconteceu foi que um dos guitarristas, provavelmente Sergio Dias, dos Mutantes, tocou acordes da Marsalhesa que, como se sabe, é o hino nacional sim, mas da França. Parece que os militares franceses não se importaram, até porque os Beatles já tinham usado a Marselhesa para abrir a gravação de “Love, Love, Love” (o primeiro video clipe planetário, em 1967).
A segunda mentira dos militares brasileiros para justificar a prisão de Caetano foi a apreensão de um compacto simples com a sua música “Che”. Só que não existe tal música e tal compacto simples. Até a semana passada tinha-se como certo que os escriturários da ditadura se referiam ao compacto com a música “Soy loco por ti América”, que faz uma referência, nem tão velada assim, a Che Guevara: “El nombre del hombre muerto / Ya no se puede decirlo, quién sabe? / Antes que o día arrebente / Antes que o día arrebente / El nombre del hombre muerto / Antes que a definitiva noite se espalhe em Latino América / El nombre del hombre es pueblo,”. Acontece que esta música nem é do Caetano, é de Capinam e Gil, mas o que importa? Ditaduras não se prendem a detalhes.
Pois o Caetano contou ontem, em uma live com integrantes do Ministério Público, que ficou sabendo, por um jornalista que viu o documentário, que existia o tal disco, o compacto “Che”, com um retrato do Che na capa, feito por um músico que se chama... Cataneo.
Talvez Caetano tenha sido preso e exilado, entre outras justificativas cruéis e malucas, por causa de um anagrama. A burrice truculenta, vista de longe, pode ser engraçada. De perto, ao vivo, é assustadora.
https://www.discogs.com/Cataneo-Hasta-Siempre-Che-/release/8605523