Jorge Furtado
Foi o ensaio de Walter Benjamin “O Narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov” que me levou a este extraordinário contador de histórias russo, um dos autores preferidos de Tchekhov. Tinha lido o ensaio de Benjamin há muito tempo, mas só no ano passado encontrei as traduções de Leskov para o português, li todas que sei que existem, cinco livros dele e um conto numa antologia. Se alguém souber de mais alguma, por favor me avise. Para quem quer começar, sugiro “Homens Interessantes e outras histórias” (contos), e depois “Lady Macbeth do distrito de Mtzensk” (novela). Não é à toa que Benjamin escolheu Leskov para falar sobre o a experiência da arte de narrar. Suas histórias são espetaculares, impossível parar de ler, com seus grandes personagens, enredos eletrizantes, viradas e finais surpreendentes, prontas para filmar, e muitas já viraram filmes. Benjamin ensina: “Metade da arte da narrativa está em, ao comunicar uma história, evitar explicações. Nisso Leskov é magistral”.
Já li o ensaio de Benjamin algumas vezes, tem ensinamentos e observações brilhantes, mas sempre me incomodou este título, “O narrador”, todo tempo ele está falando do contador de histórias. Em português, a primeira compreensão de “o narrador” é alguém, um personagem que, dentro da história, narra os acontecimentos, como Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas”, ou Holden em “Apanhador no campo de centeio” ou o dr. Watson nas aventuras de Sherlock. Não é deles que o ensaio de Benjamin trata. O narrador a que ele se refere é Nicolai Leskov, como seriam Guimarães Rosa, Salinger ou Edgar Alan Poe nos exemplos que eu citei. A palavra em alemão é “erzähler”, se não me falha o Google Translator, “narrador”. Não existe uma única palavra em português para designar “o contador de histórias”, como o “griot” africano (palavra de origem francesa), a escolha que o tradutor fez, “o narrador”, confunde a compreensão do ensaio. Não sei nenhuma palavra de alemão que não esteja num cardápio, mas fiquei feliz em saber que na nova edição brasileira das obras de Benjamin os tradutores concordam comigo e chamaram o ensaio de “O contador de histórias”.
E já que é para implicar, também encontrei escolhas estranhas na tradução do ensaio mais conhecido de Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, um texto iluminado, inventivo, poético, onde Benjamin especula sobre as transformações do sentido da arte na era das cópias e, especialmente, na era do cinema. Este é seu texto mais citado e comentado, não há TCC ou tese de mestrado de comunicação ou cinema que não se apoie em alguns de seus conceitos. Ele anota, por exemplo, que “Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a difusão em
massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode pagar um filme. O filme é uma criação da coletividade”. Um filme existe, sempre, para ser visto, ninguém esconde um longa-metragem na gaveta, como pode fazer com um mau poema ou desenho.
Já li e percorri o texto de Benjamin muitas vezes, sempre descubro frases e conceitos esclarecedores. Por exemplo, Benjamin diz que “Marx orientou suas investigações de forma a dar-lhes valor de prognósticos”, o que finalmente jogou luz sobre a frase que ouvi muitas vezes de Carlos Manga: “Flashback é coisa de comunista”. Manga, em sua sabedoria, intuía que o flashback tenta justificar o presente apoiando-se no passado, o que denota certa fragilidade dramatúrgica, as grandes cenas são, em geral, autoexplicativas, não carecem de antecedentes.
Benjamin relaciona o surgimento do cinema falado com o fascismo:
“É certo que o cinema falado representou, inicialmente, um retrocesso; seu público restringiu-se ao delimitado pelas fronteiras linguísticas, e esse fenômeno foi concomitante com a ênfase dada pelo fascismo aos interesses nacionais. Mais importante, contudo, que registrar esse retrocesso, que de qualquer modo será em breve compensado pela sincronização, é analisar sua relação com o fascismo. A simultaneidade dos dois fenômenos se baseia na crise econômica. As mesmas turbulências que de modo geral levaram à tentativa de estabilizar as relações de propriedade vigentes pela violência aberta, isto é, segundo formas fascistas, levaram o capital investido na indústria cinematográfica, ameaçado, a preparar o caminho para o cinema falado. A introdução do cinema falado aliviou temporariamente a crise.”
Sincronização? Em alemão, synchronisierung. Aqui não há dúvidas, ele está se referindo à dublagem, já encontrei uma tradução portuguesa que usa a palavra “dobragem”. Estranha também é a escolha por Benjamin da palavra “kameramann” (o tradutor escolheu, acertadamente, cinegrafista) para falar sobre o ofício do cineasta, como se a escolha dos planos, a decupagem da cena, fosse uma tarefa do operador de câmera e não do diretor. Também confunde a escolha da palavra “mágico” (em alemão, “magier”) para falar sobre “o comportamento do mágico, que deposita as mãos sobre um doente para curá-lo”, o que nos faz pensar num “curandeiro” e não em alguém que tira coelhos da cartola.
A questão se complica na escolha de outra palavra, que está num subtítulo do artigo: “Film und Testleistung”. “Testleistung”, no dicionário é “desempenho de teste”. Ou “test performance”, em inglês. O tradutor escolheu “Cinema e teste”:
“Ao contrário do ator de teatro, o intérprete de um filme não representa diante de um público qualquer a cena a ser reproduzida, e sim diante de um grêmio de especialistas - produtor, diretor, operador, engenheiro do som ou da iluminação, etc. - que a todo o momento tem o direito de intervir. Do ponto de vista social, é uma característica muito importante. A intervenção de um grêmio de técnicos é, com efeito, típica do desempenho esportivo e, em geral, da execução de um teste. É uma intervenção desse tipo que determina, em grande parte, o processo de produção cinematográfica. Como se sabe, muitos trechos são filmados em múltiplas variantes. Um grito de socorro, por exemplo, pode ser registrado em várias versões. O montador procede então à seleção, escolhendo uma delas como quem proclama um recorde”.
Acredito que Benjamin, em sua analogia esportiva, comete o erro de julgar que a escolha do plano filmado, pelo diretor e pelo montador, seja objetiva. Um atleta olímpico de salto em altura não escolhe o salto mais bonito ou mais expressivo, escolhe sempre o salto mais alto. O atleta está sempre testando seus limites, objetivos, medidos em centímetros. O ator, ao contrário, está experimentado possibilidades, totalmente subjetivas. Neste sentido, a palavra “teste” não me parece uma boa escolha. Aprendi com Ivo Barroso que a única crítica honesta a uma tradução é outra tradução. Neste caso, eu escolheria, no lugar de teste, “desempenho” ou, para usar uma palavra em inglês já assimilada, “performance”.
Benjamin abre seu ensaio dizendo que “Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, esse modo de produção ainda estava em seus primórdios”. Parece que Benjamin também analisa o cinema (em 1936) ainda com ideias do cinema mudo, quando afirma que “os astros cinematográficos só muito raramente são bons atores, no sentido do teatro”. Tenho certeza que ele mudaria rapidamente de opinião se visse Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”, ou Robert de Niro em “Táxi Driver”, ou Kate Winslet em “Mare of Eastown”.
Os ensaios de Walter Benjamin sobre o contador de histórias e sobre a arte são obras-primas, reflexões absurdamente lúcidas de um dos maiores filósofos do século 20, uma mente livre e criativa que influenciou todos que o seguiram, mas talvez eles confirmem o verso de Caetano: só é possível filosofar em alemão.
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Adicionado em 13.07.21
Li hoje uma outra tradução de "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", da L&PM, 2021, tradução Gabriel Valladão Silva, que me pareceu a melhor de todas. Ele coteja as três versões publicadas do ensaio e aproveita trechos das três, com várias notas e comentários. Sua escolha da palavra "mago" para traduzir "magiers" é sem dúvida a melhor. Ele mantém quase sempre a palavra "teste", mas às vezes opta por "desempenho" e outras vezes por "performance". Adicionei à bibliografia.
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Bibliografia
Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Ed. Brasiliense, 2012, São Paulo.
Benjamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução de Gabriel Valladão Silva. Ed. L&PM, 2021, Porto Alegre.
Benjamin, Walter. A arte de contar histórias. Tradução de Francisco Pinheiro machado. Ed. Hedra, 2018, São Paulo.
Leskov, Nicolai. Homens interessantes e outras histórias. Tradução de Noé Oliveira Policarpo Polli. Ed. 34, 2012, São Paulo.
Leskov, Nicolai. A fraude e outras histórias. Tradução de Denise Salles. Ed. 34, 2012, São Paulo.
Leskov, Nicolai. A fraude e outras histórias. Tradução de Denise Salles. Ed. 34, 2012, São Paulo.
Leskov, Nicolai. Lady Macbeth do distrito de Mtzensk. Tradução de Paulo Bezerra. Ed. 34, 2009, São Paulo.
Leskov, Nicolai. Apenas um retrato de mulher (e Os Amores de Liúba). Tradução de Otto Schneider, Ed. Melhoramentos. Sem data. São Paulo.
Leskov, Nikolai. Vontade de ferro. Tradução de Francisco Araújo. Edições Jabuticaba, 2020, São Paulo
Leskov, Nikolai. Lady Macbeth do distrito de Mtzensk, in Contos Russo, Vol. 2. Tradução de Oleg Almeida. Ed. Martin Claret, 2015, São Paulo
Na internet:
http://www.usp.br/cje/depaula/wp-content/uploads/2017/03/O-Narrador_Walt...
http://www.hrenatoh.net/curso/artetec/txt_benjamin.pdf
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/2a/Benjamin_Kunstwerk.pdf