Jorge Furtado
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.” Joaquim Nabuco (1849 – 1910)
O Brasil é provavelmente o país mais racista do mundo. Os brancos aqui são minoria, negros e pardos são 50,7% da população, mas os brancos são esmagadora maioria no Congresso, nos governos estaduais e municipais, nos ministérios, no judiciário, na presidência e diretorias de empresas privadas, nas universidades, nos anúncios publicitários e nos papéis principais de filmes, novelas e séries de televisão. Os negros e pardos são pouco mais da metade dos brasileiros, mas são 62% da população carcerária e 68% das vítimas de homicídio, isso num país onde a polícia mata seis pessoas por dia.
Na crescente intolerância brasileira, em que os ignorantes, os preconceituosos, os falsos religiosos achacadores, os homofóbicos, os que não gostam de pobres, pretos, índios e de nordestinos, os racistas e os fascistas perdem a vergonha de demonstrar sua indigência mental em público, está cada vez mais difícil ser feliz. São frequentes os sinais de agressividade, trogloditas histéricos – quase sempre covardemente em grupo – que atacam pessoas em restaurantes, lojas, livrarias, aviões ou nas redes sociais. Os agressores são, via de regra, toscos formados por uma sociedade – família, escola, mídia, igrejas, governo, redes sociais – que não ensina a pensar, são midiotas alimentados por uma imprensa parcial e de má qualidade e por comunicadores e parlamentares que vivem de sua infâmia, destilando pobreza de espírito em troca de audiência e votos.
Tentar entender como pensam os fascistas e como chegam ao poder, com sua pregação de ódio, preconceito e ignorância, é o desafio da hora no Brasil. Para ajudar, recomendo a leitura de Mein Kampf: A História do Livro, do jornalista e documentarista francês Antoine Viktine (Nova Fronteira, 2010). Ele analisa em profundidade como um panfleto alucinadamente racista e belicista escrito por um psicopata como Adolf Hitler se tornou o best-seller que lhe abriu o caminho para o poder, isso numa sociedade culta como a alemã. Mein Kampf (Minha Luta) é um rol de atrocidades que revela o profundo ódio de Hitler pelos judeus, pelos negros, pela França e pela raça humana em geral, e mesmo assim foi ignorado por muitos e, pior, aceito por muita gente.
No livro, Hitler se refere aos franceses como um “povo que está cada vez mais no nível dos negros” e que assim “põe surdamente em perigo, através do apoio que dá aos judeus para atingir seus objetivos de dominação universal, a existência da raça branca na Europa”. Ainda assim, depois de ter lido esse texto e com Hitler já no poder (1933), o ministro do Exterior francês Louis Barthou foi capaz de declarar que “se existe na terra um homem que quer a paz é Hitler”. Mas nem todo mundo se enganou com Hitler. Winston Churchill, que leu e estudou Mein Kampf, manifestou a grande preocupação de que alguém com tais pensamentos governasse a Alemanha e conclui que Hitler não era “frequentável”. Quando o mundo percebeu que as ideias de Hitler, na prática, significavam destruição e morte, já era tarde demais.
Não sei quando, no Brasil, a discordância democrática e civilizada passou do ponto e se tornou a intolerância que temos hoje. Sei que o racismo que formou nosso país, a última nação escravagista do Ocidente, é a mais cruel e desumana forma de violência. Como explicar a uma criança que ela é discriminada por causa da cor da sua pele? Como sonhar com a possibilidade de um dia virmos a ser um país civilizado sem assumirmos e superarmos nossa criminosa desigualdade social e o nosso escandaloso racismo?
Uma etapa fundamental deste processo civilizatório é a construção de um imaginário positivo habitado por personagens negros. Fica difícil às crianças negras crescer com autoestima lendo livros, gibis, vendo filmes, programas de tevê e anúncios publicitários em que o padrão de beleza e virtude é branco, onde negros só fazem papel de escravos, empregados domésticos, bandidos, excluídos ou famintos.
Por isso é tão importante o trabalho de atores negros como Taís Araújo, Lázaro Ramos, Luiz Miranda, Camila Pitanga, Grande Otelo, Milton Gonçalves, Fabricio Boliveira, Helio de La Peña, Flávio Bauraqui, Zózimo Bulbul, Ruth de Souza, Zezé Motta, Zezé Barbosa, João Acaiabe, Sirmar Antunes, Álvaro Costa, Érico Brás, Ailton Graça, Sheron Menezes, Lea Garcia, Elisa Lucinda, Leandro Firmino, Darlan Cunha, Douglas Silva, Seu Jorge, Neusa Borges, Sergio Menezes, Paulo Américo, Audri D’Anunciação, Antônio Pitanga e, infelizmente, nem tantos outros.
As pessoas que publicaram comentários racistas na página da Taís Araújo devem ser identificadas e processadas criminalmente, ela prestou um serviço ao país quando denunciou os criminosos à polícia. A democracia pressupõe a convivência com ideias diferentes das suas desde que essas ideias respeitem os princípios básicos da civilidade. Racistas, fascistas, nazistas, machistas, homofóbicos, exploradores da fé alheia, não são frequentáveis. Com essa gente, não tem conversa.
Jorge Furtado *
(artigo publicado no caderno Proa do jornal Zero Hora em 07.11.15)
*Cineasta, autor da série “Mister Brau”