Jorge Furtado

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Sonetos de Shakespeare: o som e o sentido.*

Uma das grandes frases de “Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, é a fala da Duquesa para Alice, no capítulo nove: “Take care of the sense, and the sounds will take care of themselves”. A tradução literal seria: “Cuide dos sentidos que os sons cuidarão de si mesmos”. A frase é ótima, mas este e outros conselhos da Duquesa não devem ser levados muito a sério, ela é um tanto perturbada, talvez em consequência do consumo exagerado de pimenta, e diz muitas bobagens: não é boa idéia separar sons e sentidos, especialmente quando o assunto é poesia.
 
Muita coisa se perde na tradução literal da frase de Carroll. Repare em sua métrica e sonoridade, nas aliterações (repetição das letras e fonemas, t, c/k, s), nas palavras sibilantes (sense, sounds, themselves), nas anáforas (palavras ou grupos de palavras repetidas, “take care of”), nos ecos sonoros (the sense / themselves). Se estas dificuldades de tradução já parecem ameaçadoras, acrescente a elas o fato da frase de Carroll ser uma paródia de um conhecido ditado inglês: “Take care of the pence, and the pounds will take care of themselves”: cuide dos “pence” (moedinhas) que as “pounds” (libras) cuidarão de si mesmas, cuide dos detalhes e tudo dará certo. Carroll deu um sentido inteiramente novo a um provérbio com a mudança de apenas três letras, sense/pence, pounds/sounds. (O Barão de Itararé consegue feito semelhante em “Quem dá aos pobres, empresta, adeus!”, mas a piada do Barão, um sábio conselho econômico, não fala dos sons e dos sentidos das palavras).
 
Você acha difícil traduzir a frase de Carroll? Pois agora acrescente a esta dificuldade as rimas, a métrica, um número específico de versos e estrofes, a imaginação sem igual, o mais saudável erotismo, o raro senso de humor e a capacidade expressiva de William Shakespeare - o maior criador desde sempre, no auge de sua forma - e você terá uma idéia do que é a tarefa de traduzir os seus sonetos.
 
Parece assustador? É muita pretensão? Pois eu garanto que pode ser também uma tarefa muito divertida. 
 
A idéia deste livro (Sonetos de Shakespeare, faça você mesmo, Editora Objetiva) e de seus 25 autores  é esta: divertir e incentivar o leitor a fazer sua própria leitura e tradução dos sonetos.
 
Experimente você mesmo, começando do começo. Esta é a primeira estrofe do soneto número 1:
 
From fairest creatures we desire increase
That thereby beauty’s rose might never die,
But as the riper should by time decease
His tender heir might bear his memory
 
Uma tradução literal tosca seria:
 
Das criaturas (seres) mais belas (belos) desejamos filhos (que deixem prole, que se reproduzam), e assim a beleza desta rosa nunca morra. Se aquilo que amadurece com o tempo (um dia) morrerá, seu tenro herdeiro (seu filho) conservará sua memória.
 
Antes de tentar a sua tradução, leia o verso em voz alta, sinta sua sonoridade, suas rimas. O sonetos de Shakespeare seguem uma métrica chamada de “pentâmetro iâmbico”, o nome é estranho mas o efeito é simples, orgânico. A métrica, o ritmo das palavras em cada verso, é construída com grupos de sílabas chamados “pés”. No pé “iâmbico” cada um destes grupos é um “iambo” (ou jambo), uma unidade de tempo breve, um som fraco, seguida de outra longa, um som forte, como batidas do coração, tumTUM, tumTUM. O pé pode ser feito de duas sílabas, pode mas não precisa, o importante é o som: tumTUM, tumTUM, tumTUM.
 
Exemplo de iambos em português: “aTÉ amaNHÃ, se DEUS, quiSER. Se NÃO choVER, eu VOLto PRA te VER, oh mulher!”
 
Pentâmetro porque, no caso dos sonetos de Shakespeare, são cinco pés em cada verso:
 
From / FAIR / est / CREA / tures / WE / de / SIRE / in / CREASE
That / THERE / by / BEAU / ty’s / ROSE/ might / NE/ ver DIE…
 
O inglês é riquíssimo em palavras curtas, Shakespeare constrói versos inteiros só com monossílabos. O português tem outras riquezas, as proparoxítonas, as muitas variações verbais, os substantivos com gênero, as palavras de diferentes origens e sonoridades. Esqueça os pentâmetros iâmbicos, invente suas próprias regras ou simplesmente ignore-as.
 
Outras traduções do mesmo verso, quase literais, bem melhores:
 
Por Enio Ramalho:
Dos mais belos mortais os frutos desejamos
Para que deles a beleza não se perca
Mas, se o que se criou tem que morrer um dia
Que o tenro herdeiro e sua memória nos conserve
 
Por Oscar Mendes:
Os que mais belos não desejamos que cresçam
Para que da beleza a rosa não se extinga
E quando se murchar a flor desabrochada
Tenha na tenra herdeira a vida revivida.
 
Outra tradução, já com alguma preocupação com rimas e métrica:
 
Por Thereza Christina Rocque da Motta:
Dentre os mais belos seres que desejamos enaltecer
Jamais venha a rosa da beleza fenecer
Porém mais madura com o tempo desfaleça
Seu suave herdeiro ostentará a sua lembrança.
 
Cuidando também dos sons e bastante fiel aos sentidos, Juarez Guedes Cruz abre o nosso livro com uma bela tradução do soneto número 1:
 
Por Juarez Guedes Cruz:
À perfeição desejamos permanência
Sendo assim, que linda rosa nunca morra
E, se o tempo corromper a sua essência,
Que a mesma essência no herdeiro ocorra.
 
Ao comparar traduções diferentes de um mesmo verso percebemos a riqueza do original e também, nas escolhas feitas pelos diferentes tradutores, as muitas possibilidades e a beleza da nossa própria língua.
 
Leia o mesmo verso, por outros quatro tradutores.
 
Por Ivo Barroso:
Dos seres ímpares ansiamos prole
Para que a flor do Belo não se extinga,
E se a rosa madura o Tempo colhe,
Fresco botão sua memória vinga.
 
Por Jorge Wanderley:
Dos raros, desejamos descendência,
Que assim não finde a rosa da beleza,
E morto o mais maduro, sua essência
Fique no herdeiro, por inteiro acesa.
 
Por Vasco Graça Moura:
Quer-se prole às mais belas criaturas
pra que não morra a rosa da beleza
e em fenecendo as coisas já maduras
um terno herdeiro as lembre. Mas acesa...
 
Por Jerônimo de Aquino:
Em tudo o que há mais belo, a rosa da beleza
Se nos impõe, gerando o anseio de aumentá-la
E, entre os seres mortais, a própria natureza
Ao herdeiro confere o dom de eternizá-la
 
Li muitas vezes as traduções do Ivo Barroso e só me aventuro nas que ele não fez, por isso nunca tentei traduzir o número 1. Até hoje. Aqui vão algumas tentativas do primeiro verso.
 
Uma:
 
Belas criaturas devem ter crianças
Pra que sua beleza siga sempre viva
E se o fruto maduro ao fim no chão descansa
A semente faz que o verde sobreviva
 
Esta tradução, em dodecassílabos, mantém as referências à natureza que aparecem no original, flor, fruto maduro, semente. Problemas: a rima viva/sobreviva é pobre, sem graça. “Ter crianças” é meio tosco, mas é uma boa rima para “descansa” (substantivo rimando com verbo).  
 
Outra tentativa:
 
Das bonitonas desejamos filhos
Para que seus shapes sigam em cartaz
E se o tempo desfez os seus fundilhos
Na memória, o seu broto lhes refaz
 
Gostei, é tosca mas é engraçada. Aos que reclamam de grosserias nas traduções, é bom lembrar que os sonetos são cheios de duplos sentidos, muitos deles eróticos, alguns alegremente pornográficos.
 
Outra tentativa:
 
Das mais viçosas, lindos descendentes
Que não se esvaia o belo absoluto
Sei que elas murcham, morrem, infelizmente
Mas, antes que a casa caia, deixam frutos
 
Parece um pouco rebuscada, gosto da rimas de meio (esvaia/caia). A mudança de imagem, de frutos que murcham e morrem para casas que caem, é um pouco estranha.
 
Vou continuar tentando. Os 154 sonetos de Shakespeare, com sua profusão de imagens e reflexões sobre a vida, a morte, o amor, o sexo, a amizade, com sua extraordinária riqueza poética e seus muitos sentidos, são tudo o que a arte deve ser: uma fonte permanente de diversão, sabedoria e beleza.
 
Jorge Furtado
Porto Alegre, 16 de setembro de 2010
 
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Fontes na internet:
 
Você pode ler todos os sonetos em muitos sites. Algumas sugestões:
 
Shakespeare’s Sonnets:
http://www.shakespeares-sonnets.com/
 
The Sonnets
http://shakespeare.mit.edu/Poetry/sonnets.html
 
Há muitos dicionários inglês-português on-line, cinco deles podem ser encontrados aqui:  http://www.clubedoprofessor.com.br/traduz/
 
Para ajudar na tradução, você pode consultar este “William Shakespeare Elizabethan Dictionary”:
 
http://www.william-shakespeare.info/william-shakespeare-dictionary.htm
 
Você pode escutar os sonetos na voz de atores ingleses, há muitas gravações disponíveis na internet. Procure no Google (sonnets/shakespeare/audio). Alguns exemplos, aqui:
 
http://librivox.org/sonnets-by-william-shakespeare/
 
ou aqui:
 
http://town.hall.org/radio/HarperAudio/020994_harp_ITH.html
 
Os sonetos são quase música, podem até ser cantados. E é claro que já foram, muitas vezes.  Aqui você pode ouvi-los na voz da cantora israelense Yasmin Kedar:
 
http://www.myspace.com/yasminkedar
 
Para quem quer estudar ou ensinar inglês com os sonetos, aqui vai um link onde há muitos jogos e atividades escolares:
 
http://www.webenglishteacher.com/shakesonnets.html
 
Aqui, um vídeo onde a professora Cam Magee ensina brincando os tais pentâmetros iâmbicos:
 
http://www.shakespeareinamericanlife.org/education/schooldays/iambicpentameter.cfm
 
Os mesmos jogos e brincadeiras podem (e devem!) ser feitos com sonetos (e outras formas poéticas) em português. Para quem procura sonetos em português, o melhor ponto de partida é o excelente site Sonetário, de Glauco Mattoso e Elson Fróes:
 
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/nsonetario.htm
 
Eu cheguei aos sonetos de WS pelas traduções do poeta Ivo Barroso (24 sonetos, Editora Nova Fronteira, 1975), um dos maiores tradutores brasileiros, que agora tem um excelente blog, a "Gaveta do Ivo":
 
http://gavetadoivo.wordpress.com/[
 
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Bibliografia em português:
 
Sonetos de Shakespeare, faça você mesmo. Vários tradutores. Edição bilingue, 24 sonetos escolhidos. Organização Jorge Furtado e Liziane Kugland. Rio de Janeiro, Objetiva, 2010.
 
William Shakespeare, 42 sonetos. Tradução de Ivo Barroso. Edição bilingue, 42 sonetos escolhidos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005.
 
William Shakespeare, Sonetos. Tradução de Jorge Wanderlei. Edição bilingue, os 154 sonetos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991.
 
Shakespeare, Sonetos. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Edição bilingue, 45 sonetos escolhidos. São Paulo, Hedra, 2008.
 
Sonetos, in William Shakespeare, Obra Completa, vol. III. Tradução de Oscar Mendes. Os 154 sonetos. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.
 
Os Sonetos Completos. Tradução de Vasco Graça Moura. Edição bilingue, todos os 154 sonetos. São Paulo, Landmark, 2005.
 
Sonetos ao Jovem Desconhecido. Tradução de Renata Cordeiro. Edição bilingue, os 17 primeiros sonetos. São Paulo, Landy, 2006.
 
154 Sonetos de William Shakespeare. Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta. Edição bilingue, os 154 sonetos. Rio de Janeiro, Ibis, 2009.
 
Sonetos de William Shakespeare. Tradução de Jerônimo de Aquino. Os 154 sonetos, sem os originais. São Paulo, Martin Claret, 2006.
 
Sonetos de Shakespeare. Tradução de Enio Ramalho. Edição bilingue, os 154 sonetos. Porto, Lello e irmãos, 1988.
 
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Sonetos de Shakespeare – Faça Você mesmo

 
Os autores, por enquanto:
 
Guel ARRAES
Giba ASSIS BRASIL
Ivo BARROSO
Lisa Gertum BECKER
Gero CAMILO
Juarez Guedes CRUZ
Clarice FALCÃO
Arthur de FARIA
Aderbal FREIRE Filho
Jorge FURTADO
Julia Anjos FURTADO
Pedro FURTADO
Maria de la Cruz GÓMEZ
Liziane KUGLAND
Ana MARIANO
Fernando MEIRELLES
Wagner MOURA
Edu OLIVEIRA
Isa PESSÔA
Lázaro RAMOS
Paula TAITELBAUM
Fernanda TORRES
Fernanda VERISSIMO
Mariana VERISSIMO
Beatriz VIÉGAS-FARIA
 
 
Numa livraria perto de você:
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=881
 
Trecho em pdf:
http://www.objetiva.com.br/arquivos/capas/881.pdf
 
Capa de Edu Oliveira:
http://www.objetiva.com.br/arquivos/capas/9788539000999_300_site.jpg
 
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* Texto publicado no Caderno de Cultura do jornal Zero Hora em 25/09/10.